Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL AGUIAR PEREIRA | ||
Descritores: | PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI) PRESSUPOSTOS CONSUMIDOR CONTRATO DE MÚTUO HIPOTECA SOCIEDADE COMERCIAL PESSOA COLETIVA PESSOA SINGULAR GARANTIA AVAL FIADOR LIVRANÇA CASA DE HABITAÇÃO INCONSTITUCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 10/31/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | I) Não tem aplicação o regime de proteção aos consumidores instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro estando em causa um contrato de crédito com hipoteca para apoio de tesouraria celebrado entre um banco e uma sua cliente pessoa colectiva, já que esta não é “consumidor” na acepção adoptada por tal diploma. II) Não tem igualmente aplicação o indicado regime em relação às pessoas singulares que garantam o cumprimento do contrato de crédito pelo cliente bancário consumidor como avalistas de livrança por ele subscrita, salvo se se tiverem também constituído fiadores do contrato de crédito. III) Não é aplicável aos avalistas, por analogia ou interpretação extensiva, o regime dos fiadores da obrigação do mutuário do contrato de crédito instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro. IV) Uma tal interpretação não encerra qualquer violação do direito constitucional à habitação ou do princípio da igualdade, no caso de ter sido constituída pelos avalistas das livranças uma hipoteca voluntária sobre um imóvel onde está instalada a sua casa de habitação. | ||
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Decisão Texto Integral: |
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça ֎ RELATÓRIO Parte I – Introdução 1) A..., Lda., AA e BB, por apenso à acção executiva em que foram demandados pela Caixa Económica do Montepio Geral, deduziram oposição por embargos invocando, nomeadamente, a prescrição do débito decorrente dos contratos subjacentes ao preenchimento de quatro livranças dadas à execução e a prescrição dos juros moratórios, o preenchimento abusivo dos títulos executivos, a inadmissibilidade do pedido quanto a juros de juros e o pagamento parcial da quantia exequenda no âmbito de outro processo. Por requerimento de 30 de março de 2021, os embargantes invocaram a exceção dilatória inominada do não cumprimento do recurso prévio ao plano de acção para o risco de incumprimento (PARI) e a não instauração de um procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI) por parte da exequente/embargada, conducente à absolvição da instância executiva. 2) Sobre este requerimento a embargada defendeu-se dizendo que o disposto no decreto-lei 227/2012 de 25 de outubro não tem aplicação aos contratos de crédito celebrados entre instituições bancárias e pessoas coletivas e respetivos fiadores, mesmo que estes sejam pessoas singulares, alegando ainda que uma das livranças dada à execução foi entregue em garantia de um contrato de locação financeira e que duas das livranças foram entregues no âmbito de propostas de desconto, pelo que estas dívidas não seriam elegíveis para efeito da exigência de aplicação do PARI ou PERSI em relação aos devedores. 3) Teve lugar a audiência final sendo depois proferida sentença que julgou os embargos parcialmente procedentes, por verificação da exceção de prescrição em relação à cobrança dos juros anteriores à data de 5 de dezembro de 2013, e improcedentes as restantes exceções invocadas pelos embargantes, determinando-se o prosseguimento da execução para a cobrança do pedido exequendo, com exceção da quantia prescrita, a ser liquidada pela exequente. 4) Inconformados os executados/embargantes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por seu acórdão de 6 de fevereiro de 2023, julgou o recurso parcialmente procedente e declarou extinta a obrigação cambiária referente a duas livranças no valor de € 44 300,00 com vencimento em 2 de abril de 2011 e no valor de € 10 000,00, com vencimento em 2 de setembro de 2011, respectivamente e relativamente aos co-executados AA e BB, mantendo, no mais, a decisão recorrida, incluindo a não verificação da excepção inominada consistente na não instauração prévia de PERSI. ◌ ◌ ◌ Parte II – A Revista 5) Inconformados com o assim decidido os executados/embargantes interpuseram recurso de revista requerendo a sua admissão a título excepcional, tendo apresentado as seguintes conclusões nas suas alegações de recurso: “1. O Tribunal da Relação entendeu no seu acórdão que os devedores aqui revisantes não se enquadravam no regime do PERSI. 2. Assentando a sua decisão em que: O regime do PERSI, previsto no DL n.º 227/2012, de 25 de outubro só se aplica a situações de incumprimento dos contratos de crédito referidos no seu artigo 2.º n.º 1, destinando-se apenas aos clientes bancários, enquanto consumidores na acepção da Lei de Defesa dos Consumidores, e aos fiadores destes que o requeiram, informados que sejam dessa possibilidade. IV- O artigo 21.º do referido diploma legal não abrange os avalistas de títulos de crédito com função de garantia de contratos de crédito que se encontrem em situação de incumprimento, uma vez que a posição dos avalistas não é equiparável às situações abrangidas pelo regime PERSI, tendo em conta a intenção legislativa subjacente à sua elaboração e o âmbito da sua aplicação. V- Não se vislumbra que a norma do artigo 2.º, n.º 1, al. b) do DL 227/2012 de 25 de outubro (ou a interpretação a que se chegou) possa ser considerada inconstitucional, uma vez que da sua aplicação não resulta qualquer violação do direito à habitação previsto no artigo 65.º da Constituição, preceito constitucional que apenas se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado e em que a única injunção directa que dela decorre é a proibição da privação arbitrária da habitação de um particular”. 3. Ora o tribunal,deformalacónica,entendeuqueoargumentoexpendidopelosrevisantes de que se não se quiser fazer uma interpretação extensiva ao abrigo do artigo 9.º do Código Civil existirá uma lacuna legal, que deve ser integrada à luz do artigo 13.º do Código Civil equiparando os garantes num contrato de crédito garantido por hipoteca sobre bem imóvel para a habitação – artigo 2.º, n.º , b) do DL 227/12 de 25 de outubro, ao consumidor na definição dada pelo artigo 2.º da Lei de defesa do consumidor, não pode ser acolhida atendendo à letra da lei (elemento literal) e a ratio legis subjacente ao regime do PERSI (elemento racional ou teleológico). 4. No caso dos autos estamos perante um contrato de abertura de crédito em conta, sob a forma de conta corrente, garantida por uma hipoteca sobre um bem imóvel. 5. Na celebração de contratos de abertura de crédito para empresas, as garantias prestadas ocorrem através da constituição de fianças e de avais pessoais dos seus legais representantes, bem como da assinatura de livranças por parte dos seus legais representantes, a título pessoal. 6. O fiador garante, através do seu património pessoal o cumprimento de uma dívida de outro, podendo esta fiança ser acordada em qualquer tipo de dívida. Em regra, a fiança é utilizada nos contratos de crédito à habitação ou nos contratos de arrendamento, por exemplo. 7. Não de uma forma muito diferente, o avalista é quem se responsabiliza pelo pagamento da dívida de outrem. Estamos, aqui, perante uma garantia pessoal, em caso de incumprimento. É verdade que o aval é prestado, normalmente, em títulos de crédito. 8. É certo que fiador e avalista assumem figuras diferentes no nosso ordenamento jurídico. Contudo, os mesmos apresentam características e particularidades comuns. Ora, socialmente, ambos, são considerados “sobre endividados”, por via de incumprimento dos titulares de crédito e, porque, estes são sempre indispensáveis para conseguir, nos dias de hoje, um crédito. Aliás, mais do que indispensáveis, estas figuras são obrigatórias, sendo esta obrigatoriedade exigida pela Instituição bancária. 9. Estas figuras apresentam a mesma finalidade e objetivo: atestar maior segurança ao credor. 10. No caso em apreço, saliente-se que o aqui garante concedeu como garantia o seu imóvel para habitação, enquanto casa de morada de família, hipotecando a mesma, de forma a conferir à Instituição Bancária uma maior segurança e estabilidade. 11. Ora, não estamos perante uma garantia pessoal? Manda a verdade dizer que sim, estamos! O Revisante hipotecou a sua própria casa de habitação, imóvel este incorporado no seu património pessoal, tal como acontece no caso da fiança! 12. Neste momento, é necessário questionar: Deverá o aqui Revisante ser prejudicado, por uma mera questão de nomenclatura (fiador vs avalista), atendendo ao facto do bem hipotecado, casa de morada habitação (morada de família), pertencer também ao seu património pessoal? 13. Claramente que não! Outra decisão em contrário é totalmente descabida, na medida em que a intenção legislativa subjacente a estas figuras é mesma. 