Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1494/17.0T8MMN-A.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: TRANSAÇÃO JUDICIAL
CESSÃO DE QUOTA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
MATÉRIA DE DIREITO
Data do Acordão: 11/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / TRANSACÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE EXECUÇÃO / DISPOSIÇÕES GERAIS / OBRIGAÇÃO CONDICIONAL OU DEPENDENTE DE PRESTAÇÃO.
Doutrina:
- Evaristo Mendes e Fernando Sá, Anotação ao artigo 236.º, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 538;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, t. 1, 3.ª ed., 2005, Almedina, Coimbra, 2005, p. 759 e 761;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 754-755;
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 442, 446-447;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 223.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º 1 E 1248.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 715.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 16-04-2009, PROCESSO N.º 08B2346;
- DE 25-03-2010, PROCESSO N.º 682/05.7TBOHP.C1.S1;
- DE 04-11-2010, PROCESSO N.º 2916/05;
- DE 03-02-2011, PROCESSO N.º 6041/05.4TVLSB;
- DE 14-06-2011, PROCESSO N.º 3222/05.4TBVCT;
- DE 22-11-2012, PROCESSO N.º 1758/10.4TBVLG-A.P1.S1;
- DE 29-04-2014, PROCESSO N.º 2566/07.5TVLSB.L1;
- DE 09-09-2014, PROCESSO N.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1.
Sumário :
I - Uma transação judicial homologada por sentença sobre a forma de determinação do valor de quota social, em cujas cláusulas as partes acordaram a realização de uma avaliação à sociedade por um colégio de três peritos, constituído por um perito indicado pelo autor, um perito indicado pela ré e um terceiro designado pelos peritos das partes, é um contrato (art. 1248.º do CC), cujas declarações negociais são objeto de interpretação nos termos do art. 236.º, n.º 1 do CC.

II - O STJ tem poderes para intervir e sindicar a interpretação de declarações negociais no que diz respeito à apreciação da observância dos critérios legalmente definidos, constantes do art. 236.º do CC, apenas a averiguação da vontade real dos declarantes se situa no domínio da matéria de facto, fora, portanto, do âmbito do recurso de revista.

III - Sendo o relatório de avaliação da sociedade o elemento decisivo para apurar o valor da quota, que corresponde a 25% do capital social, deve entender-se que o declaratário normal perceciona o sentido das cláusulas da transação do seguinte modo: o relatório de avaliação apenas será válido se os interesses de ambas as partes receberem idêntica representação e se os peritos indicados por cada uma das partes estiverem presentes na elaboração do relatório, tendo cada um deles a oportunidade de esgrimir os seus argumentos para que a avaliação seja o resultado de uma troca de opiniões e pontos de vista entre eles e de cedências recíprocas, para atingir uma avaliação justa e equilibrada para os interesses de ambas as partes.

IV - A existência de um conflito judicial é uma circunstância que permite esclarecer que o sentido juridicamente relevante das cláusulas da transação, neste contexto, não pode deixar de ser o de que a condição para a execução da transação só está preenchida com a participação efetiva dos três peritos na realização da perícia, ainda que depois o relatório venha a ser aprovado por maioria com um voto discordante aposto por um dos peritos.

V - Tendo a avaliação da sociedade sido realizada apenas por dois peritos, sem a participação do perito designado pelo recorrente, não se encontra verificada a condição de que depende a exigibilidade da obrigação do recorrente, nomeadamente, não está ainda determinado o valor da quota a ceder à sociedade, não podendo a execução prosseguir por falta de exequibilidade do título, nos termos do art. 715.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. Por apenso à execução de sentença, que lhe move “AA, Lda” veio BB deduzir oposição à execução, mediante embargos, pugnando pela extinção da execução.
Alega, para tanto, em suma, que:
- é inepto o requerimento inicial por omitir o pedido;
- ainda não se encontra verificada a condição de que depende a cessão da quota de que é titular o embargante, pelo que a obrigação é inexigível.


2. A exequente/embargada veio apresentar contestação onde impugna toda a matéria trazida aos autos pelo embargante e advoga pela improcedência da exceção de ineptidão do requerimento inicial.

3. Foi julgada improcedente a exceção da nulidade total do processo.

4. Foi fixado o valor da causa em €122 099,80.

5. Depois de realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e determinou a extinção da execução.

6. Desta sentença recorre a embargada, defendendo a sua revogação e a execução da sentença para prestação de facto.

7. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão datado de 30 de maio de 2019, decide julgar procedente o recurso em função do que se revoga a sentença recorrida, devendo prosseguir a execução.

