Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4323/12.8TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PENHORA
CANCELAMENTO DA INSCRIÇÃO
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO ( REALIZAÇÃO COATIVA DA PRESTAÇÃO ) / EXECUÇÃO ESPECÍFICA.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Anselmo de Castro, A Acção Singular, comum e Especial,3ª ed., Coimbra Editora, p.156.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 721.º, 819.º, 830.º, N.ºS 1 E 4.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 85.º, N.º3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 619.º, N.º1, 621.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 13.º.
Sumário :
I - A execução específica de contrato-promessa, judicialmente declarada na presente acção, substitui a declaração negocial da sociedade insolvente, promitente-vendedora, assim se operando a transferência do direito de propriedade.

II - A transferência do direito de propriedade, por efeito da sentença, apenas torna inoponível aos compradores qualquer encargo ou direito conflituante com o seu direito de propriedade, que um terceiro tenha eventualmente adquirido posteriormente, não implicando o cancelamento de eventuais ónus anteriormente registados sobre o imóvel.

III - Resultando dos autos que, sobre o imóvel adquirido pelos autores, recaem duas penhoras – registadas anteriormente à propositura da acção – a aquisição destes, ainda que judicialmente declarada, não é oponível aos credores que gozem da garantia conferida pela penhora, verificando-se, quanto a estes, uma ineficácia relativa da transmissão do direito de propriedade.

IV - A circunstância de ter sido declarada a insolvência da sociedade ré (vendedora) na pendência da presente acção não afasta o referido em III, não constituindo esta a sede própria para os autores compradores obterem o cancelamento das penhoras que oneram o imóvel que adquiriram.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório:

AA e mulher BB instauraram, em 27 de Setembro de 2012, na 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal de Vila Nova de Gaia, a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra Fábrica de Cerâmica CC, S.A., S.A., pedindo:

 a) que a ré fosse condenada a ver declarado que o contrato-promessa celebrado com a autora BB foi por esta integralmente cumprido, encontrando-se paga a totalidade do respectivo preço e cumpridas as demais obrigações pela promitente compradora;

b) que fosse decretada a transmissão para os autores da propriedade do prédio urbano, composto de rés-do-chão e 1º, sito na Rua da Cerâmica de CC, …, freguesia de Valadares, S.A. (este inscrito na respectiva matriz sob o artigo 111), o qual foi individualizado ao abrigo do alvará de loteamento nº …, emitido pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, em 10/12/81, inscrito no artigo matricial urbano com o nº ..., e objecto de nova participação à matriz em 10/2/2012;

 c) que a ré fosse condenada a proceder ao levantamento de quaisquer eventuais ónus ou encargos que incidam sobre o prédio prometido;

 d) que fosse dada autorização para os autores procederem aos registos prediais necessários e indispensáveis à efectivação da respectiva inscrição de propriedade em nome daqueles, na competente Conservatória do Registo Predial.

   Para fundamentar os pedidos formulados alegaram, em síntese, que por contrato promessa de 15 de Dezembro de 1988 a ré prometeu vender à autora o prédio urbano referenciado, tendo os autores pago integralmente o preço acordado no dia 1 de Setembro de 1992. A autora era a detentora do prédio desde Janeiro de 1981 e foi pactuada a execução específica do contrato.

Apesar de reiteradamente instada pelos autores, a ré recusou-se a celebrar o contrato definitivo, em harmonia com o convencionado no contrato-promessa, não tendo a ré comparecido no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia para celebrarem a escritura de compra e venda aprazada para o dia 16 de Fevereiro de 2012, pelas 11.30 horas.

Regularmente citada, a ré não contestou a acção.

Na pendência da acção, mas já após o decurso do prazo para contestar, a ré foi declarada insolvente por decisão transitada em julgado no dia 16 de Outubro de 2012, proferida no processo nº 1004/12.6TYVNG do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia (fls. 54).

  Por requerimento apresentado pelo administrador da insolvência foi requerida a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

     A massa insolvente requereu apoio judiciário, que lhe foi concedido na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento da compensação de patrono (fls. 100).

 

Por despacho de 22 de Abril de 2013 determinou-se o prosseguimento da acção, indeferindo-se o pedido de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, e a remessa dos autos ao Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia para apensação ao processo de insolvência, o que foi rejeitado.

 

Voltando os autos à 2ª Vara de Competência Mista, foi proferida sentença, em 21 de Outubro de 2013.

Considerados assentes os factos alegados na petição inicial por falta de contestação da ré, julgou-se a acção parcialmente procedente, decidiu-se «declarar substituída (…) a declaração da Ré “Fabrica de Cerâmica de CC, S.A., S.A.” no contrato de compra e venda correspondente ao contrato promessa referido em 1º dos factos provados e relativo prédio descrito em 1º a 5º e 14º dos factos provados (um prédio Urbano composto de Rés-do-Chão amplo e 1º andar com três quartos, sala, cozinha, banho principal e despensa, sito na Rua Cerâmica de Valadares., Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial urbana sob o artº …, da freguesia de Valadares. e descrito na 1ª CRP de Vila Nova de Gaia, freguesia de Valadares, S.A., sob o nº ….) e, em consequência, transmitida a propriedade do mesmo da Ré para os Autores», não se determinando o levantamento das duas penhoras que oneram o referido prédio inscritas no registo predial.

 

Inconformados com este último segmento decisório, apelaram os autores.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 3 de Junho de 2014, julgou procedente a apelação, decidindo revogar «a sentença recorrida na parte impugnada pelo recurso, condenando-se agora a Ré a proceder ao levantamento dos ónus ou encargos que incidem sobre o prédio urbano descrito na competente CRP sob o nº …».

Deste acórdão recorreu de revista o administrador da insolvência, formulando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:

«I - Não é nem pode ser a Massa Insolvente responsável pelo levantamento de ónus ou encargos que incidam sobre bem imóvel, quando por sentença proferida em 1ª instância, por força da execução específica de contrato promessa, foi decretado que tal bem foi vendido pela Insolvente ao Promitente comprador, devendo, antes de mais ser dado cumprimento, por sentença, ao disposto no artigo 13° do Código de Registo Predial, ou seja, por sentença, ordenar-se, oficiosamente, o cancelamento de tais registos de penhora e/ou quaisquer outros ónus ou encargos.

II - Não tendo o Promitente Comprador reclamado os seus créditos ou solicitado ao Administrador da Insolvência o cumprimento do contrato, bem como, não tendo o imóvel em causa sido apreendido no processo de insolvência e para a Massa Insolvente, não é esta responsável pelo levantamento de qualquer ónus ou encargo resultante de penhoras registadas sobre o Imóvel, sendo que, como que parte ilegítima para o efeito.

III - O Administrador da Insolvência encontra-se adstrito às regras impostas pelo CIRE no que concerne à liquidação da Massa Insolvente, não podendo efetuar pagamentos de créditos que não se encontrem reclamados e reconhecidos em sentença de verificação e graduação de créditos.

IV - Admitir uma tal solução é admitir um "negócio" em detrimento da Massa Insolvente que o Administrador da Insolvência está legalmente impedido de praticar, sob pena de grave violação do princípio de igualdade de tratamento de credores, devendo, por isso, o cancelamento das penhoras ou de quaisquer outros ónus e encargos que recaiam sobre o prédio em causa ser oficiosamente decretado por sentença, aliás conforme prevê o disposto no artigo 13° do Código de Registo Predial.

V - Decidindo como decidiu, o Venerando Tribunal da Relação do Porto, fez uma errónea interpretação do direito ao caso sub judice, violando o disposto nos artigos 140° e 172° a 184° do CIRE e artigo 13° do Código de Registo Predial, devendo, em consequência, ser revogado por outro que, mantendo a decisão proferida em 1ª instância, absolva a ora Recorrente do pedido de levantamento dos ónus e encargos que incidam sobre o bem imóvel em causa, decretando, oficiosamente, o seu levantamento nos termos do artigo 13° do Código de Registo Predial».

Não houve contra-alegação.

II. Fundamentação:

Aferindo-se o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, salvo matérias de conhecimento oficioso, a questão colocada à apreciação deste Supremo Tribunal é, tão-somente, a de saber se incumbe à sociedade ré, cuja insolvência veio a ser declarada na pendência desta acção declarativa, requerer o cancelamento do registo das penhoras que oneram o imóvel vendido ou se o mesmo deve ser oficiosamente decretado.

Considerando verificados os respectivos pressupostos legais, a 1ª instância proferiu, ao abrigo do estatuído no artigo 830º nº 1 do Código Civil, sentença que, produzindo os efeitos da declaração negocial da sociedade ré, promitente faltosa, operou a transmissão para os autores do direito de propriedade relativamente ao prédio urbano objecto do contrato-promessa que haviam outorgado no dia 15 de Dezembro de 1988.

Alcançaram, assim, os autores, promitentes-compradores, a execução específica do contrato-promessa de compra e venda.

Transitado em julgado este segmento da decisão, por não ter sido impugnado, formou-se sobre o mesmo caso julgado material (artigos 619º nº 1 e 621º do Código de Processo Civil).

Os autores impugnaram, contudo, aquela sentença por não ter determinado o cancelamento das duas penhoras que oneram o imóvel, inscritas no registo predial, posto que haviam peticionado a condenação da ré a proceder ao levantamento de quaisquer eventuais ónus ou encargos incidentes sobre o prédio prometido vender.

Submetida esta particular questão à apreciação do Tribunal da Relação, ali obteve o recurso de apelação procedência com base no entendimento de que «cumpre à Ré promitente vendedora a expurgação do ónus das penhoras, obtendo o levantamento das mesmas, sob pena de se constituir em responsabilidade para com o comprador, nos termos do artº 910º CCiv, e isto independentemente de o comprador pugnar (em simultâneo) pela anulabilidade do contrato, por erro ou dolo (artº 905º) – a expurgação aplica-se ao erro incidental do comprador, aquele em que o mesmo comprador manteria a vontade negocial, embora noutras condições (cf. Profs. Ferrer Correia e Almeno de Sá, Parecer cit., pgs. 284, 289 e 291), ou nem sequer depende do erro, porque é tutelada directamente pelo contrato celebrado, no caso, o contrato promessa celebrado (assim, Prof. Carneiro da Frada, Perturbações Típicas do Contrato de Compra e Venda, pgs. 75 e 76, cit. in Prof. Nuno Oliveira, Contrato de Compra e Venda, pg. 271)».

Em consequência, a ré foi condenada a proceder ao levantamento dos ónus ou encargos incidentes sobre o prédio urbano em causa, cometendo-lhe a Relação a obrigação de proceder ao cancelamento da inscrição no registo predial das penhoras que recaem sobre o aludido imóvel.

No recurso que interpôs desta decisão do Tribunal da Relação o administrador da insolvência, cuja intervenção derivou da declaração de insolvência da sociedade ré na pendência desta acção (artigo 85º nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), insurge-se contra o entendimento de que compete à sociedade ré, insolvente, providenciar pelo cancelamento da inscrição das penhoras que oneram o imóvel vendido aos autores, defendendo que não é nem pode ser a massa insolvente responsável pelo levantamento de ónus ou encargos que incidam sobre bem imóvel, quando por sentença proferida em 1ª instância, por força da execução específica de contrato promessa, foi decretado que tal bem foi vendido pela insolvente ao promitente-comprador, devendo ser dado cumprimento, por sentença, ao disposto no artigo 13° do Código de Registo Predial, ou seja, ordenar-se, oficiosamente, o cancelamento de tais registos de penhora e/ou quaisquer outros ónus ou encargos.

A execução específica do contrato-promessa judicialmente declarada na presente acção substituiu a declaração negocial da sociedade insolvente, promitente-vendedora. Com a sentença proferida nestes autos operou-se a transferência do direito de propriedade, produzindo-se os efeitos reais do contrato definitivo – contrato de compra e venda – no momento em que a sentença constitutiva adquiriu força de caso julgado.

A transferência do direito de propriedade, por efeito da sentença, não implica o cancelamento de eventuais ónus anteriormente registados sobre o imóvel, nomeadamente penhoras, apenas sendo inoponível aos recorridos, compradores, qualquer encargo ou direito conflituante com o seu direito de propriedade que um terceiro tenha eventualmente adquirido posteriormente.

Ao estabelecer o regime da execução específica do contrato-promessa o legislador previu apenas no nº 4 do artigo 830º do Código Civil a faculdade de o adquirente (promitente-comprador), sendo caso de expurgação de hipoteca ao abrigo do artigo 721º do mesmo código, requerer para esse efeito que a sentença «condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o montante do débito garantido, ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto do contrato e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até pagamento integral».

Existindo penhora ou penhoras registadas anteriormente, a transmissão do direito de propriedade de um imóvel penhorado, sendo possível por se tratar de um acto de disposição jurídica do bem, não afecta a garantia conferida pela penhora a terceiros credores – exequentes –, verificando-se, apesar da validade e eficácia da transmissão, uma ineficácia relativa da mesma em relação à execução, a qual prossegue como se o bem penhorado se mantivesse na titularidade do executado (cfr. artigo 819º do Código Civil e Anselmo de Castro, A Acção Singular, comum e Especial,3ª ed., Coimbra Editora, p.156).

No caso em apreço, resulta da certidão junta a fls. 39/41 que as duas penhoras que recaem sobre o imóvel adquirido pelos autores foram registadas em 20 de Fevereiro de 2012 e 22 de Março de 2012, tendo a presente acção sido registada no dia 26 de Junho de 2012.

Sendo a inscrição das penhoras no registo predial anterior à aquisição do direito de propriedade pelos autores sobre o imóvel que delas foi objecto, não é tal aquisição, ainda que judicialmente declarada, oponível aos credores exequentes que gozam da garantia conferida pela penhora, verificando-se quanto a estes a aludida ineficácia relativa da transmissão do direito de propriedade.

A circunstância de ter sido declarada a insolvência da sociedade ré na pendência desta acção não afasta estes princípios no âmbito desta acção declarativa, a qual não constitui a sede própria para os autores, compradores, lograrem obter o cancelamento das penhoras que oneram o bem imóvel que adquiriram.

III. Decisão:

Nestes termos, acorda-se em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido, repõe-se o decidido na sentença da 1ª instância.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 18 de Junho de 2015


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Beleza