14. Hipoteticamente, quer num instituto jurídico quer noutro, havendo situações de mora ou incumprimento relativamente ao contrato de crédito, por parte do devedor principal, ficam avalistas e fiadores em situações idênticas, apesar de regimes diferentes. 15. Deste modo, não pode haver uma interpretação tão restrita destes conceitos, nomeadamente, no caso em crise, quando o bem hipotecado (aval) pertence ao património pessoal do garante (fiança). 16. Tendo em consideração a intenção legislativa subjacente à elaboração do PERSI, dúvidas não restam que a intenção de um fiador ou avalista, para efeitos de cumprimento de PERSI é plenamente análoga, equivalente. 17. Posto isto, é possível estabelecer uma “ponte de ligação” entre fiador e avalista e, por conseguinte, torna-se necessário equacionar a aplicação do disposto nos termos do artigo 21.º, n.º 3 do DL n.º 227/2012, onde a instituição de crédito está obrigada a informar o fiador de que este pode solicitar a sua integração no PERSI, caso este requeira (artigo 21.º, n.º 2 DL 227/2012). 18. Na falta de verificação destes requisitos, encontramo-nos perante uma “violação de normas de carácter imperativo, que configuram, também, exceções dilatórias atípicas ou inominadas, por falta de pressuposto (antecedente) da instauração da ação. V. Ac. da RE de 06.10.2016 (proc. 4956/14.8T9ENT-A.E1. consultável em www.dgsi.pt)”, conforme o douto Acórdão aqui em crise. 19. Levando em consideração esta correspondência entre ambas as figuras, entende aqui o Revisante que os termos do artigo 21.º, n.º 2 e 3 do DL 227/2012 lhe deveriam ter sido aplicados. 20. É certo que tal não aconteceu e, em consequência dessa preterição, verificamos, desde já, uma total violação desta norma de carácter imperativo, que se reporta a uma exceção dilatória levando à absolvição do aqui Revisante, o que se requer. 21. Não obstante, o Banco mutuante, atenta a sua posição de superioridade sobre o cliente bancário, A..., Lda. e AA e BB, impôs a obrigatoriedade de que para realizar uma abertura de crédito em conta corrente para a sociedade comercial A..., Lda., os aqui revisantes, pessoas singulares, tivessem de prestar aval pessoal e constituir uma hipoteca sobre uma casa de habitação. 22. A ratio legis do regime do PERSI é de estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas. 23.A ideia subjacente a este regime é de proteção dos consumidores. 24. Ora na situação em concreto dos autos, em que os sócios e gerentes dão de garantia uma hipoteca de bem imóvel que é a sua casa de morada de família, eles são os únicos prejudicados e até mais do que um consumidor normal, porque saem duplamente prejudicados. 25. Se o espírito do legislador quando criou o regime do PARI e PERSI foi proteger os consumidores por serem a parte mais débil, mais fraca, mais inferior, mais desprotegida nos contratos de crédito em que adquirem bens para o consumo, porque quando se verifica o incumprimento dos contratos muitas das vezes esses consumidores não tem património seja ele imobiliário, mobiliário ou rendimentos do trabalho que lhe permitem ter uma vida condigna e também casa demorada de família para se abrigarem, o mesmo espirito está subjacente ao caso em que os garantes mutuários num contrato de credito de abertura de conta corrente de pessoa colectiva, dão de garantia a casa de morada de família porque seguramente outros bens imóveis, móveis ou rendimentos não tem, por que se os tivessem os dariam em garantia. 26. Por isso, na situação concreta dos autos, devem os garantes que num contrato de crédito bancário cujo devedor principal é uma pessoa colectiva constituam a título pessoal hipoteca sobre bem imóvel, casa de habitação, ser comparados aos mutuários consumidores. 27. Ao abrigo do artigo 2.º da LCS, aprovada pela Lei n.º 24 /96, de 31.7, considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios. 28. Neste seguimento, e atendendo ao facto de estarmos perante uma Instituição Bancária, o cliente bancário, por seu turno, é o consumidor na aceção dada pelo nº 1 do artigo 2 da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31.7, e alterada pelo DL nº 67/2003, de 8.4, que intervenha como mutuário em contrato de crédito – cfr. art. 3, al. a) do DL nº 227/2012. 29. O conceito de devedor, enquanto adjetivo, apresenta-se como aquele “que ou quem deve ou tem uma dívida.” 30. Assim sendo, no âmbito do contrato de abertura de crédito, não tendo a A..., Lda. cumprido com a obrigação a que estava adstrita, a mesma incorreu em incumprimento contratual e, por isso, torna-se aqui devedora. 31. Contudo, este incumprimento poderá ser assegurado ou avalizado por um fiador ou avalista. Nestes termos, a responsabilidade para o cumprimento desta obrigação é transportada para estes. 32. Ora, são estes, fiador e avalista, que se tornam os verdadeiros devedores! 33. Os aqui Revisantes tratam-se de consumidores, estando preenchidos os requisitos supra expostos, bem como o conceito apresentado nos termos do artigo 2.º da LDC (Lei do Consumidor). 34. Desta forma, estava a Instituição Bancária obrigada a promover as diligências necessárias relativas a este cliente bancário que se encontrava em incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito. A mesma era obrigada a integrar o respetivo cliente bancário no PERSI, de acordo com os artigos 12.º e 14.º do DL n.º 227/2021 de 25 de Outubro, com o intuito de averiguar a capacidade financeira deste cliente, deste consumidor e, apresentar a devida proposta que ache mais adequada. 35. Esta tramitação, este procedimento não foi verificado, não foi cumprido e, por isso, o Revisante, enquanto consumidor, parte fraca e mais débil continua desprotegido, desamparado. 36. Ora, manda a verdade dizer que os direitos dos consumidores, para além de estarem consagrados na referida Lei 24/96 de 31 de Julho, encontram-se consagrados na Constituição da República Portuguesa. 37. O artigo 60º da Constituição da República Portuguesa elenca os direitos dos consumidores em termos de defesa da sua qualidade de vida, em relação à boa qualidade dos bens e serviços, ao seu preço competitivo e equilibrado, à proteção da saúde, à segurança, à eliminação do prejuízo e à própria formação e informação. 38. É imperativo acautelar este direito dos aqui Revisantes. 39. Para isso é fundamental fazer uma interpretação extensiva da lei, interpretação esta permitida no nosso ordenamento jurídico. 40. Portanto, se outro argumento não existir, ou seja, se não se quiser fazer uma interpretação extensiva ao abrigo do artigo 9º do Código Civil existirá uma lacuna legal, que deve ser integrada à luz do artigo 13º do Código Civil equiparando os garantes num contrato de crédito garantido por hipoteca sobre bem imóvel para a habitação – artigo 2º, nº 1, b) do Dl 227/12 de 25/10 ao consumidor na definição dada pelo artigo 2º. da Lei de defesa do consumidor. 41. Isto porque nestes casos, em concreto, os garantes que constituam hipoteca sobre bem imóvel, casa de habitação, ficam numa posição deveras fragilizada perante o banco credor e do ponto vista económico/financeiro, são altamente prejudicados pois não receberam qualquer contrapartida monetária, financiamento ou investimento, e colocam-se numa posição de perder a sua habitação. 42. Com o exposto, não é intenção dos Revisantes fazer uma aplicação analógica da lei, mas sim uma interpretação extensiva destes conceitos e palavras, de forma a ampliar o seu alcance. 43. Com esta interpretação pretende-se corrigir a formulação estreita de mais que a lei oferece de consumidor /cliente bancário /fiador / avalista. O seu verdadeiro intuito é abarcar toda a generalidade das relações, dando lhe um âmbito e uma compreensão que, perante a simples formulação terminológica parecia insuspeita. 44. Tal é o que sucede com os conceitos supra indicados e que os ora Revisantes pretendem. 45. Por outro lado, o direito à habitação corresponde, no nosso ordenamento jurídico, a um direito fundamental de enorme relevância, consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) respeitante à “habitação e urbanismo”. 46. Este artigo 65.º está inserido sistematicamente no Título dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da Parte I da CRP, correspondendo, neste caso, a um direito social. Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem compreende o direito à habitação, consagrado no artigo 25.º, no âmbito do direito das pessoas e a um nível de vida suficiente. Igualmente, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais prevê o direito à habitação no n.º 1 do artigo 11.º. 47. Na proteção do direito à habitação, enquanto direito social, comunga do regime dos direitos económicos, culturais e sociais. Nessa medida, um dos traços mais peculiares do regime desta categoria de direitos respeita precisamente à existência de uma obrigação de efetivação e concretização destes, a cargo do Estado. 48. Apesar do artigo 65.