8. Inconformado, interpõe o embargante recurso de revista para este Supremo Tribunal, formulando, na sua alegação de recurso, as seguintes conclusões:
 


A) O que está em causa no presente recurso é apurar se pelo facto da avaliação da sociedade Recorrida ter sido realizada apenas por dois peritos se deve ou não considerar verificada a condição estabelecida pelas partes na transação realizada no âmbito do processo nº 465/11.5TBMMN - é, portanto, uma questão de interpretação do clausulado da transação dada à execução, com o objetivo de fixar o sentido juridicamente relevante que as partes lhe pretenderam atribuir.
B) O artº. 236º, nº 1 do Código Civil consagra a chamada "teoria da impressão do declaratário", segundo a qual a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário medianamente sagaz, diligente e prudente, a interpretaria, colocado na posição concreta do declaratário.
C) É matéria de direito a interpretação da declaração negocial quando tiver de ser efetuada segundo o critério do nº 1 do artº 236º do CC, pelo que nada obsta a que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie a decisão das instâncias inferiores em matéria de interpretação, quando essa decisão contrariar o disposto na citada norma legal.
D) As partes, ao impor que a avaliação seja realizada por um colégio constituído por 3 peritos, pretendem salvaguardar que a perícia não ceda a interesses de qualquer uma delas, o que só pode ser assegurado através da intervenção na perícia de todos os peritos.
E)  O facto de as partes terem convencionado na transação que o colégio de peritos delibera por maioria não significa que a avaliação pode ser efetuada sem a intervenção de um dos peritos, uma vez que, a falta de qualquer deles na elaboração da perícia compromete irremediavelmente a garantia da sua imparcialidade, e, nesse sentido, contraria o objetivo da mesma, que é a obtenção de uma avaliação justa e equilibrada.
F) Tendo em conta as circunstâncias atendíveis na interpretação dos negócios jurídicos - elemento literal, circunstâncias do tempo e lugar, as normas legais, a finalidade prosseguida pelo declarante, os interesses em jogo no negócio, a boa fé - deve concluir-se pela não verificação da condição aposta na transação em causa.
G) Desde logo, o elemento literal, ao estabelecer-se expressamente na transação que a avaliação é efetuada por um colégio de peritos constituído por 3 elementos.
H) Depois, as circunstâncias do tempo e lugar: o acordo das partes foi efetuado no âmbito de uma ação judicial em curso, na fase de discussão e julgamento, tendo as partes acordado na transação nos termos em que o fizeram para poderem intervir, em posição de igualdade e equidade, na determinação do justo valor da quota a ceder.
I) As normas legais relativas à prova pericial, consagradas nos artºs 467º e segs. do CPC, sendo por referência ao regime aí estabelecido que as partes acordaram os termos da avaliação da sociedade, como o demonstram as referências na transação à perícia colegial, à obrigação de disponibilizar informação e ao relatório de avaliação a que se reportam os artºs 468º, n º 1, 481º e 484º do CPC.
J) A finalidade prosseguida pelo declarante e os interesses em jogo no negócio: o Recorrente o que pretende obter com a transação é receber o justo valor da quota a ceder, o que implica que a avaliação da sociedade seja realizada com a intervenção dos 3 peritos.
L) As regras da boa fé e o dever de diligência do declaratário normal impunham que, perante a ausência do perito designado pelo Recorrente, a Recorrida ou os demais peritos procurassem indagar junto do Recorrente se este estava disponível para aceitar a elaboração de um relatório em que o perito por si designado não interviesse, devendo solicitar-lhe, se tal não fosse viável, para designar novo perito atendendo à falta de colaboração do inicialmente designado.
M) Sendo, todavia, mui douto, o Acórdão recorrido violou por erradas interpretação e aplicação as disposições legais anteriormente citadas, e as mais ao caso aplicáveis, o que constitui fundamento da revista, conforme prevê o artº 674º, nº 1, al. a) do CPC.


Termos em que, com o douto suprimento de V.Exªs., Venerandos Conselheiros, deve ser dado provimento à revista, e, em consequência, ser revogado o douto Acórdão que julgou procedente o recurso interposto da decisão da 1ª Instância, com as legais consequências.


Assim se fará a costumada JUSTIÇA!!»

9. A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do decidido, com os seguintes fundamentos:
«(…)          

6. A transação judicial é, conforme estabelecido no n.º 1 do artigo 1248.º do Código Civil, o “contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”.

7. Estabelecendo o n.º 2 do mesmo dispositivo legal que “as concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”.

8. Como contrato que é, a transação está sujeita ao princípio da liberdade contratual fixado no artigo 405º do Código Civil.

9. De facto, estabelece este dispositivo legal que “1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.


10. Devendo as disposições nele estabelecidas serem interpretadas nos termos do n.º 1 do artigo 236º do Código Civil.

11. Que estabelece que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

12. Conjugado com o disposto no artigo 237º do Código Civil que impõe que “em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.
13. E no artigo 239º do Código Civil que determina que “na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta”.

14. Ou seja, interpretadas como verdadeiras declarações negociais que o são.

15. Note-se que na transação judicial as partes acordam sobre o objeto do litígio, a questão
substantiva.

16. E não sobre uma qualquer questão processual.

17. Ou seja, é um negócio substantivo e não meramente processual.
18. Transação esta, aqui em concreto, celebrada por dois advogados enquanto mandatários com poderes especiais das partes.

19. Advogados esses que, necessariamente sabem, ou têm de saber, que uma coisa é o objeto do litígio, a questão substantiva sobre a qual transacionaram e outra é o litígio em si, a questão processual sobre a qual não transacionaram, nem poderiam ter transacionado nada.

