Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6/20.3GARMZ.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
IN DUBIO PRO REO
DOLO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PENA DE PRISÃO
SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO
PENA SUSPENSA
PREVENÇÃO GERAL
BEM JURÍDICO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 01/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

I- Não havendo confissão, a prova dos factos relativos ao dolo, neste caso concreto em que era imputado um crime de tráfico de menor gravidade, atinge-se através da articulação do que se pode extrair dos factos objetivos dados como provados, com as regras da experiência comum, considerando o cidadão médio/comum, sendo isso mesmo o que se deduz do texto da sentença da 1ª instância, particularmente da motivação de facto, depois de eliminadas as incoerências, erros de raciocínio do tribunal a quo e dúvidas indevidas que suscita (apenas no que se relaciona com o dolo da arguida), que não encontram apoio na avaliação das provas que fez, tendo em atenção tudo o que consignou na sentença, quanto à decisão da matéria de facto.

II- São exclusivamente critérios de prevenção que presidem à escolha das penas de substituição.

III- Considerando a natureza do crime de tráfico de menor gravidade cometido pela arguida e bem jurídico violado, é manifesto que a pena de multa de substituição não satisfazia as mais elevadas razões de prevenção geral positiva que no caso concreto se fazem sentir, o que leva a concluir que a comunidade não ficava suficientemente protegida com a aplicação dessa pena de substituição (prevista no art. 45.º, n.º 1, do CP), como pretendia a recorrente.

IV- Sendo necessário reafirmar a validade da norma violada, embora tendo como limite as exigências de prevenção especial, que neste caso são menores (como foi bem explicado pela Relação), atenta desde logo a integração da arguida (a nível pessoal, profissional e social) e a ausência de antecedentes criminais, o que é positivo e contribui para a sua auto-ressocialização, na perspetiva do direito penal preventivo, é ajustada e adequada a pena de substituição aplicada de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo (por ser possível fazer um juízo de prognose favorável), a qual contribui para a futura reintegração social da arguida e satisfaz as finalidades de prevenção.

Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 6/20.3GARMZ.E1.S1

Recurso

Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I. Em processo comum (tribunal singular) n.º 6/20.3GARMTZ do Juízo de Competência Genérica ..., da comarca de Évora, por sentença de 13.01.2022, foi decidido, além do mais:

 Absolver a arguida AA, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal.

 Condenar o arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal, na pena de 1(um) ano e 2(dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.

II. Inconformado com essa sentença, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, o arguido e também o Ministério Público (no tocante à absolvição da arguida), tendo aquele tribunal, por acórdão de 13.09.2022, decidido:

- Alterar a matéria de facto provada, nos termos que expôs, em 2.3.2.1., dados por reproduzidos;

- Na decorrência da alteração da referida matéria de facto, revogou a decisão absolutória recorrida, quanto à arguida AA, condenando-a, como coautora, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p., pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano de prisão, determinando a suspensão da execução da referida pena de prisão, pelo período de 1 (um) ano;
- Quanto ao arguido BB, confirmou a sentença recorrida.

III. Inconformada com esse acórdão do TRE de 13.09.2022, veio a arguida AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos):

A) A sentença de 1.ª instância não deu como provados os factos que preencheriam quanto à Arguida, ora Recorrente, o tipo do crime de tráfico de menor gravidade por que ela vinha acusada, absolvendo-a.

B) Porém, a Relação de Évora, dando provimento ao recurso do Ministério Público, deu tais factos como estabelecidos, condenando-a a uma pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução durante o tal período.

C) A Relação – fundada exclusivamente nos factos estabelecidos pela 1.ª instância, e na fundamentação em que a 1.ª instância se alicerçara para o efeito – estabeleceu o seguinte raciocínio:

i) a Arguida também participava no cultivo da cannabis na Herdade ..., cultivo esse que não estava autorizado;

ii) para o efeito em pauta, não seria decisivo que fosse BB a tratar do cultivo das plantas e da realização das experiências medicinais, cabendo à Arguida a parte do projecto relativa à produção de produtos biológicos, uma vez que a Arguida também participava naqueles actos de cultivo, designadamente porque também regava as plantas [as da cannabis e as da produção biológica, que ocupavam a estufa da Quinta];

iii) considerando a formação académica da Arguida e o facto de estar envolvida com o seu companheiro BB no projecto ambiental levado a cabo na Herdade, visando a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas, e a produção de produtos biológicos, a Arguida não podia deixar de ter conhecimento que o cultivo de cannabis, designadamente para fins medicinais, carece de autorização das autoridades competentes;

iv) de igual modo, a Arguida sabia que a autorização para a plantação da cannabis para fins de investigação medicinal não fora conferida, situação que ela não podia desconhecer, porque explorava em conjunto a actividade empresarial com o companheiro;

v) assim sendo, a Arguida sabia que o cultivo de cannabis para fins medicinais, incluindo a realização de estudos e experiências, sem autorização das autoridades competentes, era proibida e constituía um crime.

D) Não se ignora que os tribunais podem servir-se de presunções para, a partir de factos conhecidos, através de ilações extraídas de acordo com critérios lógicos e conformes à experiência comum, estabelecerem factos desconhecidos.

Isso é comum na vida judiciária, mormente, em matéria penal, quanto ao elemento do tipo subjectivo dos crimes. Não poderia deixar de ser assim, e a Recorrente não põe isso em causa.

A questão está em que as ilações sejam extraídas dos factos conhecidos, através de critérios objectivos, racionais e que obedeçam às leis da lógica e da experiência, surgindo como conclusões naturais e não suscitando dúvida razoável.

E) Ora, à luz desses princípios que decorrem de jurisprudência e doutrina consolidadas, o raciocínio do Acórdão recorrido, mormente quanto aos segmentos supra identificados na Conclusão C), padece de três erros, cometidos contra a lógica e contra os princípios da imediação e da presunção de inocência, a saber:

a) Primeiro: o Acórdão presumiu – para daí extrair uma segunda presunção no sentido de que a Arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei – que a Arguida sabia que a exploração da cannabis para fins de investigação medicinal não fora autorizada, o que não correspondia aos factos dados como assentes e, de acordo com regras elementares da lógica, razoabilidade e objectividade, não podia ter sido estabelecido;

b) Segundo: o Tribunal ignorou o princípio da imediação, uma vez que a conclusão de non liquet estabelecida pela 1.ª instância era racional e logicamente bem fundamentada, não havendo elementos que impusessem decisão diferente;

c) Terceiro: o Acórdão violou o princípio da presunção de inocência, porque, confrontado com duas versões possíveis e plausíveis em relação ao conhecimento que a Recorrente teria da falta de autorização, optou, para além da dúvida razoável, pela tese desfavorável à Arguida.

F) Primeiro erro

Como se retira das passagens do Acórdão recorrido supra sublinhadas, a Relação de Évora deu como provado que a Arguida sabia que a plantação não estava autorizada; ora, esse é o busílis da questão, uma vez que a 1.ª instância não deu tal facto como provado.

O non liquet da 1.ª instância teve precisamente a ver com o facto de não poder dar como estabelecido que ela tinha conhecimento dessa falta de autorização. E por isso é que não pôde dar como provado que a Arguida sabia que estava a adoptar condutas proibidas e punidas por lei.

G) Admita-se que a Relação podia – a partir dos factos efectivamente estabelecidos pela 1.ª instância, e considerando a respectiva fundamentação de facto – discutir se seria ou não adequado extrair a ilação de que a Arguida teria conhecimento de que não havia autorização para a plantação e para, a partir daí, estabelecer uma presunção de 2.ª linha no sentido de que, sabendo que a autorização da licença não fora concedida, estaria a praticar uma conduta proibida e punida por lei.

Foi isso que a Relação procurou fazer, acontecendo, porém, que o fez contra as regras da lógica, razoabilidade e objectividade.

H) Não se põem em causa as três primeiras premissas de que partiu a Relação supra enunciadas na Conclusão C), nem que, estabelecido o facto constante da 4.ª premissa, se poderia estabelecer a presunção da 5.ª premissa, ou seja, que, nesse caso, a Arguida saberia que a sua conduta seria proibida e punida pela lei.

I) O ponto está na presunção relativa à 4.ª premissa supra enunciada: a de que a Arguida sabia que a autorização para a plantação da cannabis para fins de investigação medicinal não fora conferida, situação que ela não podia desconhecer, porque explorava em conjunto a actividade empresarial com o companheiro. Neste item, a presunção do Acórdão viola ostensivamente as regras da lógica, razoabilidade e objectividade, extraindo uma ilação que, para além de uma dúvida razoável, não podia ter sido estabelecida.

J) Vejamos:

a) está assente que, no âmbito do projecto ambiental designado P..., a Arguida se dedicava à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos), o que correspondia à sua actividade comercial de comercialização e produção de produtos biológicos – cfr. factos provados n.os 4, 27 e 29;

b) está igualmente assente que, no âmbito desse projecto, era BB que tratava do cultivo das plantas e realização de experiências com cannabis, tendo a plantação de cannabis o propósito de investigação medicinal – cfr factos provados n.os 5, 20 e 21;

c) segundo a sentença da 1.ª instância, as diligências inerentes à tentativa da legalização do cultivo da planta para fins de investigação medicinal, foram levadas a cabo pelo co-arguido BB – cfr. fundamentação da matéria de facto da sentença de 1.ª instância;

d) segundo a sentença da 1.ª instância, nessas diligências, a única em que a Arguida esteve presente foi numa reunião na Câmara Municipal ... – entidade que veio a pronunciar-se no sentido de que tencionava autorizar a sociedade dos Arguidos para produzir cannabis para efeitos medicinais –, tendo o interlocutor dos Arguidos (o Presidente da Câmara) ficado convencido de que era BB quem liderava esse processo – cfr. facto provado n.º 19 e fundamentação da matéria de facto da sentença de 1.ª instância;

e) segundo a sentença da 1.ª instância, BB referiu “de modo claro e assertivo que informou a Arguida que o cultivo estava legalizado” – cfr. fundamentação da matéria de facto da sentença de 1.ª instância.

K) Estes são os factos. Como é que a partir deles – e não há outros relevantes a considerar – se pode estabelecer a presunção de que a Arguida ora Recorrente tinha conhecimento de que a plantação para fins de investigação medicinal não estava autorizada?

Então, não era BB que acompanhava todo esse processo de autorização para a plantação de cannabis para fins de investigação medicinal (e, mais tarde, para a plantação para fins medicinais), estando a Arguida concentrada na produção dos produtos biológicos para fins alimentares e cosméticos? E não referiu BB – em termos que a 1.ª instância considerou claros e assertivos, e por isso credíveis – que tinha informado a Arguida de que a plantação para os fins da investigação em curso estava autorizada?