º da CRP estar enquadrado na Parte I (Direitos Fundamentais), Título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), nas palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros “o legislador constitucional, na formulação do direito à habitação, revela estar consciente de que este direito está em conexão com outros direitos fundamentais. A relevância da habitação para a preservação da reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º CRP).” Constituição da República Portuguesa anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, página 1326. 49. Este último está consagrado no Título II (Direitos, Liberdades e Garantias) e, por isso não pode vir o Tribunal da Relação afirmar, no acórdão aqui em análise, que pela “sua inserção sistemática (deste direito), diz respeito a um ónus do Estado.” Tal afirmação não corresponde à verdade! 50. Estamos, pois, perante uma expressão direta do postulado básico da dignidade humana! 51. No caso em concreto, o direito fundamental à habitação previsto no artigo 65º da CRP, desta forma o artigo 2.º, nº 1, b) do DL 227/2012 de 25/10 é inconstitucional numa interpretação que exclua do seu núcleo o garante que constituiu hipoteca sobre um bem imóvel pessoal, casa de habitação, para garantia de um contrato de abertura de crédito. 52. Pelo que, deve de ser aplicada aos garantes, aqui reclamados, a definição de consumidor nos termos e efeitos da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho) e por consequência ser-lhes aplicado o regime do DL 227/2012 de 25/10, o qual, pelos motivos sobreditos também é inconstitucional na interpretação que não entenda como consumidores os garantes de um crédito bancário a pessoa colectiva que constituam uma hipoteca sobre a sua casa de habitação para garantia daqueles créditos. 53. Em sede de resposta ao alegado na contestação dos Embargos e como complemento do alegado na PI de Embargos, os Revisantes alegaram que o clausulado que consta do contrato de abertura de crédito, nomeadamente, o que plasmado se encontra na clausula 9. desse contrato, cujas, clausulas, condições e redação jamais forma lidas, entregues, explicadas e esclarecidas aos Embargantes. 54. Assim, ainda que o alegado nos artigos 12.º a 22.º da resposta constituísse uma alteração à causa de pedir e não constitui, a verdade é que não tendo a Recorrida deduzido qualquer oposição ou impugnação, tal significa que alteração da causa de pedir tinha sido aceite por acordo – artigo 265.º, n.º 1 do Código de Processo Civil “Na falta de acordo, …”. 55. Como tal, a alegação da existência de tal cláusula no contrato de adesão, permite que em sede de resposta a sua alegação por parte dos Embargados seja tempestiva e deva ser aproveitada como facto complementar, acessórios, instrumental, na medida em que o preenchimento abusivo das livranças já tinha sido invocado em sede de Embargos de Executado; 56. A jurisprudência citada no acórdão de relação não tem aplicação no caso concreto, na medida em que, nesses processos, a alegação da Exequente não surge em sede de Contestação à Oposição mediante Embargos; 57. Se tal alegação tivesse surgido no Requerimento Inicial Executivo e os Revisantes não tivessem invocado a violação do direito à informação decorrente de celebração de um contrato de adesão, o direito aplicado no acórdão sob censura seria corretíssimo. 58. Como tal, a alegação da existência de tal cláusula no contrato de adesão, permite que em sede de resposta a sua alegação por parte dos Embargados seja tempestiva e deva ser aproveitada como facto complementar, acessórios, instrumental, na medida em que o preenchimento abusivo das livranças já tinha sido invocado em sede de Embargos de Executado. 59. Culmina, portanto, no caso em concreto, num desequilíbrio acentuado e clamorosamente ofensivo da boa fé e do direito, da prática negocial e do escopo social que sob o manto de uma atividade bancária permitida por lei em detrimento do aderente infringe o princípio da boa-fé e altera as regras respeitantes à distribuição do risco, o que determina, por ser proibida, a nulidade das referidas cláusulas (artigos 15º, 21º, alínea f), e 12º, todos da LCCG).” (negrito e sublinhado nossos); 60. Dispondo ainda o artigo 16.º daquele DL que: “Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente: a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis; b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.”; 61. A este respeito pronuncia-se Ana Prata, in “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina”, dizendo que: “o que está em causa, nesta particular valência da boa-fé, é a salvaguarda de uma composição de interesses que não seja excessivamente desequilibrada. […] O controlo do conteúdo constitui-se, assim, como um puro juízo sobre a razoabilidade dos termos contratuais, ponderando a sua repercussão nos interesses das partes. … Divergências para além do razoável, que importem, em benefício do predisponente, uma desvirtuação significativa do equilíbrio dos efeitos contratuais, não são admitidas. […] O controlo do conteúdo mais não é, assim, do que a verificação do modo como esse contraente respeitou, na redacção das cláusulas, o especial dever, que a boa-fé lhe impõe, de considerar os interesses dos parceiros contratuais.… o que conta, à luz do princípio da boa fé «para além da aparente simetria dos efeitos jurídicos» é «a efetiva incidência da cláusula nos interesses reais das partes»”. 62. Assim, deverá ser ordenada a revogação da decisão, o que desde já se requer; 63. É apodítico que o douto Acórdão recorrido, violou, entre outros, o disposto no artigo 2º,21º do DL 227/2012,de25 de Outubro e ainda os princípios do dispositivo, da legalidade, da igualdade e direito fundamental à habitação plasmados nos artigos 13º e 65º da Constituição da República.” ◌ ◌ ◌ 6) A recorrida Caixa Económica do Montepio Geral apresentou articulado de resposta às alegações de revista, o qual concluiu da forme seguinte: “A. (…) B. Os devedores AA e BB intervêm na qualidade de avalistas, entre outros, do contrato de abertura de crédito sob a forma de conta corrente concedido pela recorrida à Sociedade “A..., Lda.”. C. Decorre da cláusula primeira daquele contrato de abertura de crédito que “a presente Abertura de Crédito destina-se a apoio de tesouraria da sociedade beneficiária “A..., Lda.”, podendo ser utilizada até ao limite de € 130.000,00”. D. Atente-se concretamente à finalidade do PERSI, e nesse sentido o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2017, Processo 6776-15.3T8ALM.L1-8, que começa por referir que “O PERSI foi pensado para protecção do dito “cliente bancário”, identificado como “consumidor”, visando a “redução dos níveis de endividamento das famílias” e a prevenção e sanação de situações de incumprimento de contratos de crédito com particulares”. E. Ora, sendo o mutuário uma pessoa coletiva e por esse motivo excluída do conceito de “consumidor” nos termos da Lei de Defesa do Consumidor, tal contrato não pode ser incluído no regime de PERSI. F. Nos termos dodispostonoartigo2.ºn.º1 do Decreto-Lei 227/2012, de 25de Outubro, o PERSI é aplicável aos contratos celebrados com clientes bancários que conforme a alínea a) do seu artigo 3.º são os consumidores de acordo com a definição legal de consumidor constante da Lei 67/2003. G. A definição legal de consumidor constante da Lei 67/2003 adotou um sentido restrito de “consumidor”, definido este como qualquer pessoa singular que não destine o bem ou serviço adquirido a um uso profissional ou um profissional (pessoa singular), desde que não atuando no âmbito da sua atividade e desde que adquira bens ou serviços para uso pessoal ou familiar. O que necessariamente exclui do seu âmbito de aplicação as pessoas coletivas. H. Assim, é evidente que não estamos perante consumidores ou clientes bancários e seu agregado familiar pois trata-se de um contrato de crédito entre uma instituição bancária e uma pessoa coletiva e os seus garantes, destinando-se este contrato ao apoio à atividade da empresa “A..., Lda.”. I. Da mesma forma e em relação aos restantes contratos, é igualmente notório que não estamos perante consumidores, não sendo possível a aplicação do regime do PERSI. J. Por outro lado, o Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro não tem aplicação aos contratos de crédito celebrados entre instituições bancárias e pessoas coletivas e aos respetivos fiadores e/ou avalistas mesmo que estes sejam pessoas singulares. k. Tal posição encontra-se sufragada junto da Jurisprudência, designadamente, no Acórdão da Relação de Lisboa de 12-10-2017, processo 6776/15.3T8ALM.L1-8 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06-06-2019, processo 6470/14.2T8ALM.L1-6, disponíveis em www.dgsi.pt: “O artigo 21.º do referido diploma legal não abrange os avalistas de títulos de crédito com função de garantia de contratos de crédito que se encontrem em situação de incumprimento”. L. Assim, por analogia e tratando-se tanto o aval como a fiança de garantias pessoais, uma vez que a Jurisprudência considera que o artigo 21.