20. E transação esta que visa resolver um litígio antigo entre as partes.

21. Visando-o resolver definitivamente, com a cessão da quota do executado/embargante à executada/embargada, através do estabelecimento de um preço a determinar pela avaliação.

22. Sem necessidade de qualquer atividade processual, nestes ou noutros autos.

23. Ora, na transação judicial em crise, as partes acordaram na realização de uma avaliação à sociedade por um colégio de peritos.

24. Colégio de peritos esse constituído por 3 elementos.

25. Que decide por maioria dos seus membros.

26. Salvo melhor opinião, destas declarações negociais não resulta, como pretende fazer crer o executado/embargante, que as partes tenham acordado a realização de uma perícia, nos termos estabelecidos no Código de Processo Civil.

27. Ou muito menos que o relatório de avaliação a apresentar teria de ser subscrito por todos os três peritos.

28. Ou quaisquer regras destinadas à sua substituição ou tendentes a suprir eventuais faltas de colaboração nos trabalhos por parte de um dos intervenientes.

29. Salvo melhor opinião, das declarações negociais das partes – avaliação por um colégio de peritos, composto por 3 elementos que decide por maioria – resulta a instituição de um órgão colegial independente.

30. Órgão este que tem por missão realizar uma avaliação à empresa.

31. E órgão este que decide por maioria.

32. Ora, como em qualquer outro órgão colegial, público ou privado, como sejam os órgãos colegiais de sociedades comerciais, de uma associação, fundação e até de um condomínio, as decisões são tomadas pela maioria dos seus membros presentes.

33. Conquanto estejam presentes, pelo menos, metade dos seus membros.

34. Ora, no caso em apreço, o órgão colegial instituído pelas partes para o objetivo de realização de uma avaliação à sociedade decidiu por maioria dos seus membros presentes, estando presentes 2/3 dos seus membros.

35. Pelo que a sua decisão é plenamente válida e tomada de acordo com o estabelecido pelas partes para o efeito.

36. Assim sendo, como é, verificou-se a primeira das condições – avaliação da sociedade por colégio de peritos – destinada à venda da quota do embargante na sociedade embargada à própria embargada.

37. Verificando-se também a segunda das condições – a realização de uma assembleia geral para formalização da cessão da quota do embargante na sociedade embargada à própria embargada – conforme resulta, desde logo, dos factos dados como provados nos pontos 5 e 6 da sentença ora recorrida»

 
10. Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do/a recorrente (artigos 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir, é a de saber qual o sentido juridicamente relevante das cláusulas da transação dada à execução, nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, sobre os termos da avaliação da sociedade, através de um colégio de peritos, para o efeito de determinação do valor da quota social a ceder.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

 

 

II – Fundamentação

A - A matéria de facto é a seguinte:

 

1. “AA, Lda, S.A.”, em 02.10.2017, intentou ação executiva contra BB, que corre termos neste juízo sob o n.º 1494/17.0T8MMN, para prestação de facto;

2. A exequente deu à execução a sentença proferida no âmbito do processo ordinário de Anulação de Deliberações Sociais n.º 465/11.5TBMMN, que correu termos na anteriormente denominada secção de competência genérica, J2, da Instância Local de Montemor-o-Novo do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, na qual figura como autor BB e como ré “AA, Lda”, junta aos autos principais com o requerimento executivo, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, que possui os seguintes dizeres relevantes para os presentes autos:

“Na presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, que o autor BB intentou contra “AA, Lda”, vieram as partes transigir sobre o objecto do presente litígio.

«Atenta a qualidade dos intervenientes da transacção e, considerando que a matéria objecto dos presentes autos está na disponibilidade das partes, julgo válida e legal a transacção que antecede, que homologo por sentença, condenando as partes a cumpri-la nos seus precisos termos, atento o disposto nos artigos (…)”;

3. A transação mencionada em 2., junta aos autos principais com o requerimento executivo, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, reza o seguinte com relevo para os autos:

 “(…)

«3 – O autor cede a sua quota na ré, a quem esta indicar, pelo valor real da mesma à data de 26 de Maio de 2011, cujo valor nominal era de €137.393,75, e que correspondia a 25% do capital social àquela data.

«4 – Para determinação do supra valor real da quota, as partes acordam a realização de uma avaliação à sociedade por um colégio de peritos.

«5 – O colégio de peritos será constituído por um perito indicado pelo autor, um perito indicado pela ré e um terceiro indicado pelos peritos designados pelas partes. A indicação do perito do autor e da ré será feita no prazo de 5 dias.

«6 – As partes obrigam-se a aceitar o valor de avaliação.

«7 – O colégio de peritos deliberará por maioria.

«8 – O colégio de peritos terá um prazo de 3 meses para realizar a avaliação a contar da data da escolha do 3.º perito.

«9 – A ré obriga-se a facultar aos peritos, em tempo oportuno, todos os elementos e informações que estes lhe solicitarem para a realização da perícia.

«10 – No mês seguinte ao da entrega do relatório da avaliação, as partes acordam em promover uma assembleia geral extraordinária para formalização da cessão de quotas.

«11 – Caso o valor da quota do autor resultante da avaliação seja inferior às quantias já entregues pela sociedade ao autor por conta dessa quota, nada será devido pelo autor à ré, seja por conta da cessão, seja a qualquer outro título.

