Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4679/19.1T8CBR-C.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
LIVRANÇA EM BRANCO
DUPLA CONFORME PARCIAL
SEGMENTO DECISÓRIO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CULPA GRAVE
DEVER DE COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO DE REVISTA NORMAL E REMESSA À FORMAÇÃO.
NEGADA A REVISTA E JULGADO IMPROCEDENTE O PEDIDO DE LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Nos casos em que a parte dispositiva da decisão recorrida contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, existe dupla conformidade decisória, que obsta à admissibilidade do recurso de revista normal e ao conhecimento do seu objecto, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, do acórdão da Relação que confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na primeira instância, para o segmento ou segmentos que são delimitados objectivamente no objecto do recurso, tendo em conta o disposto no art. 635.º, n.os 2 e 4, do CPC, sem prejuízo da interposição subsidiária para essa matéria de revista excepcional.
II - Na verificação de créditos da insolvência, não se configura como crédito sob condição resolutiva, para o efeito da previsão do art. 50.º, n.º 1, do CIRE, por si só e por tal circunstância para o escopo de garantia para cumprimento das obrigações, o crédito garantido pela subscrição de livrança em branco pela insolvente, supervenientemente preenchida, e avalizada por terceiros.
III - Não preenche o art. 542.º, n.º 2, al. d), do CPC para qualificação como conduta processual de litigância de má fé, que exige culpa qualificada (dolo ou negligência grave), a interposição de revista (arts. 671.º, n.º 1, 672.º, n.º 1, do CPC) em que se corporiza a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos e a defesa de uma posição jurídica diversa daquela que a decisão judicial acolhe e ampara, sem violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7.º, n.º 1, 8.º, e 9.º, n.º 1, do CPC) na relação do recorrente com as demais partes e com o tribunal, tendo em vista inverter a solução da instância recorrida.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 4679/19.1T8CBR-C.C1.S1

Revista: Tribunal recorrido – Relação ….., …...ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. A sociedade por quotas «Tubarão Sociedade Hoteleira e Turística, Lda.» foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado.

No apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos, o Administrador da Insolvência (AI) apresentou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos (art. 129º do CIRE).

A lista foi objecto de impugnação pela insolvente relativamente aos créditos reconhecidos ao credor «Banco Santander Totta, S.A.», com fundamento na indevida qualificação e incorreção dos respetivos créditos. Este credor, por sua vez, impugnou os créditos reconhecidos aos credores «JTP2 – Construção e Prestação de Serviços, Lda.» e Manuel Rui Azinhais Nabeiro, Lda., com fundamento na sua indevida inclusão.

O AI respondeu às impugnações, dando razão à insolvente, por um lado, e, de outra banda, pugnando pela improcedência da impugnação deduzida pela «Banco Santander Totta, S.A.».

As credoras «Banco Santander Totta, S.A.» e «Manuel Rui Azinhais Nabeiro, Lda.» responderam às impugnações deduzidas quanto aos respectivos créditos, defendendo a respetiva improcedência.

2. Verificados os créditos incluídos na lista e não impugnados, foi realizada tentativa de conciliação, na qual foi logrado acordo quanto aos créditos de «JTP2 – Construção e Prestação de Serviços, Lda.» e «Manuel Rui Azinhais Nabeiro, Lda.», frustrando-se, contudo, o mesmo quanto ao crédito da Banco Santander Totta, S.A.».

3. O Juiz ….. do Juízo de Comércio …. (Tribunal Judicial da Comarca ….) proferiu em 11/2/2020 sentença de verificação e de graduação de créditos, com o seguinte dispositivo:

“(…) julgo verificados os créditos dos credores JTP2 Construção e Prestação de Serviços, Lda. e Manuel Rui Azinhais Nabeiro, Lda. pelos valores constantes da lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência e julgo reconhecidos os créditos do credor Banco Santander Totta, S.A. pelo valor global de 106.939,37 (cento e seis mil novecentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos).

Qualifico o crédito detido pelo credor Banco Santander Totta, S.A. emergente de contrato de mútuo, no valor global de 25.791,11 (vinte e sete mil setecentos e noventa e um euros e onze cêntimos), como crédito comum sujeito a condição resolutiva.

Procedo à graduação dos créditos reconhecidos sobre os bens que integram a massa insolvente nos seguintes termos:

1.º) Em primeiro lugar, dar-se-á pagamento aos créditos da Fazenda Nacional por IUC e por IRC nos valores de 65,28 (sessenta e cinco euros e vinte oito cêntimos) e 1.739,56 (mil setecentos e trinta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos), respetivamente, e respetivos juros;

2.º) Em segundo lugar, dar-se-á pagamento aos restantes créditos reconhecidos, com exceção dos juros dos créditos comuns, que serão pagos em último lugar.”

3. Inconformados, interpuseram recurso de apelação a insolvente e, subordinadamente, a credora «Banco Santander Totta, S.A.».

Foram identificadas as seguintes questões para decisão:

           

“Recurso da insolvente Tubarão, Lda:

A. Se a resolução do contrato de locação financeira em apreço nos autos, não operou por a carta enviada pelo Santander Totta nunca ter chegado ao conhecimento da insolvente, sem culpa sua, pelo que estamos perante um negócio em curso, a submeter ao disposto no artigo 102.º do CIRE.

Recurso subordinado do Santander Totta:

B. Se o crédito do Santander Totta, resultante do contrato de mútuo, deve ser reconhecido como crédito não dependente de qualquer condição;

e

C. Se o crédito reconhecido ao Santander Totta, decorrente do descoberto na conta D.O., ascende à quantia total de 25.322,77 €, (e não à de 23.775,24 €, que lhe foi reconhecida na decisão recorrida) à qual devem acrescer juros vencidos e vincendos, desde a data de declaração de insolvência até efectivo e integral pagamento.”