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro não se aplica aos avalistas, por maioria de razão, deverá entender-se, igualmente, que os fiadores também não estão incluídos na previsão do supra mencionado normativo. M. Pelo que, a existência de correspondência entre ambas as figuras só poderá ser interpretada no sentido supra exposto e nunca no entendimento dos recorrentes (equiparando os garantes num contrato de crédito ao conceito de consumidor), devendo improceder alegada interpretação extensiva explanada nas alegações de recurso apresentadas pelos recorrentes, não estando, consequentemente, em causa qualquer violação dos artigos 60.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa. N. Nestes termos, bem andou o Tribunal da Relação no douto Acórdão proferido, ao considerar que: “(…) o n.º 3 do art.º 197.º do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.) consigna o princípio da limitação da responsabilidade dos sócios em sociedades de responsabilidade limitada, ao estabelecer que só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, salvo estipulação contratual em contrário. A responsabilidade dos embargantes pessoas singulares advém, no que às livranças diz respeito, da sua posição enquanto avalistas, figura cartular que infra melhor se explanará. Esta é totalmente independente das vicissitudes do saque. Não há por que tratar de forma idêntica o que é diferente - a figura do consumidor não é sequer aparentada com a figura do co-obrigado cambiário e o direito à habitação, se é que este está em causa, não é um direito absoluto, ou estariam condenadas ao insucesso todas as ações e execuções tendentes à restituição ou à venda executiva de imóveis habitacionais.” O. Vêm, ainda, os recorrentes revisantes alegar uma presença “posição de superioridade sobre o cliente bancário, A..., Lda. e AA e BB” o qual alegadamente “impôs a obrigatoriedade de que para realizar uma abertura de crédito em conta corrente para a sociedade comercial A..., Lda., os aqui revisantes, pessoas singulares, tivessem de prestar aval pessoal e constituir uma hipoteca” P. Ora, decorre da douta sentença proferida em primeira instância, designadamente através das declarações prestadas pelo ali embargante AA que foram vários os negócios celebrados entre as Partes (e com o então Finibanco) estando em causa diversos contratos assinados ao longo dos anos, entre eles os contratos subjacentes às livranças dadas à execução, onde os recorrentes intervêm tanto na qualidade de representantes legais da sociedade “A..., Lda.”, quer como garantes. Q. Em virtude daqueles negócios, dúvidas inexistem quanto à experiência do empresário recorrente AA, o qual detém conhecimentos quanto à prática bancária, garantias prestadas e consequências dos incumprimentos, entre outros, confiando no Banco mutuante grande parte dos seus negócios, precisamente por ser conhecedor de que este atua dentro dos parâmetros legalmente impostos no desenvolvimento da sua atividade bancário-financeira, tendo presente uma obrigação de acautelamento de interesses do cliente (relação de confiança). Tanto assim é que, contrariamente ao alegado, não impôs o Banco mutuante qualquer obrigatoriedade atípica para a celebração dos contratos dados à execução. R. Mais, decorre concretamente do contrato de abertura de crédito que os recorrentes autorizaram o preenchimento das livranças de acordo com a clausula 9.º daquele contrato onde os aqui recorrentes apuseram a sua assinatura na qualidade de avalistas e gerentes da sociedade, de forma esclarecida. S. Contrariamente ao alegado, em nenhum momento o Banco mutuante incumpriu o dever de informação que sobre si recaia, omitindo informação relevante. Muito pelo contrário: prestou informação que é obrigatório prestar, de forma completa, com verdade e com rigor, não violando os deveres de informação legalmente impostos como pretendem fazer crer, sem demonstrar, os recorrentes (a este propósito, veja-se o fundamentado no Acórdão da Relação de Lisboa de 24.04.2018, processo 4/17.4T8PDL-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt). T. Por fim, andou bem o Tribunal ao julgar extemporâneo o alegado nos arts 12º a 22 do requerimento de resposta dos aqui recorridos alegado em contestação aos embargos apresentado. Tal nulidade deveria ter sido – e não foi – alegada nos embargos, porquanto atinente a documentos juntos com o requerimento executivo. Assim e conforme decorre do supra exposto, a recorrida cumpriu todas as obrigações legais quanto a alegação da causa subjacente às livranças, no requerimento executivo. U. Pelo exposto, bem andou o douto Acórdão proferido, mantendo a decisão da primeira instância recorrida ao reconhecer que a recorrida não era obrigada ao cumprimento do PERSI/PARI, porquanto a relação jurídica in casunão se subsume a relação de consumo antes sim do foro comercial: trata-se de um contrato de crédito entre uma instituição bancária e uma pessoa coletiva e os seus garantes, destinando-se este contrato ao apoio à atividade da empresa “A..., Lda.”, não figurando AA e BB no contrato na qualidade de clientes bancários.” ◌ ◌ ◌ 7. Admitido que foi pela Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil o recurso de revista interposto, nele se delimitando claramente o respectivo objecto, e colhidos os Vistos dos Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta. Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista, e ao acórdão da Formação de Juízes Conselheiros que admitiu o recurso de revista a título excepcional, a questão a decidir é a da de saber se o banco exequente estava obrigado a, antes de instaurar a acção executiva de que os presentes embargos são apenso, organizar internamente um procedimento designado de PERSI e nele incluir os embargantes pessoas singulares, sendo eles “garantes que constituíram hipoteca sobre um bem imóvel pessoal, casa de habitação, para garantia de um contrato de abertura de crédito, subscrito por pessoa coletiva”, desse modo equiparando as pessoas singulares garantes num contrato de crédito garantido por hipoteca sobre um bem imóvel destinado à sua habitação ao “cliente bancário” na concepção adoptada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro. Comecemos por analisar a matéria de facto que foi dada como provada pelas instâncias. ֎ ֎ FUNDAMENTAÇÃO Parte I – Os Factos São estes os factos considerados provados, e não provados, tal como descritos no acórdão recorrido: A – Factos Provados 1. A exequente Caixa Económica Montepio Geral intentou ação executiva, a 30 de novembro de 2018, de que estes autos são apensos, contra os executados “A..., Lda.”, AA e BB. 2. Por escritura outorgada na data de 4 de abril de 2011, no Cartório Notarial ..., a cargo da Dra. CC, exarada de fls. 33 a fls. 38 do livro n.º ...30-B, Finibanco, SA, pessoa coletiva n.º ...86, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., sob o mesmo número, procedeu ao trespasse à Caixa Económica Montepio Geral, aqui Exequente, pessoa coletiva n.º ...15, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., sob o mesmo número, do "estabelecimento comercial que constitui a universalidade de activos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente contratos de depósito, contratos de mútuo e, de uma forma geral, a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua actividade bancária". 3. Refere aquela escritura que "estão incluídos neste contrato de trespasse, nomeadamente: (...) h) o restante activo do estabelecimento, incluindo nomeadamente os créditos sobre os mutuários, devedores e restante clientela a ele afecta, acompanhados de todas as respetivas garantias e acessórios, mediante a cessão da posição contratual da sociedade trespassante ou outro título jurídico suficiente (...)". 4. Na mesma data e Cartório, foi outorgada uma Escritura de "Cessão de Créditos", exarada de fls. 47 a 49 do Livro n.º ...30-B, através da qual o Finibanco, SA, pessoa coletiva n.º ...86 acima identificado, procedeu, enquanto titular de "conjunto de créditos vencidos e vincendos, concedidos a diversos mutuários", à cessão dos mesmos a favor da Exequente. 5. Tal cessão comportou, relativamente a todos os créditos cedidos, a transmissão para a Exequente "de todos os direitos, garantias e acessórios a eles inerentes, designadamente hipotecas constituídas para a sua garantia, bem como a posição processual do Cessionário (Finibanco, SA), nos processos identificados na referida listagem que constitui documento complementar anexo a esta escritura, relativamente a cada um dos créditos ora cedidos". 6. O crédito em causa nestes autos foi abrangido por tal trespasse e cessão de créditos. 7. A exequente ofereceu à execução, como título executivo, as seguintes livranças: A) – A livrança n.º 359.36.000378-4 subscrita pela Sociedade ora Executada A..., Lda., e avalizada pessoalmente pelos também Executados AA e BB, emitida em 10.10.2006, no valor de € 225.580,10 (duzentos e vinte e cinco mil, quinhentos e oitenta euros e dez cêntimos), com vencimento em 25.10.2018. B) – A livrança n.