«12 – Caso o valor da quota do autor resultante da avaliação seja superior às quantias já entregues pela sociedade ao autor por conta dessa quota, a ré pagará o excedente no prazo de 3 anos, em prestações mensais e sucessivas, de igual montante, com início no mês seguinte à assembleia prevista no ponto 10. (…)»;

4. A exequente deu ainda à execução um relatório pericial elaborado na sequência do acordo mencionado em 3., em 01.02.2017, subscrito por CC, na qualidade de perito independente, e DD, na qualidade de perito da aqui exequente, junto aos autos principais cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais e do qual consta o seguinte com relevo para os autos:

 “(…)

Avaliação:

Deste modo, aplicando o método, o valor de avaliação da empresa é o seguinte:

Valor dos capitais próprios na contabilidade em 28.052011 de 683 399,05 euros

Valor do ajustamento aos capitais próprios: 235 000 euros.

Valor da empresa:448 399,05 euros

Outros dados

Percentagem de capital detida pelo autor: 25%

Montante atribuído ao Autor na Avaliação:112 099,80 euros

Montante à data actual relevado na contabilidade da ré como saldo entregue ao sócio Autor do processo: 233 536,25 euros

(…)”;

5. A exequente juntou ainda ao requerimento executivo a acta n.º 93 referente à Assembleia Geral Extraordinária realizada pela exequente no dia 14.03.2017, que teve como ordem de trabalhos “Deliberar sobre uma proposta da gerência de aquisição como quota própria da quota do sócio Sr. BB em cumprimento do acordo de transacção judicial homologado por sentença nos autos que correram termos na secção de competência genérica – J2 da Instância Local de Montemor-o-Novo da Comarca de Évora sob o n.º 465/11.5TBMMN”, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais;

6. Na assembleia mencionada em 5., o executado apresenta uma declaração de voto no seguinte sentido: “(…) a deliberação da sociedade de adquirir a quota do sócio Sr. BB pelo valor da referida avaliação que não é válida, não pode produzir qualquer efeito, nem a mesma consubstancia qualquer negócio, designadamente, o da cessão da quota de que é titular o referido sócio, que expressamente declara não ceder a quota nas condições deliberadas (…)”;

7. No âmbito do acordo mencionado em 3., a exequente designou como perito DD; 

8. O executado designou EE;

9. Os peritos designados pelas partes reuniram-se no dia 14.11.2016, pelas 10h00, para procederem à escolha do terceiro perito;

10. Nessa reunião acordaram a colocação, por cada um deles, de 2 nomes de possíveis peritos, num total de 4, em papéis dobrados, num pote, sendo o terceiro perito escolhido aleatoriamente de entre os 4 sugeridos;

11. Coube a EE a escolha do papel sorteado;

12. Tendo escolhido o papel que continha o nome CC, um dos peritos indicados por DD;

13. A partir deste momento, nem DD nem CC conseguiram contactar EE, que não respondeu a quaisquer e-mails ou telefonemas que lhe foram dirigidos;

                        4. No dia 17.01.2017, CC enviou comunicação por correio eletrónico para ambas as partes, DD e EE, junto aos autos a fls. 12, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, do qual consta o seguinte com relevo para os autos: “(…) Sugiro o próximo dia 1 de fevereiro as 10h00 nas instalações do Dr. DD com o objectivo de elaborar o relatório de perícia solicitado (…);

15. Nesse mesmo dia, o executado responde à comunicação mencionada em 10. nos termos vertidos a fls. 12, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

II – Questão de direito

1. No caso vertente, autor e ré celebraram, no âmbito do processo nº 465/11.5TBMMN, um acordo de transação judicial homologado por sentença, relativo à determinação do valor da quota do autor, agora executado, para o efeito de a ceder à sociedade ré. Para determinação do valor real da quota, as partes acordaram a realização de uma avaliação à sociedade por um colégio de peritos, constituído por um perito indicado pelo autor, um perito indicado pela ré e um terceiro indicado pelos peritos designados pelas partes. 

Segundo a matéria de facto provada (facto n.º 3), a transação, junta aos autos principais com o requerimento executivo, afirma o seguinte com relevo para os autos:

 “(…)

«3 – O autor cede a sua quota na ré, a quem esta indicar, pelo valor real da mesma à data de 26 de Maio de 2011, cujo valor nominal era de €137.393,75, e que correspondia a 25% do capital social àquela data.

«4 – Para determinação do supra valor real da quota, as partes acordam a realização de uma avaliação à sociedade por um colégio de peritos.

«5 – O colégio de peritos será constituído por um perito indicado pelo autor, um perito indicado pela ré e um terceiro indicado pelos peritos designados pelas partes. A indicação do perito do autor e da ré será feita no prazo de 5 dias.

«6 – As partes obrigam-se a aceitar o valor de avaliação.

«7 – O colégio de peritos deliberará por maioria.

«8 – O colégio de peritos terá um prazo de 3 meses para realizar a avaliação a contar da data da escolha do 3.º perito.

«9 – A ré obriga-se a facultar aos peritos, em tempo oportuno, todos os elementos e informações que estes lhe solicitarem para a realização da perícia.

