Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
523/2002.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE DOS PAIS
DEVER DE VIGILÂNCIA
DANO NÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1.O dever de vigilância que incumbe aos pais que exercem o poder paternal sobre os filhos menores, cuja violação implica responsabilidade fundada em culpa presumida, tem de ser avaliado em concreto, tendo em conta, não apenas o grau exigível de guarda e controlo do incapaz no momento do facto lesivo, mas também, em termos globais , todo o processo educativo e formativo do vigilando - incumbindo aos pais o ónus de alegar e provar os factos idóneos para ilidir a referida presunção de culpa.

2.Não é excessiva uma indemnização de €68.200, arbitrada como compensação dos danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas, causadas por disparo de arma de fogo, que implicaram risco de vida, internamentos prolongados e ditaram sequelas irremediáveis e gravosas para a autonomia e qualidade de vida da vítima, de 7 anos de idade, afectada por uma incapacidade de 75% em consequência das gravosas lesões neurológicas sofridas.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA e BB intentaram, na qualidade de legais representantes de sua filha, a menor CC, acção condenatória, com processo ordinário, contra DD, EE e FF, pedindo a respectiva condenação no pagamento , a título de indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela menor em consequência de disparo com arma de fogo, da quantia de €200.000 e respectivos juros.
Como fundamento do pedido, alegaram que , em 16/8/99, a menor CC se encontrava a brincar com outro menor, de 7 anos de idade (GG) na casa dos pais e avô deste, os ora réus, quando o referido menor foi buscar uma arma de fogo, pertença do terceiro réu, que se encontrava numa arrecadação com a porta aberta, tendo-a apontado e disparado contra a CC, causando-lhe gravíssimas lesões, implicando sequelas permanentes e irremediáveis: tais factos implicariam, por parte dos pais do menor, omissão do dever legal de vigilância e, quanto ao terceiro réu, omissão das medidas de precaução adequadas a evitar o manuseamento da arma de que era proprietário por terceiros.
Os réus contestaram, impugnando, nomeadamente, o incumprimento dos deveres de vigilância em cuja violação se estruturava o pedido, considerando ainda que os referidos menores deviam, na altura da acidente, ser tidos sob a vigilância de um tio da CC, levantando ainda a excepção de prescrição.
Seguiram-se os demais articulados, sendo o MºPº admitido a intervir acessoriamente na lide, nos termos do disposto no art.334º do CPC, procedendo-se a saneamento e condensação da matéria do litígio e considerando improcedente a invocada excepção.

Procedeu-se a julgamento, sendo proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando-se os dois primeiros réus a pagarem à menor Autora a quantia de €68.200 e respectivos juros, absolvendo do pedido o terceiro réu, demandado na veste de proprietário da arma em causa, por se ter entendido que não estava em causa a aplicação do regime contido no nº1 do art. 493º do CC, já que os danos teriam sido causados, não pela arma, mas por quem a empunhou.

Desta decisão, proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Loulé, recorreram para a Relação de Évora os AA., questionando o valor da indemnização arbitrada, e os RR. condenados, impugnando a matéria de facto provada e a solução jurídica do pleito, pondo em causa a violação do dever de vigilância quanto ao seu filho e o montante da indemnização concedida.

A Relação julgou ambas as apelações improcedentes, confirmando a sentença recorrida.


2. Inconformados com o decidido em tal aresto, interpuseram os RR. o presente recurso de revista, que encerram com as seguintes conclusões, que lhe definem o objecto:


1- O Tribunal da Relação de Évora não censurou a decisão proferida pelo Tribunal
1a Instância, negando provimento à apelação.
2 - Com o devido respeito, que é muito, os Recorrentes pugnam pela redução do montante indemnizatório considerado exorbitante e excessivo face às circunstâncias do caso concreto, embora tenham que respeitar a douta decisão de facto das instâncias, nomeadamente, que foi o GG o autor do disparo.
3 - É certo que nos termos do disposto no artigo 491° do Código Civil, "As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude de incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.".
4-0 dever de vigilância prescrito no artigo 491° do Código Civil deve, na quase totalidade da doutrina e jurisprudência, "ser entendido, porém, em relação com as circunstâncias de cada caso, não se podendo ser demasiadamente severo a tal respeito". São de afastar as exigências excessivamente severas de uma vigilância que não deve ser permanente pois levaria a uma limitação da liberdade de movimentos prejudicial ao fim da educação. Veja-se a obra de Henrique Sousa Antunes, sob o título "Responsabilidade Civil dos Obrigados à Vigilância de Pessoa Naturalmente Incapaz", Universidade Católica Editora, Lisboa 2000, assim como as citações e excertos doutrinais e de jurisprudência aí citados.