º 359.391.67860-1 subscrita pela Sociedade ora Executada A..., Lda., e avalizada pessoalmente pelos também Executados AA e BB, emitida em 23.03.2011, no valor de € 44.300,00 (quarenta e quatro mil e trezentos euros), com vencimento em 02.04.2011. C) – A livrança n.º 359.39.000231-9 subscrita pela Sociedade ora Executada A..., Lda., e avalizada pessoalmente pelos também Executados AA e BB, emitida em 01.07.2011, no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), com vencimento em 02.09.2011. D) - A livrança n.º 359.44.000012-3 subscrita pela Sociedade ora Executada A..., Lda., e avalizada pessoalmente pelos também Executados AA e BB, emitida em 29.11.2006, no valor de € 306,10 (trezentos e seis euros e dez cêntimos), com vencimento em 15.10.2018. E) Mais juntou a exequente ao requerimento executivo os demais documentos, incluindo as denominadas “notas de débito”, insertos a fls. 32v a 63 dos autos principais. 8. Por requerimento de 05.08.2019 dirigido aos autos principais, veio a exequente requerer a substituição do doc. n.º 5 junto com o requerimento executivo, denominado “escritura de mútuo com hipoteca, pelo documento denominado “abertura de crédito com hipoteca”, com o “documento complementar (…) anexo à escritura (…)” de fls. 89 e ss. dos autos principais e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, por ser este último negócio o subjacente à emissão da livrança dada à execução como doc. n.º 4 dos autos anexo ao RE. 9. Por despacho de 25.11.2019 proferido nos autos principais, já transitado em julgado, foi decidido o seguinte: “Considerando que os títulos executivos são títulos cambiários - livranças - não carecendo a exequente de alegar a relação causal, nem juntar com o requerimento executivo os contratos subjacentes às mesmas e uma vez que a troca da documentação se tratou de um manifesto lapso da exequente, face ainda aos demais fundamentos invocados pela exequente, admite-se a junção aos autos da escritura correta que substituirá a anteriormente junta como doc n.º 5, conforme solicitado pela exequente a 05.08.2019. Notifique ainda a Sr.ª AE conforme solicitado pela exequente a 05.08.2019, aproveitando-se os restantes atos praticados nesta execução, uma vez que a substituição do documento não influiu na tramitação posterior destes autos, designadamente a realização da penhora, de acordo com o solicitado pela exequente nesse mesmo requerimento de 05.08.2019.” 10. A livrança N.º ...8-4 foi emitida no âmbito do aludido contrato de “abertura de crédito com hipoteca”, celebrado em 10.10.2006, ao qual foi atribuído o n.º ...78. 11. Nesta escritura pública celebrada, a 10.10.2006, entre os ora embargantes e o então Finibanco, SA, atualmente Caixa Económica Montepio Geral, na qual esta entidade bancária concedeu à sociedade representada pelos executados AA e mulher BB, a sociedade “A..., Lda.”, “um financiamento sob a forma de Abertura de Crédito em Conta Corrente, no montante de cento e trinta mil euros, que se rege pelas cláusulas, termos e condições constantes do Contrato de Abertura de Crédito anexo a esta escritura, elaborado nos termos do número dois do artigo sessenta e quatro do Código do Notariado e que dela fica a fazer parte integrante.”. 12. Nos termos do nº1 da cláusula 7ª. do denominado “Contrato de Abertura de Crédito com Hipoteca” em “caso de incumprimento no pagamento do capital, juros remuneratórios e demais encargos devidos, pode o Finibanco aplicar, a título de cláusula penal, devido pela mora, um acréscimo de quatro por cento sobre a taxa de juro que seria aplicada à operação se esta tivesse sido renovada ou, em alternativa, sobre a taxa básica que vigorar para o prazo igual àquele que durar a mora”. 13. As partes convencionaram no n.º 2 da cláusula 7ª. do mencionado contrato de “abertura de crédito com hipoteca”, assim como no denominado documento complementar “contrato de abertura de crédito, sob a forma de conta corrente”, anexo ao primeiro, que “no caso de incumprimento do pagamento dos juros remuneratórios, o Finibanco procederá à capitalização dos juros vencidos, desde que não correspondam a um período inferior a três meses, ou por menor período, caso venham a existir disposições legais que o permitam.” 14. Acordaram também no nº 4 da cláusula 7ª. do mencionado contrato de “abertura de crédito com hipoteca” que “os juros devidos pela mora incidirão sobre o capital já vencido podendo incluir-se neste os juros remuneratórios em dívida capitalizados, correspondentes ao período mínimo de um ano, ou por menor período, se vier a ser autorizado por disposição legal”. 15. Estipularam na cláusula primeira deste “contrato de abertura de crédito, sob a forma de conta corrente” que: “a presente Abertura de Crédito destina-se a apoio de tesouraria da sociedade beneficiária “A..., Lda.”, podendo ser utilizada até ao limite de €130.000,00”. 16. Acordaram ainda na cláusula nona do mesmo contrato que “sempre que o saldo devedor não esteja, total ou parcialmente, titulado por livrança, o Finibanco poderá, em qualquer momento, exigir da sociedade beneficiária a sua titulação por livrança, suportando esta as correspondentes despesas. (…) No caso de serem entregues quaisquer livranças pela sociedade beneficiária ao Finibanco, ainda que no montante da outorga do presente contrato, não integralmente preenchidas mas por ela devidamente subscritas e avalizadas pelos senhores AA e mulher BB, pode o Finibanco em caso de falta de cumprimento do presente contrato e suas eventuais renovações e/ou alterações: a) preencher as referidas livranças pelo valor que lhe for devido, conforme o preceituado neste contrato, fixar as datas de emissão e vencimento, bem como designar o local de pagamento (…)”. 17. A exequente efetuou os cálculos para a contabilização do valor da livrança n.º ...8-4 cf. nota de débito de fls. 112 que aqui se dá por integralmente reproduzida. 18. A exequente remeteu aos executados cartas, com aviso de receção, na data de 07.06.2018, informando que, naquela data, o valor em dívida se fixava em € 220.379,62 (duzentos e vinte mil, trezentos e setenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), podendo tal quantia ser regularizada no prazo máximo de 10 (dez) dias. 19. A exequente remeteu aos executados cartas comunicando “a resolução do contrato” e o “preenchimento da Livrança pelo valor de € 225.580,10 (duzentos e vinte e cinco mil, quinhentos e oitenta euros e dez cêntimos)”, na data de 25.09.2018, por carta registada, podendo tal livrança ser paga até dia 25.10.2018. 20. Quanto à cobrança do débito referente a esta livrança alegou a exequente no requerimento executivo que: “13. Por esse motivo, à data de 02.11.2018, o crédito da Exequente, referente à Livrança, ascendia ao montante total de € 225.940,04 (duzentos e vinte e cinco mil, novecentos e quarenta euros e quatro cêntimos), correspondendo aos seguintes valores, conforme Nota de Débito que ora se junta como Doc. 13: • € 225.580,10, a título de capital em dívida; • € 346,10, a título de juros vencidos calculados desde 25.10.2018 a 02.11.2018; • € 13,84, a título de Imposto de Selo. 14. Acresce, que para além dos valores referidos no artigo anterior, são ainda devidos juros vincendos, contabilizados desde 03.11.2018, calculados sobre o capital em dívida, e demais despesas entretanto suportadas pela Exequente, até efetivo e integral pagamento.” 21. A livrança N.º ...0-1 foi emitida no âmbito da Proposta de Desconto junta como Doc. 15 do RE e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 22. A exequente remeteu aos executados as cartas, com aviso de receção, datadas de 07.06.2018, informando, além do mais, que, naquela data, o valor em dívida se fixava em € 78.003,09, podendo tal quantia ser regularizada no prazo máximo de 10 (dez) dias. 23. Quanto à cobrança do débito referente a esta livrança alegou a exequente no requerimento executivo que: “20. Por esse motivo, à data de 02.11.2018, o crédito da Exequente, referente à Livrança, ascendia ao montante total de € 70.043,47 (setenta mil, quarenta e três euros e quarenta e sete cêntimos), correspondendo aos seguintes valores, conforme Nota de Débito que ora se junta como Doc. 19: • € 44.300,00, a título de capital em dívida; • € 24.753,32, a título de juros vencidos calculados desde 04.04.2011 a 02.11.2018; • € 990,15, a título de Imposto de Selo. 21. Acresce, que para além dos valores referidos no artigo anterior, são ainda devidos juros vincendos, contabilizados desde 03.11.2018, calculados sobre o capital em dívida, e demais despesas entretanto suportadas pela Exequente, até efetivo e integral pagamento.” 24. Consta de fls. 44v a nota de débito emitida pela exequente referente à livrança n.º ...0-1 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida. 25. A livrança N.