Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO SEGURO FACULTATIVO VEÍCULO AUTOMÓVEL PERDA DE COISA SEGURA APÓLICE DE SEGURO PRINCÍPIO INDEMNIZATÓRIO SOBRESSEGURO SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO CLÁUSULA CONTRATUAL AUTONOMIA PRIVADA PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 01/26/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I - O DL n.º 214/97, de 16-08, não foi revogado pelo DL n.º 72/2008, de 16-04. II - No seguro de danos próprios, em caso de perda total de viatura, a indemnização a pagar pela seguradora deverá corresponder ao valor seguro constante da apólice, se o evento tiver ocorrido no decurso da primeira anuidade. | ||
Decisão Texto Integral: |
PROC. N.º 3652/17.9T8LSB.L1.S1 6ª SECÇÃO (CÍVEL) REL. 160[1]
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ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
“Weekendtreasure - Viagens e Turismo, Lda.”, instaurou acção declarativa com processo comum, contra “Mapfre - Seguros Gerais, S.A.”, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 59.758,00 €, acrescida de juros, sendo 15.439,00 € pelo valor da viatura, 43.500,00 € pela privação do uso, 38,00 € por despesas hospitalares e 765,00 € por despesas judiciais.
A 1ª instância condenou a ré a pagar à autora a indemnização de 7.625,00 €, chegando a este valor da seguinte maneira: “No caso dos autos, o valor do automóvel em apreço era, conforme reconhecido pela Ré, não superior a € 10.000,00. A este valor haverá de descontar-se a franquia (€ 375,00) e o valor do salvado (€ 2.000,00). O montante a que a Autora tem direito é, assim, de € 7.625,00 (sete mil seiscentos e vinte e cinco euros), valor a que acrescem os juros de mora à taxa legal nos moldes peticionados”. O acórdão recorrido, ao fazer proceder parcialmente o recurso de apelação da autora, elevou essa indemnização para 15.493,00 €, com a seguinte fundamentação: “(…) em primeiro lugar importa ter presente que nas condições particulares as partes contrataram a cobertura de danos sofridos pelo veículo, estabelecendo que em caso de choque, colisão ou capotamento o capital seguro seria de 17.850 €, com uma franquia de 2% sobre o capital seguro, no mínimo de 250 €. Nas condições gerais da apólice, no art° 38°, o ‘Capital Seguro’ vem definido como ‘Valor estabelecido na apólice para cada cobertura e garantia...’. Ainda nesse artigo das condições gerais da apólice o ‘Valor Venal’ é definido como ‘Valor do veículo seguro no momento imediatamente anterior ao sinistro e que está consignado na apólice, determinada na primeira anuidade pelo Guia Eurotex ou outro análogo e, nas seguintes, pelo valor resultante da aplicação legal das Tabelas de Desvalorização Mensal de veículos anexas.’ Por sua vez, ‘Perda Total’ é definida como ‘Para efeito das coberturas de Choque, Colisão ou Capotamento ... quando se constate que o valor estimado para reparação dos danos sofridos é superior a 70% do valor venal do veículo consignado na apólice à data do sinistro.’ Ora, como vimos supra, ocorreu perda total do veículo. Ainda de acordo com as Condições Gerais, o valor seguro para coberturas de danos próprios, nos veículos usados, deverá corresponder ao valor determinado pela tabela Eurotax, válida no início do contrato ou no momento da inclusão do veículo seguro no mesmo; nas anuidades seguintes à celebração do contrato, o valor seguro é automaticamente actualizado de acordo com as Tabelas de Desvalorização Mensal de Veículos (Cf. art° 45° n° 1, al. b) e n° 2 das Condições Gerais da Apólice). Por sua vez, de acordo com o artigo 46° n° 4 das Condições Gerais, ‘Em caso de perda total a Mapfre poderá optar pela substituição do veículo seguro, ou pela atribuição de uma indemnização em dinheiro até ao valor venal, conforme definido no art°38°...’ Portanto, destas regras contratuais decorre, de modo claro, que a ré, face à perda total do veículo e encontrando-se o contrato na primeira anuidade, deveria ter indemnizado a autora pelo valor venal consignado na apólice, isto é, por 17 850€, deduzida a franquia de 2% (357€) e o valor do salvado (2 000€), ou seja, pela quantia de 15 493€.