5 - Na verdade, salvo outra opinião, a presunção de culpa inserta no artigo 491° do Código Civil, há-de entender-se por reduzida quanto aos Recorrentes na produção do evento em causa. Atenda-se também à modesta condição económica destes, aliás, não apurada, por falta de alegação de factos por parte da Autora, assim como às demais circunstâncias do caso a justificar uma redução equitativa e substancial do montante indemnizatório.
6 - Na verdade, são factos assentes que "o 1o réu estava ausente de casa, por se encontrar a trabalhar"; "a 2a ré deixou o GG e CC com o HH e foi para o interior da habitação"; que "era frequente o HH deslocar-se à casa dos réus para brincar com o GG"; que "numa arrecadação que constitui um anexo à casa referida na alínea A), encontrava-se uma pressão de ar, calibre 4,5mmm de que era dono o 3o réu" e considerou-se não provado que o GG passeava-se frequentemente com a arma na sua casa.
7 - Além destas circunstâncias, outras são de considerar:
- Se os pais do GG estavam obrigados ao dever de vigilância no sentido de impedir o seu filho de praticar actos danosos, também os pais da CC estavam obrigados a vigiá-la no sentido de a guardarem livrando-a de situações de perigo, garantido a segurança desta, o que não fizeram.
- No momento e lugar dos factos também se encontrava o HH , pessoa maior e tio da Autora. Este também obrigado ao dever de vigilância enquanto adulto a constituir para a mãe do GG um factor de descanso relativamente à vigilância do filho e da CC.
8 - Aceitando obrigatoriamente a douta decisão das instâncias de que foi o GG o autor do disparo, os pais do menor GG, abstractamente obrigados ao dever de vigilância, no caso concreto nada poderiam fazer para evitar a conduta do filho. O acidente ocorrido foi imprevisível, estando os pais do GG absolutamente impossibilitados para tomar quaisquer medidas impeditivas do acidente.
9-0 acidente foi causado num momento em que o GG se encontrava longe dos pais que em nada contribuíram para a utilização da arma e do disparo.
Deste modo, os ora Recorrentes não omitiram, no caso concreto e circunstâncias dos autos, o seu dever de vigilância.
10 - Também não resultou provado a omissão censurável do trabalho educativo dos demandados em relação ao filho GG.
11- A não afastar-se completamente a presunção de culpa dos recorrentes, a mesma deverá considerar-se significativamente reduzida.
12 - Em relação ao montante indemnizatório, estabelece o artigo 494° do Código Civil: "quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.".
13 - A presunção de culpa do artigo 491° do Código Civil insere-se no conceito de mera culpa a que alude o supra citado normativo 494° deste mesmo diploma legal.
14 - Conforme acima referido, é reduzido o grau de culpabilidade dos recorrentes na produção do acidente, atentas as circunstâncias supra citadas.
15 - Na primeira instância não foi alegada nem resultou apurada com rigor a situação económica dos Apelantes. Atenta, porém, a realidade socio-económica do país relativamente a pessoas com empregos de salários modestos, é certo que os ora Recorrentes são de média/baixa condição económica.
16 - Também esta circunstância determina uma redução do quantitativo indemnizatório.
17 - O cálculo da indemnização por danos não patrimoniais deve obedecer a um juízo equitativo, atendendo-se ao reduzido grau de culpabilidade do lesante, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso, quando a responsabilidade se fundar em mera culpa (artigo 494° do Código Civil).


18- Considera-se como relativamente justo e equilibrado (equitativo) fixar a compensação pelos referidos danos não patrimoniais no montante máximo de € 10.000,00 (dez mil euros).
19 - O Tribunal da Relação de Évora, com todo e o devido respeito, fixando, muito embora, a matéria factual dada como provada na primeira instância, haveria de ter julgado procedente o recurso interposto pelos ora Recorrentes, revogando a douta sentença, substituindo-a por outra em que fosse julgada a acção parcialmente procedente, condenando os RR. a pagar à A. apenas a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), valor que se considera equitativo pelos danos não patrimoniais.
20 - Desta forma, o Tribunal da Relação de Évora, violou o disposto nos artigos 491°, 494° e 496°, n.°3, todos do Código Civil.