º ...1-9 foi emitida no âmbito da Proposta de Desconto junta como Doc. 21 do RE e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 26. Invoca a exequente no artigo 24º do requerimento executivo “que os Executados deixaram de cumprir com as obrigações em 05.09.2011”. 27. A exequente remeteu aos executados cartas registadas, com aviso de receção, datadas de 07.06.2018, informando que, naquela data, o valor em dívida se fixava em € 18.850,76 (dezoito mil, oitocentos e cinquenta euros e setenta e seis cêntimos), podendo tal quantia ser regularizada no prazo máximo de 10 (dez) dias. 28. Quanto à cobrança do débito referente a esta livrança alegou a exequente no requerimento executivo que: “26. Por esse motivo, à data de 02.11.2018, o crédito da Exequente, referente à Livrança, ascendia ao montante total de € 15.462,47 (quinze mil, quatrocentos e sessenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos), correspondendo aos seguintes valores, conforme Nota de Débito que ora se junta como Doc. 25: • € 10.000,00, a título de capital em dívida; • € 5.252,38, a título de juros vencidos calculados desde 02.09.2011 a 02.11.2018; • € 210,09, a título de Imposto de Selo. 27. Acresce, que para além dos valores referidos no artigo anterior, são ainda devidos juros vincendos, contabilizados desde 03.11.2018, calculados sobre o capital em dívida, e demais despesas entretanto suportadas pela Exequente, até efetivo e integral pagamento.” 29. A livrança n.º 359.44.000012-3 foi emitida no âmbito do Contrato de Locação Financeira junta como Doc. 27 do RE e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 30. A exequente remeteu carta com aviso de receção, datada de 04.10.2018, aos executados, comunicando a resolução do contrato e o correspondente preenchimento da Livrança n.º 359.44.000012-3, pelo valor de € 306,10 (trezentos e seis euros e dez cêntimos), podendo ser paga no prazo de 10 (dez) dias. 31. Quanto à cobrança do débito referente a esta livrança alegou a exequente no requerimento executivo que: “32. Por esse motivo, à data de 02.11.2018, o crédito da Exequente, referente à Livrança, ascendia ao montante total de € 307,21 (trezentos e sete euros e vinte e um cêntimos), correspondendo aos seguintes valores, conforme Nota de Débito que ora se junta como Doc. 31: • € 306,10, a título de capital em dívida; • € 1,07, a título de juros vencidos calculados desde 15.10.2018 a 02.11.2018; • € 0,04, a título de Imposto de Selo. 32. Acresce, que para além dos valores referidos no artigo anterior, são ainda devidos juros vincendos, contabilizados desde 03.11.2018, calculados sobre o capital em dívida, e demais despesas entretanto suportadas pela Exequente, até efetivo e integral pagamento.” 33. A exequente efetuou os seguintes cálculos para a contabilização do valor da livrança n.º...2-3: Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor dos documentos insertos com a petição de embargos de fls. 11v a 34v. ◌ ◌ ◌ B) FACTOS NÃO PROVADOS Foram considerados não provados os factos seguintes: a) Quanto à livrança n. ...0-1, a mesma não é identificada nos documentos 14 a 19, uma vez que o Doc. n. 14 do RE refere-se à livrança n. ...18. (cfr. art. 4º da pi). b) No que concerne à livrança n. ...1-9, a mesma não é identificada nos documentos 20 a 25, uma vez que o Doc. n. 20 do RE refere-se à livrança n. ...33. (cfr. art. 5º da pi) c) No que tange à livrança n. ...2-3, não existisse qualquer dívida quanto ao contrato de locação financeira n. ...76 celebrado em 29/11/2006 que lhe está subjacente. (cfr. art. 6º da pi) d) Não se perceba a origem do valor em dívida em relação às aludidas livranças. (cfr. art. 21º da pi). ֎ Parte II – O Direito 1) Em causa no presente recurso de revista, admitida a título excepcional, está a questão de saber se o banco exequente estava, no caso presente e com especial incidência sobre os executados pessoas singulares, obrigado a dar cumprimento aos procedimentos previstos no Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, nomeadamente à elaboração de um Plano de Acção para o Risco de Incumprimento (PARI) e à instauração de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI). O que passa por decidir se os mecanismos previstos no Decreto-Lei em causa têm aplicação sendo o cliente bancário uma pessoa colectiva e as pessoas singulares avalistas de livranças por ela emitida, não pagas e que constituem o título executivo na execução instaurada pelo banco credor. Mais se deverá analisar se há fundamento para interpretar o regime instituído pelo mencionado Decreto-Lei equiparando a posição dos fiadores à dos avalistas de uma livrança e se é conforme à Constituição da República Portuguesa uma interpretação normativa do regime em causa que negue tal equiparação estando em causa a hipoteca voluntária sobre um bem imóvel onde os avalistas têm instalada a sua casa de habitação. 2) O Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, instituiu um conjunto de medidas visando prevenir situações de incumprimento de contratos de crédito celebrados entre as entidades bancárias e os seus clientes incapazes de cumprir os compromissos financeiros contratualmente assumidos, estabelecendo procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e a assistência aos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações contratuais, e que promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o incumprimento. Para os casos de incumprimento prevê-se um modelo de protecção dos clientes bancários consumidores que passa pela instauração de um procedimento tendente a viabilizar extrajudicialmente a regularização da situação pelo cliente bancário, o qual é obrigatório e prévio a qualquer acção judicial visando a satisfação do crédito. O PARI e o PERSI constituem mecanismos criados para, no âmbito de uma actuação responsável das instituições financeiras e dos consumidores, “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”, como se pode ler no preâmbulo do diploma citado. 3) O PERSI assume-se, nesta perspectiva, como um procedimento obrigatório e prévio à fase judicial do litígio decorrente do incumprimento do contrato de crédito, cuja instauração é indispensável em ordem a impedir que as instituições de crédito recorram imediatamente à via judicial para satisfação dos seus créditos perante simples situações de incumprimento. 4) Resulta, porém, das circunstâncias que determinaram o legislador à adopção de tais medidas – parte das quais se mostram expressas no respectivo preâmbulo – que o Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro quis restringir objectivamente o campo de aplicação da tutela concedida aos clientes bancários aos casos em que estivessem em causa devedores enquadráveis no conceito legal de “consumidor”, na aceção que lhe era dada pela, então vigente, Lei do Consumidor (Lei nº 24/96 de 31.07, alterada pelo DL nº 67/2003 de 8 de abril), quando intervenham na qualidade de mutuário em contrato de crédito. É o que se extrai da definição de “cliente bancário” constante do artigo 3.º alínea a) Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro. 5) A definição legal de consumidor constante da Lei 67/2003, de 8 de abril adoptou um sentido restrito, definindo-o como “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho”. O n.º 1 do citado artigo 2.º da Lei 24/96 de 31 de julho, esclarece que se considera “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” 6) Da definição enunciada resulta claro que as pessoas colectivas não são enquadráveis no conceito de consumidor nem, por isso mesmo, abrangidas pelos mecanismos de tutela previsos no Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro. A exclusão das pessoas colectivas da protecção conferida pelo Decreto Lei 227/2012 de 25 de outubro torna-se ainda mais evidente face ao conceito de consumidor adoptado pelo artigo 2.º alínea g) do Decreto-Lei 84/2021 de 18 de outubro que transpôs as Directivas (EU) 2019/771 e (EU) 2019/770, regulando os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais: “consumidor” é uma pessoa singular que atue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional. 7) Ora no caso presente, como bem se salienta no acórdão recorrido, o “cliente bancário”, a pessoa com quem o banco exequente celebrou o contrato de abertura de crédito para apoio de tesouraria é a sociedade “A..., Lda.”. Os demais executados, pessoas singulares, constituíram-se voluntariamente garantes do cumprimento da obrigação assumida pela sociedade, subscrevendo e dando o seu aval ao pagamento das livranças que viriam a ser dadas á execução, mas não são mutuários no contrato de abertura de crédito celebrado pela sociedade com o banco exequente. Nem a circunstância de as livranças terem sido emitidas no âmbito do contrato de abertura de crédito com hipoteca nem de as livranças dadas à execução terem sido avalizadas pessoalmente pelos executados pessoas singulares AA e BB faz deles “clientes bancários” para o efeito que nos ocupa. 