«10 – No mês seguinte ao da entrega do relatório da avaliação, as partes acordam em promover uma assembleia geral extraordinária para formalização da cessão de quotas.

«11 – Caso o valor da quota do autor resultante da avaliação seja inferior às quantias já entregues pela sociedade ao autor por conta dessa quota, nada será devido pelo autor à ré, seja por conta da cessão, seja a qualquer outro título.

«12 – Caso o valor da quota do autor resultante da avaliação seja superior às quantias já entregues pela sociedade ao autor por conta dessa quota, a ré pagará o excedente no prazo de 3 anos, em prestações mensais e sucessivas, de igual montante, com início no mês seguinte à assembleia prevista no ponto 10. (…)».

Sucedeu que o perito designado pelo autor, agora recorrente, não compareceu à avaliação, tendo esta sido elaborada, contrariamente ao estipulado na transação, apenas por dois peritos, um perito designado pelos peritos das partes e um perito indicado pela sociedade.

O tribunal de 1.ª instância julgou procedentes os embargos, nos termos do artigo 715.º, n.º 1, do CPC, decidindo que a execução não podia prosseguir porque faltava exequibilidade ao título, por entender que não estavam verificadas as duas condições acordadas pelas partes na transação:1) relatório de avaliação elaborado e aprovado nos termos da transação alcançada (avaliação da sociedade por um colégio de três peritos); 2) ata de assembleia geral extraordinária a realizar após a obtenção de relatório pericial válido. Concluiu, assim, que o princípio da autonomia privada impunha a realização de nova perícia nos termos previstos nas cláusulas da transação, para que a condição posta pelo autor para ceder a sua quota à sociedade fosse integralmente respeitada.

Já o Tribunal da Relação de Évora, pelo contrário, destaca a finalidade principal da transação como um ato destinado a pôr fim a um conflito de interesses mediante concessões recíprocas (artigo 1248.º do Código Civil) e entende, diferentemente do tribunal de 1.ª instância, que o acordo das partes conforme definido na transação foi respeitado, pois estamos perante uma cessão da quota social de um sócio à sociedade, por um valor fixado por um colégio de peritos, que decidiu por maioria de 2/3. A circunstância de o perito indicado pelo sócio ter manifestado uma conduta irregular, e não ter participado na realização da perícia nem subscrito o relatório, não altera, segundo o tribunal recorrido, os dados do problema, pois o relatório foi aprovado pela maioria dos peritos, e, aplicando as regras comuns das deliberações dos órgãos colegiais, resulta que basta que exista um quórum deliberativo, que não tem de coincidir com o número total de membros do órgão, para que a deliberação, aprovada pela maioria (dois peritos), seja válida. Neste quadro, o tribunal recorrido equipara a ausência do perito indicado pelo sócio a um voto de discordância, insuscetível de invalidar a avaliação da sociedade feita pelos dois peritos, válida por aplicação da regra da maioria.
 

O recorrente defende que as cláusulas da transação, interpretadas de acordo com os critérios do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, desde logo o seu elemento literal (mas não só: também as circunstâncias de tempo e lugar, e as normas legais relativas à prova pericial, a finalidade e os interesses em jogo), assumem o significado de que uma das condições de validade do relatório pericial sobre a avaliação da sociedade é que ele seja elaborado por um colégio de peritos constituído por três elementos, para que os interesses de ambas as partes estejam representados e para garantir a imparcialidade da avaliação e o justo valor da quota a ceder.

A sociedade recorrida, por seu turno, entende que o acórdão recorrido decidiu de forma correta, na medida em que resulta das declarações negociais das partes a instituição de um órgão colegial independente, com a missão de realizar uma avaliação à empresa e de decidir por maioria, sendo válido o relatório elaborado e aprovado por dois peritos, na medida em que estavam presentes 2/3 dos membros.

Quid iuris?

2. Em primeiro lugar, urge questionar se a questão colocada consiste numa questão de direito cognoscível por este Supremo Tribunal.

A transação é um contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (artigo 1248.º, n.º 1, do Código Civil). O facto de ter sido feita no âmbito de um processo judicial e homologada pelo tribunal não lhe retira a sua natureza contratual. Considerada como contrato, a transação está sujeita à disciplina dos contratos (artigos 405.º e ss) e ao regime geral dos negócios jurídicos (artigos 217.º e ss). Trata-se de um contrato oneroso, dado o carácter sinalagmático e correspetivo das concessões recíprocas, cujo fim é prevenir ou terminar um litígio.

De acordo com a jurisprudência dominante, a interpretação das declarações negociais, segundo os critérios do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, é uma questão de direito.

Veja-se, por exemplo, entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 22-11-2012 (proc. n.º 1758/10.4TBVLG-A.P1.S1), em cujo sumário se afirma o seguinte:

«I -Constitui jurisprudência firme deste Supremo Tribunal que não cabe nos seus poderes de cognição, por isso afastada se encontra do objecto do recurso de Revista, a fixação do sentido real da vontade das partes constituindo esta matéria de facto.

