Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1934/17.9T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONTRADIÇÃO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
NULIDADE PROCESSUAL
EXTEMPORANEIDADE
DESPACHO SANEADOR
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
SANAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A nulidade por ineptidão da petição inicial é susceptível de ser conhecida no despacho saneador ou, o mais tardar, na sentença, ficando o seu conhecimento precludido depois desta data (cfr. artigo 200.º, n.º 2, do CPC).

II. Quando a questão da ineptidão da petição inicial não seja suscitada pelo réu na contestação nem conhecida ex officio até à sentença final, deve entender-se que a eventual ineptidão da petição inicial fica, em princípio, suprida ou ultrapassada, concluindo-se que o réu, que não a arguiu, e o tribunal, que dela oficiosamente não conheceu, compreenderam o sentido da petição inicial.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO


1. A autora M. C. Meireles – Compra e Venda e Construções de Imóveis, Lda., propõe a presente acção de processo comum contra os réus Paredes Industrial – Parques Industrial, S.A., e AA, peticionando que:

- lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º da p.i., inscrito na matriz sob o artigo …52, com a área total de 35.300 m2;

- a 1.ª ré seja condenada a pagar-lhe o valor de € 882.500,00 inerente à totalidade do terreno da autora, acrescido de juros, contados desde a entrada da presente ação até integral pagamento;

- subsidiariamente, seja declarada a nulidade do registo do prédio inscrito na matriz sob o artigo …49 e ordenar-se o seu cancelamento, condenando-se o 2.º réu a pagar-lhe o valor de € 882.500,00, correspondente ao valor actual do terreno, ressarcindo-se a autora pelos prejuízos sofridos com a perda do terreno, bem como pelo tempo que ficou desprovida da quantia indemnizatória.

Alega, em síntese, que é proprietária do prédio identificado no artigo 1.º da p.i., inscrito na matriz n.º …52, com uma área de 35.300 m2 e que a 1.ª ré ocupou, sem consentimento da autora, a área de 11.900 m2 do referido prédio e, quando procedeu ao registo do prédio inscrito na matriz sob o artigo …49, sobrepôs parte do prédio inscrito na matriz n.º …52, desconsiderando a configuração e confrontações do prédio que adquiriu.

A 1.ª ré, no âmbito do projeto dedicado à concepção e ao desenvolvimento do Parque Empresarial de Paredes, localizado nas freguesias de ... daquele concelho, procedeu ao loteamento das parcelas e vendeu a um terceiro o lote 20 com a área de 2132,41 m2 que faziam parte do prédio identificado no artigo 1.º da p.i., o que impossibilita à autora a recuperação da parcela usurpada de 11.900 m2, o que fez com que o referido prédio deixasse de ter valor económico para a autora.

Alega que sofreu danos patrimoniais com a ocupação de parte do seu prédio por parte da 1.ª ré.

A 1.ª ré contestou referindo que os prédios 152.º e 149.º correspondem a prédios autónomos e distintos, com diferentes descrições prediais.

O 2.º réu apresentou contestação referindo que quando vendeu à 1.ª ré o prédio 149.º nunca afirmou aos representantes da Imervico que tal prédio tinha a área total de 35.300 m2, pois desconhecia a área exata do prédio.

A autora, na resposta, mantém os factos por si alegados.


2. A certa altura foi proferida sentença, na qual se decidiu:

Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente e, em consequência, decide-se absolver os réus “Paredes Industrial Parques Industriais, S.A.” e AA de todos os pedidos deduzidos nos autos pela autora M.C.Meireles Compra e Venda e Construção de Imóveis, Lda.”.


3. Desta sentença apelou a autora M. C. Meireles – Compra e Venda e Construções de Imóveis, Lda., para o Tribunal da Relação do Porto.


4. Apreciado o recurso, proferiu este Tribunal um Acórdão em que se decidiu declarar nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial (contradição entre o pedido e a causa de pedir) e, consequentemente, absolver os réus da instância.


5. Inconformado com o mencionado Acórdão, vem o réu AA interpor recurso para este Supremo Tribunal.

Conclui a sua alegação da forma seguinte:

1./A ação de demarcação tem por finalidade e, consequentemente, o seu pedido, é a necessidade de fixação das estremas, isto é, da linha divisória entre os prédios confinantes, cuja linha divisória é incerta ou tornou-se duvidosa.

2./Diferentemente, a ação de reivindicação tem por finalidade, e esta corresponderá, consequentemente, ao respetivo pedido, o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele

3./ Entre ação de reivindicação e ação de demarcação não existe identidade de causa de pedir e pedidos.

4./A causa de pedir na ação de reivindicação é o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa (móvel ou imóvel) reivindicada e a lesão desse seu direito de propriedade pelo demandado (possuidor ou detentor da mesma).