8) Aquando da instauração da execução de que estes autos são apenso o artigo 2.º do Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro elencava – taxativamente – os contratos cujo incumprimento vinculava a entidade bancária a adoptar os procedimentos então instituídos, nomeadamente instaurar o PERSI, previamente a qualquer demanda judicial que tivesse como causa de pedir o incumprimento do contrato de crédito. No caso do contrato de crédito em causa nos presentes autos está fora de equação cogitar a sua abrangência por qualquer das alíneas do transcrito artigo 2.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, com a possível excepção em relação à sua alínea b), entretanto revogada, que se reportava a “contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel”. Torna-se, porém, desnecessário indagar mais longamente sobre a aplicabilidade do regime instituído pelo citado diploma ao caso presente estando afastado – como está – um dos pressupostos de aplicação do regime de tutela instituído pelo citado diploma, qual seja o de não serem abrangidos pelos mecanismos do PERSI os clientes bancários pessoas colectivas. O facto de poder estar em causa um contrato de crédito cujo cumprimento foi garantido, para além da subscrição de livranças, também por hipoteca de um imóvel é irrelevante na medida em que a obrigatoriedade de instauração de PARI e de PERSI pelo banco exequente só existe em relação ao cliente bancário que seja pessoa singular e “consumidor”. 9) Num recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado em 6 de julho de 2023 na revista 4354/20.4T8VNF-B.G.S1, num caso com assinaláveis semelhanças com o presente, escreveu-se para concluir pela inaplicabilidade do regime do PERSI: “Ora, o contrato de mútuo que foi garantido pela livrança dada à execução e relativamente ao qual o Executado/Embargante/Recorrente é avalista, foi celebrado, na posição de mutuário, por uma pessoa coletiva, pelo que, desde logo, atenta a natureza deste sujeito contratual, ele não pode ser qualificado como um contrato de crédito a consumidores abrangido pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho.” Deve então concluir-se que em relação ao contrato de crédito celebrado entre a Caixa Económica do Montepio Geral e a sociedade “A..., Lda.”, face ao incumprimento contratual por parte do mutuário não estava o banco obrigado a instaurar qualquer dos procedimentos previstos no Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro. 10) E o que dizer da pretendida obrigatoriedade de instauração de PERSI em relação aos executados que, sendo pessoas singulares, intervieram para garantir o cumprimento da obrigação assumida pela sociedade devedora, servindo de título executivo as livranças que subscreveram como avalistas? Considerando autonomamente a origem da obrigação dos executados pessoas singulares dir-se-á que ela deriva, no caso presente, directamente da subscrição das livranças pela pessoa colectiva e do aval prestado, garantindo o respectivo pagamento na data do seu vencimento. Da abstração que caracteriza a obrigação cambiária, que no caso foi assumida pelos executados/embargantes pessoas singulares de procederem ao pagamento do valor inscrito no título na data do seu vencimento, resulta ser a obrigação do avalista independente da obrigação que ela garante. A abstração da obrigação cambiária é, aliás, uma das notas distintivas mais salientes entre o aval e a fiança. Se em ambos os casos a finalidade da garantia é permitir ao credor exercer o direito a executar o património de quem presta a garantia em caso de incumprimento do devedor principal, o conteúdo da obrigação do fiador perante o credor é determinado pelo conteúdo da obrigação do devedor principal, sendo variável de acordo com as vicissitudes que possam interferir com o conteúdo da obrigação deste. A obrigação do avalista, pelo contrário, porque autónoma e independente da do devedor, pode ter conteúdo diferente da do devedor principal avalizado. Por outro lado, enquanto o aval é um instituto privativo dos títulos de crédito, a fiança pode ser convencionada para garantir o pagamento de dívida assumida em qualquer contrato. 11) Do que vem de ser salientado, e bem assim da literalidade da obrigação cambiária, resultará, estamos em crer, justificado que no artigo 21.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro se prevejam procedimentos de tutela para as pessoas singulares que intervenham como fiadores no contrato de crédito garantido por fiança e a abertura de PERSI a solicitação deste e nada se diga quanto aos avalistas de obrigações cambiárias. De onde se conclui que o regime instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro e a inerente obrigatoriedade de instauração de procedimentos nele previstos tem lugar em relação aos clientes bancários consumidores mutuários em contratos de crédito e aos seus fiadores que garantam o cumprimento da obrigação contratualmente assumida, mesmo que tenham prestado outras garantias reais ou pessoais. E que tal regime já não é aplicável em relação aos clientes bancários que não reúnam cumulativamente essas condições ou às pessoas singulares que tenham garantido o cumprimento da obrigação do mutuário por forma diferente da fiança. 12) Estando em causa o não pagamento de livrança ou outro título de crédito na data do vencimento, sendo o credor uma instituição bancária ou não, não tem ele na execução que instaurar contra o devedor que invocar a relação subjacente à sua emissão porque a obrigação está incorporada no próprio título. E, admitindo que o credor é uma instituição financeira abrangida pelo regime instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, não sendo necessário invocar a relação subjacente, sempre se tornaria impossível saber se ela se inscreve na previsão legal do mencionado artigo 2.º e se a instituição financeira estava ou não obrigada a organizar o PARI e a instaurar o PERSI antes de demandar judicialmente o cumprimento da obrigação. Por essa ordem de razões se compreende que, sendo a ação executiva instaurada exclusivamente com base no aval prestado para garantir o pagamento da livrança na data do seu vencimento, não tenha a entidade bancária credora de instaurar, previamente à propositura da acção executiva, qualquer dos procedimentos previstos no Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro, nomeadamente o PERSI. 13) O presente recurso de revista foi admitido a título excepcional pela Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil tendo em vista a pronúncia do Supremo Tribunal de Justiça sobre a obrigatoriedade de instauração de PERSI previamente ao acionamento judicial dos devedores, nele incluindo os “garantes que constituíram hipoteca sobre um bem imóvel pessoal, casa de habitação, para garantia de um contrato de abertura de crédito, subscrito por pessoa coletiva”, equiparando as pessoas singulares garantes num contrato de crédito garantido por hipoteca sobre um bem imóvel destinado à sua habitação ao “cliente bancário” na concepção adoptada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro. Vão nesse mesmo sentido parte das conclusões das alegações dos recorrentes, defendendo que uma diferente interpretação põe em causa o direito à habitação constitucionalmente consagrado. Vejamos então, nessa perspectiva, a questão que se nos coloca. 14) O regime instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro é inequivocamente, na sua génese e nas soluções que adopta, orientado por dois vectores essenciais: - a racionalização e responsabilização dos intervenientes na concessão de crédito – instituições financeiras e consumidores – como forma de combater o endividamento das famílias; - a especial protecção dos devedores e concomitantes ónus a cargo dos credores, estabelecendo regras, limitações e impedimento ao exercício do direito destes a exigir livremente o cumprimento da obrigação contratual em falta. 15) De acordo com o artigo 9.º do Código Civil a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, antes deve “reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, devendo o intérprete presumir que o legislador soube consagrar as soluções que teve por acertadas e exprimir o seu pensamento em termos adequados. Chegando o intérprete à conclusão que da letra da lei não resulta regulado o caso sub judice, deverá suprir tal omissão integrando a lacuna legal com recurso à norma aplicável aos casos análogos ou, “na falta de caso análogo”, segundo a norma “que o próprio intérprete criaria, se houvesse que legislar, dentro do espírito do sistema” – artigo 10.º n.º 3 do Código Civil. Haverá então que apurar se existe alguma lacuna na lei que deva ser suprida pelo intérprete por uma das duas formas indicadas: recorrendo à norma aplicável a casos análogos ou criando a norma dentro do espírito do sistema. 