Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3652/17.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO FACULTATIVO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PERDA DE COISA SEGURA
APÓLICE DE SEGURO
PRINCÍPIO INDEMNIZATÓRIO
SOBRESSEGURO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
CLÁUSULA CONTRATUAL
AUTONOMIA PRIVADA
PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O DL n.º 214/97, de 16-08, não foi revogado pelo DL n.º 72/2008, de 16-04.
II - No seguro de danos próprios, em caso de perda total de viatura, a indemnização a pagar pela seguradora deverá corresponder ao valor seguro constante da apólice, se o evento tiver ocorrido no decurso da primeira anuidade.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 3652/17.9T8LSB.L1.S1

6ª SECÇÃO (CÍVEL)

REL. 160[1]

                                                                       *

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Weekendtreasure - Viagens e Turismo, Lda.”, instaurou acção declarativa com processo comum, contra “Mapfre - Seguros Gerais, S.A.”, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 59.758,00 €, acrescida de juros, sendo 15.439,00 € pelo valor da viatura, 43.500,00 € pela privação do uso, 38,00 € por despesas hospitalares e 765,00 € por despesas judiciais.
Alegou, em síntese, que:
- Celebrou com a ré contrato de seguro automóvel, incluindo danos próprios, relativamente ao veículo de matrícula ….…-GP;
- No dia 05.04.2016 sofreu um acidente, por despiste;
- O veículo tinha o valor de 17.850,00 € e os salvados foram vendidos a terceiro, por sugestão da ré, pela quantia de 2.000,00 €;
- Descontada a franquia de 357,00 €, tem direito a receber 15.439,00€;
- Por privação de uso durante 290 dias, à razão de 150,00 €/dia, tem direito a 43.500,00 €;
- Por despesas hospitalares decorrentes do sinistro tem direito a 38,00€;
- Por despesas judiciais tem direito a 765,00 €.

Citada, a ré contestou.
Impugnou o acidente e avançou a hipótese de este ter sido intencionalmente provocado.
Defendeu que o valor do veículo é de apenas 10.000,00 € e garantiu que a autora não contratou a cobertura de paralisação, concluindo que não tem direito a indemnização por privação de uso.

Foi realizada audiência prévia com saneamento dos autos, enunciação do objecto do litígio e organização dos temas de prova.

Realizada a audiência final foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência condenou a ré no “pagamento da quantia de 7 625€, acrescidos de juros de mora à taxa legal aplicável'

Inconformadas, quer a ré quer a autora interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo a Relação ……. julgado improcedente o recurso da ré e parcialmente procedente o da autora, condenando aquela a pagar esta a indemnização de 15.493,00 €, acrescida de juros desde 09.04.2016, às taxas que resultem da aplicação da Portaria 277/2013, de 26 de Agosto.

A ré veio agora interpor recurso de revista desse acórdão, suscitando as seguintes questões, que condensa na conclusão 4ª:
a) Falta de demonstração, por parte da autora, de todos os pressupostos de verificação do instituto de responsabilidade civil, nomeadamente da falta de prova dos danos e do nexo de causalidade entre os danos e o evento danoso;
b) Determinação do valor a considerar para efeitos de indemnização pela perda total.

A autora não contra-alegou.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Estão provados os seguintes factos:

1. A Autora dedica-se à actividade de prestação de serviços de turismo em veículos próprios para turistas.
2. No âmbito dessa actividade, tem diversos veículos destinados ao transporte com elevado padrão de qualidade e conforto, utilizando-os nos passeios que lhe são adquiridos pelos turistas.
3. A Autora é proprietária do veículo com a matrícula …...-GP, titular da apólice de seguro com o n.º ……...
4. A Autora participou à Ré um sinistro ocorrido no dia 5 de Abril de 2016 pelas 00h30m, tendo aquela declinado responsabilidade pelo mesmo no âmbito do processo n.º ….., do ramo automóvel.
5. O automóvel em que a Autora seguia foi removido do local do sinistro por um reboque automóvel ……. no sentido ……...
6. O condutor do veículo foi conduzido ao Centro Hospitalar ….. para ser tratado, tendo sido encaminhado para as urgências daquela unidade.
7. O condutor do veículo não ficou ferido.
8. O condutor era AA., legal representante da Autora.
9. A PSP deslocou-se ao local tomando conta da ocorrência e lavrando o respectivo auto.
10. O local é movimentado e com circulação automóvel, dentro de centro urbano, comercial e residencial, tendo iluminação. No dia 5 de Abril de 2016 pelas 00h30m no ….. sentido ……, ao entrar na curva que dá acesso à Avenida ……., o veículo entrou em despiste e foi embater no rail de protecção do lado esquerdo, tanto quanto o condutor se recorda, com a sua lateral esquerda e de seguida acabou batendo de frente com o rail do lado direito na referida artéria.
11. O veículo ao descrever a curva à direita, muito apertada, quase no final da artéria acima descrita, não a conseguiu descrever de forma conveniente, tendo embatido no referido rail, danificando o veículo de forma tão grave que o impossibilitou de circular, tendo sido removido por uma empresa de reboques naquele local.
12. O condutor não teve reflexos para evitar o despiste do automóvel, tal foi a surpresa sentida quando o veículo não fez a curva de acordo com o que ele tinha planeado naquele trajecto.
13. O local é movimentado e tem muita circulação automóvel a qualquer dia da hora ou da noite.
14. A data de final da primeira anuidade do contrato de seguro subjacente aos autos era 7 de Abril de 2016.
15. Naquela data a Autora declarou à Ré que o valor do veículo seguro era de €17.850,00.
16. A Ré abriu um processo na sequência de lhe ter sido comunicado o sinistro em discussão nos autos.
17. AA. participou o sinistro em apreço também como acidente de trabalho.
18. O veículo …… foi transportado para as instalações da B......, sita na Avenida …….., em ……….
19. O veículo em apreço tinha sido interveniente em outros acidentes de viação.
20. O legal representante da Autora esteve envolvido num outro acidente de viação, com a viatura de matrícula ……-PZ
21. A Autora participou o sinistro à Ré.
22. A Ré declinou a responsabilidade pelo indicado sinistro.
23. Na data do sinistro a responsabilidade emergente de acidentes de viação causados a terceiros com o veículo automóvel ligeiro da marca …… com a matrícula …..-GP, encontrava-se transferida para a seguradora Ré mediante contrato titulado pela apólice n° ……….
24. A Ré enviou à Autora uma comunicação datada de 13 de Março de 2016, atribuindo ao veículo o valor de €13.698,84, de harmonia com a tabela de desvalorização aplicável.
25. A Autora não aceitou tal valor tendo enviado comunicação pelas 22h20 do dia 4 de Abril de 2016 atribuindo ao veículo o valor de € 16.200,00 para efeitos de cobertura de danos próprios e a produzir efeitos a partir de 7 de Abril de 2016.
26. Dois dias antes do terminar a primeira anuidade, alguém, representando a Autora, declarou à Ré como valor €17.850,00.
27. O legal representante da Autora foi assistido no Centro Hospitalar ……. tendo sido emitida a nota de débito no valor de € 38,00 (trinta e oito euros).
28. Autora teve despesas judiciais no valor de € 765,00 (setecentos e sessenta e cinco euros) no âmbito destes autos.
29. O valor comercial do veículo sinistrado era à data do sinistro, não superior a € 10.000,00 (dez mil euros).
30. O salvado teve o valor de € 2.000,00 (dois mil euros).

O DIREITO

A 1ª instância condenou a ré a pagar à autora a indemnização de 7.625,00 €, chegando a este valor da seguinte maneira:

“No caso dos autos, o valor do automóvel em apreço era, conforme reconhecido pela Ré, não superior a € 10.000,00. A este valor haverá de descontar-se a franquia (€ 375,00) e o valor do salvado (€ 2.000,00). O montante a que a Autora tem direito é, assim, de € 7.625,00 (sete mil seiscentos e vinte e cinco euros), valor a que acrescem os juros de mora à taxa legal nos moldes peticionados”.

O acórdão recorrido, ao fazer proceder parcialmente o recurso de apelação da autora, elevou essa indemnização para 15.493,00 €, com a seguinte fundamentação:

“(…) em primeiro lugar importa ter presente que nas condições particulares as partes contrataram a cobertura de danos sofridos pelo veículo, estabelecendo que em caso de choque, colisão ou capotamento o capital seguro seria de 17.850 €, com uma franquia de 2% sobre o capital seguro, no mínimo de 250 €.

Nas condições gerais da apólice, no art° 38°, o ‘Capital Seguro’ vem definido como ‘Valor estabelecido na apólice para cada cobertura e garantia...’.