Nestes termos e nos mais de direito, deverão V. Exas. conceder provimento ao presente recurso, revogando o douto acórdão recorrido, substituindo-o por outro em que julguem a acção parcialmente procedente, condenando os RR. a pagar à A., a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros).


Os recorridos e o MºPº apresentaram contra-alegações, em que pugnam pela manutenção do decidido no acórdão recorrido .


3. As instâncias assentaram a decisão da causa na seguinte matéria de facto:


1. No dia 16 de Agosto de 1999, pelas 19 horas, a CC encontrava-se a brincar com o GG, na casa onde habitam este e os réus, sita em POVO Velho, Boliqueime (alínea A) dos factos assentes).


2. Numa arrecadação que constituiu um anexo à casa referida na alínea A), encontrava-se uma arma pressão de ar, calibre 4,5mm, de que era dono o 3º réu (alínea B) dos factos assentes).

3. A determinada altura GG foi buscar Uma arma (resposta ao artigo 1° da base instrutória).

4. GG voltou, com a arma, para junto da CC (resposta ao artigo 9o da base instrutória).

5. Quanto surgiu o HH, que pediu a arma ao GG (resposta ao artigo 10° da base instrutória).

6. O GG entregou a arma ao HH (resposta ao artigo ir da base instrutória).

7. HH abriu a arma (resposta ao artigo 12° da base instrutória).

8. Posteriormente fechou a arma e deixou-a em cima de uma mesa (resposta ao artigo 13° da base instrutória).

9. Seguidamente o GG dirigiu-se à referida mesa e de lá retirou a arma (resposta ao artigo 14" da base instrutória).

10. Tendo apontado a arma à CC e disparou na sua direcção (resposta ao artigo 15° da base instrutória).

11. A arma estava municiada com um chumbo (resposta ao artigo 16° da base instrutória).


12. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na alínea A) dos factos assentes, a CC foi atingida por um chumbo proveniente de uma arma (alínea c) dos factos assentes).

13. O referido chumbo acertou no esófago da CC, atravessando-o, e na traqueia, atravessando-a igualmente, alojando-se numa massa muscular do pescoço da CC (alínea D) dos factos assentes).

14. O disparo referido na alínea C) dos factos assentes foi feito pelo GG ( resposta ao artigo 17° da base instrutória).

15. Após o referido disparo a CC desmaiou e sofreu uma paragem cardíaca, tendo de seguida sido transportada para o Hospital de Faro e, depois, para o Hospital de Santa Maria (alínea E) dos factos assentes).

16. Em consequência do disparo a CC sofreu paragem respiratória de duração indeterminada (alínea F) dos factos assentes).

17. E, após, sofreu choque hipovolémico à entrada na UCEP, em Faro (alínea G) dos factos assentes).

18. E sofreu uma anemia aguda que, para resolução, obrigou a uma transfusão de Concentrado de eritrocitos (alínea H) dos factos assentes).

19. E Sofreu perfuração do esófago (alínea I) dos factos assentes).

20. E mediastinite com persistência de febre e infecção (alínea j) dos factos assentes).

21. E sofreu pneumotórax bilateral, pneumomediatino e enfisema subcutâneo (alínea L) dos factos assentes).

22. Para além do referido nas alíneas F) e seguintes, a CC sofreu, ainda, atelectasia parcial do lobo inferior direito (resposta ao artigo 18° da base instrutória).

23. E tetraparésia espástica (resposta ao artigo 19° da base instrutória).

24. Desde a data dos factos até ao dia 30 de Agosto de 1999 a CC esteve na Unidade de cuidados intensivos (resposta ao artigo 20° da base instrutória).

25. Durante esse período foi alvo de ventilação mecânica, num total de 8 dias (resposta ao artigo 21° da base instrutória).

26. Posteriormente foi transferida para a enfermaria de pediatria - cirurgia pediátrica do Hospital de Santa Maria, onde permaneceu até 7 de Outubro de 1999 ( resposta ao artigo 22° da base instrutória).

27. Durante este período, tal como anteriormente nos cuidados intensivos, foi alvo de alimentação parentética num total de quinze dias (resposta ao artigo 23º da base instrutória).