Em acórdão proferido em 1/6/2020, o Tribunal da Relação ….. julgou:

“improcedente o recurso de apelação, interposto pela insolvente” e

“procedente o recurso de apelação interposto pelo Santander Totta, em função do que se revoga a decisão recorrida:

- na parte em que se qualificou o crédito detido pelo credor Banco Santander Totta, S.A. emergente de contrato de mútuo, no valor global de € 25.791,11 (vinte e sete mil setecentos e noventa e um euros e onze cêntimos), como crédito comum sujeito a condição resolutiva, que se substitui por outra que declara que o mesmo não está sujeito a condição resolutiva e;

- lhe reconheceu o crédito no montante de 23.775,24 € (vinte e três mil setecentos e setenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos), decorrente do descoberto em conta DO; que se substitui por outra que lhe reconhece um crédito que ascende ao montante global de 25.322,27 € (vinte e cinco mil trezentos e vinte e dois euros e setenta e sete cêntimos (correspondendo a 23.775,24 €, [vinte e três mil setecentos e setenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos] de capital e 1.547,53 € [mil quinhentos e quarenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos] de juros, tal como reconhecido pelo A. I.)., a que acrescem juros de mora, vencidos e vincendos, sobre o capital, desde a data de declaração da insolvência e até efectivo e integral pagamento e imposto de selo”; e

“Mantendo-a, quanto ao mais.”

4. Novamente inconformada, a insolvente interpôs recurso de revista nos segmentos em que não se verifica a regra da dupla conforme, sendo subsidiariamente (“cautelarmente”, assim a denominou) excepcional para o objecto recursivo em que não se entenda admissível essa revista, tendo por fundamento as als. a), b) e c) do art. 672º, 1, do CPC.

             

A rematar as suas alegações, apresentou as seguintes Conclusões:

A. Foi proferida Decisão pelo Douto Tribunal da Relação …. julgou improcedente o recurso interposto pela Insolvente no que à resolução do contrato de locação diz respeito e julgou procedente o recurso interposto pelo Banco Santander Totta referindo, em suma que o crédito deve ser reconhecido sem qualquer condição.

B. Ora, não se pode conformar a Recorrente com essa decisão, nem com os fundamentos apresentados pelo douto Tribunal uma vez que se encontram em contradição com outros acórdãos já transitados em julgado, como a seguir se alegará.

C. A Insolvente entende que não se verificou a resolução do contrato porque nunca rececionou a carta cuja cópia foi junta pelo Banco Santander Totta.

D. O douto acórdão baseia-se em facto que, salvo devido respeito, não corresponde à realidade.

E. Na verdade, o que importa é aferir do valor do crédito decorrente do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre o banco e a insolvente, o que pressupõe que se determine previamente se o contrato foi resolvido antes da declaração da insolvência, como defendido pelo banco, ou, ao invés, se trata de um negócio em curso, a submeter às regras previstas no art. 102.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

F. A Recorrente questiona a eficácia da resolução, em virtude da alegada carta não ter sido por si rececionada.

G. Isto porque a resolução, podendo fazer-se mediante declaração à outra parte, nos termos do art. 436.º, n.º 1, do Código Civil, opera mediante declaração unilateral receptícia.

H. Assim, e de acordo com o princípio geral estabelecido no art. 224.º, n.º 1, do Código Civil, que acolheu a chamada teoria da recepção, apenas produz efeitos a partir do momento em que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (cfr. os Acs. do TRL de 9.05.2006, proc. n.º 1979/2006-7, e do TRC de 28.04.2017, proc. n.º 176/16.5T8LMG.C1).

I. A verdade é que a Insolvente nunca recebeu tal carta (e não foi por culpa sua).

J. Não se aplica qui o número 2 do artigo 224.º CC que refere que é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.

K. O alegado comprovativo de que a carta foi efetivamente enviada é, no mínimo estranho.

L. É que na sua reclamação de créditos – enviada a 09.09.2019 – o Banco Santander refere o seguinte: a Reclamante interpelou a Insolvente para proceder ao pagamento das rendas em atraso, por forma a precludir o direito à resolução – doc. n.º 6. 31º Não obstante, a Insolvente não regularizou as prestações vencidas. 32º O Reclamante, por meio da mesma carta, interpelou também a Insolvente para proceder à entrega do imóvel objecto do contrato. 33º Contudo, a Insolvente não o fez até à presente data. 34º Assim, a resolução do contrato produziu os seus efeitos.

M. O referido documento 6 mais não é que uma cópia de um aviso de recepção que, na opinião da Recorrente, nunca chegou a ser enviado juntamente com a carta.

N. Na verdade no campo superior direito onde refere “reservado à colagem da etiqueta” nada consta.

O. Local onde naturalmente os CTT deveriam colocar o número do registo e onde consta local onde foi colada a carta para ser enviada, a hora e o dia!

P. E no alegado documento 6, nada consta!

Q. O que significada que a carta nunca chegou a ser enviada.

R. E muito menos poderia ser recebida pela Insolvente.

S. Portanto, não foi por culpa sua que a carta não foi recebida quando na verdade ela nunca chegou a ser enviada.

T. O contrato não está resolvido, a entrega do bem é inexigível.

U. No caso de se tratar, como tratava, de declaração negocial, que tem destinatário, a sua eficácia ficava dependente da sua chegada ao poder do destinatário ou de ser dele conhecida – art. 224º nº 1 CCiv.

V. Será também eficaz se só por culpa do destinatário não foi recebida – art.224º nº 2.

W. Nos presentes autos, não haverá dúvidas de que se trata de uma declaração recipienda ou receptícia, uma vez que se destina a dar a conhecer à Insolvente a concessão de um prazo para cumprimento das rendas em mora, sob pena de incumprimento definitivo, bem como da resolução do contrato.

X. Devolvida a carta registada com a.r., através da qual foi comunicada a resolução do contrato à outra parte, a eficácia dessa resolução só opera se a não recepção da carte se tiver ficado a dever exclusivamente a comportamento culposo do seu destinatário.

Y. Assim, e sem prejuízo de melhor entendimento, deve a decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que considere que a resolução não operou por a carta nunca ter chegado ao conhecimento da Insolvente sem culpa do destinatário e consequente se determine que estamos perante um negócio em curso a submeter às regras previstas no artigo 102.º do CIRE.