O que é que o facto de a Arguida ser licenciada em Direito e de regar as plantas da estufa – argumentos de que se arrima a Relação de Évora – releva para o efeito de se poder tirar a ilação estabelecida pela Relação de que a Arguida, afinal, teria conhecimento dessa falta de autorização?

Como é que, pela circunstância de a Arguida viver maritalmente com BB e de desenvolverem em conjunto um projecto empresarial, se pode dar como adquirido que, sabendo o BB que o licenciamento para o cultivo de cannabis para a investigação medicinal não estava concluído, ela também tinha de o saber, quando não era ela quem tratava desse procedimento, e o companheiro lhe assegurava que, para esse fim concreto, o cultivo estava legalizado?

As perguntas retóricas acabadas de formular são de fácil resposta.

Como é lógico, razoável e decorre da condição humana, as circunstâncias de facto apuradas não podem estabelecer a presunção de que a Arguida sabia que aquela concreta plantação para fins de investigação medicinal levada a cabo por BB não estava autorizada; ou, pelo menos, não se pode estabelecer essa ilação para além da dúvida razoável.

L) Segundo erro

O princípio da imediação é um princípio cardeal do nosso processo penal.

O juiz da 1.ª instância – que contacta directamente com as declarações dos sujeitos processuais e das testemunhas – goza dessa imediação e, por isso mesmo, a lei, a doutrina e a jurisprudência estabelecem que a alteração à matéria de facto tem de decorrer de factos ou de meios de prova que imponham uma conclusão diferente daquela que a 1.ª instância estabeleceu.

Ora, no caso dos autos, a 1.ª instância, que ouviu os Arguidos e as testemunhas, considerou credível a assunção por parte de BB de que informara a sua companheira de que as experiências medicinais que tinham em curso eram feitas com cannabis cuja plantação havia sido autorizada.

Tal conclusão da 1.ª instância é conforme a um critério de experiência comum e de normalidade das relações entre as pessoas, mesmo vivendo juntas. In casu, a convivência marital dos arguidos e o seu empenhamento num projecto ambiental (com duas vertentes distintas, cada uma a cargo de um deles), não alteram a lógica da conclusão do tribunal, até a reforçam.

Todavia, a Relação de Évora – ofendendo o princípio da imediação – optou por ignorar a lógica intrínseca da decisão da 1.ª instância, impondo a sua posição com base em presunções mal estabelecidas e até retiradas de factos não estabelecidos, e sem sequer ponderar a argumentação da 1.ª instância, particularmente quanto à credibilidade atribuída às declarações de BB, quando referiu que tinha comunicado à Recorrente que o cultivo estava legalizado.

M) Terceiro erro

Admita-se que há duas versões possíveis, porque seguramente ambas são possíveis: a de que a Recorrente sabia que a autorização não fora obtida, e a de que não o sabia.

A questão então é a de saber se, considerando os factos dados como provados pela 1.ª instância e a respectiva fundamentação da matéria de facto, a versão da Arguida é plausível, ou se a versão de que a Arguida tinha conhecimento da falta de autorização podia ser estabelecida para além da dúvida razoável.

Ora, à luz do que foi dado como provado pela sentença de 1.ª instância, é plausível que a Arguida – não acompanhando o processo de licenciamento da plantação para a realização de experiências medicinais (a cargo do companheiro), e perante a informação que ele lhe dava de que o cultivo estava legalizado – não tivesse conhecimento de que essa autorização não tivesse sido concedida.

Por outro lado, apenas porque a Arguida tem um bacharelato em Direito, vivia maritalmente com o companheiro com quem participava no projecto agrícola/ambiental P..., sem quaisquer outros factos relevantes, a não ser aqueles que se enunciaram para justificar a plausibilidade da versão da Recorrente, não se pode estabelecer a presunção da Relação de Évora de que a Arguida tinha conhecimento de que essa autorização não fora concedida.

Perante duas versões possíveis, no limite até plausíveis, o princípio da presunção de inocência impõe que o Tribunal não opte pela solução mais desfavorável ao Arguido, o que a Relação não seguiu, agindo, afinal, a partir de uma pura “impressão” subjectiva, talvez filha de um preconceito, quiçá resultado de uma má avaliação das circunstâncias do caso.

N) Pelo exposto, padecendo o Acórdão da Relação de tão graves erros de raciocínio lógico e de Direito, como, salvo melhor opinião, se julga que ficou evidenciado, não pode o Supremo Tribunal de Justiça deixar de anular o Acórdão recorrido, repristinando a sentença da 1.ª instância quanto àquilo que esta julgou como não provado.

O) Não provados os factos em que se consubstanciaria o preenchimento do tipo subjectivo do crime de tráfico de menor gravidade, obviamente que se impõe a absolvição da Arguida, como decidiu a sentença de 1.ª instância.

P) De qualquer forma, e salvaguardando a hipótese académica de assim não ser entendido, nas circunstâncias do caso, tendo a Relação condenado a Arguida na pena de prisão de 1 ano, suspensa na execução pelo mesmo período, nos termos do art. 45.º, n.º 1 do Código Penal, a pena aplicada deve ser substituída por pena de multa, como por regra a lei determina.

Q) Só assim não seria se a execução da prisão fosse exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, o que, no caso dos autos, não se justifica, atendendo ao baixo grau da ilicitude dos factos, os quais não se reportam a actos de comercialização, mas apenas a um cultivo para fins de investigação medicinal. Além de que, in casu, o Tribunal até decretou, e nessa parte bem, se fosse de aplicar à Arguida uma pena de prisão, a suspensão da sua execução.

Termina pedindo o provimento do recurso, com a anulação do Acórdão recorrido e a repristinação da sentença da 1ª instância, absolvendo-se a arguida com as legais consequências.

IV. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, chamando à atenção, por um lado, “que a recorrente (com o seu companheiro, através da empresa de ambos “F..., Lda.”) cultivaram canábis na Herdade ... desde, pelo menos, Maio de 2018 e que a Câmara ... enviou àquela empresa uma declaração de intenção em 17.04.2019, tendo sido nessa ocasião que, quer a recorrente, quer o seu companheiro, tiveram uma reunião na Câmara ..., com o respectivo Presidente, a testemunha CC, sobre o licenciamento da plantação (que, note-se, já existia desde Maio de 2018), e que esta testemunha ficou convencida que quem liderava o processo era o companheiro da recorrente” e, por outro lado se, quem liderava o processo era o companheiro isso significava que “era porque a recorrente fazia parte do projecto e não podia desconhecer ao que ia e o que ali se tratava, embora fosse liderada e não líder…”. Quanto à escolha e medida da pena aplicada, também o Acórdão ora recorrido fez a análise que se impunha. Daí que a pena de prisão de um ano, suspensa na sua execução, nos pareça adequada, necessária e proporcional.

Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso.

V. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA apôs visto uma vez que foi requerida audiência para discussão da matéria relativa às conclusões E) a N) da motivação de recurso.

VI. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos, tendo-se realizado depois a audiência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

VII. Resulta da sentença da 1ª instância a seguinte decisão sobre a matéria de facto:

Discutida a causa, resultaram provados, com relevância, os seguintes factos:

1. A “F..., Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, de que os arguidos são os únicos sócios, e cuja gerência é exercida pelo arguido BB.

2. A sociedade tem a CAE 01500 (agricultura e produção animal combinadas).

3. Os arguidos são titulares de um projecto ambiental denominado “P...”, que tem em vista a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas, os quais que são cultivados na Herdade ....

4. A arguida dedica-se à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos).

5. O arguido BB tratava do cultivo das plantas e de realização de experiências com canábis.

6. Na Herdade ..., os arguidos construíram uma estufa para efeitos de plantação de plantas.

7. Desde data não concretamente apurada, mas a partir do mês Maio de 2018, os arguidos cultivaram canábis na Herdade ....

8. Os arguidos não estavam autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo “Infarmed” ou pela “DGAV” para o cultivo de canábis para fins medicinais.

9. No dia 28.07.2020, pelas 07:00h, na sequência do cumprimento de um mandado de busca, veio a ser encontrado numa habitação situada no interior da referida Herdade, dentro de sacos plástico e boiões em vidro a quantidade de 6, 691 quilos de canábis sativa.

10. No mesmo local foram encontrados:

i. No balcão da cozinha, um jarro com um produto viscoso;

ii. treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis”;

iii. Acondicionada no interior de um frigorífico, 14 sacos de “erva”;

iv. Também no interior do frigorífico, 1 frasco de “erva”;

v. Assim como numa prateleira da cozinha, foram encontrados 6 frascos de vidro; um envelope contendo folhas de canábis;

vi. E ainda diversos outros objectos de precisão normalmente usados em laboratórios, nomeadamente, 1 pipeta grande de plástico, 1 par de óculos, 1 medidor, 1 varinha, 4 termómetros, 2 pinças, 1 tigela pequena, 2 jarros medição, 1 par luvas, 1 copo de medida, 1- espátula, 2 -tubos de medida, 1 - termómetro especial, 3 moinhos, 2 balanças de precisão

11. Na cozinha foi também encontrado 1 telemóvel “iphone” preto, 1 computador portátil “HP” e 1 computador portátil “Apple”.

12. Na sala foram encontrados, 1 Tablet “Apple”, uma pen e 82 frascos pequenos de vidro (2 com pipeta).

13. E ainda 33 pés de plantas de canábis no interior da estufa.

14. Uma parte da canábis apreendida foi produzida nos anos de 2018 e 2019.

15. Após perícia, constatou-se que a canábis apreendida tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9%, sendo que nos jarros não foi detectada a presença desta substância.

16. O arguido BB sabia que os produtos que se encontravam em seu poder, nas sobreditas circunstâncias de tempo, modo e lugar, eram canábis, conhecendo a sua natureza, as suas características e a sua proveniência, bem sabendo que não estava autorizado a detê-las por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.