16) A equiparação dos avalistas de obrigações cartulares aos fiadores em contratos de crédito e o consequente recurso à analogia implica a restrição do direito do credor ao imediato accionamento do devedor por incumprimento, impondo ao credor em relação ao avalista de um título de crédito, a adopção prévia dos procedimentos de aviso e proteção previstos para os fiadores dos contratos de crédito no artigo 21.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro. Ora, se se concluísse que ocorria lacuna na regulamentação da tutela dos avalistas em caso de incumprimento dos subscritores do título de crédito tal lacuna não poderia ser resolvida pela aplicação do regime excepcional e restritivo do livre exercício dos direitos do credor instituído pelo citado diploma, por a tal obstar o artigo 11.º, primeira parte, do Código Civil. A interpretação extensiva, permitida em relação a normas de natureza excepcional, poderia, porém, ter lugar se o intérprete concluísse que o pensamento do legislador coincide com um dos sentidos contidos na lei, mas que, ao formular a norma, ele ficou aquém do que queria, sendo necessário alargar o âmbito do texto legal. 17) Ainda que se possa aceitar a existência de alguma desigualdade no tratamento de situações aparentemente semelhantes pelo facto de o legislador apenas ter imposto às instituições financeiras o dever de informar os fiadores do atraso no cumprimento pelos afiançados e dos montantes em dívidas e a obrigatoriedade de instauração de PERSI quando os fiadores o requeressem, nada estatuindo em relação aos avalistas, da análise global do diploma, seu espírito e justificação, e do seu âmbito de aplicação parece extrair-se que o legislador se exprimiu dizendo exactamente aquilo que pretendia dizer, não existindo qualquer lacuna legal a preencher com recurso à interpretação extensiva. Como atrás se fez notar o aval e a fiança, sendo figuras com funções semelhantes no contexto das relações entre o credor e o devedor, reportam-se e emergem de realidades jurídicas diferentes sendo certo que no diploma em apreciação se definiu de forma inequívoca que ele só era aplicável estando em causa determinados contratos de crédito e o incumprimento ou risco de incumprimento desses contratos por parte dos clientes bancários. Nenhuma referência contém o diploma a outro tipo de obrigações de que sejam titulares as entidades financeiras, nomeadamente ao risco de incumprimento por insuficiência económica de clientes subscritores ou avalistas de títulos de crédito que tivessem em carteira. E bem, a nosso ver, já que o regime instituído no diploma em questão não tem como finalidade a proteção dos obrigados cambiários perante qualquer portador de um título de crédito. Crê-se que as características dos títulos de crédito e a sua transmissibilidade tornariam particularmente difícil o sucesso do regime instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro e o cumprimento pelas instituições de crédito dos ónus impostos aos credores seus portadores. 18) O recurso à interpretação extensiva só é possível não havendo dúvidas sobre o facto de o legislador ter exteriorizado o seu pensamento de forma insuficiente, dizendo menos do que queria. Não ocorrendo essa circunstância, isto é, se o intérprete concluir que o legislador exprimiu correctamente o seu pensamento ainda que tenha estabelecido uma norma substancialmente imperfeita (o legislador disse exactamente aquilo que queria dizer mas a solução que consagrou é objectivamente incorrecta) cabe-lhe aplicar a lei nos precisos limites da regra estatuída, a menos que ela não seja conforme à princípios ou regras com assento constitucional, caso em que o intérprete recusa a sua aplicação. Não há, em conclusão, lacuna legal que deva ser suprida através de interpretação extensiva das regras contidas no artigo 21.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, por forma a abranger na sua previsão os avalistas de um título de crédito não pago na data do vencimento da obrigação cambiária. 19) Por último, a circunstância de estar em causa a constituição de uma hipoteca voluntária de um imóvel onde está instalada a casa de habitação dos avalistas não altera os dados da questão, não podendo aceitar-se que a interpretação do artigo 21.º do Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro que aqui se acolhe seja, como pretendem os recorrentes, violadora do direito à habitação consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. De facto, o que está em causa não é a privação do direito do avalista à sua habitação dotada das adequadas condições de higiene e conforto e idónea a preservar a sua intimidade pessoal e a privacidade familiar e ao uso que ela proporciona. O que está em causa é dispensar, ou não dispensar, o credor de avisar o avalista, após o vencimento da obrigação em mora, do atraso no cumprimento pelo avalizado e de lhe prestar informação sobre os montantes em dívida, dando-lhe a conhecer que poderá requerer a sua inclusão em PERSI a instaurar. E está igualmente em causa, sendo instaurado PERSI nas condições referidas no citado preceito, um impedimento de natureza temporária de a instituição financeira intentar acções judiciais com vista à satisfação do seu crédito. A instauração de PERSI abrangendo o avalista de um título de crédito não teria, em qualquer caso, como consequência, a impossibilidade definitiva de execução do seu património, incluindo o imóvel, casa de habitação do executado, cujas limitações estão consignadas no artigo 751.º do Código de Processo Civil. Tal como sucederia se se tratasse de um fiador do contrato de crédito que tivesse constituído voluntariamente igual garantia. 20) A interpretação adoptada não confere ao portador do título de crédito direito a executar o imóvel objecto de hipoteca onde está instalada a casa de habitação do avalista nem alarga o âmbito dos casos em que o exercício de tal direito é possível, antes se limita a constatar a inaplicabilidade do regime instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro em relação aos avalistas do título de crédito e do deferimento da possibilidade de instauração da ação com vista à satisfação do crédito. O direito à habitação do avalista de um título de crédito que tenha constituído hipoteca voluntária sobre o imóvel em que reside não é afectado pelo facto de não beneficiar do regime instituído pelo diploma em análise, na medida em que tal benefício não se repercute, mesmo nesse caso, sobre esse direito à habitação ou qualquer outra garantia real ou pessoal que tenha sido prestada, limitando-se afinal a retardar a possibilidade de instauração por parte do credor da acção judicial que vise a satisfação do crédito. Nem se acolhe entendimento de que resultem diferente e injustificadamente tratados o direito à habitação do avalista de um título de crédito que constitua hipoteca voluntária sobre o imóvel em que reside face ao direito à habitação do fiador de um contrato de crédito bancário em idênticas circunstâncias. 21) Improcede, assim, a invocação da inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 21.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro segundo a qual o regime nela previsto não é aplicável aos avalistas de um título de crédito, mesmo estando em causa a constituição de hipoteca voluntária sobre imóvel onde se encontra instalada a sua casa de habitação. 22) Em conclusão, se dirá então que o recurso de revista interposto pelos executados/embargantes, admitido a título excepcional, não merece provimento na medida em que não se mostram reunidos os pressupostos de aplicação do regime instituído pelo Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro estando em causa um contrato de crédito celebrado entre um banco e uma sua cliente pessoa colectiva e assentando a obrigação das pessoas singulares na subscrição e aval aposto nas livranças que constituem o título executivo. Nessas circunstâncias não estava a instituição financeira que celebrou o contrato de crédito com a sociedade sua cliente obrigada à abertura de um PARI ou à instauração de um PERSI em relação a ela, nem vinculada a alertar os avalistas das livranças do atraso no cumprimento da obrigação cambiária e dos montantes em dívida ou a informar da possibilidade de requererem a instauração de PERSI que os abrangesse. Tal interpretação não encerra qualquer violação do direito constitucional à habitação no caso de ter sido constituída hipoteca voluntária sobre um imóvel onde está instalada a casa de habitação dos avalistas para garantia da sua obrigação. Os recorrentes, porque decaíram na sua pretensão de revogação do acórdão recorrido, suportarão as custas da revista. ֎ ֎ DECISÃO Termos em que, julgam improcedente o recurso de revista, confirmando integralmente o acórdão recorrido. Os recorrentes, porque vencidos nesta instância de recurso suportarão as respectivas custas. Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 31 de outubro de 2023 Manuel José Aguiar Pereira (relator) Jorge Manuel Leitão Leal Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor |