Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1673
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: DOCUMENTO COMERCIAL
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ20070605016731
Data do Acordão: 06/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – As facturas não são livros de escrituração comercial e, portanto, não se lhes aplica o regime probatório do art. 44º do CCom.
II – Aos extractos de conta-corrente e aos balanços (embora se possam ter como assentos lavrados em livros de escrituração comercial - cfr. art. 31º do CCom.), só é possível aplicar-lhes o regime probatório do art. 44º daquele diploma legal se se provar que os mesmos estão devidamente arrumados.
III – Por escrita devidamente arrumada entende-se a que obedece às exigências estabelecidas na lei para o efeito de poder realizar-se plenamente o seu objectivo, ou seja, dar a conhecer as operações e a situação patrimonial dos comerciantes.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I


AA, Lª intentou, no Tribunal Judicial de Espinho, acção ordinária contra BB, Lª, pretendendo obter a sua condenação no pagamento de 138.849,48 €, correspondente ao preço não pago de fornecimentos de animais vivos e juros desde a citação.

A R. contestou, pedindo a improcedência da acção e, em reconvenção, pediu a condenação da A. no pagamento de 4.050,24 €, importância esta correspondente ao devido no acerto de contas entre ambas.

Houve réplica por parte da A. e o processo seguiu a sua tramitação normal até julgamento, após o qual foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e, por via disso, a condenar a R. no pagamento à A. de 127.840,97 € e juros, e a julgar improcedente a reconvenção.

A R., não conformada com o julgado, apelou para o Tribunal da Relação do Porto, pondo exclusivamente em causa a decisão sobre a matéria de facto.
Esta instância, depois de apreciar o mérito da queixa da apelante, acabou por concluir que “face à improcedência da impugnação da matéria de facto, e como no recurso não se questiona a solução jurídica do pleito, resta julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida”.
Ainda irresignada a R. pede revista do acórdão confirmatório.
Em defesa da manutenção do aresto impugnado respondeu a recorrida.
II

Nos termos do disposto no nº 6 do art. 713º, ex vi art. 726º, ambos do CPC, limitamo-nos a dizer que os factos provados são apenas os que constam do acórdão recorrido.
III
Nas extensas conclusões com que fechou a minuta de recurso, a recorrente colocou à nossa consideração três questões: a primeira tem a ver com alegada violação de norma substantiva de direito probatório, a segunda com o acerto do julgamento da matéria de facto, e a terceira com nulidade da decisão por pretensa omissão de pronúncia.

Debrucemos, pois, a nossa atenção para a análise do mérito das questões postas.

As duas primeiras questões assinaladas estão entre si umbilicalmente ligadas. Na verdade, a não ser aceite a tese de erro na aplicação de normas de direito probatório material por parte das instâncias resta-nos dizer da impossibilidade de qualquer espécie de crítica ao julgamento sobre o juízo probatório por elas firmado, atenta a específica competência deste STJ no que tange às matérias a ele submetidas a apreciação (cfr. art. 721º, nº 2, do CPC).
A nossa missão é, pois, ver se a questão colocada pela recorrente cai na alçada da previsão do nº 2 do art. 722º do diploma legal citado.

No recurso de apelação, a R. defendeu que os documentos de fls. 223-240, as cópias dos extractos de fls. 541-251 e o balanço da A. não podiam ser considerados por terem sido impugnados por si quer quanto ao conteúdo quer quanto à letra e assinaturas deles constantes.
Agora insurge contra o facto de a Relação se ter pronunciado sobre a possibilidade de valoração dos documentos em causa, estribando-se, para tanto, no art. 366º do CC, tendo apenas reportado a sua decisão no facto de terem sido impugnados quanto à letra e assinatura, mas já não no que toca à impugnação do seu conteúdo, exactidão da reprodução mecânica e inexactidão das traduções.
Segundo a recorrente esta omissão importa mesmo nulidade de decisão contemplada e sancionada pela al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC.
Este é um argumento novo que não colhe, não pode colher, peso para alteração do rumo tomado pelo Tribunal da Relação a este respeito.
Com efeito, esta limitou-se a dizer – e bem – que os documentos referidos são meramente particulares e, como tais, são de livre apreciação. Esta apreciação, como claramente resulta do art. 366º do CC, refere-se à globalidade do documento, o que significa que o juiz é livre na apreciação de tudo o que nele consta.
Em reforço desta nossa posição socorremo-nos da autoridade de Pires de Lima e Antunes Varela: “os documentos escritos a que falte algum dos requisitos legais não são destituídos de todo o valor probatório. É o que acontece, por exemplo, com um documento não assinado ou com uma simples minuta. O tribunal não está inibido, em qualquer dos casos, de lhes atribuir algum valor. O que estes documentos não podem é satisfazer a exigência legal de forma” (in Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, pág. 324).
O facto de a R., ora recorrente, ter impugnado tais documentos, não impossibilitou o tribunal de apreciar os mesmos no contexto global de toda a prova, dando as respostas adequadas aos vários quesitos formulados. As mesmas não poderão ser alteradas em função da crítica (infundada) da recorrente.
Carece, pois, de razão a recorrente: não só não houve violação de disposição legal de direito probatório material com também não houve, a este respeito, qualquer omissão de pronúncia – a Relação disse tudo o que havia a dizer, que a apreciação dos documentos em causa caía na esfera da livre apreciação do juiz.
E tomando a posição correcta, justificando a posição assumida face a tais documentos, não cometeu qualquer nulidade por omissão de pronúncia, como também lhe imputou a recorrente.
Injusta, pois, a dupla crítica que foi dirigida ao aresto impugnado em relação aos pontos até aqui considerados.