Z. Relativamente à classificação do crédito do Banco Santander Totta a questão coloca-se porque, para garantia do pagamento das responsabilidades emergentes deste contrato, foi subscrita pela devedora, e avalizada por terceiros, uma livrança que acabou por ser preenchida e dada à execução, correndo termos presentemente, como base na mesma, execução contra os avalistas da livrança.

AA. De acordo com o disposto no art. 50º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que «Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força de lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico».

BB. A condição consiste, de acordo com o art. 270.º do Código Civil, no facto futuro e incerto a que é subordinada a produção de defeitos de um negócio ou a sua resolução.

CC. Caso se trate de subordinar a eficácia do negócio a uma ocorrência futura e incerta, a condição diz-se suspensiva.

DD. Se o negócio já estiver perfeitamente concluído, e o evento futuro e incerto determinar a sua resolução, estaremos perante uma condição resolutiva, cuja verificação faz cessar os efeitos do negócio.

EE. Observa-se que o conceito de crédito sob condição suspensiva no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é mais amplo do que o previsto no Código Civil, já que abrange não apenas os créditos cuja eficácia esteja dependente de evento futuro e incerto, mas também aqueles cuja própria constituição ou génese foi deixada na contingência de futura condição.

FF. Quanto aos créditos sujeitos a condição resolutiva, relativamente aos quais se verifica uma maior correspondência conceptual, há a considerar que, conforme previsto no art. 94.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, eles são tratados como incondicionados, até ao momento em que a condição se preencha, sem prejuízo do dever de restituição dos pagamentos recebidos, verificada que seja a condição.

GG. Tendo o mesmo tratamento que os créditos não sujeitos a condição, tais créditos devem ser pagos, sendo levados em consideração nomeadamente em sede de rateios parciais.

HH. Apenas sucede que, verificada a condição, o credor tem o dever de restituir os pagamentos que lhe tenham sido feitos. «Se o crédito está sujeito a condição resolutiva, isso significa que o respetivo título produz de imediato os seus efeitos, que serão, todavia, resolvidos, em regra retroativamente, se a condição se verificar.

II. Do exposto resulta que, pelo crédito decorrente do contrato de mútuo, assumiram responsabilidade, não apenas a insolvente, mas também os avalistas da livrança que esta subscreveu tendo em vista a garantia do integral pagamento do mesmo, e que o credor pode exigir dos avalistas o respetivo pagamento, como aliás está a exigir em sede de execução, sem esperar pela prévia excussão dos bens da insolvente.

JJ. Assim, este crédito extinguir-se-á se qualquer dos outros devedores solidários, máxime os avalistas, proceder ao pagamento, voluntário ou coercivo, da quantia em dívida.

KK. Não se admite, com o devido respeito que é muito, a decisão de que ora se recorre, uma vez que existem acórdãos em sentido contrário que dão razão à Recorrente – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – Processo n.º [datado de] 5263-15.4T8SNT-A.L1-6; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – Processo n.º 1979/2006-7; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – processo número 176/16.5T8LMG.C1,

LL.Nestes termos, deve a decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que revogando-se o acórdão recorrido na parte em que considerou válida a resolução operada pelo Banco Santander Totta e classificou o seu crédito como sendo crédito comum sem qualquer condição.”

A «Banco Santander Totta, S.A.» apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da revista ou, aceitando-se, pela sua improcedência.

Peticionou ainda a condenação da Recorrente em litigância de má fé, concluindo para este efeito nos seguintes termos: “é ostensiva e patente a má-fé material e instrumental manifestada pela Recorrente, pelo que deverá ser condenada (…) nos termos dos arts. 542º e 543º do CPC (ex vi art. 17º do CIRE) e a proceder ao pagamento de multa e indemnização condigna ao Recorrido, em montantes a definir pelo Tribunal, de acordo com os critérios da razoabilidade, de forma justa e equitativa”. A este pedido não reagiu a Recorrente para efeitos do exercício do contraditório.

Consignados os vistos legais nos termos do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

1. Da admissibilidade e objecto do recurso

1.1. Sendo a sentença em primeiro grau e o acórdão recorrido proferidos em apenso ao processo de insolvência (art. 132º do CIRE), o regime da revista segue o regime ordinário da revista, nos termos da remissão do art. 17º, 1, do CIRE, sem se aplicar a disciplina restritiva e atípica determinada pelo art. 14º, 1, do CIRE (por interpretação a contrario sensu), como tem sido julgado consensualmente pela 6.ª Secção do STJ.

1.2. Vistas as Conclusões da Recorrente, que delimitam o objecto do recurso (arts. 608º, 2, 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, CPC), verifica-se que se traz a escrutínio do STJ dois dos segmentos decisórios constantes do dispositivo do acórdão recorrido:

(i) por um lado, a eficácia da resolução do contrato de locação financeira imobiliária operada por parte do banco, credor reclamante, e dirigida à insolvente, tendo em vista a sua consequência na qualificação de tal contrato como «negócio em curso» para efeitos do disposto pelo art. 102º do CIRE;

(ii) por outro lado, o reconhecimento da existência de condição resolutiva aposta ao crédito da «Santander Totta», resultante de mútuo celebrado com a insolvente (originariamente pelo então «Banco Popular Portugal, S.A.», antes da fusão por incorporação: cfr. infra, facto provado a)), reconhecido como crédito comum da insolvência.