28. Obtida alta, em 7 de Outubro de 1999, continuou a CC na consulta externa de cirurgia e neurologia pediátrica, do Hospital de Santa Maria (resposta ao artigo 24° da base instrutória).

29. Entre 14 de Outubro de 1999 e 14 de Janeiro de 2000, esteve internada no Hospital de Reabilitação de Alcoitão (resposta ao artigo 25° da base instrutória).

30. Desde a data da sua alta foi CC submetida a fisioterapia no Centro de Saúde de Salvaterra de Magos (resposta ao artigo 26° da base instrutória).

31. Desde a sua alta, CC frequentou terapia de fala em Santarém (resposta ao artigo 27° da base instrutória).


32. Tal como frequenta a escola básica, com o apoio de ensino especial (resposta ao artigo 28° da base instrutória).

33. E desloca-se a Lisboa para consultas com médicos especialistas (resposta ao artigo 29° da base instrutória).

34. Caso a CC não tivesse sido logo socorrida no local referido na alínea A) dos factos assentes, os ferimentos que sofreu teriam determinado a sua morte (resposta ao artigo 30° da base instrutória).

35. A CC foi transportada para o Hospital de Faro em perigo de vida (resposta ao artigo 31° da base instrutória).

36. O que determinou que fosse transferida para o Hospital de Santa Maria (resposta ao artigo 32° da base instrutória).

37. Onde permaneceu em perigo de vida ainda por alguns dias (resposta ao artigo 33o da base instrutória).

38. Em resultado do descrito nas alíneas C) e seguintes dos factos assentes, a CC ficou com sequelas de carácter permanente ao nível do cérebro, com consequências psicomotoras (resposta ao artigo 34° da base instrutória).

39. E ao nível da fala (resposta ao artigo 35° da base instrutória).

40. Transitoriamente ficou com sequelas ao nível da visão (resposta ao artigo 37° da base instrutória).

41. E determinou a sua incapacidade genérica permanente parcial de 75% (resposta aos artigos 38°, 39° e 40° da base instrutória).


42. A CC, antes do ocorrido, era uma criança viva, dinâmica e inteligente (resposta ao artigo 41° da base instrutória).

43. Frequentava a 1ª classe do ensino básico, com bom aproveitamento (resposta ao artigo 42° da base instrutória).


44. Era uma criança que brincava, fazia os seus trabalhos e ajudava os seus pais em pequenas tarefas da Casa (resposta ao artigo 43° da base instrutória).

45. Era atenta e aplicada na escola (resposta ao artigo 44° da base instrutória).

46. Cultivava amizades e colegas de brincadeira (resposta ao artigo 45° da base instrutória).

47. Era a alegria de sua Casa (resposta ao artigo 46° da base instrutória).

48. O internamento hospitalar provocou na CC angústia e desgosto (resposta ao artigo 47° da base instrutória).

49. As lesões que sofreu provocaram na CC dores e mal-estar (resposta ao artigo 48° da base instrutória).

50. O que continuará a sofrer por necessitar de ser assistida em hospitais e receber tratamento médico (resposta ao artigo 49° da base instrutória).

51. A CC necessitará, ao longo de toda a sua vida, de assistência médica e medicamentosa, em montante que terá de suportar (resposta ao artigo 50º da base instrutória).

52. Em resultado do referido nas alíneas C) e seguintes a CC reprovou um ano escolar (resposta ao artigo 51° da base instrutória).

53. E perdeu parte das faculdades que a faziam boa aluna (resposta ao artigo 52º da base instrutória).

54. Por ter de frequentar o ensino especial a CC ficou afastada do seu meio escolar e dos seus amigos (resposta ao artigo 53° da base instrutória).

55. O que lhe causa transtorno e angústia (resposta ao artigo 54° da base instrutória).

56. Ao longo de toda a sua vida a CC necessitará de apoio permanente de outras pessoas (resposta ao artigo 55° da base instrutória).

57. No momento referido na alínea A) dos factos assentes o 1º réu estava ausente de Casa, por se encontrar a trabalhar (resposta ao artigo 68º da base instrutória).

58. A 2ª ré deixou o GG e CC com o HH e foi para o interior da habitação (resposta aos artigos 69°, 71° e 72° da base instrutória).