II - Todavia, já se encontra dentro do âmbito de competência cognitiva deste Órgão, verificar se foram ou não observados os parâmetros legais condicionantes da função interpretativa da declaração negocial que é cometida ao Tribunal, na sua função jurisdicional de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, de harmonia com o preceituado no artigo 664º do CPCivil.

III - Sendo a cessão de quotas um negócio formal, uma vez que deve ser obrigatoriamente reduzida a escrito, como resulta do nº1 do artigo 228º do CSComerciais, a sobredita interpretação deverá ser efectuada com recurso aos normativos insertos nos artigo 236º a 238º do CCivil, nomeadamente a que decorre do nº1 deste último dispositivo que impõe que a declaração não pode valer «(…)com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.»

IV - Se do texto do documento denominado «contrato», que foi dado à execução como título executivo, constar expressis verbis, das suas cláusulas que na situação de não cumprimento da obrigação de pagamento de uma determinada quantia por parte do segundo outorgante este se obriga a ceder a sua quota ao primeiro e que se o terceiro e o quarto outorgantes dão o seu consentimento a esta cessão de quotas, apurando-se que a cessão de quota efectuada pelo aqui Recorrente/Executado, a favor do Recorrido/Exequente, se destinou a satisfazer o remanescente do empréstimo que aquele titulo executivo consubstancia, conjugando esta materialidade e fazendo-lhe aplicar aqueles mencionados critérios interpretativos, dúvidas não sobejam de que o credor, aqui Exequente/Recorrido deu o seu expresso assentimento a uma eventual dação em cumprimento, pois é este o único sentido que se poderá retirar do teor daquela cláusula décima terceira, soçobrando as razões que ex adverso se esgrimem no Acórdão recorrido, nomeadamente de que falhou a vontade daquele no acordo escrito que serviu de base à execução».

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem poderes para intervir e sindicar a interpretação de declarações negociais no que diz respeito à apreciação da observância dos critérios legalmente definidos, constantes do artigo 236.º do Código Civil, apenas a averiguação da vontade real dos declarantes se situa no domínio da matéria de facto, fora portanto do âmbito do recurso de revista (assim, por exemplo, entre outros, cfr. os acórdãos de 16-04-2009, Proc. n.º 08B2346; de 04-11-2010, Proc. n.º2916/05; , de 25 de Março de 2010, Proc. n.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1;  de 03-02-2011, Proc. n.º 6041/05.4TVLSB e de 14-06-2011, Proc. n.º 3222/05.4TBVCT; de 29-04-2014, Proc. n.º 2566/07.5TVLSB.L1; de 09-09-2014, Proc. n.º   5146/10.4TBCSC.L1.S1).

3. A transação, embora seja um ato homologado por sentença judicial, não deixa de ter subjacente um acordo entre as partes, expressão do princípio da autonomia privada e do direito dos sujeitos à auto-regulação dos seus interesses, estando as suas cláusulas sujeitas aos princípios e critérios de interpretação das declarações negociais, fixados no artigo 236.º do Código Civil, que aderiu à chamada tese da «impressão do declaratário normal».

A doutrina concebe a interpretação como uma operação jurídico-valorativa sujeita ao princípio da boa fé (cfr., por todos, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, t. 1, 3.ª ed., 2005, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 759 e 761). Objeto da interpretação é a declaração ou o comportamento declarativo. O seu teor ou expressão é, pois, o ponto de partida. Todavia há que atender, para apurar o sentido juridicamente relevante, à consideração de outros elementos ou circunstâncias, designadamente ao contexto das declarações e à sua finalidade.

A regra estabelecida no n.º 1 do artigo 236.º é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído, diligente e de boa fé, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Consagra-se uma doutrina objetivista – a teoria da impressão do declaratário – com duas exceções de natureza subjetivista: os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (artigo 236.º, n.º 1, 2.ª parte), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (artigo 236.º, n.º 2).

“A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante” (cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 223).

“Além de ser um acto determinante (meio de auto-determinação), a declaração é, também, porém, um acto social de comunicação, que tem de ter relação com aquele a quem se destina ou o conhece” (cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 442). Em consequência, “A autonomia privada tem, assim, de ser temperada com o princípio da tutela da confiança: o Direito atribui-lhe determinados efeitos na medida em que ela se combine com esta. Ao contrário, no entanto, das construções conceptuais, entende-se hoje que a confiança não se opõe à autonomia privada, delimitando-a: ambos os princípios se articulam entre si para, mutuamente, se tornarem aplicáveis.” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 754). A interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado” (ibidem, p. 755).

O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. Serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efetivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, a doutrina refere os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou negócio concluído (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pp. 446-447).

Em síntese, os critérios que presidem à interpretação da declaração negocial são os seguintes: 
«(1) o contexto negocial em que a declaração aparece; (ii) eventuais antecedentes próximos ou elementos preparatórios; (iii) o ambiente ou contexto externo, de facto e jurídico, em que a declaração é emitida; (iv) a finalidade da declaração (ou negócio); (v) o tipo de negócio em causa, bem como os valores e interesses em jogo; (vi) a anterior e subsequente prática negocial entre declarante e declaratário, se existir; (vii) o modo como a declaração ou o negócio em que se integra vem sendo executado» (cf. Evaristo Mendes/Fernando Sá, “Anotação ao artigo 236.º”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 538).