Em relação ao assim decidido pela Relação, não manifesta a recorrente qualquer discordância quanto à situação de perda total do veículo, mas entende que ficou por demonstrar que essa perda total tenha derivado, única e exclusivamente, do acidente que constitui a causa de pedir nestes autos. Ou seja, coloca em causa a existência do nexo causal entre o evento e os danos verificados na viatura. Já na apelação tinha levantado esta questão, que mereceu a devida apreciação no acórdão recorrido: “Segundo a ré, não foram especificados factos relativos aos danos que determinaram a perda total do veículo e, por isso, não há fundamento para a condenação da ré a suportar a indemnização que suporia essa perda total; e que não se provou que o veículo ostentava uma multiplicidade de danos, nem foi especificado facto relativo à franquia; e que não foram especificados factos relativos ao nexo de causalidade entre o evento e a perda total. Vejamos então. Desde já se afirma: resulta suficientemente demostrado, da factualidade elencada nos pontos 10 e 11, quer os danos no veículo, quer o nexo de causalidade entre o acidente/despiste e esses danos. Na verdade, ali se refere que “...ao entrar na curva que dá acesso à Avenida...o veículo entrou em despiste e foi embater no rail de protecção do lado esquerdo.com a lateral esquerda e de seguida acabou por embater de frente no rail do lado direito...” (10) “tendo (o embate no rail) danificado o veículo de forma tão grave que o impossibilitou de circular...” (11). E mais. Dos documentos elaborados pela própria seguradora e por ela juntos, resulta a perda total do veículo, conforme relatório junto como documento n.º 4 da contestação: o valor total da reparação seriam 15.353,45€, com uma dedução (desconto?) de 1.248,25€ e uma franquia de 375 € perfaziam 13.461,10 € (pág. 1 do doc. 4, a fls 60). E são ali descritos/especificados os concretos danos sofridos pelo veículo e as reparações que seriam necessárias realizar (págs. 61 e segs). Ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão - artigo 563 do CC – a nossa lei acolheu a teoria da causalidade adequada. A propósito deste pressuposto, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado. Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, adequado e apropriado para provar o dano. Como se refere no acórdão deste STJ de 01.07.2003[3], tal significa que “a doutrina da causalidade adequada determina que o nexo da causalidade co-envolva matéria de facto (nexo naturalístico: o facto condição sem o qual o dano não se teria verificado) e matéria de direito (nexo de adequação: que o facto, em abstracto ou geral, seja causa adequada do dano)”. E continua esse acórdão, apoiado na jurisprudência do STJ: “Se o nexo de causalidade constitui, no plano naturalístico, matéria de facto, não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, já o mesmo vem a constituir, no plano geral e abstracto, matéria de direito, onde o Supremo Tribunal pode intervir, pois respeita à interpretação e aplicação do referenciado do art. 563 do CC”. Esta disposição legal consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa, o que significa que o facto que actuou como condição do dano só deixará de se considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto[4]. Temos assim que ao tribunal de revista apenas cabe intervir na definição do nexo de adequação do resultado danoso à conduta do agente, mediante a formulação de um juízo abstracto de adequação. Ora, salvo o devido respeito pela opinião da recorrente, parece-nos que o que esta questiona no recurso é a existência do nexo naturalístico entre o facto e os danos no veículo, colocando dúvidas sobre se aquele determinou estes. É o que resulta, sem a menor dúvida, da conclusão 6ª, onde deixou consignado: “A A/recorrida não provou, como se lhe impunha, os efectivos e concretos danos decorrentes do sinistro e o necessário nexo causal entre os danos e o sinistro”. Ou seja, a recorrente parece continuar inconformada com o modo como se concluiu que o acidente provocou os danos na viatura que ela própria admitiu no artigo 44º da contestação (multiplicidade de danos), remetendo para o documento n.º 4, onde se mostram exaustivamente descritos todos esses danos. Acontece que essa questão, eminentemente factual, foi apreciada no recurso de apelação nos sobreditos termos, tendo o acórdão recorrido estabelecido esse nexo de causalidade com base nos factos 10. e 11. da matéria de facto, que a recorrente havia impugnado sem sucesso. Como se referiu, é insindicável pelo STJ o estabelecimento do nexo naturalístico entre o facto e o dano, o que nos desobriga de qualquer reapreciação sobre essa matéria. Não devemos prosseguir sem deixar aqui uma nota de profunda estranheza pela circunstância de a recorrente ter admitido nos autos a perda total da viatura e colocar agora em causa o nexo causal entre o acidente e os danos.