59. Era frequente o HH deslocar-se à casa dos réus para brincar com GG (resposta ao artigo 70° da base instrutória).

60. GG nasceu a 27 de Março de 1992 e é filho de DD e de EE (alínea M) dos factos assentes).

61. O réu FF é avô materno do GG (alínea N) dos factos assentes).

62. Pelos mesmos factos que constituem o objecto dos presentes autos correu termos um processo de inquérito com o n° 741/99.3GDLLE, da 1ª secção do Ministério Público de Loulé, em que foi proferido despacho de arquivamento quanto aos aqui réus e foi deduzida acusação contra HH, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência e omissão, consumado, p. e p. pelos artigos 148°, n° 1 e 3, com referência ao artigo 144°, alíneas b), c) e d), ex vi do artigo 10°, todos do Código Penal (alínea O) dos factos assentes).

63. O processo acima referido e decorrida a fase de instrução, prosseguiu para julgamento no 1º Juízo Criminal deste Tribunal de Loulé, tendo os aqui autores pedido indemnização civil contra o ali arguido HH, após o que os aqui autores apresentaram desistência de queixa e desistência do pedido cível, desistências essas que foram homologadas por sentença transitada em julgado (alínea p) dos factos assentes).



4.Importa realçar liminarmente, para correcta compreensão da matéria do litígio, que:
- face ao objecto da acção, apenas está em causa o ressarcimento dos danos não patrimoniais, sofridos pela menor com as sequelas permanentes das gravosas lesões causadas com o disparo da arma de fogo;
-a responsabilidade imputada aos dois primeiros réus, por exercerem o poder paternal relativamente ao menor que causou tais lesões ,assenta na violação do dever de vigilância sobre a pessoa daquele incapaz, radicando no preenchimento da «fattispecie» contida no art. 491º do CC; na verdade:
- a eventual responsabilidade do proprietário da arma, o terceiro réu, encontra-se definitivamente prejudicada, por não ter sido impugnada a sua absolvição na sentença proferida nos presentes autos;
- a responsabilidade que poderia recair sobre o tio da menor, o HH, referido ao longo da alegação dos recorrentes, decorrente de estar presente no momento em que o menor exibiu a arma que causou as lesões e não ter providenciado pela sua colocação em segurança, foi apreciada no âmbito do procedimento criminal instaurado, na sequência do qual foi deduzido pedido cível enxertado, que terminou por desistência do lesado (pontos 62 e 63 da matéria de facto).

A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com o preenchimento da «fattispecie» do art. 491º do CC, condicionando naturalmente a existência, em concreto, de um dever legal de vigilância sobre o incapaz o funcionamento da presunção legal de culpa, aí estabelecida .
A jurisprudência vem entendendo que a determinação do âmbito, legalmente relevante, de tal dever de vigilância do incapaz por parte de quem sobre ele exerce o poder paternal implica um «ângulo de focagem» alargado, envolvendo, não apenas a existência, em concreto, de um dever de estrita vigilância e controlo do comportamento do menor, no preciso momento em que se produziu o evento danoso, mas também, em termos mais gerais, a ponderação de toda a actividade de educação e formação da personalidade do menor, visando fazer interiorizar por este, na vida relacional, as necessidades de respeito pelos outros e pelos bens jurídicos.
Como é evidente, o âmbito de tal dever de vigilância e controlo «stricto sensu» dos comportamentos do incapaz tem de ser avaliado casuisticamente, tendo em conta , desde logo, a idade do menor e, portanto, o seu grau de autonomia e a capacidade natural de entender e de agir, bem como as concepções e práticas sociais dominantes no meio em que se movimentam os interessados . Como se afirma no Ac. deste Supremo de 6/5/08:

O dever de vigilância, cuja violação implica responsabilidade presumida, culpa in vigilando, não deve ser entendido como uma obrigação quase policial dos obrigados (sejam pais ou tutores), em relação aos vigilandos porque, doutro modo, o não deixar, sobretudo, no que ao poder paternal respeita, alguma margem de liberdade e crescimento do menor, seria contraproducente para a aquisição de regras de comportamento e vivências compatíveis com uma sã formação do carácter e contenderia com a desejável inserção social.

Daí que importe ajuizar, casuisticamente, se tal dever foi ou não cumprido.