5./Já na ação de demarcação, a causa de pedir é a existência de dois prédios confinantes, propriedade de dois proprietários distintos e o estado de incerteza dos limites concretos desses prédios.

6./ Na ação de demarcação não existe um conflito entre títulos, na medida em que o autor não pretende a restituição de todo ou parte de um prédio com base no seu direito de propriedade (como acontece na ação de reivindicação), mas trata-se de um conflito entre prédios, uma vez que o que pretende é a definição da linha divisória do seu prédio em relação ao prédio confinante.

7./ Os pedidos formulados pela Autora/Recorrida contra a Ré PAREDES INDUSTRIAL, são típicos pedidos de uma ação de reivindicação. Na verdade,

8./No primeiro pede que o tribunal declare e condene esta Ré a reconhecer que a mesma é proprietária do prédio que identifica no art. 1º da petição inicial e no segundo, dado que considera impossível a restituição da parcela parte do seu prédio ocupado por ter sido vendido a terceiro, pede o pagamento do respectivo valor - € 882.500,00

9./Diversamente os pedidos subsidiários formulados pela Autora/Recorrida contra o agora Réu/Recorrente, são típicos pedidos de uma ação de anulação.

10./Aqui no primeiro pede que seja declarada a nulidade do Registo do prédio da A. à luz do artigo 16.º als a), b) e c) e ordenar-se o seu cancelamento com base no disposto nos artigos 8. n.1 e 13. º ambos do Código de Registo Predial e no segundo por via daquela declaração de nulidade pede que se ordene que o Réu/Recorrente a pague à A. o valor de €882.500,00 (Oitocentos oitenta e dois mil e quinhentos Euros), respeitante ao valor atual do terreno, ressarcindo assim a A. dos prejuízos patrimoniais sofridos pela perda do terreno, bem assim pelo tempo que ficou a A. desprovida da quantia indemnizatória. Assim,

11./Relativamente aos pedidos formulados contra a 1ª Ré PAREDES INDUSTRIAL a intenção real da A./Recorrida ao instaurar a presente ação não foi que se delimitasse as estremas entre o prédio de que se arroga proprietária e qualquer outro prédio da 1ª Ré Paredes Industrial, mas sim que lhe fosse reconhecida a propriedade daquele concreto prédio e que adicionalmente, na impossibilidade de recuperar a parte do aludido prédio que alegadamente foi ocupada pela 1ª Ré PAREDES INDUSTRIAL, fosse indemnizada pelo valor do mesmo.

12./É que por um lado, não perpassa da alegação da A./Recorrida qualquer ideia de indefinição e incerteza de limites entre prédios.

13./ Por outro lado, resulta claramente da alegação e pedidos formulados pela A./Recorrida na PI, que uma parte do seu prédio foi ocupada e nessa medida pede o reconhecimento do seu direito de propriedade contra o ocupante, acrescentando que, como reputa impossível a restituição, pede o que seja indemnizada pelo valor da totalidade do terreno prédio.

14./ Temos portanto que a intenção real da A./Recorrida ao intentar a acção foi o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio que diz ser seu e na impossibilidade de restituição da parcela ocupada, o pagamento de uma indemnização equivalente ao valor total do prédio.

15./Estamos assim perante uma acção de reivindicação em que pedido e causa de pedir, estão de acordo e foram claramente expressos sem qualquer margem para dúvida.

16./Resulta claramente da Petição Inicial (cfr art.s 13,14,15,19, 25, 66, da PI) que estamos perante um conflito entre títulos de aquisição, e não perante um conflitos de prédios.

17./Mal andou por isso o Acórdão recorrido, relativamente ao pedido principal formulado contra a 1ªRé PAREDES INDUSTRIAL quando qualificou a acção como de demarcação e oficiosamente considerou ocorrer uma contradição entre a causa de pedir – alegação de factos que traduzem a relação material controvertida – e o pedido, o que conduziu à ineptidão da petição inicial, nos termos dos artigos 186º, nº1, nº2 b) e acarretou a nulidade de todo o processo com a consequente absolvição dos réus da instância, de acordo com o artigo 576, nº 2 do diploma em causa.

18./Deveria por isso o Acórdão recorrido ter confirmado a absolvição dos RR dos pedidos sentenciada pelo Tribunal de 1ª Instância e não revogar a decisão alterando-a para absolvição dos RR da instância.

19./Também relativamente ao pedido subsidiário (e subjacente causa de pedir) formulado contra o aqui Réu/Recorrente, jamais a acção pode ser qualificada como de demarcação

20./A A/Recorrida formula subsidiariamente contra o ora R/Recorrente um pedido de declaração de nulidade do registo predial do prédio da 1ª Ré PAREDES INDUSTRIAL nos termos do art.16 als a) e b) do Código de Registo Predial, isto é, por considerar que o registo é falso ou foi lavrado com base em títulos falsos ou insuficientes para a prova legal do facto registado.

21./Como causa de pedir refere a A./Recorrida alegadamente que, existe um prédio duplamente descrito na Conservatória do Registo Predial de … com inscrições a favor da A. e da 1.a Ré e que a 1.a Ré procedeu ao registo de um prédio rustico que adquiriu ao aqui R./Recorrente, prédio sito no Lugar de ...., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n. º 12 e inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo …, sobrepondo-o a parte da propriedade da A. , fazendo-o desconsiderando a configuração do prédio adquirido, bem como as respetivas confrontações

22./Acontece que, nos termos do artigo 581.º, n.º 4, segunda parte CPC, nas acções …de anulação a causa de pedir é … a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido. Assim sendo a causa de pedir e o pedido de nulidade formulado contra o aqui R./Recorrente são completamente alheios à acção de demarcação

23./O R./Recorrente não é dono de qualquer prédio confinante com prédio da A./Recorrida, tão pouco a nulidade que se pretende que seja declarada pelo Tribunal, tem a ver com incerteza de limites entre prédios.

24./Por isso relativamente ao R./Recorrente a acção não poderia ser qualificada como de demarcação. Daí que, pelo motivo invocado no Acórdão recorrido – contradição entre a causa de pedir e o pedido- jamais o R./Recorrente poderia ter sido absolvido da instância.

25./Razão também pela qual o Acórdão recorrido deveria ter confirmado a absolvição dos RR dos pedidos, sentenciada pelo Tribunal de 1ª Instância, e não revogar a decisão alterando-a para absolvição dos RR da instância.

26./Violou o acórdão recorrido entre outras as disposições dos art.s 1311, 1353 a 1355 do CC e 186 nº 1 e 2 al.b) e 581.º, n.º 4 do CPC.

27./Revogando-se o Acórdão recorrido e proferindo-se novo Acórdão que acolhendo as conclusões precedentes, à semelhança da sentença de 1ª Instância absolva os Réus dos pedidos, se fará justiça”.


6. Por sua vez, a autora M. C. Meireles, Compra, Venda e Construção de Imóveis Lda., vem apresentar contra-alegações.

Formula as seguintes conclusões:

A) A ação de reivindicação é uma ação petitória e condenatória destinada à defesa da propriedade, na qual se almeja a obtenção da restituição da coisa de que se é proprietário do possuidor ou detentor desta.

B) Ou seja, trata-se de uma ação real, em que a causa de pedir é o direito de propriedade do reivindicante e a violação desse direito pelo reivindicado (possuidor ou mero detentor da coisa), enquanto o fim (logo, o seu pedido) é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a sua restituição ao reivindicante. Diversamente da ação de reivindicação é a ação de demarcação a que aludem os arts. 1353º a 1355º do CC.

C) Por sua vez, e no que concerne à acção de demarcação é indubitável a sua conexão com o direito de propriedade, mas visa apenas definir as estremas entre dois prédios, propriedade de donos distintos, que ambos aceitam serem proprietários desses seus respetivos prédios, mas em relação aos quais existe uma indefinição das respetivas estremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de se saber onde acaba um prédio e começa o outro.

D) A causa de pedir na ação de reivindicação é o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa (móvel ou imóvel) reivindicada e a lesão desse seu direito de propriedade pelo demandado (possuidor ou detentor da mesma).

E) Na ação de demarcação, a causa de pedir é a existência de dois prédios confinantes, propriedade de dois proprietários distintos e o estado de incerteza dos limites concretos desses prédios.

F) O pedido na ação de reivindicação é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e a restituição desta ao reivindicante

G) Na ação de demarcação o pedido é a necessidade de definir a linha divisória entre os prédios confinantes, propriedade de donos distintos.

H) A distinção da ação de reivindicação da de demarcação, vem passando pela avaliação da ação instaurada tal como vem delineada pelo autor e atentos os pedidos que deduz, se está perante um conflito acerca do título ou um conflito de prédios.

I) Como bem refere o douto acórdão aqui posto em crise e atentando à causa de pedir complexa em julgamento, “As fronteiras destas duas acções – reivindicação e demarcação –é muito ténue, mas a finalidade de cada uma é bem diferente, embora em termos práticos possa ter o mesmo efeito- julgar se determinada parcela de terreno pertence a uma pessoa ou outra”…

J) Interpretação, nos presentes autos, que impôs ao tribunal de recurso conhecer da exceção da nulidade de todo o processado por via da exceção da ineptidão por contradição entre a causa de pedir e pedido;

K) Exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, absolvendo os RR da instância (cfr. art. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b) do CPC).

L) Determinando-se assim, em consequência e automaticamente, que fique prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos de recurso aduzidos pelo Autor apelante no recurso que interpôs, nos termos do disposto no art. 608º, n.º 2 ex vi art. 663º do CPC.

M) Caso assim não se entenda, considerando que os RR concluem o seu recurso peticionando a revogação do acórdão recorrido, rogando novo acórdão que à semelhança da sentença de primeira instância absolva os RR dos pedidos, cumpre chamar aqui o critério legal dos poderes do STJ.

N) Escapam aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça as questões relativas à apreciação/alteração da matéria de facto.

O) Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682º, nº 1, do CPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e modificabilidade da decisão sobre tal matéria.

P) Uma vez que, na situação sub judice não estamos mediante os casos excecionais em que o Supremo Tribunal de Justiça aprecia a matéria de facto, mesmo as que embora restritas à apreciação de erros de direito, o mesmo não pode sem mais, revogar o douto acórdão proferido e absolver os RR dos pedidos.

Q) Na verdade o douto acórdão recorrido diz respeito a recurso interposto pela Autora/Recorrida o qual tem por objecto a apreciação da matéria de facto;

R) Ora, essa função cabe em exclusivo à Relação, estando vedada ao STJ a sua substituição na medida em que envolve a reapreciação de meios de prova da exclusiva competência da Relação.

S) Pois, a mesma considerando a qualificação da ação como sendo de demarcação, e mediante a ineptidão da PI julgada absolveu os RR da instância não se pronunciando por via disso sobre o mérito e em consequência não procedeu à reapreciação da matéria de facto.

T) Dando este Tribunal provimento aos Recurso interpostos pelo RR, o processo deve ser enviado para a Relação, para que nesta se proceda à efetiva reapreciação do julgamento da matéria de facto designadamente quanto à valoração dos meios de prova oralmente produzidos e sujeitos à livre apreciação, meios de prova estes sobejamente indicados nas alegações de recurso sob o qual recaiu a decisão recorrida”.


7. Foi proferido no Tribunal da Relação do Porto um despacho em que se julgava admissível o recurso e se determinava a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.


8. Através de requerimento vem a co-ré Paredes Industrial – Parques Industrial, S.A., informar este Tribunal que acompanha e adere ao recurso apresentado por AA.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o Tribunal recorrido podia declarar nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial e, em consequência disso, absolver os réus da instância.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - Em 10/12/1985, foi registada a favor do 2º réu, por doação feita por sua mãe, BB, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ......10 da freguesia ... e inscrito na matriz sob o nº …52 conjuntamente com o rústico descrito na mesma Conservatória sob o nº …..10 da mesma freguesia.

2 - No dia 17/2/1994, o 2º réu, por escritura pública, vendeu à “Imervico-Empreendimentos Imobiliários, Lda.” o prédio identificado no ponto 1.

3 - Em 9/3/2015, a “Imervico-Empreendimentos Imobiliários, Lda.”, por escritura pública, vendeu à autora o prédio identificado no ponto 1.

4 - Em 10/10/2002, o 2º réu e mulher prometeu vender à 1ª ré e esta prometeu comprar o prédio rústico denominado ..., sito no mesmo lugar da ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …85, inscrito na matriz predial rústica sob o art. …49, prédio que tinha sido doado ao 2º réu pela sua mãe.

5 - Em 27/11/2015, o 2º réu, por escritura pública, vendeu à 1ª ré o prédio identificado no ponto 4.

6 - Em 2007, a 1ª ré intentou contra o 2º réu uma ação ordinária que correu termos no Tribunal Judicial …, … Juízo Cível, com o nº 4178/07… que visava a harmonização da área do prédio identificado no ponto 4 insertas no registo e na matriz, tendo a mesma sido julgada improcedente.

7 - Em 2010, a 1ª ré intentou nova ação contra o 2º réu que correu termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial …, com o nº 3613/10…, requerendo ao tribunal que determinasse a área do prédio identificado no ponto 4, tendo as partes acordado, face à perícia realizada, por sentença homologatória que a parcela inscrita na matriz rústica sob o nº …49 do Lugar …, ..., tinha uma área de 11.900m2.

8 - A 1ª ré, no âmbito do projeto dedicado à conceção e desenvolvimento do Parque Empresarial de Paredes…..., localizado nas freguesias ... daquele concelho, procedeu ao loteamento das parcelas e vendeu a um terceiro o lote …, com a área de 2.132,41m2.

9 - Logo após a celebração do contrato promessa a que se alude no ponto 4, a 1ª ré entrou na posse do referido prédio para implementação do Parque Empresarial de ..., tendo procedido à remoção de terras, regularização do terreno.


E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

- O prédio identificado no ponto 1 tem uma área de 35.300 m2.

- Desde tempos imemoriais que a autora, por si e antepossuidores, que atua sobre os 35.300m2 do prédio identificado no ponto 1 como se fosse o seu dono, pagando os respectivos impostos e contribuições, durante mais de 15, 20 anos, de forma exclusiva, ininterrupta, pública, pacífica e de boa fé.

- A 1ª ré ocupou, sem consentimento da autora, a área de 11.900 m2 do referido prédio identificado no ponto 1.

- E quando a 1ª ré procedeu ao registo do prédio identificado no ponto 4, sobrepôs parte do prédio identificado no ponto 1, desconsiderando a configuração e confrontações do prédio que adquiriu.

- Os 2132,41m2 a que se aludem no ponto 8 fazem parte do prédio identificado no ponto 1, o que impossibilita à autora a recuperação da parcela de 11.900m2 referida no ponto 4.

- A autora sofreu danos com a ocupação de parte do prédio identificado no ponto 1 por parte da 1ªré.

- A apropriação de parte do prédio identificado no ponto 1 por parte da 1ª ré fez com que o referido prédio deixasse de ter valor económico para a autora.

- O 2º réu sabia que não podia vender à 1ª ré ou inscrever na matriz o prédio com a área de 11.900m2, porque o mesmo já não lhe pertencia, pois já o tinha vendido à autora.

- Quando o 2º réu, em 9/2/2015, participou à matriz um averbamento de atualização de áreas e confrontações, sabia que tal participação não correspondia à verdade.

- Quando ocorreu a venda a que se alude no ponto 2, o 2º réu nunca afirmou aos representantes da “Imevico” que tal prédio tinha a área total de 35.300m2, pois desconhecia a área exata do prédio.

- Onze anos após a venda a que se alude no ponto 2, o representante da “Imevico” solicitou ao 2º réu, com o intuito de chegar a acordo com a Câmara Municipal de ... quanto à venda do prédio identificado no ponto 1, que subscrevesse uma declaração e um levantamento topográfico dos terrenos vendidos pela escritura de fevereiro de 1994.

- O levantamento topográfico foi elaborado pela “Imevico” dado o tempo já decorrido e ao facto de já não existirem marcas que vendidos pela escritura a que se alude no ponto 2, não tendo o 2º réu memória dos limites dos mesmos.

- O 2º réu acreditou que o levantamento topográfico que lhe foi apresentado pela “Imevico” para subscrever, correspondia aos limites físicos do prédio identificado no ponto 1, tendo sido enganado pela “Imevico”.

- Os imóveis a que se aludem nos pontos 1 e 4 correspondem à mesma descrição predial.


O DIREITO

Como se viu, o Tribunal recorrido concluiu que se verificava a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir e, consequentemente, decidiu declarar nulo todo o processo e absolver os réus da instância.

Mais precisamente, é esta a fundamentação exposta no Acórdão recorrido:

“Deflui da petição inicial que a autora alega que o prédio de que se diz proprietária confina com o prédio da Ré e invoca as estremas de ambos os prédios, concluindo que a 1ª Ré, ocupou parcialmente área do seu prédio.

Todavia não formula pedido de demarcação dessas estremas, de forma a delimitar-se a linha divisória entre os dois prédios-artigo 1353º do C.C.

Em resumo pretende que o tribunal lhe reconheça a área de 35.300m2 que na sua perspectiva a 1ª Ré ocupou. A Ré contrapõe que o prédio da autora não tem a área invocada por esta e que não fez qualquer ocupação ilegítima, pois a parcela revindicada é sua propriedade, não havendo lugar para a procedência da acção.

A autora e a 1ª Ré não poem em causa, e, reconhecem o direito de propriedade da contraparte, e, que os prédios confinam entre si, mas discutem as suas áreas, sustentando as duas que os seus prédios dispõem de área maior.

É controvertida, pois, a área dos dois prédios confinantes, existindo uma parcela de terreno em litígio – pertencente à A. ou à 1ª?- o que nos reconduz desde logo à delimitação dos prédios e suas estremas.

A questão que se coloca é pois a qualificação da acção: demarcação ou reconhecimento de propriedade?

Reivindica-se para pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma coisa ou parte dela e a respectiva restituição quando oucpada, mas intenta-se acção de demarcação para obrigar o dono de prédio confinante a concorrer para a definição e fixação da linha divisória, não definida -arts. 1311º e 1353º C. Civil.

A autora não solicitou a demarcação das estremas -artigo 1353º do C.C.

Sabemos que o entendimento quanto à natureza da acção de demarcação, não é consensual. Há quem a qualifique como uma acção real.

Entendemos que a acção de demarcação tem conexão com o direito das coisas, mas que é uma acção pessoal, porquanto não tem como objectivo principal ou acessório o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos reais definidos pelo artigo 2.º do Código de Registo Predial. Na verdade o que se pretende através dela é a declaração de um qualquer direito real ou a definição da sua extensão. A qualidade de proprietário invocado, de um dado parcela de terreno invocado pela autora, é apenas condição da sua legitimatio ad causam.

Assim a sua causa de pedir reside “no facto complexo da existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou duvidosas”, que não no facto que originou o invocado direito de propriedade – ac. STJ de 26-9-2000, in BMJ n.º 499.º, p. 294.

Foi exactamente o que a autora fez nos artigos 39º e 40º da sua petição inicial, indicou as estremas do seu prédio, donde resulta na sua óptica que a área é mais extensa do que aquela que a 1ª Ré sustenta, todavia não formulou pedido de demarcação, mas unicamente de reconhecimento do direito de propriedade do seu prédio abrangendo a parcela em litígio decorrente do conflito dos seus limites. A autora invocou uma relação material controvertida de prédios contíguos e o litígio nas confrontações, que configura e traduz a acção e demarcação. Esta acção de demarcação é uma acção declarativa cujo objectivo é marcar a linha divisória entre prédios pertencentes a donos diferentes.

O seu fim, como sobredito, é fazer reconhecer o direito concedido ao proprietário pelo artigo 1353º do CC, e obrigar os donos de prédios confinantes a concorrerem para a demarcação de estremas de forma a ficar definido e delimitada a sua extensão.

Daí que, para além da prova da confinância, caiba também ao autor a prova de que a linha divisória não está definida, porque se trata de facto constitutivo do seu direito de demarcação (artigo 342, n. 1, do CC). A verdade é que o facto de a área estar definida não significa que não exista essa linha.

O conflito em análise só poderá ser resolvido com o recurso à acção de demarcação, que a autora configura através da exposição de factos correspondentes à causa de pedir desta acção, mas não formula o pedido correspondente.

As fronteiras destas duas acções - reivindicação e demarcação- é muito ténue, mas a finalidade de cada uma é bem diferente, embora em termos práticos possa ter o mesmo efeito- julgar se determinada parcela de terreno pertence a uma pessoa ou outra.

Assim sendo, isto é, qualificando-se a acção como demarcação, como se qualifica, ocorre uma contradição entre a causa de pedir – alegação de factos que traduzem a relação material controvertida e pedido - o que conduz à ineptidão da petição inicial, nos termos dos artigos 186º, nº1, nº2 b), o que acarreta a nulidade de todo o processo. Como excepção dilatório que é –artº 577º b) do CPC-, o seu conhecimento é oficioso- artº 578º do CPC- e conduz à absolvição dos réus da instância, de acordo com o artigo 576, nº 2 do diploma em causa.

Atento o exposto revoga-se a sentença recorrida e absolve-se os Réus da instância”.


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Aprecie-se.

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Como é do conhecimento geral, não há acção sem petição (não há concessão oficiosa da tutela jurisdicional)[1], sendo, justamente, a petição – a petição inicial – o articulado cuja função específica é a propositura da acção, em que o autor formula a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expõe as razões de facto e de direito em que a fundamenta.

Explica Lebre de Freitas que é na petição inicial que o autor deve formular o pedido [cfr. artigo 552.º, n.º 1, al. e), do CPC], isto é, solicitar ao tribunal a providência processual quer julgue adequada para tutela da situação jurídica ou do interesse que afirma materialmente protegido, e deve indicar a causa de pedir [cfr. artigos 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 4, do CPC], isto é, identificar o(s) facto(s) constitutivo(s) da situação jurídica material que o autor quer fazer valer ou, numa fórmula mais genérica, o(s) facto(s) concreto(s) que terão constituído o efeito pretendido[2].

Ora, pode acontecer que o pedido tenha sido claramente formulado e a causa de pedir claramente indicada[3] mas entre eles exista uma contradição lógica.

Como salientava, no quadro normativo anterior, José Alberto dos Reis, trata-se de uma contradição paralela ou homóloga da contradição entre os fundamentos e a decisão, que (também) vicia de nulidade a sentença ou o acórdão: da mesma forma que a decisão, o pedido tem o valor e o significado de uma conclusão e, da mesma forma que os fundamentos relativamente à decisão, a causa de pedir é a base ou o ponto de apoio do pedido[4].

Sobre a hipótese de contradição entre o pedido e a causa de pedir versa, no quadro normativo actual, o artigo 186.º do CPC, que dispõe o seguinte:

1 – É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2 – Diz-se inepta a petição inicial quando:

(…)

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir (…)”.

Perante isto, não restam dúvidas de que, verificando-se a contradição entre o pedido e a causa de pedir, a petição inicial é inepta e que, sendo a petição inepta, é nulo todo o processo (uma vez nula a petição, todo o processo fica sem base ou suporte[5]).

Mas há que dar atenção ainda ao disposto no artigo 200.º do CPC, que regula o momento de conhecimento da nulidade e, no seu n.º 2, o momento do conhecimento desta nulidade em particular (nulidade por ineptidão da petição inicial). Dispõe-se aí:

(…)

2 – As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final (…)”.

Tanto quanto é possível alcançar, existe um alargado consenso na doutrina portuguesa quanto a que o disposto nesta norma significa que a nulidade por ineptidão da petição inicial é susceptível de ser conhecida no despacho saneador[6] ou, o mais tardar, até à sentença (rectius: na sentença) [7], ficando o seu conhecimento precludido depois desta data – numa palavra: que a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial não pode ser oficiosamente suscitada e conhecida na fase de recurso[8].

São particularmente claros neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa quando dizem que “a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186.º e 193.º, n.º 1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades. Se o processo não comportar ou não tiver despacho saneador, o juiz pode conhecer destes dois vícios até à sentença final[9].

Igual entendimento é propugnado desde há tempo na jurisprudência portuguesa. Leia-se, em confirmação, aquele que é o Acórdão de referência nesta matéria, proferido no Supremo Tribunal de Justiça em 26.03.2015, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S2, onde se afirma que “[o] vício de ineptidão da petição inicial não pode ser apreciado, mesmo oficiosamente, aquando do julgamento da apelação” e que “a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso[10].

Deve, pois, entender-se que, quando a questão da ineptidão da petição inicial não é suscitada pelo réu na contestação nem conhecida ex officio até à sentença final, a eventual ineptidão da petição inicial fica, em princípio, suprida ou ultrapassada, concluindo-se que o réu, que não a arguiu, e o tribunal, que dela oficiosamente não conheceu, compreenderam o sentido da petição inicial[11].

No caso presente, proferida a sentença final pelo Tribunal de 1.ª instância e tendo este conhecido e decidido o mérito do pedido, não é possível dizer que o “pedido briga com a causa de pedir[12] e que “nem o réu nem o tribunal sabe, no fim de contas, a que há-de ater-se[13].

Verificando-se ou não, ab initio, uma oposição entre o pedido e a causa de pedir, o certo é que tanto o réu como o tribunal interpretaram a petição inicial e lhe fizeram corresponder um sentido[14]. E sempre se diga que, verificando-se, ab initio, aquela oposição, era lícito ao tribunal ajustar o pedido à causa de pedir, fazendo desaparecer a contradição[15].

Sintetizando:

Por um lado, a nulidade de todo o processo é uma excepção dilatória [cfr. artigo 577.º, al. b), do CPC], as excepções dilatórias são de conhecimento oficioso (cfr. artigo 578.º do CPC) e, uma vez verificadas, obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do CPC).

Por outro lado, quando a sua causa é a ineptidão da petição inicial, esta excepção segue um regime especial do qual decorre uma limitação temporal ao seu conhecimento oficioso. Quer dizer: tal como as outras excepções dilatórias, a nulidade de todo o processo é de conhecimento oficioso, mas este conhecimento oficioso está, no caso especial de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, limitado no tempo, nos termos do artigo 200.º, n.º 2, do CPC[16].

Assim, proferida a sentença pelo Tribunal de 1.ª instância e tendo este apreciado e decidido o mérito do pedido, o Tribunal da Relação não podia, oficiosamente, ter conhecido da ineptidão da petição inicial e declarado a nulidade de todo o processo e, na sequência disso, absolvido os réus da instância.

Em face de tudo o que se viu, não resta senão revogar o Acórdão recorrido e determinar a remessa dos autos para que o Tribunal a quo aprecie as questões suscitadas no recurso se a isso não obstarem questões que sejam de conhecimento oficioso e possam ainda ser conhecidas.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se parcialmente a revista, nos seguintes termos:

- revoga-se o Acórdão recorrido no decretamento da excepção dilatória da ineptidão da petição inicial e da nulidade de todo o processo e, consequentemente, na decisão de absolvição dos réus da instância;

- determina-se a remessa dos autos ao Tribunal recorrido para que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, se aprecie aí do objecto do recurso de apelação.


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Custas a final.

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Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] Cfr., neste sentido, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 243-244.
[2] Cfr. Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), pp. 37 e s., e Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, Coimbra, Gestlegal, 2017 (4.ª edição), pp. 66 e s. Cfr. ainda, no mesmo sentido, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), pp. 373-374.
[3] Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 111), o pedido é “o direito para que [o Autor] solicita ou requer a tutela jurisdicional e o modo por que intenta obter essa tutela (a providência judiciária requerida); o efeito jurídico pretendido pelo Autor” e a causa de pedir é “o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o Autor invoca e pretende fazer valer”.
[4] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1945, p. 381. O autor configura a petição inicial, quando bem elaborada, como contendo um silogismo, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido). Afirma ele: “É da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada. Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir” (sublinhados do autor).
[5] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., p. 395.
[6] Segundo José Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., pp. 498-499), o juiz tem um verdadeiro poder-dever de conhecer, naquele despacho, deste tipo de nulidades.
[7] Segundo José Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., pp. 515), devem equacionar-se duas hipóteses de conhecimento oficioso: primeira, há despacho saneador; segunda, o processo não comporta tal despacho; na primeira hipótese, o juiz pode conhecer da nulidade até ao despacho e deve conhecer dela, o mais tardar, neste despacho e, na segunda hipótese, pode conhecer até à sentença final. Segundo o autor, o espírito da disposição é este: “o juiz deve tomar conhecimento da nulidade logo que se aperceba da existência dela; e há um momento em que a lei lhe impõe especialmente o dever de indagar se o processo está viciado por alguma das nulidades (…): o momento em que profere o despacho saneador” (sublinhados do autor).
[8] Voltando a José Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., p. 359), compreende-se que a nulidade por ineptidão da petição inicial pode ser qualificada como uma nulidade de primeiro grau ou de primeira categoria ou uma nulidade principal e que é assim atendendo à gravidade (maior do que nas nulidades secundárias), à possibilidade de invocação oficiosa por confronto (que não existe, em regra, nas nulidades secundárias) e ainda ao momento do conhecimento (o tribunal conhece das nulidades principais, em regra, no despacho saneador ou até à sentença enquanto as nulidades secundárias devem ser conhecidas logo que sejam reclamadas). A categoria das nulidades principais perdurou até hoje e está patente na epígrafe do artigo 198.º do CPC. Deve notar-se que Lebre de Freitas [Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, p. 29 (nota 27)] critica esta classificação, considerando-a “sem grande rigor” ou “algo incorrecta”. Segundo o autor, melhor se falará em nulidades nominadas ou típicas para designar aquelas que são especificamente tratadas na lei. Cfr., no mesmo sentido, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, cit., pp. 406.
[9] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 240. Cfr. ainda Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, cit., pp. 411-412.
[10] Cfr., para um outro exemplo, muito recente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021, Proc. 3935/18.0T8LRA.C1.S1.
[11] Cfr., neste sentido, na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, cit., p. 411, e, na jurisprudência, o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em 26.03.2015. Diz-se aí: “E bem se compreende, aliás, o estabelecimento de um tal limite temporal à suscitação do vício de ineptidão, já que a prolação de decisão sobre o litígio – no caso dos autos, decisão sobre o mérito da causa, confirmada, aliás, por um primeiro acórdão, proferido pela Relação – implica necessariamente que, no desenrolar do processo, a eventual e originária insuficiência estrutural da petição inicial tenha sido suprida ou ultrapassada: não só a parte contrária terá contestado a versão do A., compreendendo o sentido essencial da factualidade que ele alegou, como o próprio tribunal, ao apreciar o mérito da causa, terá logrado compreender os pontos fundamentais do litígio que opunha as partes, ultrapassando, através da interpretação que fez dos articulados, as originárias deficiências e insuficiências factuais destes. A preclusão do conhecimento da nulidade principal de ineptidão da petição inicial implica, como é óbvio, que esteja ultrapassada a invocada violação da regra do contraditório, traduzida na omissão de audição prévia das partes sobre a ocorrência de tal vício, inquinando todo o processo”.
[12] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., p. 381.
[13] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., p. 360.
[14] Recorde-se que o Tribunal de 1.ª instância não teve dúvidas em qualificar a acção como de reivindicação, com o duplo pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de condenação na restituição da coisa e com a causa de pedir complexa constituída pelo acto ou facto jurídico concreto que criou o direito de propriedade na esfera jurídica da autora e ainda pelos factos demonstrativos da violação desse direito (ocupação abusiva, simples impedimento de utilização da coisa, etc.). A final, decidiu este Tribunal julgar improcedente a acção e absolver os réus do pedido, uma vez que, competindo à autora o ónus de provar a matéria por si alegada, designadamente que o prédio que comprou ao 2.º réu por escritura e inscrito na matriz sob o artigo …, tinha uma área de 35.300 m2, e que a 1ª ré havia ocupado, sem consentimento da autora, a área de 11.900 m2 do referido prédio, não havia logrado fazê-lo.
[15] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., pp. 384-385.
[16] José Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, cit., p. 482) qualificava a nulidade por ineptidão da petição inicial como um caso especial de nulidade, não abrangido, portanto, pela regra geral sobre as nulidades do processo.