17. O arguido BB agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

18. A sociedade F..., Lda. celebrou com a sociedade anónima I..., um acordo de confidencialidade em Novembro de 2017.

19. Por ofício datado de 17.04.2019, emitido pela Câmara Municipal ..., e junto a fls. 792 dos autos e cujo teor se dá como integralmente reproduzido, lê-se, nomeadamente, o seguinte:“(…)Câmara Municipal ... (…) declara que tenciona autorizar a Sociedade F... Lda(…)propriedade de BB e AA, para produzir canábis para efeitos medicinais na parcela denominada “...”(…)

20. O arguido BB fazia a maceração de canábis em azeite.

21. A plantação de canábis tinha o propósito de investigação medicinal.

22. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

23. O arguido é proprietário de uma habitação em ..., auferindo de arrendamento o valor mensal de €2700.

24. O arguido é fotógrafo profissional, retirando da sua actividade rendimentos na ordem dos €50.000 a €70.000 anuais.

25. O arguido tem uma MBA em Finanças.

26. A arguida é beneficiária de uma pensão alimentar paga pelo seu ex-marido, no valor mensal de €4330.

27. A arguida é empresária, dedicando-se à produção de produtos e comercialização de produtos biológicos.

28. A arguida tem um bacharelato em Direito.

29. A arguida é respeitada e admirada pelos amigos e pela sua família, sendo visto como uma pessoa amiga do ambiente e com preocupações sociais.

*

Com relevância para a decisão da causa, são os seguintes os factos não provados:

a) Os arguidos dedicavam-se à produção de óleo de canábis na Herdade ..., com vista à sua comercialização.

b) O arguido BB transportou entre Portugal e a ... canábis.

c) Os fascos de vidro mencionados em 10) continham óleo de canábis.

d) O arguido estava convencido que estava a actuar na legalidade, sem ter consciência da ilicitude dos seus actos.

e) As plantas de canábis apreendidas aos arguidos estavam fraccionadas.

f) O arguido BB manteve contactos com a Fundação ... e com a E..., para aperfeiçoar os métodos de redução dos níveis de THC das plantas de canábis.

g) A arguida AA sabia que não estava autorizada a deter canabis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.

h) A arguida AA agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

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O Tribunal não se pronuncia relativamente aos factos/passagens mencionados na acusação e nas contestações, não especificamente dados como provados ou não provados, por serem conclusivos (em termos factuais ou por encerrarem questões de direito ou adjectivações) ou porque se tratam de imputações genéricas, ou por se entender que são irrelevantes para a decisão da causa.

*

Motivação

A convicção do Tribunal sobre a factualidade provada e não provada formou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento conjugada com as regras de experiência comum, tendo-se atentado às declarações dos arguidos, à prova testemunhal produzida em julgamento e à prova documental junto aos autos.

A factualidade descrita em 1) resulta da certidão comercial da sociedade junta a fls. 527 e 528 dos autos.

O facto 2) provou-se ante à informação empresarial da sociedade a fls. 617.

O facto 3) resulta da brochura do projecto intitulado “P...” , documento junto aos autos a fls. 726 e ss.

Para consignar como provado o facto 4), o Tribunal ponderou as declarações prestadas pela arguida AA, que explicou, em síntese, o seu projecto ambiental desenvolvida na herdade, com vista a proporcionar o bem-estar através de recursos naturais obtidos de forma sustentável, e os produtos a cuja produção se dedica e comercializa (azeite, produtos de cosmética, mel, entre outros, produtos que apresentou em audiência de julgamento). A actividade de produção de produtos naturais desenvolvida pela arguida foi ainda corroborada (e detalhada) pelo testemunho desinteressado e equidistante de DD, e ainda pelo testemunho de EE.

O facto 5) resulta das declarações do próprio arguido BB, que confirmou a referida factualidade, factualidade que foi igualmente atestada pela co-arguida AA.

Relativamente ao ponto 6) da matéria provada, o Tribunal considerou, para além das declarações dos arguidos, os testemunhos de FF e de GG, que executaram trabalhos agrícolas na herdade, e ainda o teor do relatório constante na contestação da arguida e ali identificado como doc...., documento que demonstra o tipo de plantas medicinais cultivadas na estufa, fornecendo ainda um panorama geral da mesma (através das fotografias ali constantes), relatório cujo teor foi corroborado pelo seu subscritor em audiência de julgamento, a testemunha HH.

Os arguidos não puseram em causa a plantação e detenção de canábis na herdade. Contudo, negam veemente, que se dedicavam à produção de óleo de canábis e, consequentemente, à comercialização ou cedência de produto estupefaciente.

O Tribunal deu credibilidade à versão apresentada pelos arguidos, face à conjugação das suas declarações em audiência (com especial enfoque para as de BB), com o exame pericial junto aos autos.

O arguido referiu que o cultivo se iniciou em Maio de 2018, e que tinha o propósito de possibilitar a realização de experiências científicas com a canábis, experiências e pesquisas que foram efectuadas em exclusivo pelo próprio e nunca partilhada com terceiros(nem com a arguida AA), sendo que essas experiências se resumiam a fazer infusões da planta canábis com azeite, que não comporta tetra-hidrocanabinol, e que se destinavam em exclusivo para efeitos de tratamento médico e pesquisa científica.

Da análise do relatório do laboratório de polícia científica a fls. 1015 e ss dos autos e que se mencionou supra, retira-se de tal exame que os graus de concentração de THC das plantas e líquidos apreendidos eram extremamente baixos (entre os 2.3% e os 9%), sendo que, nos jarros apreendidos, não foi sequer detectado tetra-hidrocanabinol. Ademais, nenhuma outra prova trazida para os autos permite concluir de forma distinta, inexistindo qualquer elemento que permita inferir que os arguidos produziam óleo de canábis conforme lhes é imputado na acusação.

A propósito da imputação da prática do cultivo à arguida AA, inexistem dúvidas que a mesma praticou actos de manutenção das plantas canábis, mormente promovendo à sua rega -conforme resultou das suas declarações-, pois o simples facto de esta ter cuidado das plantas de canábis, regando-as, constitui por si só um acto de cultivo de plantas.

Pelo exposto, o Tribunal ficou convencido que a versão trazida pelos arguidos quanto aos fins e motivações inerentes à plantação do canábis é a mais consentânea com a realidade dos factos, o que contribuiu para o Tribunal dar como provados os pontos 7), 20) e 21) da matéria de facto e, consequentemente, como não provados os factos a) e c). O facto 8) resulta provado ante as informações da DGAV e do Infarmed, constantes a fls. 33, 36, 61 e 75 dos autos.

A factualidade consignada de 9) a 12) resultou provada ante o teor do auto de apreensão a fls. 144 e ss., o relatório fotográfico de fls. 152 e ss, documentos conjugados com os testemunhos dos militares da GNR II e JJ, cujos depoimentos nos pareceram sinceros e despojados de incoerências, que explicaram terem participado nas buscas feitas à herdade, corroborando que as fotografias de fls. 152 e seguintes atestam aquilo que encontraram no dia, hora e local onde ocorreu a diligência de investigação.

O arguido BB, assim como o militar JJ, referiram que foram apreendidos 33 pés de canábis no dia e hora dos factos (a que correspondia a produção do ano 2020, citando as palavras do arguido), o que contribuiu para o Tribunal dar como provado o facto 13).

O facto 14) resultou provado ante as declarações do arguido BB prestadas em audiência de julgamento.

O facto 15) provou-se face ao exame pericial da LPC junto aos autos e a que supra fizemos referência.

Relativamente à factualidade atinente ao elemento subjectivo do tipo, como é sabido, os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infração são, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum.

Os arguidos pugnam que não tinham consciência que, com a plantação do canábis, estavam a infringir a lei.

Ora, o arguido BB não ignorava que existia a necessidade de obter uma licença para a plantação de canábis. A este propósito, o próprio assumiu nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial que, no ano de 2018, e antes de iniciar os contactos iniciais com vista à legalização e comercialização de canábis medicinal, procedeu ao cultivo das plantas (tendo até apresentado nessa sede um pedido de desculpas por tal facto).

Tendo o arguido concretizado em audiência de julgamento que iniciou o cultivo no mês de Maio de 2018, ou seja, o mesmo assumiu que iniciou o cultivo da planta canábis sem estar autorizado para tal, como ele mesmo bem sabia.

Alegou o arguido que se encontrava convencido que as diligências que, entretanto, encetou junto da sociedade I..., representada por KK, lhe criaram a convicção que a licença já tinha sido obtida e estaria a cultivar na legalidade. Contudo, estas declarações apresentam-se contraditadas pela testemunha KK, administrador da referida sociedade, que, de forma clara, afirmou em Tribunal que inexistia qualquer autorização para a plantação de canábis, frisando que não chegou a ser firmado qualquer acordo com o arguido para esse efeito. Ademais, o acordo de confidencialidade subscrito pelo arguido e pela aludida testemunha (cf. facto 18), é precisamente isso, um acordo, que é de natureza bilateral e que resulta num encontro de vontades, ao contrário de uma autorização, que tem natureza unilateral e consubstancia uma decisão, insusceptível, portanto, de criar num subscritor, medianamente esclarecido, uma convicção de actuação na legalidade.

Acresce que não é credível que um homem médio colocado na mesma posição que o arguido, com formação académica superior, formasse a convicção que bastaria uma mera delegação do processo de licenciamento de plantação de canábis numa entidade privada, sem necessidade de qualquer notificação formal de concessão de autorização de plantação à sociedade gerida pelo arguido, consabido que é ilícito a plantação de tal planta.

Também o facto de os arguidos estarem na posse de uma declaração emitida pelo município ... (cf. facto 19), não pode sustentar a alegação de que BB agiu sem consciência que estava a actuar na ilegalidade. Tal declaração corresponde a uma mera declaração de intenções, e não a uma autorização por parte da autarquia (autorização que, de todo o modo, não está sequer nas competências de uma autarquia local).

Ponderados todos estes elementos, o Tribunal ficou convencido que, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o arguido BB, procedeu a actividades de cultivo e manuseamento de plantas canábis, bem sabendo que não estava autorizado para tal, e que tal conduta era proibida e punida por lei.

No que concerne à actuação da arguida AA, o Tribunal encontra-se numa dúvida insanável quanto ao efectivo conhecimento por parte da arguida de que o cultivo da canábis não estava autorizado.

Sendo a arguida AA sócia da sociedade F..., tal qualidade impunha-lhe um dever acrescido de verificar se a actividade de plantação de canábis estava autorizada pelas entidades competentes, pelo que é de concluir que a arguida, no mínimo, não agiu com a diligência que se exigia. Contudo, o facto de não ter sido diligente não é suficiente para consignar como provada a factualidade inerente ao elemento subjectivo do tipo (que é doloso).

Com efeito, da prova produzida, o que se conclui sem margem para dúvidas, é que as diligências inerentes à tentativa de legalização do cultivo da planta canábis foram encetadas pelo arguido BB, conclusão que resulta não só das declarações de ambos os arguidos, mas que também se extrai do testemunho de KK, que afirmou conhecer a arguida apenas pelo seu nome estar referenciado nas negociações que encetou com o arguido BB. O próprio arguido referiu, de modo claro e assertivo, que informou a arguida que o cultivo estava legalizado. Por outro lado, apenas se logrou apurar uma única diligência em que a arguida teve participação directa - uma reunião havida na Câmara Municipal ... -, sendo que a testemunha CC, que presidiu a reunião enquanto presidente da autarquia, referiu em audiência que ficou convencido que era o arguido quem liderava o processo.

Assim, fica a dúvida se a arguida tinha o conhecimento efectivo dos factos no que concerne à falta de autorização para cultivo da planta de canábis, ficando o Tribunal numa posição de non liquet, pelo que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, o Tribunal deu como não provado que a arguida era conhecedora de que a plantação de canábis não estava autorizada pelas entidades competentes para o efeito.

Dir-se-á, como supra se aludiu, que sendo a arguida sócia da sociedade F... e titular do projecto P..., poder-se-ia concluir por uma actuação negligente. No entanto, uma vez que o tipo penal imputado aos arguidos não é punível a nível de negligência, seria não só redundante, mas também ilegal, proceder-se à comunicação de uma alteração não substancial dos factos imputadas à arguida, uma vez que a lei processual proíbe a prática de actos inúteis1.

1 Cf. artigo 130º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do Código de Processo Penal.

Nos termos expostos, e no que concerne à factualidade subjacente ao elemento subjectivo do tipo, o Tribunal deu como provados os factos 16) e 17) e, consequentemente, não provada a factualidade vertida em d), g) e h).

O já aludido facto 18) resultou provado ante o documento de fls. 793(intitulado de non-disclosure agreement), documento com o qual a testemunha KK foi confrontada em julgamento e que o corroborou, escrito que foi ainda aludido pela testemunha LL, gestor da sociedade I....

O também já referenciado facto 19) resulta do ofício emitido pela Câmara Municipal ... a fls. 792, ofício cujo teor foi corroborado pelo Presidente da autarquia local à data dos factos, a testemunha CC.

A factualidade consignada em 22) resulta dos certificados dos registos criminais dos arguidos, e que se mostram junto aos autos.

Os factos atinentes às condições pessoais e de vida dos arguidos (pontos 23 a 29) assim se consignaram atento às declarações que os mesmos prestaram em audiência de julgamento, tendo ainda se atentado nos testemunhos de MM, EE, NN BB e DD, que detalharam e contextualizaram a situação social, familiar, pessoal e profissional dos arguidos.

A factualidade vertida em b) e f) não se provou, porquanto não se fez prova quanto a tais matérias.

O facto e) resultou não provado, porquanto é contraditado pela prova produzida em audiência e que a supra se aludiu, sendo consabido que o que está inerente ao fracionamento de plantas canábis é a sua cedência ou comercialização, actividades que não se apuraram terem ocorrido.

*
VIII. Por sua vez consta do Ac. do TRE impugnado, relativamente à apreciação do recurso do Ministério Público:

2.3.2.1. Da impugnação da matéria de facto dada como não provada

Impugna o Ministério Público/recorrente a factualidade dada como não provada, nas alíneas g) e h), referentes à arguida AA, defendendo ter existido erro na apreciação/valoração da prova, por parte do Tribunal a quo e que em face da prova produzida, na audiência de julgamento, em 1º interrogatório judicial da arguida e bem assim como da prova documental junta aos autos, impunha-se que fossem dados como provados os factos ora impugnados.

Sustenta o recorrente que, tendo em conta as declarações prestadas, em julgamento, pela arguida [das quais decorre que estava ao corrente das plantações de canábis existentes na estufa, que tinha acesso a esta última e que regou essas plantações e que o seu companheiro, ora arguido, lhe pediu para que obtivesse o registo criminal na ..., pensando a arguida que esse elemento terá sido solicitado pela I..., no âmbito do processo de legalização da plantação de Canábis], o depoimento da testemunha KK [que afirmou ter dois certificados de registo criminal, sendo um de cada arguido], as declarações que a arguida prestou, em sede de 1º interrogatório judicial [das quais resulta que a arguida tinha conhecimento de que não tinham licença para o cultivo da Canabis] e a prova documental constante dos autos, designadamente, o relatório de diligência externa de fls. 42 [que comprova que a arguida regava a plantação de canábis], haveria que concluir que a arguida tinha conhecimento da plantação de canábis existente na estufa, assim como, da canábis que foi apreendida no interior da residência, bem como de que aquela plantação não estava legalizada, ou seja, devidamente autorizada pelas entidades competentes para o efeito e, nessa medida, que a arguida agiu com dolo, dando-se como provados os factos constantes das alíneas g) e h), da matéria factual não provada.

Manifesta, ainda, o recorrente que a arguida é uma pessoa com formação académica, em direito, que sabia das negociações e reuniões que o seu companheiro, ora arguido, encetou com diversas entidades com vista a obter o licenciamento da plantação de canábis, designadamente, a Câmara Municipal ... e a sociedade I..., tendo inclusive a arguida, no âmbito desses processos, que entregar o seu CRC com vista ao início do processo de autorização, uma vez que a própria arguida é também sócia da empresa F..., Ldª., titular do projeto P... e, nessa qualidade, tinha também a arguida a obrigação de saber, averiguar, confirmar e diligenciar pela obtenção do licenciamento para a plantação de canábis, não podendo a arguida descurar de obter a devida autorização das entidades competentes e diligenciar junto das mesmas pela sua obtenção.

O facto de o arguido BB estar mais envolvido no processo de obtenção de autorização/legalização da plantação de canábis, nunca poderia levar a excluir a responsabilidade da arguida, na medida em que tal diligência cabia a ambos os arguidos, enquanto sócios da empresa F..., Ld.ª, nunca podendo a este título considerar-se que a arguida atuou com negligência.

Nessa conformidade, considera o recorrente que o Tribunal a quo, ao dar como não provados os factos impugnados, incorreu em erro de julgamento, impondo-se, em face das concretas provas que especifica, uma decisão quanto à matéria de facto contrária à que foi proferida, dando-se como provados os factos constantes das alíneas g) e h).

A arguida, na resposta ao recurso, pugnou pela manutenção do julgado, defendendo que as concretas provas indicadas pelo Ministério Público recorrente, não só não impõem uma decisão em sentido diverso da proferida pelo Tribunal a quo, nos termos previstos no artigo 412º, n.º 3, al. b), do CPP, como nem sequer a permitem.

Defende a arguida que:

- nas declarações que prestou na audiência de julgamento limitou-se a confirmar que tinha conhecimento e estava ao corrente do cultivo da canábis que o arguido fazia, no âmbito das experiências de investigação medicinal que tinha em curso, processo em que ela não participava e que acompanhava no pressuposto de que os procedimentos eram legais, como o seu companheiro sempre lhe assegurou e em quem ela confiava, não se podendo extrair dessas declarações o que quer que seja quanto ao conhecimento da arguida de que esses procedimentos não eram legais;

- no tocante ao depoimento prestado pela testemunha KK, nada se pode retirar de relevante no sentido pretendido pelo Ministério Público/recorrente;

- no concernente às declarações prestadas pela arguida, na fase de inquérito, em 1º interrogatório judicial, não tendo sido lidas em audiência de julgamento, nem sequer tendo sido requerida a sua leitura, não podendo valer em julgamento, para efeito da convicção do tribunal, como estatui o artigo 355º do CPP, sendo inconstitucional a interpretação em sentido contrário, das normas extraídas dos artigos 355º, n.ºs 1 e 2 e 356º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357º, todos do CPP, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18º, n.º 2, ambos da CRP – o que aliás, já foi declarado pelo TC, nos acórdãos n.º 152/2022 e 770/2020 –, não podendo, por isso, tais declarações, serem convocadas pelo Ministério Público, nesta sede, por se tratar de prova proibida, além de que, nessas declarações, a arguida nunca afirmou ter conhecimento da ilegalidade ou da falta de licenciamento do cultivo da canábis para os restritos efeitos do processo experimental medicinal que o arguido tinha em curso.

Considera, assim, a arguida que não há nada que possa infirmar a conclusão do Tribunal a quo de que não dispõe de quaisquer elementos para concluir que a arguida tinha noção de que o cultivo levado a cabo pelo seu companheiro – para os fins de investigação medicinal que tinha em curso – não estaria autorizado e não era legal e, no limite, configurando-se duas versões possíveis, numa situação de no liquet, sempre teria de prevalecer o princípio do in dúbio pro reo, que é postergado pelo Ministério Público, no recurso, pelo que, dever ser mantida a decisão de facto proferida e, consequentemente, a absolvição da arguida.

Apreciando:

Os factos dados como não provados, que são impugnados pelo Ministério Público, recorrente, são os seguintes:

«g) A arguida AA sabia que não estava autorizada a deter canabis por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tais substâncias, o que representou e quis.

h) A arguida AA agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.».

Estão em causa factos atinentes aos elementos subjetivos do tipo, designadamente, ao dolo.

É sabido que, exceto nos casos em que haja confissão do arguido, a prova do dolo, enquanto elemento subjetivo, que pertence ao foro intimo do sujeito, terá de fazer-se a partir da análise da conduta pelo mesmo assumida e do contexto da ação desenvolvida, cabendo ao julgador, socorrendo-se, nomeadamente, das regras da experiência comum, daquilo que constituiu o princípio da normalidade da vida, retirar desse contexto, por recurso a ilações e inferências, a intenção pelo mesmo revelada e subjacente à atuação.

Lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida e que supra se transcreveu, dela resulta que o Tribunal a quo decidiu dar como não provados os factos ora impugnados, constantes nas alíneas g) e h), por se ter confrontando com a dúvida sobre o «efectivo conhecimento por parte da arguida de que o cultivo da canábis não estava autorizado», dúvida essa que, por aplicação do princípio do in dubio pro reo, resolveu em sentido favorável à arguida, dando como não os enunciados factos.

O Tribunal a quo, fundamentou, a dúvida com que se confrontou, do seguinte modo:

«No que concerne à actuação da arguida AA, o Tribunal encontra-se numa dúvida insanável quanto ao efectivo conhecimento por parte da arguida de que o cultivo da canábis não estava autorizado.

Sendo a arguida AA sócia da sociedade F..., tal qualidade impunha-lhe um dever acrescido de verificar se a actividade de plantação de canábis estava autorizada pelas entidades competentes, pelo que é de concluir que a arguida, no mínimo, não agiu com a diligência que se exigia. Contudo, o facto de não ter sido diligente não é suficiente para consignar como provada a factualidade inerente ao elemento subjectivo do tipo (que é doloso).

Com efeito, da prova produzida, o que se conclui sem margem para dúvidas, é que as diligências inerentes à tentativa de legalização do cultivo da planta canábis foram encetadas pelo arguido BB, conclusão que resulta não só das declarações de ambos os arguidos, mas que também se extrai do testemunho de KK, que afirmou conhecer a arguida apenas pelo seu nome estar referenciado nas negociações que encetou com o arguido BB. O próprio arguido referiu, de modo claro e assertivo, que informou a arguida que o cultivo estava legalizado. Por outro lado, apenas se logrou apurar uma única diligência em que a arguida teve participação directa - uma reunião havida na Câmara Municipal ... -, sendo que a testemunha CC, que presidiu a reunião enquanto presidente da autarquia, referiu em audiência que ficou convencido que era o arguido quem liderava o processo.

Assim, fica a dúvida se a arguida tinha o conhecimento efectivo dos factos no que concerne à falta de autorização para cultivo da planta de canábis, ficando o Tribunal numa posição de non liquet, pelo que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, o Tribunal deu como não provado que a arguida era conhecedora de que a plantação de canábis não estava autorizada pelas entidades competentes para o efeito.

Dir-se-á, como supra se aludiu, que sendo a arguida sócia da sociedade F... e titular do projecto P..., poder-se-ia concluir por uma actuação negligente. No entanto, uma vez que o tipo penal imputado aos arguidos não é punível a nível de negligência, seria não só redundante, mas também ilegal, proceder-se à comunicação de uma alteração não substancial dos factos imputadas à arguida, uma vez que a lei processual proíbe a prática de actos inúteis.

Nos termos expostos, e no que concerne à factualidade subjacente ao elemento subjectivo do tipo, o Tribunal deu como provados os factos 16) e 17) e, consequentemente, não provada a factualidade vertida em d), g) e h).».

O Ministério Público recorrente especifica como provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da proferida, as declarações prestadas pela arguida, em sede de 1º interrogatório judicial e na audiência de julgamento e o depoimento da testemunha KK.

Manifesta o recorrente que a arguida admitiu, em 1º interrogatório judicial, ter conhecimento de que não tinham licença para cultivar canábis, pelo que, sabendo a arguida estarem a ser desenvolvidas diligências com vista à obtenção de licença, tendo inclusivamente, como referido pela testemunha KK, a arguida necessidade de entregar o seu CRC, nesse âmbito, impunha-se que fossem dados como provados os factos descritos nas alíneas g) e h) da matéria factual não provada e, nessa decorrência, concluir-se que, ao praticar os factos que resultaram assentes, a arguida atuou com dolo.

Vejamos:

Relativamente às declarações prestadas pela arguida, em 1º interrogatório judicial, que são convocadas pelo recorrente, defende a arguida não poderem ser atendidas, por não terem sido reproduzidas nem lidas na audiência, não podendo, nessa situação, valer em julgamento e, por conseguinte, tais declarações serem consideradas, na instância recursiva, tratando-se de prova proibida.

A questão da admissibilidade ou não da valoração, em julgamento, como meio de prova, das declarações anteriormente prestadas pelo arguido, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP, tem suscitado controvérsia na doutrina e na jurisprudência.

Perfilhamos do entendimento de que não podem valer em julgamento e servir para formar a convicção do julgador, as declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante autoridade judiciária, se não forem reproduzidas ou lidas em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP4.

4 Neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RL de 18/10/2017, processo 387/15.0GACDV.L1-3, in www.dgsi.pt

A plenitude do exercício do contraditório sobre as provas, tem lugar na audiência de julgamento e quando estão em causa as declarações anteriormente prestadas pelo arguido, perante a autoridade judiciária, no âmbito dos interrogatórios previstos nos artigos 141º, 145º e 144º, n.º 1, do CPP, o arguido ainda que possa estar inteirado do teor dessas declarações e ciente – por ter sido informado nos termos e para por efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141º do CPP – de que aquelas declarações poderiam ser utilizadas no processo, o contraditório e as garantias de defesa do arguido, só serão plenamente assegurados, relativamente a esse meio de prova, se tais declarações forem reproduzidas ou lidas, em julgamento, mormente, se o arguido estiver presente na audiência de julgamento e optar por prestar declarações, que possam apresentar contradição ou discrepância com as anteriormente prestadas.

No caso de o arguido estar presente em julgamento, renunciando ao direito ao silêncio e optando por prestar declarações, se for confrontado, pelo juiz, com a divergência do sentido das suas declarações que anteriormente havia prestado em interrogatório judicial, deve considerar-se observando, dessa forma, o contraditório, mesmo que não exista a leitura dessas declarações.

Como se refere no Acórdão do STJ de 27/01/20215, estando aí em causa uma situação em que não tendo havido leitura das declarações que anteriormente prestara, em julgamento, o arguido foi confrontado pelo tribunal, com essas declarações:

5 Proc. 300/19.6GDTVD.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt.

«V - O arguido esteve presente na audiência de julgamento e foi confrontado com as declarações que anteriormente havia prestado, observando-se, portanto, um contacto directo (imediação) entre o declarante (fonte da prova) e o juiz do julgamento, não se podendo ignorar, por seu lado, a existência de um contacto directo entre o tribunal e as tais declarações, na medida em que o julgador, para formar a sua convicção, quanto a elas, tem de recorrer à sua audição/reprodução.

VI - Não se vislumbra qualquer reforço destes princípios da imediação e oralidade com a leitura na audiência de julgamento das declarações oportunamente prestadas pelo arguido devidamente advertido nos termos do artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do CPP. VII - O princípio do contraditório conforme é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, reconduz-se ao facto de nenhuma prova dever ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão dever ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.

VIII - Na situação presente, entende-se que o princípio do contraditório está patente no decurso da audiência de julgamento, mesmo sem obrigatoriedade de leitura das declarações anteriormente prestadas pelo arguido.

IX - Em audiência de julgamento, o princípio do contraditório, manifesta-se com o direito de, perante o juiz que vai decidir a causa, haver a possibilidade de contrariar toda a prova existente, constituída ou constituenda, apresentando outros elementos probatórios. Neste conspecto, o arguido poderia, na audiência de julgamento, confirmar, corrigir, infirmar o teor das declarações prestadas anteriormente em sede de interrogatório judicial.

(...)».

O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se neste domínio, decidiu, no Acórdão n.º 770/20206, «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata».

6 De 21/12/2020, proc. n.º 739/2020, acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200770.html

Sufragam-se inteiramente os fundamentos expendidos no item 21 do enunciado aresto do TC, que aqui se transcrevem «Ao decidir prestar declarações perante autoridade judiciária no âmbito do inquérito ou da instrução, o arguido renuncia ao direito ao silêncio que a Constituição e a lei lhe conferem e, independentemente do conteúdo das declarações que prestar, ainda ao seu direito à não autoincriminação. O aproveitamento probatório de tais declarações pelo tribunal de julgamento significa a projeção dessa renúncia para além do momento processual em que a mesma teve lugar e, em particular, a conservação dos seus efeitos no processo de modo a que estes possam vir a concorrer e contribuir para a decisão de considerar ou não verificados os pressupostos da responsabilidade.

Veja-se que essa renúncia - e, consequentemente, o potencial do seu impacto probatório ulterior - não depende da confissão, total ou parcial, dos factos imputados. Em rigor, nem sequer a pressupõe. Desde que atendíveis pelo tribunal de julgamento, quaisquer declarações anteriormente prestadas pelo arguido, ainda que exoneratórias, poderão ser sempre valoradas em seu desfavor, designadamente para contrariar ou criar dúvida sobre a veracidade das declarações que decida prestar no âmbito da audiência ou, em qualquer caso, para diminuir a respetiva credibilidade perante o julgador (v. Saunders v. Reino Unido, decidido pelo TEDH por Acórdão de 17 de dezembro de 1996, 71.).

Ora, se isto é assim, parece que o respeito pleno pela decisão de vontade do arguido — que constitui, como vimos, um limite permanente e contínuo à possibilidade da sua utilização como meio de prova — há de implicar que, uma vez presente em audiência de julgamento, lhe seja conferida a possibilidade de tomar parte do ato pelo qual o tribunal (amplamente entendido) acede ao conteúdo das declarações que aquele prestou anteriormente no processo e, uma vez confrontado com o respetivo teor, de explicitar, contextualizar e completar as afirmações que produziu, explicando quaisquer contradições em que possa ter incorrido e esclarecendo eventuais hesitações ou oscilações na resposta às perguntas feitas pela entidade judiciária responsável pelo interrogatório, sobretudo nos casos em que este tem lugar numa fase precoce do inquérito e, portanto, num momento em que o objeto do processo ainda não se encontra fixado nos termos definitivos em que o vem a ser no despacho de acusação. Numa palavra, ao arguido há de ser reconhecido o direito de controlar aquilo que declarou e, em condições de interação comunicativa e reciprocidade dialética com o tribunal, de participar no estabelecimento do efeito auto-incriminador com que as suas anteriores declarações hão de valer no momento do apuramento da sua responsabilidade.

(...).»

No caso dos autos, confrontando as atas da audiência de julgamento, verifica-se que as declarações prestadas pela arguida, em 1º interrogatório judicial, não foram dadas por reproduzidas, nem foram lidas, nem foi requerida a sua leitura por qualquer dos sujeitos processuais, tendo a arguida comparecido na audiência e prestado declarações, não resultando que tivesse sido confrontada pelo tribunal com as declarações que anteriormente prestou, em 1º interrogatório judicial.

E lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, constata-se que as declarações prestadas pela arguida, em 1º interrogatório judicial, não foram consideradas pelo Tribunal a quo, na formação da sua convicção.

Deste modo, considerando o entendimento que perfilhamos, de que não podem valer em julgamento, as declarações anteriormente pelo arguido, perante autoridade judiciária, se não forem reproduzidas ou lidas em audiência, nos termos previstos no artigo 357º, n.º 1, al. b), do CPP, no caso dos autos e, por maioria de razão, forçoso é concluir que não podem ser atendidas, em sede de recurso, na impugnação da matéria de facto, fixada em 1ª instância, as declarações prestadas pelo arguido, em sede de 1º interrogatório judicial.

Importa apreciar as demais provas especificadas pelo Ministério Público recorrente, com base nas quais, considera que se impunha que fossem dados como provados os factos que impugna, as declarações prestadas pela arguida, em julgamento e o depoimento da testemunha KK.

A arguida, nas declarações que prestou, na audiência de julgamento, tendo admitido que estava ao corrente das plantações de canábis na estufa e ter efetuado a rega das mesmas, quando questionada, pelo Sr. Juiz a quo sobre se diligenciou ou procurou saber junto do companheiro no sentido de saber se as coisas estavam a ser feitas de forma legal, respondeu negativamente e que fez confiança no companheiro e à pergunta que lhe foi colocada pela Sr.ª Procuradora da República, sobre se “nunca entregou nenhum documento pessoal, nem CRC junto de entidades quer pública, quer provada, Câmara Municipal ... ou I..., concernente á própria arguida para a legalização da plantação (...), nem nunca assinou nenhum documento, nem nunca esteve em nenhuma reunião na Câmara (...)”, respondeu que a única coisa que o companheiro, ora arguido, lhe pediu foi para que pedisse o registo criminal na ..., pensando, ainda que sem certeza, que terá sido a I... que o terá solicitado.

Por sua vez, a testemunha KK - administrador da sociedade I... que celebrou um contrato de confidencialidade com a sociedade “F...”, para transferência de tecnologia, relativa à cultura e à utilização de canábis medicinal -, no depoimento que prestou, na audiência de julgamento, confirmou terem-lhe sido entregues, pelo arguido - esclarecendo que apenas contatou com este, nunca tendo visto nem falado com a arguida - o CRC do próprio e da arguida.

Não existindo prova direta de que arguida tivesse efetivo conhecimento de que o cultivo de canábis para fim medicinal e a utilização que lhe vinha sendo dada pelo arguido não estava legalmente autorizada, importa apreciar se tendo em conta a objetiva conduta da arguida que resultou apurada à luz das regras da experiência comum e dos princípios da lógica, se impunha concluir que a arguida tinha conhecimento da falta de autorização, por parte das entidades competentes, para que essa atividade pudesse desenvolvida.

Dito de outro modo, trata-se de saber se foi feito um indevido uso, pelo Tribunal a quo, do princípio in dubio pro reo, isto é, se existe fundamento para que seja arredada a aplicação de tal princípio.

Vejamos:

É pacificamente aceite, na doutrina e jurisprudência, que não é qualquer dúvida que deve levar o tribunal a decidir a favor do arguido, tem de ser uma dúvida fundada, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras, tem de ser uma dúvida que impeça a convicção do tribunal em sentido positivo7.

7 Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e in dubio pro reo, pág. 166 e Ac.s do STJ de 14/10/2009 e de 15/04/2010, proferidos nos processos n.º 101/08.7PAABT.E1.S1-3 e n.º 154/01.9JACBR.C1.S1-5, respetivamente e acessíveis em www.dgsi.pt.

8 In BMJ n.º 481, pág. 265.

9 Proferido no proc. n.º 436/14.0GBFND.C1, acessível em www.dgsi.pt

Como se faz notar no Acórdão do STJ de 04/11/19988 «Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio.»

E como se refere no Acórdão da RC de 09/03/20169 «Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.».

Definidos que ficam os contornos da possibilidade de controlo pelo tribunal de recurso da aplicação, pelo tribunal recorrido, do princípio in dubio pro reo, apreciemos, então, atenta a motivação da decisão de facto consignada na sentença recorrida e tendo em conta os princípios da racionalidade lógica e as regras da experiência comum, se a decisão do Tribunal a quo, ao dar como não provados os factos ora impugnados pelo Ministério Público recorrente, afronta aqueles princípios e regras, e se foi feito um indevido/incorreto uso do princípio in dubio pro reo.

São os seguintes os factos provados relevantes para a apreciação da questão que ora nos ocupa:

«1. A “F..., Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, de que os arguidos são os únicos sócios, e cuja gerência é exercida pelo arguido BB.

2. A sociedade tem a CAE 01500 (agricultura e produção animal combinadas).

3. Os arguidos são titulares de um projecto ambiental denominado “P...”, que tem em vista a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas, os quais que são cultivados na Herdade ....

4. A arguida dedica-se à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos).

5. O arguido BB tratava do cultivo das plantas e de realização de experiências com canábis.

6. Na Herdade ..., os arguidos construíram uma estufa para efeitos de plantação de plantas.

7. Desde data não concretamente apurada, mas a partir do mês Maio de 2018, os arguidos cultivaram canábis na Herdade ....

8. Os arguidos não estavam autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo “Infarmed” ou pela “DGAV” para o cultivo de canábis para fins medicinais.

9. No dia 28.07.2020, pelas 07:00h, na sequência do cumprimento de um mandado de busca, veio a ser encontrado numa habitação situada no interior da referida Herdade, dentro de sacos plástico e boiões em vidro a quantidade de 6, 691 quilos de canábis sativa.

10. No mesmo local foram encontrados:

i. No balcão da cozinha, um jarro com um produto viscoso;

ii. treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis”;

iii. Acondicionada no interior de um frigorífico, 14 sacos de “erva”;

iv. Também no interior do frigorífico, 1 frasco de “erva”;

v. Assim como numa prateleira da cozinha, foram encontrados 6 frascos de vidro; um envelope contendo folhas de canábis;

vi. E ainda diversos outros objectos de precisão normalmente usados em laboratórios, nomeadamente, 1 pipeta grande de plástico, 1 par de óculos, 1 medidor, 1 varinha, 4 termómetros, 2 pinças, 1 tigela pequena, 2 jarros medição, 1 par de luvas, 1 copo de medida, 1- espátula, 2 -tubos de medida, 1 - termómetro especial, 3 moinhos, 2 balanças de precisão;

(...)

12. Na sala foram encontrados, 1 Tablet “Apple”, uma pen e 82 frascos pequenos de vidro (2 com pipeta).

13. E ainda 33 pés de plantas de canábis no interior da estufa.

14. Uma parte da canábis apreendida foi produzida nos anos de 2018 e 2019.

15. Após perícia, constatou-se que a canábis apreendida tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9%, sendo que nos jarros não foi detectada a presença desta substância.

(...)

18. A sociedade F..., Lda. celebrou com a sociedade anónima I..., um acordo de confidencialidade em Novembro de 2017.

19. Por ofício datado de 17.04.2019, emitido pela Câmara Municipal ..., e junto a fls. 792 dos autos e cujo teor se dá como integralmente reproduzido, lê-se, nomeadamente, o seguinte:“(…) Câmara Municipal ... (…) declara que tenciona autorizar a Sociedade F... Lda (…) propriedade de BB e AA, para produzir canábis para efeitos medicinais na parcela denominada “...”(…)

20. O arguido BB fazia a maceração de canábis em azeite.

21. A plantação de canábis tinha o propósito de investigação medicinal.»

*

Resultou provado que a partir do mês Maio de 2018, os arguidos cultivaram canábis na Herdade ... e que os arguidos não estavam autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo “Infarmed” ou pela “DGAV” para o cultivo de canábis para fins medicinais.

E mostra-se também provado que na busca efetuadas em 28/07/2020, à Herdade ..., foram apreendidos, no interior de uma estufa aí existente, 33 pés de plantas de canábis e na residência, treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis”, 14 sacos de “erva”, 1 frasco de “erva”; um envelope contendo folhas de canábis.

Ficou, ainda, provado que do exame pericial realizado à canábis apreendida resultou que tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9% e que uma parte dessa canábis foi produzida nos anos de 2018 e 2019.

Tendo ficado provado que os arguidos e, por conseguinte, também a arguida cultivaram canábis na Herdade ..., a partir de maio de 2018, sem que estivessem autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo Infarmed ou pela DGVA para o cultivo de canábis para fins medicinais, sendo que, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, tendo em conta a formação académica da arguida, tendo o bacharelato em direito e a circunstância de estar envolvida, conjuntamente com o arguido, seu companheiro, num projeto ambiental denominado “P...”, visando a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas e a produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos) e, nessa medida, arguida não podia deixar de ter conhecimento de que, o cultivo da canábis, designadamente, para fins medicinais, carece de autorização das autoridades competentes, autorização essa que a arguida sabia não ter e não podendo a arguida desconhecer que o arguido, seu companheiro, também não a tinha, já que se a tivesse obtido, normal seria, dado viverem maritalmente e explorarem em conjunto a atividade empresarial a que se vinham dedicando, sendo que, nessa situação, a arguida não poderia deixar de acompanhar e estar inteirada dos assuntos relacionados com essa atividade, ainda que o arguido pudesse estar à frente de alguns deles.

Assim, independentemente de no desenvolvimento do referenciado projeto ambiental, a arguida se dedicar à produção de produtos biológicos e o arguido tratar do cultivo das plantas e da realização de experiências com canábis, o certo é que a arguida também participou no cultivo da canábis - cfr. facto provado no ponto 7 -, regando as plantas - como admitiu, nas declarações que prestou, na audiência de julgamento -, constituindo a rega, só por si, um ato de cultivo da(s) planta(s)10.

10 Neste sentido, cfr. Ac. da RC de 23/11/2011, processo 10/08.0GALRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.

Por outro lado, ainda que estivessem a ser desenvolvidas, desde 2017, diligências, pelo arguido BB, com vista à obtenção de autorização, junto das entidades competentes, para que a sociedade de que a arguida é também sócia, denominada «F..., Lda.», se pudesse dedicar à plantação de canábis para fins medicinais, para além de não resultar da matéria factual provada que o cultivo da canábis que os arguidos efetuaram a partir de maio de 2018 ocorresse no âmbito da atividade dessa sociedade, é do conhecimento generalizado que, enquanto essa autorização não for concedida, não é legalmente permitido avançar com o cultivo da canábis.

E tendo a arguida, tal como o arguido, desde maio de 2018, cultivado canábis, não tendo qualquer dos arguidos autorização para o efeito, por parte das entidades competentes, não podendo a arguida, no quadro supra descrito, deixar de ter conhecimento de que o cultivo de canábis, para fins medicinais e para realização de estudos e experiências, carecia de autorização das autoridades competentes, autorização essa que a arguida sabia não ter. E vivendo a arguida maritalmente com o arguido, desenvolvendo ambos, em conjunto, um projeto empresarial, participando a arguida, ativamente, na prossecução do mesmo, acompanhando e estando inteirada dos assuntos com ele relacionados, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, há que concluir que a arguida não podia deixar de saber que nem o arguido, nem a sociedade de que ambos eram sócios, tinham qualquer autorização concedida pelas entidades competentes para o cultivo da canábis.

Entendemos, assim, ter sido feito um indevido uso, pelo Tribunal a quo, do princípio do in dúbio pro reo e que a dúvida com que se confrontou, quanto ao conhecimento da arguida da ilegalidade do cultivo da canábis que, conjuntamente com o arguido, efetuou, nas circunstâncias que resultaram apuradas e da falta de autorização por parte das entidades competentes para que procedessem a esse cultivo, não é sustentada, nem razoável, pelo contrário, afronta as regras da experiência comum e da normalidade da vida, pelos fundamentos sobreditos.

Concluímos, assim, que a factualidade provada atinente à conduta objetiva da arguida, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, nas circunstâncias concretas em que a arguida atuou e considerando a sua formação académica e a atividade a que se dedica, que a arguida sabia que o cultivo de canábis para fins medicinais, incluindo a realização de estudos e experiências, sem autorização das autoridades competentes, era proibida e constituía crime e que a arguida estava ciente de que não tinha qualquer autorização concedida pelas entidades competentes que lhe permitisse cultivar canábis.

Pelo exposto e em conformidade, julgando-se procedente a impugnação da matéria de facto, impõe-se proceder à modificação da decisão de facto proferida em 1ª instância, em termos de passarem a constar dos factos provados os seguintes [que na sentença recorrida foram dados como não provados]:

- A arguida AA sabia que não estava autorizada a deter canábis, por não lhe ser permitido cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou deter produtos estupefacientes, e, ainda assim, decidiu deter tal substância, o que representou e quis.

- A arguida AA agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Em face da modificação da matéria de facto fixada na 1ª instância, nos termos acabados de decidir, há que extrair as pertinentes consequências, em termos de decisão de direito, o que faremos de seguida.

Direito

Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Tendo sido a recorrente absolvida na 1ª instância e condenada na 2ª instância, por ter sido alterada a matéria de facto relativa ao dolo que veio ali a ser dada como provada, recorre a mesma para o STJ, ao abrigo do disposto no artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21.12, pugnando pela sua absolvição, entendendo que a Relação cometeu 3 erros ao julgar procedente o recurso do Ministério Público, os quais consistiram, em resumo, primeiro em extrair presunções que vão contra os factos apurados e contra as regras elementares da lógica, razoabilidade e objetividade, segundo em ter ignorado o princípio da imediação, por a conclusão de non liquet da 1ª instância ser racional e logicamente fundamentada, não havendo elementos que impusessem decisão diferente e, terceiro, por violar o princípio da presunção de inocência, uma vez que no confronto de duas versões possíveis e plausíveis em relação ao conhecimento que a recorrente teria da falta de autorização para a exploração de cannabis para fins de investigação medicinal, optou para além da dúvida razoável, pela tese desfavorável à arguida.

A título subsidiário, caso não venha a ser absolvida, sustenta que a pena aplicada de um ano de prisão suspensa por um ano devia ser antes substituída por multa nos termos do art. 45.º, n.º 1, do CP.

Vejamos então.

X. A principal argumentação da recorrente prende-se com a questão de saber se, perante os factos dados como provados na sentença proferida pela 1ª instância e respetiva motivação de facto, deviam ou não ser dados como provados, em relação a si, ainda os relativos ao dolo (isto é, aqueles que a 1ª instância deu como não provados nos pontos g) e h) e que, por sua vez, a 2ª instância, deu como provados).

Analisando a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, verifica-se que dela resulta que, naquela Herdade ..., os arguidos desde data não concretamente apurada, mas a partir de Maio de 2018, cultivaram canábis, não estando autorizados por nenhuma entidade, nomeadamente pelo Infarmed ou pela DGAV para o cultivo de canábis para fins medicinais, sendo certo que em 28.07.2020, pelas 7:00h, na sequência do cumprimento de mandado de busca, vieram a ser encontrados numa habitação sita no interior daquela herdade os bens descritos nos pontos 9 a 14 [entre eles, dentro de sacos plásticos, em boiões em vidro a quantidade de 6,691 quilos de canábis sativa (…), treze boiões de vidro contendo “cabeças de canábis” (…), um envelope contendo folhas de canábis (…), 33 pés de plantas canábis (…), sendo certo que uma parte da canábis apreendida foi produzida nos anos de 2018 e 2019 e, após perícia, constatou-se que a canábis apreendida tinha um baixo teor de concentração de THC, entre 2.3 e 9%, sendo que nos jarros já foi detetada a presença desta substância].

Para além disso, também se apurou que a arguida se dedicava à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos) e o arguido BB tratava do cultivo das plantas e da realização de experiências com canábis, tendo os arguidos construído naquela herdade uma estufa para efeitos de plantação de plantas.

Aliás, os arguidos eram titulares de um projeto ambiental, melhor descrito no ponto 2 dos factos provados, sendo os únicos sócios da sociedade F..., Lda., sendo a gerência exercida pelo arguido BB.

Além disso, resulta ainda do ponto 19 dos factos dados como provados que, em 17.04.2019 não tinham autorização para nomeadamente produzir, cultivar, manipular canábis, para fins medicinais.

Ora, conjugando todos esses dados objetivos com o que ainda consta da motivação de facto da sentença da 1ª instância (sendo certo que, como aí se escreve, os arguidos não puseram em causa a plantação e a detenção de canábis na herdade), particularmente quanto ao facto de, por um lado, a arguida estar envolvida no cultivo das plantas de canábis, na medida em que promovia a sua rega (tal como resultava das suas próprias declarações em audiência) e, por outro lado, também ter participado, ainda que pontualmente, em reunião na Câmara Municipal ..., aquando da tentativa de legalização do cultivo da planta canábis, conjugado ainda com o depoimento da testemunha CC, presidente da Câmara ..., que presidiu a essa reunião ficando convencido que quem liderava esse processo era o arguido BB (e independentemente da Câmara não ser a entidade competente para legalizar o cultivo, mas apenas se podendo pronunciar sobre se seria ou não um bom investimento para o concelho), é manifesto que a dedução lógica e racional que o tribunal da 1ª instância deveria ter retirado era a de que a arguida (ainda que com um menor grau de envolvência), tal como o seu companheiro, cultivou canábis com conhecimento que não havia autorização das entidades competentes para a sua plantação naquela herdade e, portanto, deveria ter sido dado como provado, também quanto a ela, a matéria alegada relativa ao dolo.

Com efeito, se há uma certa coerência entre o que o tribunal da 1ª instância deu como provado e a motivação que apresentou na sentença no que se relaciona com o cultivo pelos arguidos de canábis naquela herdade, o certo é que o raciocínio do tribunal já é contraditório, irracional e ilógico com as dúvidas que depois suscita apenas no que se relaciona com o dolo da arguida, as quais não encontram suporte na avaliação das provas que fez, quando ao mesmo tempo, afirma que ela própria providenciou, ainda que apenas numa diligência no processo de legalização, quando se deslocou à Câmara ..., o que mostra que a arguida também tinha conhecimento que pelo menos até essa altura andavam a cultivar canábis ilegalmente.

Ou seja, a incoerência no raciocínio da 1ª instância existe, desde logo, na medida em que estando a ser tratado ainda em Abril de 2019, depois do início da plantação (que ocorreu pelo menos em Maio de 2018), o processo de legalização (e, como sabido, são restritas as entidades que podem v.g. cultivar, utilizar, explorar canábis para fins medicinais), isso significava para o cidadão comum que não havia autorização e, portanto, nunca podiam ter cultivado canábis, como o fizeram, antes de tratar e obter a sua legalização, mesmo que para fins medicinais e, independentemente, de ser o arguido BB quem liderava/comandava e se dedicava a essa parte do projeto empresarial que ambos tinham.

Tendo a arguida conhecimento, ainda em Abril de 2019, que aquela atividade de plantação de canábis não estava autorizada, não podia ignorar, como qualquer pessoa (por ser do conhecimento geral, sem ser necessário ter qualquer grau académico para o efeito) que tal conduta era proibida e punida por lei e, portanto, penalmente censurável.

Daí que também não tivesse sido violado o princípio da imediação porque é com base nas provas produzidas em julgamento, na 1ª instância, que é possível dar como provados os factos relativos ao dolo quanto à arguida/recorrente.

E, assim, como qualquer cidadão médio, também a arguida (que tem de raciocinar, como qualquer pessoa, perante o que lhe seja dito, mesmo pelos mais próximos) não podia convencer-se ou confiar que o cultivo estava legalizado (só por o arguido, seu companheiro, lhe dizer isso mesmo, ainda que o fizesse “de modo claro e assertivo”), uma vez que é matéria do conhecimento geral, que a própria não podia ignorar (tanto mais que ela própria, como acima se disse, chegou a participar numa diligência com vista a facilitar a legalização dessa parte do projeto, que era a mais delicada e, que como é do conhecimento comum, não sendo autorizada, é criminalmente punível, sendo que os arguidos começaram essa atividade, mesmo sem a autorização legal, isto é, cometendo o crime de que eram acusados).

Ou seja, tendo já cultivado canábis sem autorização, sabendo que a mesma era necessária, tanto mais que em Abril de 2019 estavam a tratar do “processo de legalização” não era lógico, nem racional, nem próprio da natureza do homem comum, que voltassem a repetir procedimentos e condutas ilegais e criminosas, mantendo em seu poder, quer nos locais onde foram apreendidos, quer continuando a cultivar, canábis sem autorização.

Como é do conhecimento geral o normal para as entidades que tem autorização para v.g. cultivar, utilizar, manipular, explorar canábis para fins medicinais é disporem (em seu poder) da respetiva licença para, sendo necessário, a poder exibir às autoridades, quando é pedida.

Acrescente-se que não é pelo facto de a arguida não acompanhar todos os passos do “processo de legalização” (o mesmo se passou com o arguido, na versão que apresentou em julgamento, quando fez alusão à sociedade I..., mas que não convenceu) que se pode deduzir que foi violado o princípio in dubio pro reo e/ou o princípio da presunção de inocência.

Com efeito, perante o que foi dado como provado na sentença da 1ª instância e avaliação das provas feitas, excluídos os erros cometidos acima assinalados, não era plausível que a arguida estivesse convencida que o cultivo da canábis era autorizado ou estava licenciado (ainda para mais quando ambos os arguidos sempre fizeram esse cultivo, sem terem autorização ou licenciamento para o efeito, conformando-se com o facto de a sua conduta ser proibida e punida por lei e, assim, estarem a cometer um crime).

Daí que, perante todas as provas produzidas perante a 1ª instância, não fosse lógico nem razoável que surgissem dúvidas sobre a arguida não ter conhecimento de não haver autorização para o cultivo da canábis naquela herdade.

O facto da apreensão feita ter ocorrido mais tarde, já em 28.07.2020, não altera os dados da questão, apenas mostra a data em que se consumou o crime, bem como a persistência da conduta penalmente censurável dos arguidos.

Assim, não é credível a versão da arguida de não ter conhecimento da falta de autorização para o cultivo da canábis naquela herdade, nem era dúvida que se colocasse perante as provas produzidas em 1ª instância.

Por isso, não se pode concluir, como o faz a recorrente, que o tribunal se confrontou com duas versões possíveis e plausíveis, tendo optado, para além da dúvida razoável, pela mais desfavorável, à arguida.

Improcede, pois, a argumentação da recorrente, não havendo censura a fazer à decisão da Relação quando conclui por dar como provada a matéria relativa ao dolo quanto à arguida.

XI. A segunda questão, colocada a título subsidiário, prende-se com a pena de substituição que lhe foi aplicada pela Relação.

Entende a recorrente que a pena de 1 ano de prisão aplicada pela Relação, não devia ser suspensa mas, antes substituída por multa, nos termos do art. 45.º, n.º 1, do CP, como por regra a lei determina, só assim não sendo se, a execução da prisão fosse exigida pela necessidade de prevenir a prática de futuros crimes, o que não é o caso dos autos, nem se justifica, dado o baixo grau de ilicitude dos factos, os quais não se reportam a atos de comercialização, mas apenas a um cultivo para fins de investigação medicinal.

Ora, tendo considerado que a conduta da arguida integrava a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. no artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, sobre a pena aplicada consta da decisão da Relação o seguinte:

Pugna o Ministério Público para que o quantum da pena de prisão a aplicar à arguida seja fixado em 1 (um) ano e 1 (um) mês.

Apreciando:

Ao crime de tráfico de menor gravidade corresponde a pena de prisão de 1 a 5 anos (cf. artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº. 15/93).

A medida concreta da pena tem de ser encontrada dentro dos parâmetros estabelecidos nos artigos 40º e 71º, ambos do Código Penal.

Assim, a medida concreta da pena é limitada pela culpa do arguido, revelada nos factos (cfr. artigo 40º, n.º 2 do C.P.), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1, ambos do Código Penal.

Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.

A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena[1], sendo tal princípio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do CP.

Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.

Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.

Dando concretização aos mencionados vetores, o n.º 2 do artigo 71º enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o dever de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Assim e baixando ao caso concreto, na determinação da medida concreta da pena a aplicar à arguida, há que ponderar:

- O grau de ilicitude dos factos, que se revela baixo, tendo em conta, nomeadamente, a quantidade da canábis plantada e já colhida detida pela arguida, conjuntamente com o arguido, parte dela produzida nos anos de 2018 e 2019, sendo baixo o grau de concentração de THC que apresentavam, situando-se entre 2.3 e 9%;

- O dolo da arguida/recorrente, que reveste a modalidade de dolo direto;

- As condições pessoais e situação económica da arguida que resultaram provadas, dispondo de uma situação económica desafogada, tendo ocupação profissional, desenvolvendo um projeto ambiental, na área da produção de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas e dedicando-se à produção e comercialização de produtos biológicos.

Milita a favor da arguida a circunstância de não registar antecedentes criminais.

As necessidades de prevenção geral positiva, relacionadas com a importância da tutela dos bens jurídicos e de proteção das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma jurídica violada são muito elevadas no crime de tráfico de estupefacientes, designadamente, em relação ao cultivo da canábis, atividade esta que, mesmo quando autorizada, está sujeita a um apertado controlo, acompanhamento e supervisão, por parte das entidades competentes para o efeito, por forma a que sejam cumpridas as condições de segurança e a impedir que essas plantas sejam colocadas no mercado de forma ilícita.

No referente às exigências de prevenção especial, revelam-se, à partida, reduzidas, dado que a arguida tem 49 anos de idade e não regista antecedentes criminais e, por certo, mais ciente do que nunca das consequências jurídico-penais que lhe poderão advir caso venha a reiterar o tipo de atuação que está em causa nos presentes autos.

Assim, sopesando em conjunto todas as enunciadas circunstâncias, as exigências de prevenção e a culpa da arguida, entendemos que a pena deve ser fixada no limite mínimo da moldura abstrata aplicável, ou seja, em 1 (um) ano de prisão, o que se decide.

2.3.2.4. Da substituição da pena de prisão

Atenta a dosimetria da pena de prisão aplicada à arguida, há que equacionar a respetiva substituição por pena não privativa da liberdade, concretamente, pena de multa ou suspensão da execução da pena.

Vejamos:

Relativamente à substituição da prisão por multa, dispõe o artigo 45º, n.º 1, do Código Penal: «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. (…)».

A aplicação de uma pena de substituição da pena de prisão tem como pressuposto que o tribunal conclua ser adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição, quais sejam as exigências de prevenção especial e geral.

A propósito das finalidades da pena, escreveu o Prof. Figueiredo Dias[2]: «prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida».

Significa isso que, uma pena de substituição, ainda que, no caso, possa satisfazer plenamente as necessidades de prevenção especial de ressocialização, não poderá ser aplicada se com ela sofrer inapelavelmente, “o sentimento de reprovação social do crime”[3], ou a confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada.

No caso vertente, sendo reduzidas as exigências de prevenção especial, conforme se concluiu supra, ainda que a aplicação da pena de multa, em substituição da pena de prisão, pudesse satisfazer essas exigências, não satisfaria minimamente as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes, estando em causa o cultivo de canábis, mostrando-se a pena de multa incapaz de realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, nessa vertente, de proteção dos bens jurídicos e de tutela das legítimas expectativas da comunidade na manutenção e na validade da norma penal violada.

E, assim sendo, é de afastar a substituição da pena de prisão, por pena de multa.

No tocante à suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o artigo 50°, n.º 1, do C. Penal que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».

A suspensão da execução da pena de prisão deverá ter na sua base um juízo de prognose social favorável ao arguido, ao seu comportamento futuro e assentar numa expetativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, será suficiente para alcançar a ressocialização do arguido, afastando-o da prática de futuros crimes.

«Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.»[4].

Por outro lado, para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada.

No presente caso, tendo em conta que a arguida tem 49 anos de idade, não regista antecedentes criminais, desenvolve atividade empresarial em Portugal, no setor agrícola e considerando as concretas circunstâncias em que a arguida cometeu o crime de tráfico de que aqui se trata, entende-se ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação à arguida, em termos de poder fundamentar a suspensão da execução de pena, considerando-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão serão suficientes para afastar a arguida da prática de futuros crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção, permitindo a escolha de tal pena de substituição garantir limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico, da tutela da confiança da comunidade na validade da norma violada.

Determina-se, assim, a suspensão da execução da pena de 1 (um) ano de prisão aplicada à arguida, por igual período de tempo, nos termos previstos no artigo 50º, n.ºs 1 e 5, do CP.

O recurso interposto pelo Ministério Público é, assim, parcialmente, procedente.

Vejamos então a questão da pena de substituição, tendo presente que a recorrente, perante o circunstancialismo apurado e fundamentação apresentada pela Relação, também concorda com a pena de um ano de prisão que lhe foi imposta pelo crime de tráfico de menor gravidade cometido.

A argumentação da Relação para afastar a substituição da pena de um ano de prisão aplicada por pena de multa, nos termos do art. 45.º, n.º 1, do CP, baseia-se, essencialmente, no facto da pena de multa não satisfazer minimamente as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade cometido pela arguida, sendo, por isso, “incapaz de realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, nessa vertente, de proteção dos bens jurídicos e de tutela das legítimas expectativas da comunidade na manutenção e na validade da norma penal violada.”

E, com efeito, importa ter em atenção que são critérios de prevenção que presidem à escolha das penas de substituição.

Como esclarece Maria João Antunes[5], a propósito do art. 45.º, n.º 1, do CP, “A afirmação de que são finalidades exclusivamente preventivas as que justificam e impõem a preferência por uma pena não privativa da liberdade ou por uma pena não privativa da liberdade menos restritiva não invalida que a finalidade preventiva primordial seja a proteção de bens jurídicos. A defesa da ordem jurídica e da paz social – o conteúdo mínimo da prevenção geral positiva – atua como limite às exigências de prevenção especial. Em caso de conflito, prevalecerá o conteúdo mínimo da prevenção geral positiva. Ainda que a escolha da pena não privativa da liberdade seja compatível com a reintegração do agente na sociedade, o tribunal não dará preferência a tal pena, se esta não realizar de forma adequada e suficiente a finalidade de proteção do bem jurídico violado com a prática do crime. Porém, já atuaram considerações de prevenção especial, exclusivamente, na hipótese de haver, no caso, mais do que uma pena de substituição adequada e suficiente a realizar as finalidades de prevenção. O tribunal aplicará então a que melhor satisfizer as finalidades de reintegração do agente na sociedade.”

No mesmo sentido vai Maria da Conceição Ferreira da Cunha[6], quando referindo que “Apesar de a multa ser a pena de substituição que aparece em primeiro lugar no CP, não cremos que haja propriamente uma hierarquia entre as penas de substituição, devendo, sim, optar-se por aquela que for mais adequada ao caso concreto, ou seja, a que tiver melhores potencialidades preventivas, uma vez que o critério para a substituição deve ser (como já referimos supra) o da prevenção especial e o da prevenção geral, visando-se a proteção dos bens jurídicos. De resto, o próprio teor literal do art. 45.º, diversamente do que ocorria na versão original do CP, não conduz a outra conclusão, uma vez que se refere a multa “ou outra pena não privativa da liberdade aplicável”.

Ora, considerando a natureza do crime cometido pela arguida e bem jurídico violado, é manifesto que a pena de multa de substituição não satisfazia as mais elevadas razões de prevenção geral positiva que no caso concreto se fazem sentir, o que leva a concluir que a comunidade não ficava suficientemente protegida com a aplicação dessa pena de substituição (prevista no art. 45.º, n.º 1, do CP), como pretendia a recorrente.

Sendo necessário reafirmar a validade da norma violada, embora tendo como limite as exigências de prevenção especial, que neste caso são menores (como foi bem explicado pela Relação), atenta desde logo a integração da arguida (a nível pessoal, profissional e social) e a ausência de antecedentes criminais, o que é positivo e contribui para a sua auto-ressocialização, cremos que, na perspetiva do direito penal preventivo, é ajustada e adequada a pena de substituição aplicada (sendo possível fazer um juízo de prognose favorável), a qual contribui para a futura reintegração social da arguida e satisfaz as finalidades de prevenção.

Improcede, pois, a argumentação da recorrente.

Em conclusão: improcede o recurso da arguida, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais invocados pela recorrente.

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Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA.

Custas pela recorrente/arguida, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção.

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Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Janeiro de 2023

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

Agostinho Soares Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)

Eduardo Loureiro (Presidente da 5ª Secção)

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[1] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas – Editorial Notícias, pág. 215.
[2] In Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, pág. 815.
[3] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 334.
[4] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 343. 
[5] Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, p. 93.
[6] Maria da Conceição Ferreira da Cunha, As Reações Criminais no Direito Português, 1ª edição, Universidade Católica Editora, Porto, 2022, p. 219.