Dário Martins de Almeida, obra citada, pág. 230/231:

“ Escreve o Prof. Vaz Serra, se o filho, habitando embora com os pais, pratica o facto ilícito cm condições que excluem esse dever (fá-lo, por exemplo, quando se encontra na escola, longe da vigilância dos pais, e sem que o facto possa revelar falta de educação que os pais deviam dar-lhe), não existiria a presunção de culpa; se ele, não habitando embora com os pais, pratica o facto quando se acha sob o dever de vigilância deles, existiria presunção de culpa” (Boletim nº85, p. 410).

“O dever de vigilância deve ser entendido em relação com as circunstâncias de cada caso, não se podendo ser demasiadamente severo a tal respeito.

As pessoas, que têm o dever de vigilância, têm, em regra, outras ocupações; por outro lado, as concepções

dominantes e os costumes influem na maneira de exercer a vigilância, de modo a não poder considerar-se culpado quem de acordo com elas ou com eles, deixe certa liberdade às pessoas cuja vigilância lhe cabe” (Boletim nº85, p. 426).

E Rodière acentua: que “o pai não pode ser obrigado a exercer em todo o tempo sobre seu filho uma vigilância directa e à vista, que as suas obrigações profissionais não poderiam permitir sempre, nem a idade ou o ofício do filho autorizar sempre”, pelo que “não é… permitido nem afirmar a priori que o pai aceita de maneira irrecusável certos riscos […].

“O que os tribunais devem procurar em cada caso é o que teria feito, nas mesmas circunstâncias, um bom pai de família, consciente dos seus deveres, e comparar-lhe a conduta do interessado ”.

Por outro lado, o dever de vigilância não se esgota na actividade de guarda e controlo do menor no momento em que se verificou o comportamento que causou o dano, começando muito antes e a montante do facto danoso, com a gradual formação da personalidade do menor e a direcção da respectiva educação; como se afirma, em termos paradigmáticos , no Ac. deste Supremo de 15/10/02 (p.02A2638):
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Justifica-se, também nesta sede, uma breve abordagem de índole teórica, a respeito da extensão e conteúdo de tal dever.
Cumpre ter presente que uma das razões que justificam a presunção de incumprimento do dever de vigilância prende-se com uma mais eficaz protecção do lesado contra o risco da irresponsabilidade ou da insolvabilidade do incapaz, autor directo da lesão.
O dever de vigilância deve ser entendido em relação com as circunstâncias de cada caso. Por outro lado, de acordo com o entendimento largamente maioritário da jurisprudência nacional relativamente à avaliação do cumprimento do dever de vigilância sobre incapaz, faz-se frequente apelo aos deveres de educação). Como observa Henrique Antunes, "se não se deve dificultar excessivamente a ilisão da presunção de culpa, também não se pode olvidar a posição do lesado, em cujo interesse existe a disciplina da responsabilidade civil").
Com efeito, na vigilância, encontra-se compreendida a educação,
bastando ao lesado provar a existência do dever de vigilância sem ter de provar a culpa dos pais no defeito de educação que tenha causado o dano
O exercício da vigilância começa antes da produção do resultado danoso.
Ora, é justamente aí que desempenha papel fulcral, a par dos simples conselhos e recomendações - que cabem ainda no exercício da vigilância stricto sensu -, a educação do vigilando, como um processo de construção da personalidade e carácter do menor).
Resulta do exposto que não se afigura legítimo desligar a vigilância da educação, não apenas no sentido de o grau da referida vigilância em sentido estrito depender da educação dada, mas também no sentido de a má educação ser igualmente um cumprimento defeituoso do dever de vigilância, fundamento de responsabilidade.
Tendo presente a grande dificuldade de fazer prova, em tribunal, quanto aos comportamentos, conselhos e exemplos que formam a educação de um menor, deve entender-se que a comprovação genérica de uma boa educação será, em princípio, suficiente para afastar a responsabilidade.
Ora, no caso dos autos, os RR., ao contestar, nem sequer alegaram quaisquer factos susceptíveis de indiciar a comprovação genérica de uma boa educação do vigilando. Por outro lado, também não lograram ilidir a presunção da culpa in educando, isto é, na formação conveniente da personalidade do menor sujeito ao dever de vigilância.
Acresce que a questão da "falta de educação" é particularmente relevante no quadro de situações mais graves, em que o comportamento do incapaz revela um verdadeiro desprezo pelos interesses de outrem. Na verdade, justifica-se a limitação da presunção de culpa na educação a esses actos danosos mais graves e marcadamente intencionais, reveladores da não interiorização de valores relacionais e de respeito pelos outros.
Ora, é justamente esse o quadro a que corresponde a agressão produzida no olho direito do C pelo arremesso intencional de uma pedra pontiaguda, atirada pelo F com o propósito de atingir o outro menor, a quem perseguiu, após uma brincadeira entre crianças em que atiraram pequenas pedras uns aos outros.
Perante actos desta natureza é legítimo entender que há um defeito de direcção geral sobre a pessoa do menor por parte das pessoas obrigadas à sua vigilância.
Então, a presunção de uma educação falhada toma lugar, responsabilizando-se os obrigados ao dever de vigilância por uma falta que antecede o facto danoso. Encarregados, antes do mais, de ensinar ao incapaz a distinção entre o bem e o mal, os titulares do dever de educar/vigiar são moral e civilmente responsáveis pelos desvios de consciência e de comportamento que permitiram no menor.


