Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1070/16.5T8VRL.G2.S1
Nº Convencional: 1-ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
CLÁUSULA DE REVERSÃO
CÂMARA MUNICIPAL
OBJETO NEGOCIAL
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
CULPA IN CONTRAHENDO
BOA -FÉ
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
INTERESSE CONTRATUAL NEGATIVO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGAR PARCIALMENTE O ACÓRDÃO RECORRIDO E ORDENAR QUE OS AUTOS BAIXEM PARA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário :
I - Da interpretação do contrato promessa de alienação referido a 11 dos factos provados decorre que nele foi aposta uma cláusula a fixar uma condição resolutiva nos termos da qual se não fosse construído um empreendimento turístico de hotel, até 2011 na parcela de terreno prometida vender, a referida parcela de terreno reverteria automaticamente para a Câmara Municipal, sem qualquer indemnização do promitente-comprador.

II - A falta de previsão no atual CPC de disposição semelhante à do art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC - em que se estabelecia que eram tidas como não escritas as respostas sobre questões de direito - não pode significar que agora essas respostas possam ser consideradas como matéria de facto.

III - Para que de contrato-promessa se possa falar é necessário que nele se encontrem determinados os elementos essenciais do negócio definitivo e que dele resulte a obrigação de celebrar o contrato prometido.

IV - Não estando o objeto negocial determinado através dos seus elementos fiscais e registais, estamos apenas perante um acordo intermédio ou preparatório.

V - Se o Município permitiu que os réus utilizassem e fruíssem o terreno (facto provado n.º 26) e fez uso da nascente propriedade dos réus (facto provado n.º 25), criando assim expetativas de que o contrato-promessa almejado viria a ser celebrado, impende sobre o Município o dever de indemnizar os réus, ao abrigo do art. 227.º, n.º 1, do CC, por se terem frustrado as negociações que de boa-fé os réus aguardavam.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório


1. O Município  de ... instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra AA e esposa, BB, e C..., Lda., pedindo a condenação dos réus:

a) a reconhecerem o autor como proprietário do terreno que identificam e que foi objeto do contrato-promessa constante dos autos;

 b) a considerarem resolvido o contrato-promessa celebrado, por incumprimento definitivo por parte do 1.º réu;

c) a reconhecerem que tal parcela de terreno está a ser ocupada pelos réus sem que tal ocupação se fundamente em qualquer título que possa evitar a sua reivindicação; d) a reconhecerem tal direito de propriedade e a procederem à entrega da parcela ao autor, livre e desimpedida.

Alega, em síntese, que é proprietário do prédio que identifica e que, através de contrato-promessa outorgado a 27-06-2006, prometeu vender ao 1.º réu, e este prometeu comprar-lhe, nas condições que descreve, uma parcela de terreno com a área de 12.075,22 m2 a desanexar daquele prédio, a qual passou a ser utilizada pelos réus; sustenta que ocorreu incumprimento definitivo das obrigações assumidas pelo 1.º réu, motivo pelo qual procedeu à resolução do contrato-promessa, não tendo o promitente-comprador restituído a parcela de terreno, como tudo melhor consta da petição inicial.


2. Os réus contestaram, defendendo-se por exceção, invocando a ilegitimidade passiva da sociedade 2.ª ré e pedindo a respetiva absolvição da instância, e por impugnação, imputando ao autor a responsabilidade pelo incumprimento do contrato-promessa, por ter atrasado a aprovação do PDM e não ter procedido ao destaque da parcela de terreno prometida vender, e acrescentando que o contrato foi revogado através de contrato-promessa de permuta posteriormente outorgado, pugnando no sentido da improcedência da ação. No mesmo articulado, os réus deduzem reconvenção, pedindo a condenação do autor: a) a reconhecer a celebração entre o autor e o 1.º réu, no dia 29-03-2013, do contrato-promessa de permuta e a revogação tácita do documento n.º 4 junto com a petição inicial, com a retificação no que respeita à área; b) a considerar-se interpelado com a instauração da reconvenção para, em prazo razoável, de 60 dias após o trânsito em julgado da presente lide, marcar dia, hora e cartório notarial, para a celebração da escritura pública com referência ao contrato prometido, sob pena de se constituir em mora; c) a indemnizar/compensar os réus por prejuízos patrimoniais e não patrimoniais. Justificam o pedido reconvencional alegando que foi celebrado entre autor e 1.º réu, no dia 29-03-2013, um contrato-promessa, no qual acordaram na permuta da parcela prometida vender por uma nascente de água do réu, contrato este que substituiu o contrato-promessa de compra e venda que anteriormente haviam celebrado e em execução do qual passou o autor a utilizar a mencionada nascente de água; acrescentam que o autor não cumpriu este contrato, não tendo procedido à marcação da respetiva escritura, apesar de interpelado para o efeito, o que vem causando danos aos réus, como tudo melhor consta do articulado apresentado.


3. Notificado da contestação, o autor apresentou réplica, articulado no qual, além do mais, se pronuncia quanto ao pedido reconvencional, defendendo-se por impugnação e pugnando pela improcedência do pedido formulado.


4. Os autos prosseguiram com a realização da audiência prévia, na qual foram as partes convidadas a aperfeiçoar os respetivos articulados, o que efetuaram, se admitiu a reconvenção e fixou o valor à causa, se proferiu despacho saneador - no qual foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva arguida -, se delimitou o objeto do litígio e foram selecionados os temas da prova.


5. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, julgando a ação e a reconvenção parcialmente procedentes, relativamente à qual ambas as partes se apresentaram a recorrer.


6. Por acórdão desta Relação, proferido a 03-10-2019, foi decidido anular a sentença de 23-02-2018, determinando-se a reabertura da audiência final, para produção de prova pericial destinada a determinar a área da parcela de terreno em litígio.


7. Remetidos os autos ao tribunal de 1.º instância, foi realizada prova pericial, incluindo 2.ª perícia, com esclarecimentos prestados pelo perito em audiência final, após o que foi proferida nova sentença – datada de 09-06-2021 – julgando a ação parcialmente procedente, a qual se transcreve na parte dispositiva:

«(…)

Pelo exposto, julgo a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, e, em consequência:

a) Condeno os R.R. a reconhecerem o A. como proprietário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., pela freguesia ..., sob o n º ...03, e especificamente, de uma parcela de terreno pertença do mesmo, com a área de 4.550 m2, localizada a norte do loteamento industrial realizado nesse prédio, situada entre o arruamento criado e outro caminho a norte;

b) Condeno os R.R. a considerarem resolvido o contrato promessa celebrado;

c) Condeno os R.R. a reconhecerem que a parcela de terreno identificada em a), está a ser ocupada sem que tal ocupação se fundamente em qualquer título que a legitime;

d) Condeno os R.R. a entregarem ao A. a parcela identificada em a), livre e desimpedida;

e) Condeno o A. a reconhecer a celebração de um contrato promessa de permuta celebrado entre o Presidente da Câmara Municipal ... e o R., referente ao dia 29-03-2013, onde consignaram a área de cerca de 4.500 m2;

f) Julgo a acção e a reconvenção improcedentes quanto ao demais, absolvendo as contrapartes dos respectivos pedidos.