Ainda nesse artigo das condições gerais da apólice o ‘Valor Venal’ é definido como ‘Valor do veículo seguro no momento imediatamente anterior ao sinistro e que está consignado na apólice, determinada na primeira anuidade pelo Guia Eurotex ou outro análogo e, nas seguintes, pelo valor resultante da aplicação legal das Tabelas de Desvalorização Mensal de veículos anexas.’

Por sua vez, ‘Perda Total’ é definida como ‘Para efeito das coberturas de Choque, Colisão ou Capotamento ... quando se constate que o valor estimado para reparação dos danos sofridos é superior a 70% do valor venal do veículo consignado na apólice à data do sinistro.’

Ora, como vimos supra, ocorreu perda total do veículo.

Ainda de acordo com as Condições Gerais, o valor seguro para coberturas de danos próprios, nos veículos usados, deverá corresponder ao valor determinado pela tabela Eurotax, válida no início do contrato ou no momento da inclusão do veículo seguro no mesmo; nas anuidades seguintes à celebração do contrato, o valor seguro é automaticamente actualizado de acordo com as Tabelas de Desvalorização Mensal de Veículos (Cf. art° 45° n° 1, al. b) e n° 2 das Condições Gerais da Apólice).

Por sua vez, de acordo com o artigo 46° n° 4 das Condições Gerais, ‘Em caso de perda total a Mapfre poderá optar pela substituição do veículo seguro, ou pela atribuição de uma indemnização em dinheiro até ao valor venal, conforme definido no art°38°...’

Portanto, destas regras contratuais decorre, de modo claro, que a ré, face à perda total do veículo e encontrando-se o contrato na primeira anuidade, deveria ter indemnizado a autora pelo valor venal consignado na apólice, isto é, por 17 850€, deduzida a franquia de 2% (357€) e o valor do salvado (2 000€), ou seja, pela quantia de 15 493€.

Em relação ao assim decidido pela Relação, não manifesta a recorrente qualquer discordância quanto à situação de perda total do veículo, mas entende que ficou por demonstrar que essa perda total tenha derivado, única e exclusivamente, do acidente que constitui a causa de pedir nestes autos. Ou seja, coloca em causa a existência do nexo causal entre o evento e os danos verificados na viatura.

Já na apelação tinha levantado esta questão, que mereceu a devida apreciação no acórdão recorrido:

“Segundo a ré, não foram especificados factos relativos aos danos que determinaram a perda total do veículo e, por isso, não há fundamento para a condenação da ré a suportar a indemnização que suporia essa perda total; e que não se provou que o veículo ostentava uma multiplicidade de danos, nem foi especificado facto relativo à franquia; e que não foram especificados factos relativos ao nexo de causalidade entre o evento e a perda total.

Vejamos então.

Desde já se afirma: resulta suficientemente demostrado, da factualidade elencada nos pontos 10 e 11, quer os danos no veículo, quer o nexo de causalidade entre o acidente/despiste e esses danos. Na verdade, ali se refere que “...ao entrar na curva que dá acesso à Avenida...o veículo entrou em despiste e foi embater no rail de protecção do lado esquerdo.com a lateral esquerda e de seguida acabou por embater de frente no rail do lado direito...” (10) “tendo (o embate no rail) danificado o veículo de forma tão grave que o impossibilitou de circular...” (11).