Transpondo estas considerações gerais para o caso dos autos, é evidente que, embora não recaísse sobre os pais do GG a obrigação de manter uma verdadeira «guarda à vista» sobre o menor, de 7 anos de idade, durante todo o tempo em que brincava com a outra criança, vítima do disparo, deviam ter demonstrado, como forma de afastarem a presunção legal de culpa que sobre eles incidia, que tinham tomado todas as precauções para impedir que o referido menor pudesse ter acesso à arma municiada, depositada em arrecadação, anexa à casa de habitação, prevenindo os danos que pudessem resultar de um disparo acidental. Ora, não tendo logrado provar os factos que alegaram na contestação com vista a afastar o incumprimento do dever de acautelar tal acesso à arma pelo menor (cfr., nomeadamente, a matéria dos arts.56º a 67º da base instrutória) é evidente que não pode ter-se por ilidida a referida presunção legal.
Por outro lado – e perante a existência da presunção legal decorrente do citado art.491º - não basta afirmar, como fazem os recorrentes, que não resultou provada a omissão censurável do trabalho educativo dos RR. em relação ao seu filho: era precisamente a estes que incumbia o ónus probatório sobre tal matéria, devendo ter alegado e provado que educaram adequadamente o menor com vista a prevenir um uso imponderado e potencialmente letal de instrumentos com a perigosidade típica das armas de fogo.


5. Insurgem-se os recorrentes com o montante fixado pelas instâncias para, de acordo com a equidade, compensar os gravosos danos não patrimoniais sofridos pela vítima: €68.200 – sustentando que deveria ser arbitrada indemnização não superior a €10.000.
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Considera-se que inexiste qualquer fundamento para pôr em crise o juízo equitativo formulado pelas instâncias para quantificar a indemnização compensatória de tal tipo de danos, já que o valor adoptado se conforma inteiramente com os critérios que, numa jurisprudência actualista, vêm sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – em que estamos confrontados com gravosas incapacidades que afectam, de forma profunda e irremediável, a qualidade de vida dos lesados ainda jovens no momento do acidente (veja-se , por exemplo, o Ac. proferido por este Supremo em 25/6/09, no p.08B3234).Adere-se, por outro lado, inteiramente ao.
entendimento subjacente ao Ac de23/10/08 proferido no p:08B2318, segundo o qual, em situações limite de numerosas lesões físicas, de elevada gravidade e sofrimento para o lesado, acarretando profundas sequelas, o valor indemnizatório arbitrado como compensação dos danos não patrimoniais não tem necessariamente como limite as quantias geralmente arbitradas a título de compensação da lesão do direito à vida (arbitrando-se, no caso, indemnização no montante de €180.000).


Ora, no caso dos autos, face à impressionante descrição dos padecimentos e irremediáveis sequelas sofridas pela vítima, à sua idade e às gravosas consequências das lesões neurológicas que a afectam ,geradoras de um elevadíssimo grau de incapacidade (75%),com dramática incidência no que respeita à sua autonomia e qualidade futura de vida, se alguma dúvida se pudesse legitimamente colocar era a da suficiência do montante indemnizatório arbitrado – resultando, aliás, da sentença condenatória proferida que, no estabelecimento de tal montante, se teve em conta os prováveis constrangimentos económicos dos responsáveis e a natureza da culpa que lhes foi imputada.


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de Outubro de 2009

Lopes do Rego (Relator)
Pires da Rosa
Custódio Montes