Custas por A. e R.R., na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 2/5 para o A. e 3/5 para os R.R. – art. 527º, do C.P.C.

Registe – art. 153º, n º 4, do C.P.C. Notifique – art. 220º, n º 1, do C.P.C.»


8. Inconformadas, ambas as partes se apresentaram a recorrer para o Tribunal da Relação de Guimarães:

- O autor impugna a parte da sentença em que se julgou apenas parcialmente procedente o pedido de restituição da parcela de terreno com a área de 12.075,22 m2 e se determinou somente a devolução da área de 4.500 m2, bem como a parte em que foi condenado a reconhecer a existência do contrato-promessa de permuta outorgado entre o Presidente da Câmara e o réu.

- Os réus recorreram da sentença, pugnando pela prolação de decisão que julgue improcedente a ação e procedente a reconvenção.


9. O Tribunal da Relação de Guimarães decidiu o seguinte:

«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação apresentada pelos réus e inteiramente procedente a apelação apresentada pelo autor e, consequentemente, decidem:

A) Revogar a sentença recorrida na parte em que julgou a ação e a reconvenção parcialmente procedentes - bem como no segmento f) do correspondente dispositivo -, a qual se substitui por outra decisão a julgar a ação inteiramente procedente e improcedente a reconvenção, absolvendo o autor/reconvindo da reconvenção formulada;

B) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o A. a reconhecer a celebração de um contrato promessa de permuta celebrado entre o Presidente da Câmara Municipal ... e o R., referente ao dia 29-03-2013, onde consignaram a área de cerca de 4.500 m2, absolvendo o autor/reconvindo em conformidade;

C) Alterar o segmento a) do dispositivo da sentença recorrida, o qual se substitui por outra decisão a condenar os réus a reconhecerem o A. como proprietário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., pela freguesia ..., sob o n.º ...03, e especificamente, de uma parcela de terreno pertença do mesmo, com a área de 12.075,22 m2, localizada a norte do loteamento industrial realizado nesse prédio, situada entre o arruamento criado e outro caminho a norte;

D) Confirmar a sentença recorrida na parte em que condenou os réus a considerarem resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado;

E) Condenar os réus a reconhecerem que a parcela de terreno identificada em a) do dispositivo da sentença recorrida - com a alteração antes enunciada em C) - está a ser ocupada sem que tal ocupação se fundamente em qualquer título que a legitime;

F) Condenar os réus a entregarem ao A. a parcela identificada em a) do dispositivo da sentença recorrida - com a alteração antes enunciada em C) - livre e desimpedida.

As custas da ação, da reconvenção e das apelações são integralmente da responsabilidade dos réus/apelantes».

10. AA e cônjuge, BB, RR/Reconvintes, não se conformando com o Acórdão proferido, dele vêm recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do preceituado nos artigos 671º e 674º, por erro de julgamento, bem como ao abrigo dos artigos 607º, 663º, n.º 2 e 679º, todos do Código de Processo Civil, formulando as seguintes conclusões:

«1ª - Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou a apelação interposta pelos ora Recorrente/RR improcedente e inteiramente procedente a apelação interposta pelo A./Recorrido;

2ª - Estão inconformados os Recorrentes;

3ª - O presente recurso tem por fundamento nulidade do Acórdão, erro de julgamento da matéria de facto e, incorreta aplicação do direito.

4ª - Não podem os ora Recorrentes, em prol do rigor e da verdade, da tutela jurisdicional, da confiança, e do respeito pelas decisões dos nossos tribunais, deixar de trazer à colação o Doutamente decidido no âmbito dos presentes, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães “a quo” referência ...50, com manifesto interesse para a clarificação do que se discute nos presentes autos, cujo teor aqui se dá por plenamente integrado, de que se destacam alguns dos seus segmentos,

5ª - Tal Douto Acórdão, veio anular a decisão recorrida, da 1ª instância, ou seja, a decisão plasmada na 1ª sentença do Tribunal Judicial da Comarca ..., referência ...52, e decidiu consequentemente:

“ a) se determina a reabertura da audiência final, para produção de prova pericial destinada a determinar a área da parcela de terreno em litígio, nos termos indicados, com a subsequente prolação de sentença;” (itálico nosso)

6ª-Em tal Acórdão, é dito, na página 50, parágrafo 1º “Analisados os elementos probatórios indicados por ambas as partes, não se vislumbra que qualquer deles tenha força probatória que permita considerar provada a concreta área da parcela de terreno em litígio” (itálico e negrito nosso)

7ª - O que reiteram no parágrafo seguinte, dúvida que questionam, mais uma vez no parágrafo 3º da mesma página “Quanto ao relatório de fls.242, relativo à avaliação da parcela no âmbito da instrução do procedimento administrativo que conduziu à celebração do contrato-promessa datado de 27-06-2006, não indicando com clareza os elementos em que se baseia para a conclusão que apresenta, quanto à área da parcela de terreno, não esclarecendo os limites e confrontações tidos em conta, não tem força probatória que permita considerar assente o facto em causa.” (itálico e negrito nosso)

8ª - E, ainda, o mesmo acórdão mais adiante página 51 parágrafo 4º “ Quanto ao contrato-promessa datado de 27-6-2006, subscrito pelo Presidente da Câmara, em representação do autor, e pelo 1.º réu, cuja autoria se encontra reconhecida por ambas as partes, dúvidas não há de que, nos termos do artigo 376.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos autores, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração, na medida em que foram contrários aos interesses do declarante. No entanto, no que respeita à área da parcela de terreno prometida vender, a força probatória do aludido documento apenas permite considerar verificado que os outorgantes lhe atribuíram em área de 12.075,22m2, o que não excluiu a possibilidade de ter a parcela efetivamente uma área inferior, isto é, não afasta uma eventual desconformidade entre a real parcela de terreno e a representação da parcela constante das cláusulas do contrato acordadas pelas partes. Assim sendo, verifica-se que o contrato-promessa não faz prova plena quanto à área da parcela de terreno, nem permite, por si só, considerar provada a área que os outorgantes ai lhe atribuíram, face aos demais elementos probatórios constantes dos autos.” (itálico e negrito nosso)