E mais. Dos documentos elaborados pela própria seguradora e por ela juntos, resulta a perda total do veículo, conforme relatório junto como documento n.º 4 da contestação: o valor total da reparação seriam 15.353,45€, com uma dedução (desconto?) de 1.248,25€ e uma franquia de 375 € perfaziam 13.461,10 € (pág. 1 do doc. 4, a fls 60). E são ali descritos/especificados os concretos danos sofridos pelo veículo e as reparações que seriam necessárias realizar (págs. 61 e segs).
Aliás, da definição de perda total que consta das condições gerais da apólice, para a cobertura de choque, colisão ou capotamento, decorre que ela (perda total) se verifica quando se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos é superior a 70% do valor venal do veículo consignado na apólice à data do sinistro."" (art° 38° das Condições Gerais). Ora, na apólice, à data do sinistro, o veículo tinha um valor de 17.850 € e a reparação foi orçamentada em 15.353,45€. E, 70% de 17.850 € são 12.495 €. Por isso, no relatório do averiguador da ré, foi considerado um caso de perda total.
Além disso ainda, foi a própria ré quem afirmou, na sua contestação, no ponto 39°, com remissão para a prova do documento 3 que juntou (as elucidativas fotografias do estado em que ficou o veículo) e depois no ponto 44° com remissão para a prova do documento 4 (o pormenorizado relatório dos danos com perda total) que o veículo revelava uma multiplicidade de danos. Portanto, trata-se da admissão de facto desfavorável à ré e que favorece a parte contrária; ou seja, nos termos do art° 352° do CC, a ré confessou esse facto. E, por isso, irreleva que a 1a instância tenha dado como não provado, no ponto 2, esse facto reconhecido pela ré e que lhe é desfavorável”.
Importa aqui referir que, quanto ao conteúdo do último parágrafo transcrito, a 1ª instância tinha dado como não provado que o veículo sinistrado apresentasse uma multiplicidade de danos[2]. No entanto, a Relação, fazendo uso da faculdade estatuída no artigo 607º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi n.º 2 do artigo 663º, deu como provado, por confissão da ré, que o veículo sinistrado revelava essa tal multiplicidade de danos.
Precisado este ponto, vamos avançar para a análise do pressuposto de responsabilidade civil colocado em causa pela recorrente: o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão - artigo 563 do CC – a nossa lei acolheu a teoria da causalidade adequada.

A propósito deste pressuposto, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de que a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado. Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, adequado e apropriado para provar o dano.

Como se refere no acórdão deste STJ de 01.07.2003[3], tal significa que “a doutrina da causalidade adequada determina que o nexo da causalidade co-envolva matéria de facto (nexo naturalístico: o facto condição sem o qual o dano não se teria verificado) e matéria de direito (nexo de adequação: que o facto, em abstracto ou geral, seja causa adequada do dano)”.

E continua esse acórdão, apoiado na jurisprudência do STJ: “Se o nexo de causalidade constitui, no plano naturalístico, matéria de facto, não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, já o mesmo vem a constituir, no plano geral e abstracto, matéria de direito, onde o Supremo Tribunal pode intervir, pois respeita à interpretação e aplicação do referenciado do art. 563 do CC”.

Esta disposição legal consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa, o que significa que o facto que actuou como condição do dano só deixará de se considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto[4].

Temos assim que ao tribunal de revista apenas cabe intervir na definição do nexo de adequação do resultado danoso à conduta do agente, mediante a formulação de um juízo abstracto de adequação.

Ora, salvo o devido respeito pela opinião da recorrente, parece-nos que o que esta questiona no recurso é a existência do nexo naturalístico entre o facto e os danos no veículo, colocando dúvidas sobre se aquele determinou estes. É o que resulta, sem a menor dúvida, da conclusão 6ª, onde deixou consignado: “A A/recorrida não provou, como se lhe impunha, os efectivos e concretos danos decorrentes do sinistro e o necessário nexo causal entre os danos e o sinistro”. Ou seja, a recorrente parece continuar inconformada com o modo como se concluiu que o acidente provocou os danos na viatura que ela própria admitiu no artigo 44º da contestação (multiplicidade de danos), remetendo para o documento n.º 4, onde se mostram exaustivamente descritos todos esses danos.

Acontece que essa questão, eminentemente factual, foi apreciada no recurso de apelação nos sobreditos termos, tendo o acórdão recorrido estabelecido esse nexo de causalidade com base nos factos 10. e 11. da matéria de facto, que a recorrente havia impugnado sem sucesso.

Como se referiu, é insindicável pelo STJ o estabelecimento do nexo naturalístico entre o facto e o dano, o que nos desobriga de qualquer reapreciação sobre essa matéria.

Não devemos prosseguir sem deixar aqui uma nota de profunda estranheza pela circunstância de a recorrente ter admitido nos autos a perda total da viatura e colocar agora em causa o nexo causal entre o acidente e os danos.

O outro aspecto em que a recorrente manifesta discordância diz respeito à forma como se determinou o montante indemnizatório pela perda total do veículo.

Cumpre, assim, decidir se, excedendo o valor do capital da apólice vigente o valor real da coisa segura, deve ser aquele ou este o correspondente ao ressarcimento do segurado que, por via do sinistro, sofreu a perda total do objecto do seguro.