4. A fim de descrever o contexto das cláusulas, cuja interpretação se discute, importa ter em conta que as cláusulas a interpretar se inserem num ato de transação, praticado dentro de um processo judicial (proc. n.º 465/11.5TBMMN), interposto pelo agora recorrente contra a sociedade aqui recorrida. Nesta ação, as partes chegaram a um acordo cujos termos constam da transação homologada pela sentença dada à execução.

Decorre da citada transação que o Recorrente se obrigou a ceder a quota de que era titular na sociedade Exequente, a quem esta indicar, pelo valor real da mesma à data de 26 de Maio de 2011, cujo valor nominal era de 137.393,75€, e que correspondia a 25% do capital social àquela data (ponto 3. da transação).

Como resulta dos termos da transação em referência, a cessão da quota a que a Recorrente se obrigou ficou dependente da verificação das seguintes condições:
1 - da determinação do valor real da quota através da avaliação da sociedade por um colégio de peritos, que delibera por maioria, constituído por um perito indicado por cada uma das partes, e um terceiro indicado pelos peritos designados pelas partes ;
2 - da realização da assembleia geral da sociedade onde se formalize a cessão da quota com base no relatório de avaliação elaborado pelos peritos.

O que está em causa no presente processo é apurar se, pelo facto da avaliação da sociedade ter sido realizada apenas por dois peritos se deve ou não considerar verificada a condição estabelecida pelas partes na transação realizada no âmbito do processo n.º 465/11.5TBMMN.

A questão prende-se assim com a interpretação a fazer do clausulado da transação dada à execução, com o objetivo de fixar o seu sentido juridicamente relevante, no que diz respeito à natureza e tipo da avaliação aí prevista e aos ditames a que a mesma deve obedecer.

Ora, tendo em conta o elemento literal ou gramatical, ponto de partida da interpretação, a avaliação da sociedade deve ser elaborada por um colégio de três peritos, um indicado pela sociedade, outro pelo sócio e um terceiro (cláusula 5). Para um declaratário normal, esta exigência justifica-se pela necessidade de acautelar o interesse de cada uma das partes, ou seja, que nenhuma delas, nem a sociedade, nem o sócio, sejam prejudicados ou beneficiados na avaliação. Visa garantir-se a imparcialidade da perícia e o equilíbrio da solução que vier a ser encontrada. Sendo o relatório de avaliação da sociedade o elemento decisivo para apurar o valor da quota, que corresponde a 25% do capital social, deve entender-se que o declaratário normal perceciona o sentido das cláusulas da transação do seguinte modo: o relatório de avaliação apenas será válido se os interesses de ambas as partes receberem idêntica representação e se os peritos indicados por cada uma das partes estiverem presentes na elaboração do relatório, tendo cada um deles a oportunidade de esgrimir os seus argumentos para que a avaliação seja o resultado de uma troca de opiniões e pontos de vista entre eles e de cedências recíprocas, para atingir uma avaliação justa e equilibrada para os interesses de ambos. Ora, se o perito de uma das partes esteve ausente, tem de se concluir que o relatório não refletiu os interesses dessa parte, neste caso, do autor, agora recorrente, cujo perito teria tido a oportunidade de contrapor dados, opiniões e ponderações distintos daqueles invocados pelo perito da sociedade e pelo terceiro. Sendo o objetivo da composição do colégio de peritos obter uma garantia de imparcialidade e de igualdade entre as partes, o facto de a transação estipular a regra da maioria não pode significar que a avaliação possa ser efetuada sem a intervenção de um dos peritos, uma vez que a falta de qualquer deles contraria o objetivo da perícia, comprometendo ou pondo em risco uma avaliação equilibrada, que pondere igualmente os interesses em conflito.

Embora não resulte expressamente das cláusulas da transacção que as partes tenham acordado a realização de uma perícia, nos termos estabelecidos no Código de Processo Civil, nem que o relatório de avaliação tivesse de ser subscrito pelos três peritos, ou regras destinadas à substituição de um perito ausente, é certo que o regime jurídico mais compatível com o contexto e finalidade da transação é o regime da perícia colegial previsto no Código de Processo Civil (CPC). Este regime está consagrado no artigo 468.º do CPC que prevê a perícia colegial, que delibera por maioria dos seus membros. A perícia colegial é a que melhor se ajusta à complexidade da matéria e à multidisciplinaridade dos conhecimentos técnicos exigidos, bem como à contraposição dos interesses das partes. Este colégio de peritos não pode funcionar sem a plenitude dos seus membros, pois entende a lei que a intervenção de todos os peritos é uma condição necessária ao equilíbrio e justiça da solução proposta. A perícia colegial oferece, portanto, maiores garantias de isenção contra potenciais simpatias ou inclinações dos peritos em favor da tese de algum dos litigantes. A lei preocupa-se com a imparcialidade dos peritos na medida em que prevê um regime de impedimentos, suspeições, escusa e dispensa legal (artigos 470.º e 471.º do CPC).