9ª - E no mesmo sentido de que não têm elementos para decidir, o Tribunal a quo, (estamos sempre a falar do Tribunal da Relação de Guimarães), diz, na página 52 do mesmo acórdão, paragrafo 1º: “Reapreciados, os elementos probatórios considerados na decisão recorrida, bem como os indicados por autores e réus, o resultado alcançado é efetivamente inconclusivo, conforme considerou a decisão recorrida, não permitindo os meios de prova disponíveis apurar, com um nível mínimo de segurança, a área da parcela de terreno em causa e, em conformidade, considerar provados os factos em apreciação, os quais se mostram essenciais para apreciação do objeto do litigio. ” (itálico e negrito nosso)

10ª - E continuando, referem no parágrafo 3º “Porém não se trata de uma dúvida insanável, dado que suscetível de ser ultrapassada através da realização de prova pericial destinada a determinar a área da parcela de terreno em causa nos presentes autos, designadamente através de um levantamento topográfico.” (itálico e negrito nosso)

11ª - E neste seguimento refere na mesma página: “A prova pericial tem por objeto, conforme dispõe o artigo 388.º do Código Civil, a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, designadamente quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem…” (itálico e negrito nosso)

12ª - E ainda na página 52 é dito no referido Acórdão: “Assim sendo, mostra-se prematura a decisão que, sem lograr esclarecer a duvida através da realização do meio de prova adequado à perceção ou apreciação do facto em causa, aplica a regra estatuída pelo artigo 414.º do CPC para os casos de dúvida sobre a realidade de um facto, resolvendo a duvida quanto à parte a quem o facto aproveita e, assim, julgando provado o facto constante do ponto 4 e não provado o constante do ponto 5, decisão que não poderá manter-se com a indicada fundamentação. ” (itálico nosso)

13ª - O que é dúvida reiterada na página 53:“Nesta conformidade, cumpre concluir que não constam do processo elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, sendo certo que se mostra deficiente a decisão sobre os pontos 4 da matéria de facto provada e 5 da factualidade não provada, o que impõe, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, a anulação da decisão proferida pela 1.ª instância, de forma a ser determinada a realização de uma prova pericial destinada a determinar a área da parcela de terreno em causa nos presentes autos, designadamente mediante um levantamento topográfico.” (itálico nosso)

14ª - E mais adiante nessa mesma página: “No caso presente, a realização de uma perícia (…), mostra-se imprescindível, dado que a prova produzida se mostrou inconclusiva, não permitindo a esta Relação alterar ou confirmar a decisão proferida sobre a matéria de facto, e que a situação de dúvida é suscetível de ser suprida nos termos supra expostos.” (itálico e negrito nosso)

15ª - Em cumprimento do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, foi nomeado, um perito, por Douto despacho referência ...81, ao qual foi solicitado que a questão a que devia responder era a matéria constante do art.º 14 da p.i.

16ª- Ou seja: “14º Desta operação de loteamento sobrou uma parcela de terreno, localizada a norte com a área aproximada de 12 000 m2 entre o arruamento criado e outro caminho a norte Cfr fotografia aérea junta. Doc 2 e planta com o nº 2-A?" (itálico nosso)

17ª - A perícia ordenada foi realizada, e o relatório com a referência ...12, foi junto aos autos pelo Sr. Eng.º CC, tendo os RR. deduzido Reclamação ao mesmo, bem como pedido de 2ª perícia, pelo requerimento junto aos autos em 30.01.2020;

18ª - Assim é que o Sr. Perito, veio prestar os esclarecimentos através do requerimento com a referência ...08, no qual, refere, além do mais “Como esta área a medir não faz nem fez parte do loteamento, entendo que não haverá que medir a área deste, nem quaisquer parcelas sobrantes após constituição dos lotes e eventualmente integradas no loteamento, nem tal me foi solicitado” (itálico nosso)

19ª - Os RR., em resposta vieram referir, através do requerimento junto aos autos em 12.06.2020, que não prescindiam da 2ª perícia, tendo o Tribunal da 1ª instância, através do Douto despacho referência ...98, deferido a mesma, a qual teve por objeto o da primeira;

20ª - Assim é que, o Sr. Perito nomeado, Eng.º DD, veio juntar a perícia em 16.11.2020, e os RR., notificados da mesma, deduziram, em 30.11.2020, reclamação, solicitando esclarecimentos, que foram deferidos através do Douto despacho referência ...91;

21ª - Veio, então, o Sr. Perito em 11.02.2021, prestar os esclarecimentos solicitados, tendo, resumido o seguinte:

“3. Resumindo os meus esclarecimentos

O polígono inicial da operação do loteamento industrial, sobraram três parcelas

que estão situadas a NE, SE e SO, e não a norte entre caminhos. A delimitação tanto inicial como a alteração 18/10/2010, esta no caminho criado para o próprio loteamento.

Assim sendo a parcela com a área aproximada de 12 000,00m2 entre caminhos situada a norte, nunca fez parte da área a utilizar para a operação de loteamento industrial.

Os desenhos da peritagem não foram alterados foi acrescido da rosa dos ventos em escala maior no meio do desenho.

Os polígonos mantiveram-se limites do loteamento industrial a vermelho o inicial, a laranja o alterado 18/10/2010 os verdes sobrantes e suas devidas áreas dos polígonos.” (itálico e negrito nosso)

22ª - O Sr. Perito apurou sem qualquer margem para dúvidas que a parcela com a área aproximada de 12.000m2 e referida pelo A. na p.i., não faz nem nunca fez parte da operação de loteamento, e como tal não é área sobrante do mesmo;

23ª - Foi solicitada a presença do Sr. Perito na Audiência de discussão e julgamento, a fim de prestar esclarecimentos e como consta da decisão da 1ª instância, “O sr. perito que prestou esclarecimentos em audiência de julgamento, como referiu, fez um levantamento da totalidade da área situada a norte do caminho público identificado a fls. 20, área esta com cerca de 12.064,51m2 e, onde entendeu poder ser a delimitação entre o prédio do A. e o da R. (onde havia parcialmente um muro, a partir do qual traçou uma linha imaginária), calculou, a partir dai, a área da parcela do A.

Porém, o sr. perito não sabe (e cremos que ninguém saiba), qual seja a delimitação dos dois prédios, pelo que, não pôde, na nossa convicção, aportar nada de significativamente relevante para nos ajudar a determinar qual seja a área da parcela reivindicada pelo A.

Tal dúvida é agravada pelo esclarecido pelo sr. perito, de que, toda a área localizada, a fls. 20, a norte do arruamento público, não fez/não faz parte do loteamento realizado pelo A., não constitui sequer área sobrante do loteamento realizado pelo A., conforme se mostra esclarecido também nas sobreposições que de fls. 712 verso a 715 verso o sr. perito fez, daquilo que foram as áreas de loteamento realizadas pelo A. e respetivas áreas sobrantes.” (itálico e negrito nosso)

24ª - Nas alegações enviadas ao Tribunal da Relação os RR., procederam à transcrição de parte do depoimento do Sr. Perito, como é das mesmas, cujo teor aqui se dá por integrado, por efeitos de economia processual;

25ª - Entendemos, e assim o entendeu a 1ª instância, que o Sr. Perito através da perícia realizada não esclareceu a dúvida suscitada como supra já referimos e não é por demais repetir;

26ª - Porém, ao arredio de tudo o que consta do 1º douto Acórdão da Relação de Guimarães, a que supra se fez já referência, e reafirmando-se, mais uma vez, que este Tribunal entendeu que a dúvida que tinha face aos elementos carreados para os autos com vista a uma decisão, só poderia ser sanada através de uma perícia,

27ª – Pois que, como já se referiu disse na página 52 parágrafo 1º aquele refere

“…não permitindo os meios de prova disponíveis apurar, com um nível mínimo de segurança, a área de da parcela em causa e, em conformidade, considerar provados os factos em apreciação, os quais se mostram essenciais para  apreciação do objeto do litígio .” (itálico e negrito nosso)

28ª - De acordo com a perícia realizada, esta nada esclareceu, pelo contrário, veio esclarecer que a causa de pedir do A., foi abalada, na medida em que, o mesmo na sua petição inicial alicerçava a causa de pedir e o pedido, como a parcela em questão faça parte do prédio inscrito no artigo rústico ...75 da freguesia ..., descrito sob o n.º ...74 da mesma Freguesia (art.º 20º da p.i.)

29ª - Do qual sobrou uma parcela com a área aproximada de 12 000 m2 – art.º 14º da p.i. – aliás foi sobre este artigo da p.i., que logrou incidir a perícia, ordenada realizar pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, Sr. Perito, veio esclarecer de forma muito clara e por forma a ser entendido por todos quantos observem/leiam a dita perícia que tal área não faz nem nunca fez parte do loteamento;

30ª - O que plasmado foi na Douta Decisão na 1ª instância como referido supra;

31ª - Ora, isto dito, e face ao contido no 2º Acórdão do Venerando Tribunal da Relação, ora sujeito à preclara apreciação de Vªs Exªs, o mesmo, está em total contradição com o prolatado no 1º Acórdão, e sem alicerçar a dúvida que tinha na única prova que entendeu poder sanar o conflito, em total contradição e de forma incompreensível, profere um 2ºAcórdão, em total contradição como que havia referido no 1º, e socorrendo-se da prova que estava nos autos,

32ª - Que A. e R. tinham carreado para os autos documentos, que antes não lhe permitia apurar com um nível mínimo de segurança, a área da parcela de terreno em causa e em conformidade considerar provados os factos em apreciação, os quais se mostram essenciais para a apreciação do objeto do litígio,

33ª - Resolve dar procedência total ao peticionado pelo A., e improcedente o peticionado em sede de reconvenção pelo R,

34ª - E isto diga-se, com a prova que o mesmo Tribunal, e o mesmo Relator, entendeu, no 1º Acórdão plasmado na página 50, que passaremos a transcrever, mais uma vez em reforço do já referido, por chocar os ora Recorrentes, que de forma alguma entendem, e pensam que ninguém em sã consciência pode entender, quando o mesmo Tribunal e relativamente ao mesmo assunto diz: “Analisados os elementos probatórios indicados por ambas as partes, não se vislumbra que qualquer deles tenha força probatória que permita considerar provada a concreta área da parcela de terreno em litígio” (itálico e negrito nosso)

35ª - Os RR., não compreendem o que aconteceu na mente dos Senhores Desembargadores, se a dúvida que tinham só podia ser sanada pela perícia, e atendendo a que a mesma nada esclareceu, como se disse já e não é por demais repetir, como é que puderam prolatar o 2º Acórdão que aqui se impugna, por errada apreciação da matéria de facto e de direito, ferindo o Acórdão de nulidade absoluta e total;

36ª - Serviu a perícia, salvo melhor juízo para esclarecer que a causa de pedir e o pedido do A., é inexistente,

37ª - O A. como é da p.i. vem invocar no art.º 1º e ss. que é dono do prédio inscrito sob o art.º ...75 da freguesia ..., mais alegando nos seus artigos 19º e 20º que a parcela de terreno com a área de 12.075,22m, era a destacar daquele prédio (rústico ...75), e que foi objeto do contrato promessa de compra e venda, quando não fez prova da aquisição originária com base na usucapião, de tal imóvel, e consequentemente vedado lhe está o reconhecimento do direito de propriedade com base na presunção do registo, como é da mais meritória jurisprudência e doutrina a que infra se fará menção;

38ª - Sendo que a causa de pedir, no que diz respeito à parcela em causa, versa sobre um objeto que não existe, isto é, área sobrante do loteamento;

39ª - Como é que os Senhores Desembargadores do Tribunal “a quo”, puderam em plena consciência e apoiados em prova que desprezaram quando do recurso interposto da 1ª decisão da 1ª instância, prolatar o Acórdão ora sujeito à preclara apreciação de Vªs Exªs, sendo certo que a 2ª decisão da 1ª instância é exatamente a mesma, só tendo sido reforçada a dúvida que já existia sobre a concreta área do objeto do litígio;

40ª - Um pequeno apontamento que nos permitimos expor em jeito de desabafo:

A ideia de que a Justiça portuguesa está em completa roda livre mina a confiança dos cidadãos na democracia. E obriga a que a situação da aplicação da Justiça em Portugal seja olhada de forma desapaixonada e imparcial.

41ª - O caminho que se está a abrir não parece servir de facto os interesses do Estado de Direito. Até porque os cidadãos, mesmos os que procuram acompanhar de forma atenta o evoluir dos factos, já não percebem o que se passa.

42ª - O descrédito na Justiça, que põe em causa um dos pilares basilares do Estado de Direito Português, tem que ser combatido por homens e mulheres de coragem, que saibam desmistificar a ideia retrógrada de que há uma justiça para ricos e outra para pobres.

43ª - Este segundo Acórdão não ajuda…

44ª - Há manifesta contradição de julgados e o Douto Acórdão ora sujeito à preclara apreciação de Vªs Exªs carece de absoluta falta de fundamentação credível.

45ª - Há mulher de César não basta sê-lo, é preciso parece-lo, e aqui nada parece ser.

46ª- Um homem médio chefe de família perante estes dois Acórdãos, não entende, ninguém entende em sã consciência, no uso pleno das suas faculdades o que aqui aconteceu, não esquecendo, como não podemos que estamos perante o mesmo Relator, o mesmo Tribunal, que ora dizem uma coisa, e seguidamente, ignorando o que a perícia por si ordenada disse, o seu contrário.

47ª - Senhores Conselheiros como resolver esta questão?

48ª - A causa de pedir e do pedido do A., assentava todo ele no reconhecimento do direito de propriedade do prédio identificado no art.º 1º e ss. da p.i., e a resolução de um contrato promessa de compra e venda, celebrado entre o A. e o 1º R., em 27.06.2006 ao qual atribuíram a área de 12.075,22m2, conforme artigos 19º e 20º da p.i., parte integrante daquele rústico, a destacar do mesmo, que havia sido sujeito a operação de loteamento,

49ª - E que a perícia ordenada pelo Tribunal “a quo” (1º Acórdão da Relação), veio ora dizer que a área de cerca de 12.000m2 a que o A. alude no artigo 14º da p.i., não faz parte do prédio que identifica em 1, 2, 3, 4, 5, 14 e 20 entre outros da mesma peça, e nem tão pouco faz parte nem nunca fez da operação do loteamento que teve por objeto aquele rústico inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o art.º ...75

50ª - Defendia o A., que a dita parcela com a área de cerca de 12.000m2 era a destacar do mencionado prédio rústico, o que não corresponde à verdade, pois que, da operação de loteamento, ao contrário do que alega, o Sr. Perito veio dizer preto no branco, fazendo um apuramento rigoroso da situação, por consulta ao loteamento realizado pelo A. na Câmara, tendo esclarecido que fez sobreposição de fls. 712 verso a fls. 715, que,

51ª - E sem qualquer margem para dúvidas, que esta área não fez nem faz parte do loteamento realizado pelo A., no dito prédio rústico, inscrito na matriz predial do ... sob o art.º ...75, reforçando que não é área sobrante do loteamento realizado;

52ª - Isto posto, é óbvio e salta à vista que o dito contrato promessa de compra e venda teve por objeto uma parcela que contrariamente ao alegado na causa de pedir e do pedido, não fez nem faz parte do loteamento realizado nem constitui área sobrante do mesmo

53ª - Pelo que, jamais o Tribunal “a quo” podia dar como provado que o A., era dono e legitimo proprietário do prédio que identifica nos artigos 1, 2 e seguintes da petição inicial, e que, o mesmo prometeu vender uma parcela de terreno ao 1º R., a destacar de tal prédio, atento o que resultou da perícia, que neste preciso ponto é clara, óbvia e vítrea e não deixa quaisquer margem para dúvidas.

54ª - Não fazendo tal parcela de terreno, parte do prédio identificado no art.º 1º  ss., 14º, 19º e 20º entre outros da p.i., isto é, o dito contrato promessa foi celebrado com erro sob o objeto.

55ª - Escalpelizando a factualidade subjacente a que supra se fez menção e atendendo a que, quer a 1ª instância, quer a 2ª, decidiram pela resolução de tal contrato promessa, o que se nos afigura impossível de operar por o objeto ser inexistente,

56ª - O Tribunal “a quo” (Venerando Tribunal da Relação de Guimarães) conhecedor desta objetividade, ao arrepio do mais são direito e da justiça decidiu no 2º Acórdão pela resolução do dito contrato promessa, o que não podia nem devia, porquanto a perícia o esclareceu devidamente, de forma vítrea e sem margem para duvidas,

57ª - Que o objeto do dito contrato promessa é inexistente, não existe, pelo menos da forma como o A., o configurou, como parcela a destacar do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o art.º ...75 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74, e como área sobrante do loteamento,

58ª - Relativamente a este prédio, como é da Douta decisão da 1ª instância e reconhecido no Douto Acórdão ora em apreciação, não logrando o A., fazer prova dos factos demonstrativos da alegada aquisição originária da coisa reivindicada, por usucapião, sendo que a mesma está dependente do exercício dos poderes de facto inerentes ao direito de propriedade mantida por certo lapso de tempo,

59ª - Entendeu, ainda assim, que podia beneficiar da presunção legal da existência e titularidade do direito real, como é o caso da presunção da titularidade desse direito a favor do titular inscrito no registo predial, nos termos do disposto no já aludido artigo 7.º C R Predial;

60ª - Este entendimento no que se não concede, é contrário à lei, e ao que vem sendo entendido pela mais meritória Jurisprudência e Doutrina, que a posse prevalece sobre o registo, isto é, que a usucapião é a base da ordem jurídica imobiliária.

61ª - Neste sentido veja-se Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 01.03.2012 no âmbito do processo 158/2000.L1.S1; o proferido em 15.12.1997 no âmbito do processo 98B1050; Bem como os Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência desse STJ proferidos em 20.05.1997 n.º 15/97; o de 18.05.1999 n.º 3/99 e o de 04.12.2007 com o n.º 1/2008 todos disponíveis em www.dgsi.pt

62ª - No respeitante ao pedido reconvencional deduzido pelo R., de referir o seguinte, consta da matéria dada como provada em 24, 25, 26, 27, 28, 29, alicerçada no documento de fls. 94 e do depoimento de EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, que estando o A. Município com problemas de água antes da celebração do dito contrato de permuta, enviou ao 2º R. a missiva – doc. 12 junto à contestação reconvenção – cujo teor aqui se dá por integrado para efeitos de economia processual, em que o A. solicita informações sobre as condições de cedência dessa nascente e do direito de exploração dessa água;

63ª - Respondeu o 2º R. que estava na disposição de ceder a propriedade da nascente em causa e consequente exploração através da venda da mesma, ou em alternativa, através de uma permuta com o lote de terreno que fica à entrada da Zona Industrial, do lado direito, cuja propriedade julgava ser do A., como é do doc.13 junto com a contestação/reconvenção cujo teor aqui se dá por integrado para legais efeitos;

64ª - Após esta informação seguiram-se várias negociações entre o A. na pessoa do seu Presidente e o 1º R., e acordaram verbalmente que o A. mandaria avaliar o terreno o que logrou acontecer, tendo concluído a perícia mandada elaborar pelo mesmo – doc. 14 e 15 com a contestação – que a parcela tinha a área de 4500m2 e consequentemente avaliado o terreno em 5.250€ e a nascente em € 3.040,00

65ª - Como dos mesmos consta, sendo que foi subtraído e a pedido do A., a movimentação de terras levadas a cabo pelo 2º R., que importavam em € 16.000,00