A este propósito convém olhar para o que ficou provado nos itens 15. e 29.:

15.          Naquela data a Autora declarou à Ré que o valor do veículo seguro era de € 17.850,00.

29.          O valor comercial do veículo sinistrado era à data do sinistro, não superior a € 10.000,00 (dez mil euros).


Com base nestes factos, considera a recorrente que esta é uma situação de sobresseguro e que o valor a indemnizar deverá ser apenas o do dano real e concreto apurado à data do sinistro, de acordo com o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128º, por força da remissão do artigo 132º, ambos do DL 72/2008 (que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro), e não o do valor do capital seguro constante da apólice.
Este entendimento encontra respaldo em alguns acórdãos do STJ[5] que se dedicaram a esta temática, embora com algumas particularidades que ao caso não interessam[6].
Todavia, uma boa parte da jurisprudência das Relações vai em sentido oposto[7]. E é neste mesmo sentido que nos revemos.
Segundo o princípio indemnizatório, o segurado deve ser ressarcido do prejuízo que efectivamente sofreu, não podendo o seguro constituir fonte de rendimento para os lesados[8]. A principal finalidade desse princípio é evitar o sobresseguro e, desse modo, impedir que o segurado enriqueça com o sinistro.
Este princípio decorria do artigo 435º do Código Comercial (revogado pelo DL 72/2008) e foi transposto para a norma do artigo 128º do DL 72/2008, onde se estabelece que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. Esta regra é aplicável às situações de sobresseguro, por força da remissão do artigo 132º do mesmo diploma.
Mas o princípio indemnizatório não tem de ser aplicado a todas as situações de sobresseguro. Tudo dependerá do quadro contratual estabelecido pelas partes, já que o n.º 1 do artigo 131º do referido DL 72/2008, permite que, sem prejuízo do disposto no artigo 128.º e no n.º 1 do artigo anterior, as partes possam acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, desde que esse valor não seja manifestamente infundado.

Ora, como se sabe, além do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pode ser contratado o chamado seguro de danos próprios, que abrange os prejuízos sofridos pelo veículo seguro, mediante várias coberturas.

A presente acção desenha-se precisamente no âmbito de responsabilidade contratual fundada num seguro deste tipo (danos próprios), portanto facultativo, submetido às regras contratuais convencionadas pelas partes.

Não se pode, por isso, pôr de lado o que vem disposto no DL 214/97, de 16 de Agosto (não derrogado pelo DL 72/2008), que instituiu uma série de regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo. Nomeadamente o artigo 5º, no qual se prevê a estipulação por acordo do valor seguro, estatuindo-se que o disposto nos artigos 2º e 3º não impede as partes contratantes de estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável.

Foi o que aconteceu no caso, já que das condições particulares consta o valor seguro de 17.850 €, indicado pelo tomador do seguro, mas indubitavelmente aceite pela seguradora, que o fez inscrever na apólice, com consequente reflexo no prémio devido pelo tomador – cfr. pontos 15. e 24. e 26. da matéria de facto provada, e documento de fls. 51 a 56.

Por sua vez, o artigo 8º, regulando os deveres de informação contratual por parte da seguradora, dispõe na alínea a) do n.º 1:

“Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1.º devem constar os seguintes elementos:

a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total[9], bem como os critérios da sua actualização anual e a respectiva tabela de desvalorização”.
Ainda o DL 214/97, mas agora o seu preâmbulo, na parte em que refere:
“(…) de forma a garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo, entendeu-se ser necessário regular a matéria de forma a assegurar uma maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa e instituir a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total, que seja calculada com base nesse valor.
O sistema introduzido garante, assim, a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total[10].
As consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual”.
Chegados aqui, convém relembrar que a hipótese dos autos respeita a uma situação de perda total de uma viatura automóvel, verificada ainda no decurso da primeira anuidade do contrato.
Assim, definindo-se o quadro contratual do seguro pelas condições gerais, especiais (se as houver) e particulares acordadas, impõe-se olhar para o artigo 46º, n.º 4, alínea a), das Condições Gerais da apólice, onde se diz que, em caso de perda total a Mapfre poderá optar pela substituição do veículo seguro por outro igual ou pela atribuição de uma indemnização em dinheiro até ao seu valor venal, conforme definido no artigo 38º, ou seja, o valor do veículo seguro no momento imediatamente anterior ao sinistro e que está consignado na apólice, determinado na primeira anuidade pelo Guia Eurotax ou outro análogo e nas seguintes pelo valor resultante da aplicação legal das Tabelas de Desvalorização Mensal de Veículos anexas[11].
Do conjunto de todas estas disposições cremos resultar acertada a decisão da Relação …… ao fazer-se guiar pelo valor constante da apólice para determinar o montante da indemnização.
Como assim, sendo o valor seguro de 17.850,00 €, a indemnização a pagar pela ré à autora tem de ser nesse montante, descontados os valores da franquia (357 €)[12] e dos salvados (2.000 €), tal como decidido no acórdão recorrido.
 

