Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
142/17.3JBLSB-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: PRISÃO ILEGAL
PRISÃO PREVENTIVA
FORTES INDÍCIOS
INDÍCIOS SUFICIENTES
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 08/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / / MEDIDAS DE COACÇÃO / MEDIDAS ADMISSÍVEIS / PRISÃO PREVENTIVA – FASES PRELIMINARES / INQUÉRITO / ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / HABEAS CORPUS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de Novembro de 1966, na apresentação do Projecto do Código Civil, BMJ 161, p. 21;
- Henriques Gaspar et all., Código de Processo Penal Comentado, 2.ª Edição, p. 817;
- Jorge Silveira, O Conceito de Indícios no Processo Penal Português, in
- Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, p. 1270;
www.odireitoonline.com.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 202.º, N.º 1, ALÍNEAS A), B), C), D) E E) E 283.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º, N.º 1.
Sumário :
I - A perspectiva do requerente é esta: há prisão ilegal motivada por facto que a lei não permite porque o art. 202.º CPP apenas prevê a imposição da medida de coacção de prisão preventiva se houver fortes indícios da prática dos crimes elencados nas als. a) a e) do seu nº 1 e o despacho que aplicou essa medida de coacção apenas se refere a indícios suficientes ou a factos suficientemente indiciados.
II - Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção da prisão preventiva, se alude, como no art. 202.º, n.º 1, als. a) a e) a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.
III - Sendo diferente o contexto probatório em relação ao (primeiro) momento da aplicação da medida de coacção e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art. 202.º e o de «indícios suficientes» explicitado no art. 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.
IV - Mas aferida essa idoneidade pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas. “Fortes indícios” tendo em conta que a medida de coacção é fixada ainda numa fase de aquisição da prova configurando-se esse conceito como uma exigência de que ela não se apoie numa débil consistência probatória mas antes em elementos probatórios já de solidez suficiente embora porventura não bastantes ainda para deduzir uma acusação. “Indícios suficientes” no sentido em que, finda essa fase de investigação e aquisição da prova eles terão então de possuir, força necessária e solidez vincada, para deles resultar uma possibilidade razoável de em julgamento ser aplicada uma pena ao arguido.
V - Esta é, crê-se, a interpretação que confere ao sistema a integridade e coerência adequadas pois, como ensinou Antunes Varela a lei não deve «rebaixar-se à categoria de simples artigo pronto a ser digerido segundo as várias necessidades fisiológicas do organismo social».
Decisão Texto Integral:

01. –AA, arguido no inquérito nº 142/17.3JBLSB, actualmente em prisão preventiva, veio requerer a providência de habeas corpus «nos termos do artigo 222º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal» com o seguinte fundamento (transcrição):

Ao peticionante foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva no dia 17-8-2018.

No decurso do 1º interrogatório judicial de arguido detido, o MP promoveu que os factos fossem considerados como fortemente indiciados;

Contudo, o mm juiz de direito assim não considerou;

Percorrendo todo o despacho judicial, logo se conclui da sua fundamentação, que o tribunal entendeu que os indícios eram apenas suficientes, como se fez constar nas seguintes passagens:
· A globalidade dos elementos probatórios constantes dos autos nesta fase processual permitem inferir que AA se encontra suficientemente indiciado ...;
· Com efeito, os elementos de prova permitem, neste momento, revelar suficientes indícios ...;
· Resulta igualmente, suficientemente seguro...;

5º  Nunca o tribunal no seu despacho fez uma apreciação que fosse ao encontro do promovido pelo MP, isto é, que os factos que vinham imputados ao arguido no despacho de apresentação, fossem considerados como fortemente indiciados;

Resulta assim evidente que ao ora peticionante foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, não obstante não terem ficado fortemente indiciados os factos imputados;

É certo que no despacho se faz alusão às alíneas a) e b) do artigo 202º do CPP, mas, nunca, na fundamentação, o tribunal faz uma apreciação crítica da prova ou dos factos no sentido de que estes tenham sido considerados como fortemente indiciados;

Claramente, o Tribunal não aceitou o juízo indiciário promovido pelo MP pois não considerou que existiam fortes indícios da prática dos crimes que determinaram a imposição da medida de coação de prisão preventiva;

Acrescente-se, ainda, que o MP, depois de proferido o despacho que aplicou a medida, requereu a sua alteração, para passar a constar os indícios como fortes, o que foi rejeitado pelo tribunal e o despacho mantido;

Verificada a impossibilidade legal de aplicação da prisão preventiva do peticionante, a mesma é ilegal.

                                                     *

2. – A informação a que se refere o art. 223, nº 1 CPP (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem) é a seguinte (transcrição):

Nos termos do artigo 223.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, informa-se que o arguido AA encontra-se preso preventivamente desde o dia 17/8/2018, à ordem dos presentes autos, na sequência de submissão a 1.° interrogatório judicial de arguido detido, cujo respectivo auto consta de fls. 827 a 840.