Mas não se ficou por aqui a crítica da recorrente.
Segundo ela, foram violados os arts. 31º e 44º do C. Comercial.
O primeiro destes preceitos legais refere-se aos livros indispensáveis a qualquer comerciante e à forma como os mesmos devem ser apresentados.
O segundo artigo diz respeito à força probatória de tais documentos. Eles, em certa medida, têm força probatória plena. Desde logo, uma restrição importante (aqui não aplicável): só vale se ambas as partes forem comerciantes, como ficou assinalado no aresto impugnado.
Mas, há também um ponto importante: para valerem com a tal força probatória, ou seja, no caso de ambas as partes serem comerciantes, necessário se torna que os mesmos estejam devidamente arrumados.
Por escrita devidamente arrumada entende-se a que obedece às exigências estabelecidas na lei para o efeito de poder realizar-se plenamente o seu objectivo, ou seja, dar a conhecer as operações e a situação patrimonial dos comerciantes.
Ora, o caso que nos é colocado é tão-somente este: terá o acórdão recorrido violado, por erro de aplicação, aqueles dois preceitos legais?
A resposta afigura-se-nos simples.
Importa, antes de mais, dizer da razão da força probatória de tais documentos.
A este respeito o art. 33º do C. Comercial (redacção dada pelo art. 7º do D.-L. nº 252/96, de 3 de Dezembro) prescreve que é obrigatória a legalização dos livros dos comerciantes, inventários, balanços e diário, bem como a dos livros das actas da assembleia geral das sociedades.
Esta “legalização” dos livros dos comerciantes era concretizada outrora pelas secretarias dos tribunais, mas, hoje em dia, tal tarefa cabe às Conservatórias do Registo Comercial (vide art. 112º, nº 1 do CRC).
Posto isto, estamos em condições ideais para apreciar o mérito do segmento decisório da Relação referente a este ponto concreto.
Pode ler-se no acórdão (cfr. fls. 664):
“Os documentos em causa nos autos são cópias de facturas, de extractos de conta-corrente e do balanço da ré.
As facturas não são livros de escrituração comercial e, portanto, não se lhes aplica o regime probatório do art. 44º do CCom, apesar de ambas as partes serem comerciantes.
Aos extractos de conta-corrente e o balanço da ré, embora se possam ter como assentos lavrados em livros de escrituração comercial (art. 31º CCom) também não é possível aplicar o regime probatório do art. 44º do CCom porque se desconhece se estão ou não bem arrumados, o que é essencial para a definição daquele regime, como decorre do citado art. 44º”.
Eis aqui explicada a razão de os ditos documentos não terem sido apreciados de acordo com o regime (excepcional) do art. 44º do C. Comercial.
Não podendo tais documentos ser apreciados com a rigidez que é imposta pelo referido artigo 44º, fatalmente que a sua apreciação cai no regime (regra) do art. 366º do CC.
Foi isso que foi feito – nenhuma violação houve por parte do acórdão recorrido de qualquer regra de direito probatório material, concretamente das normas invocadas pela recorrente.

Apreciadas estas questões – eventuais violações de normas de direito probatório material – que caem na alçada da competência deste Supremo Tribunal (cfr. nº 2 do art. 722º do CPC), resta-nos dizer que toda a crítica feita sobre o julgamento da matéria de facto é aqui inteiramente descabida, como claramente resulta dos arts. 721º e 712º, nº 6, do CPC.

Sobeja para apreciação a proclamada omissão de pronúncia sobre o abuso de direito.
O dever imposto ao julgador pelo nº 2 do art. 660º do CPC está, na fase dos recursos, facilitado, como se sabe: são as conclusões que delimitam o objecto de recurso (cfr. arts. 684, nº 3 e 691º, nº 1 do CPC).
As conclusões com que os recorrentes fecham as respectivas minutas de recurso destinam-se a indicar, de forma sintética, aos julgadores dos tribunais os fundamentos da discordância manifestada relativamente às decisões proferidas pelos tribunais inferiores.
Ora, lendo e relendo as conclusões apresentadas pela ora recorrente à consideração do Tribunal da Relação do Porto (cfr. fls. 578 a 583) o que se pode dizer é que, na verdade, a mesma deixou escrito que, inter alia, foi violado o art. 334º do CC.
Nada, mas nada, disse nem no corpo da alegação nem nas conclusões, sobre a razão da convocação de tal instituto a favor da consagração da sua tese.
Nem uma palavra, pequena que fosse, a recorrente deixou escrita na peça apresentada à apreciação da Relação.
Como é, pois, possível, falar em omissão de pronúncia?
Não é possível.

Cai, dest’arte, por terra, na totalidade, a argumentação que a R..

IV

Em conformidade com o exposto, nega-se a revista e condena-se a recorrente no pagamento das respectivas custas.


Lisboa, aos 05 de Junho de 2007

Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Faria Antunes