*

Quando a parte dispositiva do acórdão recorrido, autonomamente ou em referência à parte dispositiva da sentença de 1.ª instância, é integrada por mais do que um segmento decisório, um ou uns em conformidade e outro ou outros em desconformidade com a decisão judicial de primeiro grau, o confronto de cada um desses segmentos é decisivo para delimitar a divergência relevante para aferir a “dupla conforme”. A “revista normal” deve “circunscrever-se ao segmento ou segmentos que revelem uma dissensão entre o resultado declarado pela 1.ª instância e pela Relação ou relativamente aos quais exista algum voto de vencido de um dos três juízes do colectivo”[1]. Tal entendimento está em linha com a (mais adequada) visão ponderada ou racional da “dupla conforme”, que recusa uma visão plena ou irrestrita, que demandaria uma confirmação (rigorosamente) total da decisão de 1.ª instância[2]. Deste modo, “se[,] quanto a determinado segmento[,] se verificar a confirmação do resultado declarado na 1.ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, fica eliminada, nessa parte, a interposição de recurso ‘normal’ de revista. Em tal circunstância, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça ficará dependente do acionamento da revista excecional e da sua aceitação pela formação referida no art. 672.º, n.º 3”[3].

Uma análise atenta leva-nos a considerar que, no caso dos autos, emergem justamente três blocos dispositivos perfeitamente identificáveis e autónomos, em referência à apelação da aqui Recorrente e à apelação subordinada da aqui Recorrida, sindicadas pelo acórdão da Relação.

Ora, para este efeito adjectivo de dupla conformidade, teremos que chamar à colação a circunstância decisiva de o objecto do recurso de revista e a esfera de actuação do tribunal ad quem serem delimitados pelas conclusões da alegação do recorrente, mesmo que (em conformidade com o art. 635º, 2 e 4, do CPC) o faça em restrição, expressa ou tácita, do objecto inicial. Como adverte a doutrina processualista, “[e]m qualquer caso, o objeto da conformidade será apurado no interior do objeto do recurso, ou seja, a verificação da conformidade restringir-se-á, antes de mais, às decisões ou segmentos decisórios dos quais a parte interpõe concretamente recurso de revista”[4].

No caso dos autos, as Conclusões da Recorrente Autora delimitam em definitivo esse objecto, o que desde logo implica abdicar do decidido, quanto à sua revista, no segmento em que o acórdão recorrido reconheceu à aqui Recorrida “um crédito que ascende ao montante global de de 25.322,27 € (vinte e cinco mil trezentos e vinte e dois euros e setenta e sete cêntimos (correspondendo a 23.775,24 €, [vinte e três mil setecentos e setenta e cinco euros e vinte e quatro cêntimos] de capital e 1.547,53 € [mil quinhentos e quarenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos] de juros, tal como reconhecido pelo A. I.)., a que acrescem juros de mora, vencidos e vincendos, sobre o capital, desde a data de declaração da insolvência e até efectivo e integral pagamento e imposto de selo”, “decorrente do descoberto em conta DO”, e fazendo-o incidir exclusivamente sobre os dois segmentos decisórios antes identificados.[5]

*

O primeiro dos segmentos mereceu a confirmação do acórdão recorrido, com fundamentação essencialmente coincidente à da sentença de 1.ª instância, sem voto de vencido, como se pode verificar pela comparação entre a fundamentação expendida nessa sentença nas suas págs. 10 e ss (ponto ii. da Fundamentação (II.), 1. Verificação de Créditos, 1.2. Banco Santander Totta, Lda.) – concluindo-se que “a declaração resolutória não foi rececionada por exclusiva culpa da insolvente, sendo por isso eficaz” e, assim, “o contrato foi resolvido pela locadora antes da declaração da insolvência, não consistindo num negócio em curso à data da insolvência, e não assistindo por isso ao administrador da insolvência o direito de optar pelo cumprimento ou pela recusa de cumprimento do contrato, que se encontra extinto” –, com o exposto, ainda que com desenvolvimento argumentativo, doutrinal e jurisprudencial, a fls. 12 e ss do acórdão recorrido – concluindo-se que a insolvente “só por sua culpa não recebeu a carta em questão, em função do que se tem de considerar como eficaz a declaração que lhe foi dirigida por parte do requerente com vista a operar a resolução do contrato, nos moldes contratados e em obediência ao disposto no artigo 436.º do CC”, “tendo a resolução operado, de forma eficaz, antes da declaração de insolvência”.

Destarte, está configurada uma situação de dupla conformidade decisória relativamente à parte do litígio relacionada com a eficácia da resolução do contrato de locação financeira. Esta circunstância impede o conhecimento do objecto da revista normal a título principal nesse segmento de decisão coincidente das instâncias (Conclusões A. a Y.), de acordo com o art. 671º, 3, do CPC, sendo, aliás, essa mesma circunstância que foi desde logo aventada pela Recorrente como pressuposto, a ser decretada essa irrecorribilidade, da interposição subsidiária de revista excepcional (se necessário for, por convolação oficiosa: arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), não ficando prejudicada pois a sua tramitação subsequente, como se ordenará.

*

Todavia, quanto à segunda questão, não se verifica uma situação obstativa de dupla conformidade decisória, como se verifica pela procedência da apelação, sendo admissível a revista normal e o seu conhecimento, como é intento principal da Recorrente.

Para este efeito, julga-se ter a Recorrente legitimidade recursiva nos termos do art. 631º, 1, do CPC, uma vez que a subsistência ou não da condição resolutiva é efeito jurídico que, sendo rejeitada como foi no acórdão recorrido, se afigura ainda como desfavorável ao seu interesse material, em particular considerando o regime do art. 94º do CIRE para os “créditos sob condição resolutiva”.

2. Factualidade

Foram considerados provados pelas instâncias os seguintes factos:


a) Por escritura pública, outorgada no dia 27/12/2017, o Banco Popular Portugal, S.A., anteriormente designado por Banco Nacional de Crédito, foi objeto de fusão por incorporação, com transmissão integral de património, no Banco Santander Totta, S.A.
b) No âmbito da sua atividade, o Banco Popular Portugal, S.A. celebrou com a insolvente um contrato de mútuo, datado de 29.05.2009, pelo valor de € 50.000,00, que foi entregue à insolvente e da qual esta se confessou devedora.
c) Tal empréstimo foi concedido pelo prazo de 60 meses, devendo ser reembolsado em 60 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, vencendo-se a primeira prestação no primeiro mês seguinte à data da celebração do contrato.
d) O capital mutuado venceria juros à taxa nominal anual de 5,422%, à qual corresponde a uma taxa anual efetiva de 6,058%, indexada à média das taxas Euribor a 3 meses, acrescida do spread de 4%.
e) Tendo ainda sido fixado que a falta de pagamento de qualquer uma das prestações determinaria para o banco o direito de exigir a totalidade da dívida, juros de mora à taxa máxima contratual e sobretaxa de 3% ao ano.
f) Em caso de mora no pagamento de juros remuneratórios, o banco poderia capitalizar os juros que correspondam a um período não inferior a três meses, adicionando tais juros ao capital em dívida.
g) Para garantia do bom e integral pagamento de quaisquer obrigações ou responsabilidades emergentes do referido contrato foi subscrita pela insolvente, e avalizada por AA e BB, uma livrança que acabou por ser preenchida pelo valor de € 41.363,52.
h) Foram, entretanto, efetuados pagamentos por conta da dívida, pelo que, em 13.01.2017, o capital ficou reduzido ao valor de € 21.790,26.
i) A este valor acrescem as seguintes quantias: juros compensatórios calculados à taxa contratual de 2,127%, acrescida da sobretaxa moratória legal de 3%: € 38,62; juros de mora, contados à taxa de 4%, desde 13.01.2017 até 19.08.2019: € 2.239,92; imposto de selo sobre os juros: € 213,17; despesas e comissões: € 1.509,14.
j) Também no âmbito da sua identificada atividade comercial, o então Banco Nacional de Crédito celebrou com a insolvente um contrato de depósito à ordem, abrindo a conta que atualmente tem o n.º …...
k) Na sequência deste contrato, o banco assumiu a guarda e depósito das quantias pecuniárias que, para o efeito, lhe fossem entregues por aquela, facultando-lhe a sua livre disposição e restituição integral, logo que solicitadas.
l) A insolvente efetuou movimentos a débito na referida conta bancária que excederam as quantias que, na mesma, se encontravam depositadas a seu favor, determinando que a referida conta apresentasse, na data de 01.08.2019, um saldo devedor no montante total de € 23.775,24.
m) Ainda no exercício da sua atividade, o Banco Popular Portugal, S.A. celebrou com a sociedade insolvente, em 02.07.2010, um contrato de locação financeira imobiliária, com o n.º …., tendo por objeto a locação da fração autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao rés-do-chão, letra F, destinada a café snack-bar e restaurante, do prédio urbano sito na Av. ….., freguesia de ….., concelho da ……, descrito na Conservatória do Registo Predial da ….. sob o n.º ….. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ……..º.
n) O contrato foi celebrado pelo prazo de 120 meses, obrigando-se a locatária ao pagamento das rendas mensais, bem como o valor residual.
o) O valor total do mencionado contrato, sem impostos, foi fixado em € 480.412,60.
p) O referido bem foi adquirido pelo banco por expressa indicação da insolvente e com o único intuito de lho dar em regime de locação financeira.
q) A cláusula 23.º, n.º 2, do contrato convenciona que, em caso de não cumprimento pontual pelo locatário das suas obrigações, o locador teria o direito de resolver o contrato no prazo de trinta dias após a notificação do locatário para pagar ou satisfazer as obrigações contratuais em causa.
r) De acordo com a cláusula 24.º, n.º 1, resolvido o contrato, se o locatário não entregasse de imediato o imóvel ao locador, este teria direito a receber, até à entrega, um valor igual ao dobro da renda que seria devida se o contrato estivesse em vigor.
s) Estipulando a cláusula 24.º, n.º 2, alínea b), que, o locador, em caso de resolução por falta imputável ao locatário, teria direito a, como compensação pelos lucros cessantes, que o locatário lhe pagasse um valor igual ao menor dos seguintes: a) vinte e cinco por cento das rendas vincendas à data da resolução; b) o décuplo da primeira renda vincenda à data da resolução.
t) A insolvente deixou de liquidar as prestações vencidas a partir do mês de fevereiro de 2018.
u) Com data de 19 de fevereiro de 2019, ao Banco Santander Totta, S.A. enviou à requerida uma carta registada com aviso de receção, da qual consta «No seguimento das nossas anteriores solicitações e dado que V. Ex.ªas ainda não procederam a referido pagamento, vimos por este meio informá-los que procedemos à resolução do vosso contrato n.º …., nos termos das condições gerais do contrato de locação financeira, com o consequente recurso à via judicial para recuperação do bem, objeto do contrato e, ainda, para a obtenção do pagamento coercivo das quantias em dívida, juros e indemnizações devidas, nos termos das referidas cláusulas. Mais informamos que os valores vencidos e não pagos ascendem a € 29.541,81, referentes às seguintes rendas (…). Caso não seja efetuado o respetivo pagamento, deverão V. Exas. proceder à entrega do bem, objeto do contrato, dentro do prazo de 8 dias».
v) A carta, enviada para a morada correspondente à sede da requerida, e constante do contrato, não foi rececionada por esta.
w) Corre termos o processo executivo n.º 370/11…… no Juízo de Execução de ….., no valor de € 41.580,38, contra os avalistas AA e BB, com base na livrança supra referida.
x) Nesse mesmo processo executivo estão penhorados dois imóveis, nomeadamente a fração autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés-do-chão do Edifício n.º ….. e logradouro com a área de 44 m2, este na parte posterior e com acesso único pelo interior da fração, que faz parte do prédio urbano denominado Edifício n.º ….., situado na Alameda ….., na freguesia de ……, concelho de ….., descrito na …...ª Conservatória do Registo Predial de ….. sob o n.º ….., da freguesia de …… e inscrito sob o artigo …...º da respetiva matriz predial.
y) Este prédio esteve à venda, através da plataforma e-leilões até ao dia 30.10.2019, tendo no âmbito do leilão eletrónico sido apresentada uma proposta de compra no valor de € 90.000,00.

3. Direito aplicável

Quanto à questão a decidir em revista normal e a título principal, correspondente às Conclusões Z. a JJ., o acórdão recorrido inverteu o sentido decisório da 1.ª instância.

Fundamentou como se transcreve, no sentido de o crédito resultante de o mútuo ser reconhecido sem dependência de qualquer condição:

“(…) defende o ora recorrente que o crédito em apreço deve ser reconhecido independentemente de qualquer condição, uma vez que tratando-se de uma dívida solidária pode demandar, em simultâneo, todos os devedores, em conformidade com o disposto nos artigos 512.º e 519.º, do Código Civil e encontrando-se o crédito vencido e não pago, reveste as características de um crédito comum, sem condição.

Mais refere que o artigo 50.º do CIRE define taxativamente o que se considera crédito sob condição, o que não é o caso e nos termos do seu artigo 94.º, deve ser tratado como incondicionado até que a condição se verifique.

Como decorre do exposto, na sentença recorrida considerou-se que tal crédito está sujeito a condição resolutiva, a tratar como incondicionado, até ao momento em que a condição se preencha, com o fundamento em que todos os obrigados cambiários são devedores solidários, cf. artigo 47.º da LULL, podendo ser accionados individual ou colectivamente, extinguindo-se o mesmo, relativamente à insolvente, se qualquer dos devedores solidários proceder ao pagamento.

Para fundamentar tal conclusão, refere-se o seguinte:

“Observa-se que o conceito de crédito sob condição suspensiva no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é mais amplo do que o previsto no Código Civil, que abrange não apenas os créditos cuja eficácia esteja dependente de evento futuro e incerto, mas também aqueles cuja própria constituição ou génese foi deixada na contingência de futura condição.

Quanto aos créditos sujeitos a condição resolutiva, relativamente aos quais se verifica uma maior correspondência conceptual, a considerar que, conforme previsto no art. 94.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, eles são tratados como incondicionados, até ao momento em que a condição se preencha, sem prejuízo do dever de restituição dos pagamentos recebidos, verificada que seja a condição. Tendo o mesmo tratamento que os créditos não sujeitos a condição, tais créditos devem ser pagos, sendo levados em consideração nomeadamente em sede de rateios parciais. Apenas sucede que, verificada a condição, o credor tem o dever de restituir os pagamentos que lhe tenham sido feitos.

«Se o crédito está sujeito a condição resolutiva, isso significa que o respetivo título produz de imediato os seus efeitos, que serão, todavia, resolvidos, em regra retroativamente, se a condição se verificar. Por outras palavras, na pendência da condição, o negócio é eficaz e o direito pode ser exercido, sem prejuízo de o titular dever agir, ao fazê-lo, segundo os ditames da boa-fé» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2.ª edição, pág. 465).

Do exposto resulta que, pelo crédito decorrente do contrato de mútuo, assumiram responsabilidade, não apenas a insolvente, mas também os avalistas da livrança que esta subscreveu tendo em vista a garantia do integral pagamento do mesmo, e que o credor pode exigir dos avalistas o respetivo pagamento, como aliás está a exigir em sede de execução, sem esperar pela prévia excussão dos bens da insolvente.

Assim, este crédito extinguir-se-á se qualquer dos outros devedores solidários, maxime os avalistas, proceder ao pagamento, voluntário ou coercivo, da quantia em dívida. Como tal, porque a respetiva subsistência se encontra dependente do evento futuro e incerto que é o pagamento pelos avalistas, deve ser qualificado como crédito sujeito a condição resolutiva (nesse sentido, cfr. o Ac. do TRL de 22.10.2015, proc. n.º 5263/15.4T8SNT-A.L1-6).

O que, como vimos, não invalida que seja tratado no processo como crédito incondicionado até ao momento em que a condição se preencha, devendo o mesmo ser nomeadamente atendido e pago em sede de rateio, sem prejuízo do dever de restituição dos pagamentos recebidos, verificada que seja a condição.”.

Vejamos!

O n.º 1 do artigo 50.º do CIRE define crédito sob condição resolutiva como aquele cuja subsistência se encontra sujeita à verificação ou não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.

Quando no n.º 1 do artigo 50.º se refere a subsistência do crédito está a referir-se a subsistência da fonte do crédito (negócio jurídico ou outra fonte). Um crédito sob condição resolutiva é um crédito cuja fonte produz de imediato efeitos jurídicos, mas que pode ser resolvido se a condição se verificar.

É por ser este o sentido do n.º 1 do artigo 50.º que o artigo 94.º do CIRE, relativo aos efeitos da falência sobre os créditos sob condição suspensiva, diz que, no processo de insolvência, os créditos sobre a insolvência sujeitos a condição resolutiva são tratados como incondicionais até ao momento em que a condição se preencha, sem prejuízo do dever de restituição dos pagamentos recebidos, verificada que seja a condição.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 3.ª Edição, a pág. 443, nota 4, na anotação ao artigo 94.º:

“Se o crédito está sujeito a condição resolutiva, isso significa que o respectivo título produz de imediato os seus efeitos, que serão, todavia, resolvidos, em regra retroactivamente, se a condição se verificar. Por outras palavras, na pendência da condição o negócio jurídico é eficaz e o direito pode ser exercido, sem prejuízo de o seu titular dever agir, ao fazê-lo, segundo os ditames da boa fé.

O artigo 94.º, ao tratar o crédito sob condição resolutiva como incondicional até a verificação da condição, não está mais do que a dar seguimento aquele regime. E o mesmo se diga quando, verificada a condição, impõe ao credor o dever de restituir os pagamentos que lhe tenham sido feitos”.

Ora bem. O crédito do Banco tem a sua fonte, tem a sua origem, no contrato de mútuo.

Dos factos provados não resulta que este contrato esteja sujeito a qualquer condição resolutiva, por força da lei, decisão judicial ou negócio jurídico.

O facto de, além do mutuário, haver outros devedores solidários (os avalistas) e de estes avalistas estarem a ser demandados para pagamento da dívida num processo executivo e o facto de a dívida poder ser paga em tais processos executivos não transformam o contrato de mútuo e o crédito do Banco daí emergente em crédito sob condição resolutiva.

Se os avalistas pagarem, o crédito do Banco extingue-se, por aplicação do artigo 523.º do Código Civil.

Porém, uma coisa é extinguir-se a obrigação por meio da satisfação do direito do credor; outra coisa bem diferente é resolver-se o contrato de onde emerge o crédito. O pagamento não resolve o contrato de mútuo.

Quando, numa situação como a dos autos, além do insolvente houver outros devedores solidários, o regime a aplicar é o do n.º 1 do artigo 519.º do CC (parte final) e o dos artigos 95.º e 179.º, ambos do CIRE.

E assim, o credor pode reclamar a totalidade do seu crédito do devedor insolvente e reclamar o pagamento integral dos outros devedores solidários (e pode-o fazer tanto em processo de execução como em processos de insolvência dos devedores solidários).

Claro que ele não pode receber duas vezes.

Por isso é que o artigo 179.º do CIRE contém cautelas para evitar duplos pagamentos, quando além do insolvente outro ou outros devedores se encontrarem também insolventes.

Num caso como o dos autos em que não há processos de insolvência contra os avalistas, se estes pagassem a dívida (voluntariamente ou coercivamente nos processos de execução), o que eles poderiam fazer era exercer no presente processo de insolvência o direito de regresso contra o devedor insolvente (artigo 524.º do Código Civil). Com efeito, segundo o n.º 3 do artigo 47.º do CIRE são equiparados aos titulares dos créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decorrer do processo (neste sentido, autores ora citados, in ob. cit., pág. 445 [parte final da nota 6 ao artigo 95.º do CIRE]).

Note-se que, no caso de o devedor solidário (avalista) liquidar apenas parcialmente a dívida não podia ser pago no processo de insolvência do condevedor sem que o credor se encontrasse integralmente satisfeito (n.º 2 do artigo 179.º, do CIRE).

Assim, impõe-se concluir, que o crédito do Banco Santander, ora em apreciação, não está sujeito a condição resolutiva, pelo que, nesta parte, não pode manter-se a decisão recorrida.”

*

Neste contexto, consideramos que a Relação analisou com acerto a questão aberta pela impugnação da Recorrente em sede de apelação, com adequada argumentação em prol da insubsistência de condição resolutiva («verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico»: art. 50º, 1, do CIRE) no crédito resultante do mútuo celebrado entre a insolvente e a credora instituição financeira, cujo cumprimento foi garantido pela subscrição pela insolvente de livrança em branco, posteriormente preenchida, com aval de AA e BB (cfr. factos provados b) e g)). Com efeito, a interpretação conjugada dos arts. 47º, §§ 1.º e 2.º, e 75º da LULL, 512º, 1, 513º, 519º e 523º, 2, do CCiv. e 90º, 95º, 1, 128º, 1, d), e 179º, 1, do CIRE conduzem à solução encontrada – crédito comum sem sujeição a condição resolutiva –, em contrariedade ao decidido em 1.ª instância, uma vez que da relação estabelecida entre o avalista-garante e o credor substancial e cambiário não decorre qualquer subordinação da produção de efeitos do negócio jurídico garantido ao (eventual) pagamento do ou dos garantes[6]; a relevância da garantia verificar-se-á a montante, no momento da execução do negócio jurídico eficaz mas incumprido e seu contributo para extinção das respectivas obrigações.

Assim, encontrando-se o acórdão recorrido suficientemente fundamentado quanto à matéria controvertida, adere-se ao transcrito para os devidos efeitos de confirmação, de acordo com o previsto pelo art. 663º, 5, 2ª parte, ex vi art. 679º, do CPC.

Improcedem, pois, as Conclusões da Recorrente no objecto recursivo acabado de conhecer e apreciar.

4. Da interposição subsidiária da revista excepcional

Como referido, a Recorrente admitiu a irrecorribilidade ditada pela dupla conformidade decisória das instâncias – assim como a Recorrida se bateu pela sua verificação em contra-alegações – e essa irrecorribilidade está assente para a primeira das questões elencadas em revista, relativamente à qual se revelou coincidência entre as instâncias, a fim de se interpor subsidiariamente a revista excepcional[7].

De acordo com o requerimento de interposição do recurso e as Conclusões A. a Y, a Recorrente funda a revista excepcional nas alíneas a), b) e c) do art. 672º, 1, do CPC.

Razão pela qual há que remeter os autos à Formação de Juízes do STJ a que se refere o art. 672º, 3, do CPC, para apreciação e decisão sobre esses fundamentos específicos de admissibilidade (interesse jurídico, relevo social e contradição jurisprudencial), no segmento decisório em que se julgou existir “dupla conformidade decisória” (nos termos vistos: supra, ponto 1.2. da parte II.).

5. Do pedido de litigância de má fé da Recorrente

Veio a Recorrida, em sede de contra-alegações, peticionar incidentalmente a litigância de má fé da Recorrente por mor da interposição da presente revista.

Para o efeito, alega, em síntese:

“a Recorrente bem sabe que carece de fundamento para a sua pretensão” e que “questões que pretende ver apreciadas novamente são matérias já decididas e desprovidas que qualquer querela jurisprudencial ou doutrinal”, litigando “com o único intuito de protelar a liquidação e a entrega ao Recorrido de um bem que é de sua propriedade (o bem objecto do contrato de leasing em crise)”, com “recursos atrás de recursos, requerimentos atrás de requerimentos, para obstar ao reconhecimento do direito do aqui Recorrido a tomar posse efectiva do imóvel que é de sua propriedade e a ver reconhecido o seu integral direito de crédito”;

“bem sabendo que os créditos reclamados e reconhecidos ao Recorrido estão vencidos há anos e são devidos e que o imóvel objecto do contrato de locação financeira é propriedade do Recorrido não seu, não podendo dele fazer uso a seu bel prazer, obstando à sua entrega ao seu legítimo proprietário”;

“a parte que litiga com meros propósitos dilatórios, impedindo com a sua atitude ousada, que o Tribunal tome uma rápida decisão, colocando em risco a realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, importunadas pelo litígio, também constitui uma conduta de clara litigância de má-fé”, “não só porque sabe que não lhe assiste o direito que ajuizou, como faz mau uso dos meios processuais”.