O outro aspecto em que a recorrente manifesta discordância diz respeito à forma como se determinou o montante indemnizatório pela perda total do veículo. Cumpre, assim, decidir se, excedendo o valor do capital da apólice vigente o valor real da coisa segura, deve ser aquele ou este o correspondente ao ressarcimento do segurado que, por via do sinistro, sofreu a perda total do objecto do seguro. A este propósito convém olhar para o que ficou provado nos itens 15. e 29.:
15. Naquela data a Autora declarou à Ré que o valor do veículo seguro era de € 17.850,00. 29. O valor comercial do veículo sinistrado era à data do sinistro, não superior a € 10.000,00 (dez mil euros). Ora, como se sabe, além do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pode ser contratado o chamado seguro de danos próprios, que abrange os prejuízos sofridos pelo veículo seguro, mediante várias coberturas. A presente acção desenha-se precisamente no âmbito de responsabilidade contratual fundada num seguro deste tipo (danos próprios), portanto facultativo, submetido às regras contratuais convencionadas pelas partes. Não se pode, por isso, pôr de lado o que vem disposto no DL 214/97, de 16 de Agosto (não derrogado pelo DL 72/2008), que instituiu uma série de regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo. Nomeadamente o artigo 5º, no qual se prevê a estipulação por acordo do valor seguro, estatuindo-se que o disposto nos artigos 2º e 3º não impede as partes contratantes de estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável. Foi o que aconteceu no caso, já que das condições particulares consta o valor seguro de 17.850 €, indicado pelo tomador do seguro, mas indubitavelmente aceite pela seguradora, que o fez inscrever na apólice, com consequente reflexo no prémio devido pelo tomador – cfr. pontos 15. e 24. e 26. da matéria de facto provada, e documento de fls. 51 a 56. Por sua vez, o artigo 8º, regulando os deveres de informação contratual por parte da seguradora, dispõe na alínea a) do n.º 1: “Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1.º devem constar os seguintes elementos: a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total[9], bem como os critérios da sua actualização anual e a respectiva tabela de desvalorização”.
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III. DECISÃO
De acordo com o que se deixou exposto, nega-se a revista.
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Custas pela recorrente.
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LISBOA, 26 de Janeiro de 2021 Henrique Araújo (Relator) O relator atesta, nos termos do artigo 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos, Maria Olinda Garcia e Ricardo Costa.
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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[2] Os factos que a 1ª instância considerou não provados foram os seguintes: 1- O acidente só pode ter sucedido por via de alguma condicionante da estrada, que não se pode confirmar, tendo o despiste ocorrido sem que o condutor o pudesse evitar, apesar de ter tentado, sem sucesso. 2- O veículo sinistrado ostentava uma multiplicidade de danos. 3- Em conversa com o perito da seguradora o condutor do veículo denotou pouco conhecimento sobre as características daquele, designadamente quanto à quilometragem. 4- A Autora pagou a nota de débito relativa ao tratamento hospitalar do condutor do seu veículo, no valor de € 38,00 [5] V. acórdãos de 24.04.2012, no processo n.º 32/10.0T2AVR.C1.S1 (Conselheiro Mário Mendes) 23.01.2014, no processo n.º 703/10.1TBEPS.G1.S1 (Conselheiro Serra Batista), de 18.06.2015, no processo n.º 184/12.5TBVFR.P1.S1 (Conselheiro Abrantes Geraldes), de 19.09.2019, no processo n.º 181/16.1T8HRT.L1.S2 (Conselheiro Pedro Lima Gonçalves), todos em www.dgsi. |