             

                                                                       *

III. DECISÃO

De acordo com o que se deixou exposto, nega-se a revista.

                                                           *

Custas pela recorrente.

                                                           *

                                                          

LISBOA, 26 de Janeiro de 2021

Henrique Araújo (Relator)

O relator atesta, nos termos do artigo 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos, Maria Olinda Garcia e Ricardo Costa.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Relator:    Henrique Araújo
  Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                    Ricardo Costa

[2] Os factos que a 1ª instância considerou não provados foram os seguintes:

1- O acidente só pode ter sucedido por via de alguma condicionante da estrada, que não se pode confirmar, tendo o despiste ocorrido sem que o condutor o pudesse evitar, apesar de ter tentado, sem sucesso.

2- O veículo sinistrado ostentava uma multiplicidade de danos.

3- Em conversa com o perito da seguradora o condutor do veículo denotou pouco conhecimento sobre as características daquele, designadamente quanto à quilometragem.

4- A Autora pagou a nota de débito relativa ao tratamento hospitalar do condutor do seu veículo, no valor de € 38,00
[3] No processo n.º 03A1902 (Conselheiro Azevedo Ramos), em www.dgsi.pt.
[4] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Volume I, 4ª edição, página 797.

[5] V. acórdãos de 24.04.2012, no processo n.º 32/10.0T2AVR.C1.S1  (Conselheiro Mário Mendes) 23.01.2014, no processo n.º 703/10.1TBEPS.G1.S1 (Conselheiro Serra Batista), de 18.06.2015, no processo n.º 184/12.5TBVFR.P1.S1 (Conselheiro Abrantes Geraldes), de 19.09.2019, no processo n.º 181/16.1T8HRT.L1.S2 (Conselheiro Pedro Lima Gonçalves), todos em www.dgsi.
[6] Manda o rigor que se diga que, no acórdão de 08.06.2017, proferido no processo n.º 7087/15.0T8STB.E1.S1, o Ex.º Conselheiro que já havia relatado o acórdão do processo n.º 184/12, referido na anterior nota, para justificar a aplicação do critério do valor seguro em vez do valor real, arredando desse modo o princípio indemnizatório, fez questão de esclarecer: “Foi a tal princípio que se recorreu no Ac. do STJ, de 18-6-15 (relatado pelo ora relator e com intervenção do 1º adjunto), com remissão para o que já fora decidido anteriormente nos Acs. do STJ de 24-3-12 e de 23-1-14 (todos em www.dgsi.pt). Tratava-se então de uma situação em que se verificava um diferencial entre o valor indicado pelo tomador do seguro e o valor real do objecto (veículo automóvel), traduzindo uma situação de sobresseguro que, por via daquele princípio, foi solucionada através da atribuição da indemnização correspondente ao valor real, para o que se revelou relevante a demonstração de que na ocasião da outorga do contrato de seguro o tomador estava ciente da existência desse diferencial, decidindo-se, com tal fundamento, que a indemnização devida pela seguradora não ultrapassaria o valor real do bem.
[7] V., por exemplo, os acórdãos da Relação de Guimarães de 11.07.2013 e de 26.09.2019, nos processos nºs 2135/12.8TBBRG.G1 e 314/18.3T8FAF.G1, respectivamente, da Relação de Coimbra, de 07.11.2017, no processo n.º 131/16.5T8SAT.C1, e da Relação de Lisboa, de 18.04.2013, 19.06.2014, 06.04.2017 e 22.11.2018, nos processos nºs 2212/09.2TBACB.L1-2, 791/13.9TVLSB-8, 1422/14.5TJLSB.L1-2, e 18262/17.2T8LSB.L1-2, respectivamente, todos em www.dgsi.pt.
[8] José Vasques, “Contrato de Seguro”, 1999, página 145.
[9] Nosso sublinhado.
[10] Nosso sublinhado.
[11] Idem.
[12] 2% sobre capital seguro – cfr. condições particulares, documento n.º 1 junto com a contestação, a fls. 51 a 56 dos autos.