Apreciemos.


O art. 542º do CPC determina:
«1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»

Uma das condutas em que se poderá exprimir a litigância de má-fé consiste na intervenção em juízo com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária, que o Tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo de realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio[8]. Neste caso, estaremos perante uma má fé instrumental, desde que acrescida da assunção subjectiva da falta de razão nessa intervenção[9].
Porém, a litigância de má fé censurável – com dolo ou negligência grave – não se confunde com a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta de uma posição jurídica, ainda que diversa daquela que a decisão judicial acolhe e ampara.
Não se nos afigura que a Recorrente litigue junto do STJ, nomeadamente com a culpa qualificada que a lei exige, com violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na sua relação com as partes e com o Tribunal, tendo em vista a obtenção do fins considerados ilegítimos na al. d) do art. 542º, 1, do CPC.
É certo que a Recorrente não se conforma com as consequências jurídicas do acórdão recorrido. Tem, por isso, ao seu dispor, por um lado, a revista admitida pelo art. 671º, 1, do CPC, por força da remissão do art. 17º, 1, do CIRE, e, no caso da dupla conformidade para o segmento afectado, a impugnação residual e última admitida pelo art. 672º, 1, do CPC, como meios de impugnação destinados a fazer inverter a solução da instância recorrida. Aproveitar destes meios recursivos – e só destes agora tratamos – não permite concluir que foram violados os deveres processuais incompatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes dilatórios, susceptível de desencadear a forte sanção punitiva que o CPC reserva para comportamentos abusivos em sede adjectivo-processual.
A Recorrente não infringe com desconsideração manifesta e grosseira, por ora, esses deveres, em aproveitamento da aparelhagem legal que lhe permite pugnar pelo vencimento de uma outra forma de interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto.

Razão pela qual não logra proceder o pedido da Recorrida e se absolve a Recorrente.

III) DECISÃO

Nesta conformidade, acorda-se em:
1) não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposta a título principal quanto ao segmento decisório mantido pelo acórdão recorrido e, quanto a este, ordenar a remessa dos autos à Formação Especial deste STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, para o efeito de julgamento dos fundamentos específicos da revista excepcional interposta a título subsidiário, após o trânsito desta decisão;
2) julgar improcedente a revista normal quanto ao segmento decisório julgado improcedente pelo acórdão recorrido e impugnado pela Recorrente, confirmando-se a decisão da Relação que declarou “o crédito detido pelo credor Banco Santander Totta, S.A. emergente de contrato de mútuo, no valor global de € 25.791,11 (vinte e sete mil setecentos e noventa e um euros e onze cêntimos), como crédito comum (…) que (…) não está sujeito a condição resolutiva”;
3) julgar improcedente e absolver a Recorrente do pedido de condenação em litigância de má fé pela interposição da revista.

Custas da revista pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

Custas do incidente a cargo da Recorrida, com taxa de justiça que se fixa em 1 UC.


STJ/Lisboa, 10 de Maio de 2021

Ricardo Costa (Relator)

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este Colectivo.

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

____________________________________________________________________________________________


[1] ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código do Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, pág. 370; enfatizado nosso.
[2] V. J. PINTO FURTADO, Recursos em processo civil (de acordo com o CPC de 2013), 2.ª ed., Nova Causa – Edições Jurídicas, Braga, 2017, págs. 111-112.
[3] ABRANTES GERALDES, Recursos… cit. e loc. cit., sublinhado como no original.
[4] RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546º a 1085º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, págs. 178-179.

[5] Para estes pontos, v., jurisprudencialmente e em conjunto, os Acs. do STJ de 29/10/2009, processo n.º 1449/08.6TBVCT.G1.S1, Rel. SANTOS BERNARDINO, in www.dgsi.pt, de 20/3/2014, processo n.º 518/11.0TBFIG-A.C1.S1, Rel. SÉRGIO POÇAS, in Sumários de Acórdãos do STJ – Secções Cíveis, Boletim Anual, 2014,  págs. 197-198, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2014.pdf, de 10/4/2014, processo n.º 2393/11.5TJLSB.L1.S1, Rel. GRANJA DA FONSECA, in www.dgsi.pt, de 29/10/2015, processo n.º 258/09.0TBSCR.L1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt, de 19/1/2016, processo n.º 1368/11.9TBVNO.E1.S1, Rel. JOSÉ RAINHO, in A dupla conforme no actual CPC – Jurisprudência do STJ (Sumários de Acórdãos de 2014 a Dezembro de 2016), 2017, pág. 30, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/duplaconforme.pdf.pdf, Jurisprudência Temática, de 15/9/2016, processo n.º 14633/14.4T2SNT.L1.S1, Rel. ANA LUÍSA GERALDES, in www.dgsi.pt, e de 7/9/2020, processo n.º 12651/15.4T8PRT.P1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt. Doutrinalmente, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 578 (“(…) tendo a recorrente restringido expressamente o objeto do recurso às questões que o acórdão pretendido impugnar confirmou, sem qualquer voto de vencido, é inadmissível a revista para o STJ.”), convergindo com o Ac. do STJ de 16/11/2011, processo n.º 808/08.9TTVCT.P1.S1, Rel. FERNANDES DA SILVA, in www.dgsi.pt.
[6] Sobre a coordenação entre a relação fundamental (“extra-cartular”) entre avalista e credor cambiário e a relação “interna” entre o avalista e o avalizado, v. CAROLINA CUNHA, Manual de letras e livranças, Almedina, Coimbra, 2016, págs. 119 e ss. 
[7] Sobre a legitimidade e validade desta interposição, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, págs. 369-370.
[8] ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 593.
[9] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 13/1/2015, processo n.º 36/12.9TVLSB.L1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.