No caso vertente, apenas tiveram intervenção na realização da perícia o perito designado pela sociedade e o terceiro perito. A circunstância de o perito escolhido pelo recorrente não ter tido qualquer intervenção na perícia compromete, só por si, a imparcialidade da perícia e permite duvidar que tenha sido atingido um resultado equitativo, não por falta de idoneidade e de isenção dos peritos que a elaboraram, mas por não se poder afirmar terem sido ponderados os pontos de vista e as opiniões do perito do sócio, agora recorrente.

A omissão, no acordo subjacente à transação, de soluções para o caso de ausência de um perito, tem de ser suprida de acordo com os ditames da boa fé, conforme o estipulado no artigo 239.º do Código Civil, o que não poderá deixar de ser, dada a necessidade de estabelecer uma justa composição dos interesses das partes em litígio e de respeitar a finalidade da transação, o dever de a sociedade ou os restantes peritos informarem a parte da falta do perito por si designado e de a questionarem sobre se pretende que, não obstante a ausência do perito, a perícia seja realizada apenas com dois peritos, ou se pretende nomear outro perito para substituir o ausente. Esta solução seria também exigida pelo princípio da boa fé na execução dos contratos, consagrado no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, que impõe um cumprimento, não meramente formal, mas também material, da obrigação, e um conjunto de deveres acessórios de informação, cooperação e cuidado com os interesses do outro contraente.

Assim, não tendo sido feitas estas diligências, e tendo o relatório sido elaborado apenas por dois peritos, este não pode ser válido e servir de base à fixação do valor da quota do embargante nem à execução da transação. 

Em face das circunstância do caso – acordo efetuado no âmbito de uma ação judicial em curso, na fase de discussão e julgamento – é forçoso concluir que a correta interpretação das cláusulas negociais constantes da transação dada à execução, nos moldes previstos no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, é a que foi acolhida na sentença de 1.ª instância, que entende que o relatório junto aos autos, elaborado pelo perito da sociedade e pelo terceiro não satisfaz a condição aposta na transação para a cessão de quotas. Sendo assim, das cláusulas da transação, tal como elas se afiguram a um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, resulta um sentido normativo segundo o qual cada uma das partes deve poder intervir, em pé de igualdade, na fixação do justo valor da quota a ceder, através da participação efetiva, e não meramente potencial, na realização da perícia. Dado o conflito judicial pré-existente, seria impensável que alguma das partes tivesse aceitado uma cláusula que significasse que a avaliação da sociedade podia ser feita, aprovada e tornada vinculativa, sem a participação do perito por si nomeado. A existência de um conflito judicial permite esclarecer que o sentido juridicamente relevante das cláusulas da transação, neste contexto, não pode deixar de ser o de que a condição para a execução da transação só está preenchida com a participação efetiva dos três peritos na realização da perícia, ainda que depois o relatório venha a ser aprovado por maioria com um voto discordante aposto por um dos peritos.

Verifica-se assim que o regime jurídico que melhor realiza a vontade das partes é o da prova pericial, consagrado nos artigos 467.º e seguintes do CPC, designadamente o artigo 468.º, n.º 1, que se refere ao funcionamento colegial e interdisciplinar da perícia, o artigo 481.º, que prevê os meios à disposição dos peritos para o bom desempenho da sua função, e o artigo 484.º, relativo ao relatório pericial.

O sentido, decorrente das cláusulas da transação, não consiste apenas na resolução do conflito a todo o custo, mas na resolução do conflito de uma forma justa e equilibrada, que, tanto quanto possível garanta a imparcialidade da solução encontrada, resultado apenas atingível se a participação dos três peritos na avaliação for efetiva e se esta for o resultado de um encontro de pontos de vista que, podendo ser divergentes, acabam por se conciliar num resultado comum ou num ponto de equilíbrio suscetível de satisfazer os interesses de ambas as partes. Mesmo que viesse a existir um voto divergente em relação à maioria, o perito discordante teria tido, de qualquer forma, oportunidade de explicar o seu ponto de vista, de solicitar a realização de diligências ou a prestação de esclarecimentos, e de defender as suas posições perante os outros peritos, o que não sucede se o perito estiver ausente e não participar na reunião.

Conclui-se, portanto, que, nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, segundo a interpretação das cláusulas da transação dada à execução, de acordo com a teoria da impressão do declaratário, não pode considerar-se verificada a condição estabelecida pelas partes na transação realizada no âmbito do processo n.º 465/11.5TBMMN, pelo facto de a avaliação da sociedade ter sido realizada apenas por dois peritos, sem a participação do perito designado pelo recorrente.

Não sendo o relatório junto aos autos válido, não é possível executar a obrigação do recorrente, por esta não ser ainda certa, exigível e líquida, nos termos do artigo 713.º do CPC.

5. Decide-se, portanto, tal como a sentença de 1.ª instância, que não se encontram verificadas as condições de que depende a exigibilidade da obrigação do recorrente, nomeadamente não está ainda determinado o valor da quota a ceder à sociedade, não podendo a execução prosseguir por falta de exequibilidade do título, nos termos do artigo 715.º, n.º 1, do CPC.

III – Decisão

Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença do tribunal de 1.ª instância.

Custas pela recorrida.


Lisboa, 12 de novembro de 2019

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Alexandre Reis

Pedro de Lima Gonçalves