A prévia detenção do arguido teve por base um mandado de detenção europeu.

O que me cumpre informar, aditando-se apenas que a situação de prisão preventiva se mantém na presente data.

                                                              *

3. – Para o que à matéria em apreciação diz respeito resulta que na sequência do primeiro interrogatório de arguido detido e na oportunidade devida a magistrada do Ministério Público consignou no respectivo auto o seguinte (transcrição):

Promovo que se julgue válida a detenção do arguido porque a coberto de Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo Ministério Público ao abrigo do disposto na Lei n.° 65/2003, de 23/08, tendo sido respeitado o disposto nos art°s 254°, 257° e 258°, do CPP, incluindo os prazos aí previstos para apresentação do arguido a este JIC

                                                                                  **

O arguidoAA encontra-se fortemente indiciado pela prática de um crime de rapto, um crime de extorsão tentada, e um crime de roubo agravado.

                                                                                  **

Da prova produzida e junta aos autos, resultam os factos melhor descritos no auto de apresentação de detido de onde ressalta o arguido, juntamente com outro denunciado, após monitorizarem as rotinas da ofendida durante os dias que precederam os factos com vista à execução do plano que viriam a delinear e executar, junto à residência da mesma e quando estavam a entrar na sua viatura da mesma, agarraram a ofendida, e empurraram-na para o interior da viatura de marca Seat, modelo Alhambra, que previamente tinha alugado para o efeito. Colocaram braçadeiras de plástico nos braços da ofendida, que ficaram presos à frente do corpo, enfiaram-lhe um gorro de lã na cabeça, envolveram o mesmo com fita adesiva e empurraram a ofendida para o chão da viatura, onde a mesma permaneceu. Os denunciados transportaram a ofendida para uma residência previamente alugada em Galamares e exigiram a entrega de dinheiro, nomeadamente 200 mil euros, ao mesmo tempo que lhe batiam na cabeça e lhe picavam as costas com um objeto pontiagudo. Os arguidos viriam ainda, mediante o uso da violência, apropriarem-se de vários objetos de valor pertencentes à ofendida, os quais totalizam valor elevado.

                                                                                  **

Os fortes indícios da prática pelo arguido dos factos descritos resulta dos elementos recolhidos pela investigação, quer pela prova testemunhal, quer peia prova pericial, conjugada de igual forma pela documentação junto aos autos.

Na sequência da posição assim expressa veio a ser proferido despacho pelo Sr. juiz de instrução que, na parte pertinente, é do seguinte teor (transcrição):

AA foi apresentado atendendo aos indícios da prática, em co-autoria, de um crime de rapto, previsto e punido pelo artigo 161 °, n.° 1, alínea c), do Código Penal, um crime de extorsão na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 223 °, n.°s 1 e 3, alínea a), 204.°, n.° 2, alínea f), 22.° e 23.° do código Penal; e um crime de roubo, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 210.°, n.°s 1 e 2, por referência ao artigo 204°, n.° 1, alíneas a) e d), do Código Penal.

A globalidade dos elementos probatórios constantes dos autos nesta fase processual permitem inferir que AA se encontra suficientemente indiciado peia prática, em co-autoria, da referida factualidade, a qual aqui se considera integral e legalmente aqui produzida.

Com efeitos, os elementos de prova permitem, neste momento, revelar suficientes indícios de que, no período temporal em causa, AA esteve em Portugal (cfr., entre outras, a documentação que integra o apenso 8); hospedou-se no Hotel ....sito em .... (cfr., entre outros, fls. 154-161, 162-171, bem como a contracapa do 1.° volume dos autos); como ainda interveio no aluguer do veículo Seat Alhambra com a matrícula 00-00-00, e fez-se transportar no mesmo (cfr., entre outros, o teor de fls. 70-74, 77, 78, 81-87, 88-90).

Resulta igualmente suficiente seguro de que AA, pelo recurso ao referido Seat, deslocou-se às imediações e à parte interior da parte do condomínio Beloura, no qual residia a ofendida.

Neste mesmo encalce, na casa sita em Calamares foi encontrado pertence da ofendida.

A natureza e as circunstâncias dos crimes em causa revelam, sem sombra de dúvida, perigo de que AA continue a actividade criminosa, bem como perturbe o inquérito, no que respeita, especialmente, à aquisição e à veracidade da prova (artigo 204 °, alíneas b) e c), do CPP).

Tendo sempre presente os elementos factuais indiciados mostra-se essencial a aplicação de medida de coacção a AA, atendendo aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade respeitante à forte gravidade de tais factos (artigo 193° do CPP).

É, assim, evidente inexistir outra medida de coacção que não a prisão preventiva, a qual se apresenta como a única adequada a neutralizar os acima referidos perigos (artigo 202.°, n.° 1, alíneas a) e b), do CPP).

Face ao exposto, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 193.°, 194.°, 196.°, 202.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 204.°, alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal, determino que o arguidoAA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva, para além do termo de identidade e residência já prestado.

Após a prolação do despacho, tal como consta da acta, «foi pedida a palavra pela magistrada do Ministério Público solicitando um esclarecimento o qual ficou gravado no sistema informático».

Esta prática incorrecta tornou necessário proceder à audição do registo sonoro da diligência – face ao que consta do ponto 9º da petição – constando-se que a magistrada do Ministério Público solicitou a alteração do despacho em virtude de nele se fazer referência a «unicamente» a «indícios suficientes» e a «fortes indícios» o que na sua perspectiva poderia «colocar em causa a decisão em sede de recurso».

O Sr. juiz de instrução declarou em seguida que com a citação das normas aplicáveis o despacho estava «perfeito». Na sequência do que na acta ficou consignado «Mantém-se o despacho anteriormente proferido».

                                             *

4. - Determina o art. 31º, nº 1 da Constituição da República que o habeas corpus se destina a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.

         Dispondo, por seu turno, o art. 222º nos seus nºs 1 e 2, que a qualquer pessoa ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede a providência se a ilegalidade da prisão advier de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Neste quadro legal, o Supremo Tribunal de Justiça entende desde há muito, de forma pacífica, que a providência de habeas corpus tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade mas não é um recurso. É um remédio único, digamos, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade.

Terá, pois, natureza excepcional por se propor como reacção expedita perante uma situação de prisão ilegal oriunda de uma inusitada ou patente desconformidade processual, adjectiva ou material que redunde numa situação de prisão ilegal.

Sendo uma providência com um peso histórico muito importante[1] e configurando-se como uma garantia específica e extraordinária para a defesa de um direito fundamental como é o direito à liberdade, posto em causa de uma forma grave e evidente em circunstâncias taxativamente previstas, claro se torna que se não destina a ser usada de forma abusiva perante qualquer discordância a respeito de uma situação de privação dessa liberdade, como é patentemente o caso.

                                         *

5. – A perspectiva do requerente é esta: há prisão ilegal motivada por facto que a lei não permite porque o art. 202º apenas prevê a imposição da medida de coacção de prisão preventiva se houver fortes indícios da prática dos crimes elencados nas alíneas a) a e) do seu nº 1 e o despacho que aplicou essa medida de coacção apenas se refere a indícios suficientes ou a factos suficientemente indiciados.

É oportuno reportar o ensinamento de Castanheira Neves citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2005.04.20[2]: a boa hermenêutica jurídica não se alcança com recurso a um razoável dicionário.

Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção da prisão preventiva, se alude a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado[3] e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.

Sendo diferente o contexto probatório em relação ao momento da aplicação da medida de coacção – como é o caso – e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que não sendo conceitos semelhantes, claro está, de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art. 202º e o de «indícios suficientes» explicitado no art. 283º, nº 2  quanto aos objectivos que visam em cada momento processual: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.[4]-[5]

Mas aferida essa idoneidade pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas.

E se, como é o caso, são tidos em conta os requisitos de necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade tal como resulta da invocação das respectivas normas legais citadas no despacho posto em causa e se se mantem ainda actuante o princípio da precaridade na aplicação das medidas de coacção, nenhuma razão há para se afirmar a ilegalidade do dito despacho e muito menos uma ilegalidade ostensiva decorrente de uma patente desconformidade processual.

Esta é, crê-se, a interpretação que confere ao sistema a integridade e coerência adequadas pois, como ensinou Antunes Varela a lei não deve «rebaixar-se à categoria de simples artigo pronto a ser digerido segundo as várias necessidades fisiológicas do organismo social»[6]

Não foi, assim, cometida qualquer ilegalidade na imposição ao requerente da medida de coacção.

                                           *

6. - Em face do que se delibera, neste Supremo Tribunal de Justiça, indeferir, por falta de fundamento, o pedido de habeas corpus apresentado por AA.

Pagará o requerente 3 UC de taxa de justiça.

Feito e revisto pelo 1º signatário.

Lisboa 28 de Agosto de 2018

Nuno Gomes da Silva (Relator)

Helena Moniz

___________________-

          
[1] Introduzida em Portugal na Constituição de 1911.
[2] Proc 0542295 in dgsi.pt. Acórdão este que de resto é de útil consulta face à situação  aqui posta, semelhante à que nele foi apreciada embora em sede de recurso ordinário.
[3] Cfr Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, 3ª ed. pag 1270
[4] Cfr “Código de Processo Penal Comentado” de Henriques Gaspar et all., 2ª ed. pag 817
[5] Neste sentido também Jorge Silveira, “O Conceito de Indícios no Processo Penal Português”, em
https://www.odireitoonline.com
[6] [6] Cfr Antunes Varela, “Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de Novembro de 1966”, na apresentação do Projecto do Código Civil, BMJ 161-21.