66ª - Estando o A. a passar por sérias dificuldades de abastecimento de água no Concelho, como se disse já, encetou negociações com o 1º R., no sentido da celebração de um contrato de permuta da água do R., pela parcela em causa, tendo ambos chegado a um consenso que quer a água quer o furo artesiano que estavam na parcela do R., o que foi corroborado pela maior parte das testemunhas, mormente pelo próprio Presidente da Câmara, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK

67ª - Foi então celebrado o contrato promessa de permuta, de fls. 94 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual ficou consignado que o R., passava a tomar posse do terreno, o que vem sucedendo até aos dias de hoje,

68ª - Tal contrato foi feito pelas partes imbuídos da maior boa-fé, convencido o R. que o A. o submeteria, posteriormente, a ratificação da Câmara e/ou eventualmente, também à Assembleia Municipal, uma vez que foi celebrado numa emergência, escassez de água no Município, tendo este último instalado no prédio do R. uma bomba e dai retirado água que injetou na rede pública para abastecimento publico, como é da Douta decisão da 1ªinstância e que foi plasmado nas alegações do mesmo,

69ª - Veja-se depoimento de FF, que relatou de forma sincera, isenta que o R. tinha um furo de água, e que como havia falta de água no Concelho, o então Presidente da Câmara e o R. reuniram e lhe disseram que iam fazer ou que já tinham feito uma permuta, e que estava então autorizado a retirar água do furo do R., tendo ele próprio ido colocar uma bomba no furo e retirado água o que aconteceu mais de um ano;

70ª - Também as testemunhas GG e HH, que são eletricistas do A., referiram ao Tribunal que ligaram e desligaram a bomba de água colocada no furo do R.;

71ª - A testemunha II referiu que foi o então Sr. Presidente da Câmara quem lhe pediu para elaborar uma minuta nos termos do documento de fls. 94v., o que o mesmo fez;

72ª - Por seu turno a testemunha JJ referiu que era conhecedor da celebração do contrato de permuta e da utilização da água do furo do R., pelo A., durante o mandato do Presidente EE,

73ª - Tendo referido que a água valia muito mais do que o terreno, factualidade que é do senso comum, pois que, dada a escassez de água e não tendo o A., outra forma de prover a tal situação, socorreu-se da água que existia na propriedade do A., como contrapartida de lhe ceder uma parcela com cerca de 4500m2, que fica à entrada da Zona Industrial ..., do lado direito, quem entra na zona;

74ª - Corroborado pela testemunha KK que referiu que o furo existente está no prédio do R., e que ouviu falar na realização da permuta;

75ª - Como se referiu já o A. Município em 2013, na pessoa do seu Presidente negociou em vários momentos com o 1º R., consubstanciado em vários atos preparatórios do dito contrato promessa de permuta, ou seja,

76ª - A conclusão do contrato que se encontra a fls. 94 dos autos, foi precedida de acordos de carater preliminar, nomeadamente de princípios, intenções, declarações negociais as quais assumiram a virtualidade de se converterem no contrato promessa de permuta, o constante dos autos, do qual consta, e é concretamente definido a obrigação de cada um dos contraentes,

77ª- O A. cedeu a parcela que fica à entrada da Zona Industrial ..., do lado direito, quem entra na zona, com a área de 4500m2, que é um objeto que se vê e que se sabe onde é, que o R., ficou sempre certo e convencido que se trata de um prédio do A.,

78ª - Por seu turno o R., cedeu ao A. Município a exploração das águas, que foram objetivadas pela colocação de uma bomba no furo que lá existe, e na extração de água do mesmo para obviar à falta de água do Município, para abastecimento público, que durou mais de um ano, sendo certo que, ainda nos dias de hoje lá se encontra como é das fotos que sob doc. 18 se juntaram à contestação e que o A. não impugnou;

79ª - Factualidade esta não merecedora de qualquer censura em termos de consubstanciar violação do invocado ditame de boa-fé;

80ª - Estes acordos contratuais no plano da negociação, são contratos preliminares ou preparatórios, isto é, negociações que tinham em vista a ulterior celebração de um contrato principal ou definitivo, neste caso o contrato promessa de permuta, de fls. 94 dos autos, conforme preceitua os artigos 270º, 410º e 414º, entre outros do C. Civil e seus basilares princípios

81ª - O contrato foi um contrato promessa bivinculante em que ambas as partes têm obrigações e assumiram o cumprimento das mesmas, tudo no pressuposto, na obrigação de emitir no futuro as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido, o que se espera seja considerado válido por todo o exposto e pelo mais que Vªs Exªs Doutamente suprirão;

82ª -Face ao que fica dito, deverá o Douto Acórdão ser revogado e substituído por outro,

- Que considere que o A. não fez prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião sobre o prédio que identifica no artigo 1º e ss. da p.i., não beneficiando na presunção do registo – art.º 7º do C R Predial, e que o objeto do dito contrato promessa de compra e venda de 27.06.2006 dele é parte integrante, e que esta parcela constitui área sobrante daquele prédio rústico que foi sujeito a uma operação de loteamento,

- Que a causa de pedir e do pedido é inexistente no que diz respeito quer ao prédio identificado no art.º 1º e ss., quer à parcela identificada em 14º, 19º e 20º da mesma  peça,

- Que o objeto do contrato promessa de compra e venda celebrado entre A. e R, em 27.06.2006 é inexistente, como parcela a destacar do dito prédio,

- Que a resolução de tal contrato não pode ter lugar por falta de pressupostos para o efeito, mormente por erro sob o objeto,

- Que reconheça o invocado contrato promessa de permuta celerado pelo 1º R. com o A., em situação de emergência e do qual constam declarações de vontade bivinculantes que foram cumpridas, quer pelo A., pela entrega da parcela objeto do mesmo com a área de 4500m2, que fica à entrada da Zona Industrial ..., do lado direito, quem entra na zona, ao R., quer este (R), pela cedência ao A. da exploração das ditas águas, objetivadas pela colocação de uma bomba no furo que existe na sua propriedade., por mais de um ano.

83ª - O Acórdão proferido, violou, por omissão e ou incorreta aplicação os artigos 342º, 1.288º, 270º, 251º, 410º e 414º do C. C., entre outros e seus basilares princípios, e outras normas legalmente aplicáveis ao caso em apreço, mormente o art.º 607º, 666º, e 615º n.º 1, alíneas b), c), d), e) do C. P. Civil e seus basilares princípios, artigo 20 da C.R.P, o que o torna nulo e de nenhum efeito, e acórdãos uniformizadores de jurisprudência.

Nestes termos, nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de Vªs Exªs, deve ser dado provimento ao presente recurso,

revogando-se o Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que decida nos termos preditos, farão a já habitual e reparadora Justiça!»

6. O Município apresentou contra-alegações em que pugna pela improcedência do recurso e pela manutenção do decidido.  

7. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I – Das nulidades imputadas ao acórdão recorrido;

II – Do juízo probatório efetuado pelo tribunal “a quo” a respeito da área da parcela reivindicada;

III – Da prova da propriedade da parcela reivindicada;

IV – Da resolução do contrato-promessa de alienação celebrado em 27-06-2006, entre o Município ..., como 1º outorgante, e AA, como 2º outorgante

V – Do pedido reconvencional: qualificação do acordo datado de 29-03-2013 a que se refere o ponto 24 dos factos provados.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

1.1. Os factos provados, após a modificação operada pelo Tribunal da Relação, são os seguintes:

1 - Pela Ap. 6 de 2003/01/10, foi registada, a favor do A., a aquisição, por acessão industrial imobiliária, do prédio rústico denominado ..., inscrito na matriz predial da freguesia ..., ..., sob o art. ...75 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n º ...74.

2 - Consta da certidão predial do referido prédio que: da área inicial de 182.000 m2 foram desanexados 63.365 m2 para as fichas n º 2572 e 2605 e que foram cedidos ao domínio público 26.188 m2.

3 - Parte do prédio foi utilizado para instalação de indústrias no concelho, através da divisão em lotes, para criação de um loteamento industrial, tendo, para o efeito, o A. procedido a terraplanagens, à realização de arruamentos e outras infra-estruturas.

4 - Desta operação de loteamento sobrou uma parcela de terreno, localizada a norte, com a área de 12.075,22 m2, entre o arruamento criado e outro caminho a norte (Facto modificado pelo Tribunal da Relação)[1].

5 - Esta parcela de terreno é adjacente ao prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia ..., ..., sob o art. ...54, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n º ...59.

6 - Pela Ap. ...39 de 2016/03/22, aquisição do prédio referido em 5, foi registada, a favor da 2ª R., por dação em pagamento.

7 - Em 26-05-2006, o R. requereu ao A., que lhe cedesse a parcela de terreno referida em 4, por permuta com uma nascente de água, uma vez que era sua intenção instalar ali e no prédio identificado em 5, um empreendimento hoteleiro.

8 - Antes de 2 de junho de 2006, a 3ª R. apresentou ao A., um pedido de licenciamento do empreendimento turístico a instalar na parcela em causa, que foi autuado sob o n.º 39/06.

9 - Em 01-06-2006, o 1º R. e a 3ª R., contrataram com terceiros a realização de estudo de viabilidade económica e financeira do investimento hoteleiro, que foi realizado, bem como um contrato de prestação de serviços, com vista à concretização do projeto de investimento para o empreendimento turístico.

10 - O pedido do R. mencionado em 7, foi objeto de análise e decisão em reunião da Câmara Municipal ..., de 1 de junho de 2006, que não aceitou realizar a pretendida permuta, aceitando, porém, alienar a referida parcela de terreno ao R., sujeitando, porém, tal venda, a algumas condições, mencionadas em 11.

11 - Na sequência da aludida decisão, mediante acordo designado por “CONTRATO DE PROMESSA DE ALIENAÇÃO A TÍTULO ONEROSO DE UMA PARCELA DE TERRENO”, datado de 27-06-2006, o Município ..., como 1º outorgante, e AA, como 2º outorgante, declararam celebrar um contrato promessa de compra e venda, onde convencionaram que:

a) O 1º era dono e legítimo proprietário de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar da ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 92.447 m2, registado na competente Conservatória do Registo Predial sob o n º ...03 e inscrito na matriz sob o n º ...75;

b) Pelo contrato em questão, o 1º prometia vender ao 2º, que prometia comprar, uma parcela de terreno com a área de 12.075,22 m2, a desanexar do supra referido prédio, para instalação de um empreendimento turístico de interesse coletivo para a comunidade local -Hotel;

c) Acordaram no preço de 0,5 € / m2, num total de € 6.037.61, a ser pago no acto da celebração da escritura definitiva de compra e venda;

d) A referida parcela destinar-se-ia exclusivamente à instalação do empreendimento turístico de Hotel e seria vendido com a seguinte condição: caso não se verificasse o investimento (instalação do empreendimento turístico) até final do ano de 2011, a referida parcela de terreno reverteria para a Câmara Municipal, não havendo neste caso devolução da quantia paga pelo comprador, nem direito a qualquer tipo de indemnização;

e) A escritura definitiva de compra e venda seria marcada pelo 2º, logo que reunisse toda a documentação necessária para o efeito.

f) O 2º outorgante ficou desde logo autorizado na posse da referida parcela, vedando-a e procedendo à sua limpeza.

12 - Os outorgantes do acordo mencionado em 11, ficaram cientes de que, para se proceder à celebração da escritura pública de compra e venda, seria necessário o destaque prévio da parcela prometida vender.

13 - Após o acordado em 11, o R. passou a utilizar a parcela de terreno em causa, procedendo, nomeadamente, à sua desmatação e regularização.

14 - O A., em 01-06-2006, pediu parecer à CCDRN, sobre a construção do Hotel, sendo que aquela entidade, em 03.07.2006, informou que: “…uma vez que o terreno que é objecto da presente pretensão está integrado em área de Reserva Ecológica Nacional, não se enquadrando em nenhuma das excepções previstas no art. nº 4 do Decreto-Lei 93/90, a mesma não poderá ser licenciada.”

15 - Após 27-06-2006, o R. contactou o A., solicitando-lhe que procedesse ao destaque da parcela que prometera vender-lhe.

16 - O A. informava-o que só após a alteração do PDM é que poderia dar andamento ao destaque da parcela, que então estava integrada na REN.

17 - Entretanto, em setembro de 2009, o PDM foi alterado, e a parcela de terreno em causa deixou de estar integrada na REN.

18 - Foi então do conhecimento público, nomeadamente do A. que, estava projetado um empreendimento turístico, a cerca de 500 metros da parcela em causa, mancha de ocupação que foi contemplada aquando da aprovação do PDM em 2009.

19 - Empreendimento que se encontra agora em pleno funcionamento, como um Hotel de 4 estrelas – ... -, que foi inaugurado em abril de 2016, ocupando um espaço de mercado que o 1º R. não mais recuperaria.

20 - Não foi realizado o destaque da parcela prometida vender.

21 - A escritura de compra e venda não chegou a ser marcada ou celebrada.

22 - O R. não obteve o licenciamento do projecto do empreendimento turístico.

23 - O R. não iniciou a construção da unidade hoteleira.

24 - Em escrito designado por “Contrato de Promessa de Permuta”, assinado pelo então Presidente da Câmara Municipal ... e o R., ali se consignou que: “Na reunião ocorrida em 29 de Março de 2013, entre o Presidente da Câmara Municipal ..., EE e LL (…) acordaram as partes que será cedida por AA a propriedade da nascente de água e consequente exploração de imediato, através de uma permuta com o lote de terreno que fica à entrada da Zona industrial, do lado direito, cuja propriedade é do Município ..., conforme proposta enviada por AA em 29 de Fevereiro de 2012, aguardando apenas pela legalização do terreno do Município ... como lote, que tem cerca de 4.500 m2, conforme levantamento feito pelo Município. Fica o Município ... com o direito de utilizar o furo artesiano pertencente a LL, que se encontra no limite das propriedades da Câmara Municipal e de AA, no verão e quando necessário.

Fica desde já expresso que AA pode tomar posse do terreno em causa para a realização de mais valias que julgue necessárias”.

25 - Desde então, o A., durante algum tempo, passou a utilizar e fruir a dita nascente e bem assim a água proveniente do furo artesiano, colocando ali uma bomba submersível e demais equipamento necessário para extração de água.

26 - Por seu turno e no seguimento do referido em 24, à semelhança do que já vinha fazendo, e com o consentimento do Presidente da Câmara Municipal ..., o R. continuou a usar e fruir a parcela de terreno que o A. prometera vender-lhe.

27 - Facto eliminado pelo Tribunal da Relação e transferido para 14 dos factos não provados.

28 - O A. não agendou dia e hora para a celebração da escritura pública em causa.

29 - Devido ao referido em 28, os R.R. estão impossibilitados de utilizar a parcela em toda a sua plenitude, concretamente, de nela edificarem.

30 - Em reunião de 29 de abril de 2016, o A. deliberou a resolução do contrato aludido em 11.

31 - E comunicou-o ao R.

32 - O R. não entrega a parcela de terreno ao A.

33 - A parcela de terreno sobrante da operação de loteamento industrial descrito em 3, localizada a norte, entre o arruamento criado e outro caminho a norte, e a que se refere o ponto 4 dos factos provados, faz parte do prédio inscrito na matriz sob o art.º ...75 da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74 (Facto aditado pelo Tribunal da Relação).

1.2. Os factos considerados não provados são os seguintes:

1 - O prédio referido em 1 dos factos provados, tinha inicialmente a área de 182.000 m2, tendo sido destacada a área de 89.553 m2, que foi objeto de divisão em lotes e cedência ao domínio público municipal, como consequência do respetivo loteamento que, sobre esta parte, incidiu.

2 - Eliminado pelo Tribunal da Relação.

3 - Desde abril de 1974 que o Município “utilizou” tal prédio.

4 - À vista de todos, sem que quem quer que fosse tal tivesse questionado.

5 - Eliminado pelo Tribunal da Relação.

6 - A construção de uma unidade hoteleira pelo R. “não tem qualquer interesse para o A.”, já que a oferta hoteleira é “suficiente”.

7 - A parcela prometida vender é utilizada pela 3ª R. para depósito de materiais de construção.

8 - Foi logo após 27-06-2006 que o 1º R. contratou com terceiros a viabilidade económica e financeira do investimento bem como o projeto para o empreendimento turístico e elaboração do projeto de arquitetura e respetivas especialidades, a instalar na parcela em causa.

9 - O A. garantiu ao R. que a alteração ao PDM ocorreria antes do Natal de 2006 e que a mesma não comprometeria o investimento.

10 - O empreendimento projetado, que deu entrada na Câmara, mereceu aprovação de todas as entidades consultadas (Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil, Delegação de Saúde, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e Direcção Geral do Turismo).

11 - Em 07-01-2010, e posteriormente, o R. interpelou o A., pugnando pelo destaque da parcela.

12 - O A. contactou o R., dando-lhe conta de que, com vista ao encontro de uma solução que não prejudicasse nenhuma das partes, estava disposto a pôr termo ao acordo mencionado em 11 dos factos provados e a celebrar com o R. um contrato de permuta.

13 - Eliminado pelo Tribunal da Relação

14 - O R. interpelou o A., para que marcasse dia e hora para a escritura definitiva, que teria por objeto o cumprimento do constante de 24 (aditado pelo Tribunal da Relação)

1.3. Para a decisão do objeto do recurso relevam ainda os seguintes factos, que se consideram assentes:

1.3.1. Por escrito datado de 4 de maio de 2016, o autor comunicou ao réu, além do mais, o seguinte:

«(…)

Foi celebrado em 27.06.2006 o contrato promessa de compra e venda no qual o Município ... prometia vender e V. Exa. comprar uma parcela de terreno com a área de 12.075,12 m2 a desanexar do prédio rústico denominado “monte de ...”, destinado à instalação de um empreendimento turístico-Hotel.

No referido contrato foram estipulados prazos, ou seja, na clausula quarta do mesmo estipula-se que caso o investimento não se realizasse até final do ano de 2011 a referida parcela reverteria a favor do Município.

Verifica-se que V. Exa., promitente comprador, não cumpriu o contrato promessa pelo que ficam abalados todos os pressupostos da venda daquela parcela de terreno, tendo a Câmara Municipal, na sua reunião ordinária de 29.04.2016, aprovado a intenção de resolver o contrato de promessa de compra e venda em causa e revogar a deliberação de Câmara de 01 de junho de 2006 conducente à autorização de venda da parcela de terreno.

(…)».

1.3.2. Em resposta à comunicação aludida em 1.3.1., o réu remeteu ao autor, que o recebeu, escrito datado de 18 de maio de 2016 do qual consta, além do mais, o seguinte:

«(…)

Consta de tal missiva enviada ao ora requerente, que a Câmara Municipal na sua reunião ordinária de 29.04.2016, aprovou a intenção de resolver o contrato promessa de compra e venda em causa e revogar a deliberação da Câmara de 01 de Junho de 2006 conducente á autorização de venda da parcela de terreno.

Ora sucede que, consta de tal contrato promessa que o Município iria proceder ao destaque da parcela, objecto do mesmo, e que, após seria, então, celebrado definitivamente o contrato prometido, ou seja escritura pública; Porém, e até à presente tal não sucedeu, pelo que, não houve da parte do ora requerente, qualquer incumprimento que legitime tal resolução e revogação da dita celebração MM de 01.06.2006.

Ora, entende o requerente, salvo o devido respeito e melhor opinião, que a resolução só pode ser decretada pelo tribunal o que, tanto quanto sabe o mesmo, não foi ainda decretado.

(…)».

1.4. Os factos constantes dos pontos 1.3.1. e 1.3.2. consideram-se admitidos por documentos, não concretamente impugnados pela parte contrária, e inserem-se no âmbito da matéria vertida nos pontos 30 e 31 dos factos provados, pelo que se aditou tal matéria à factualidade considerada assente.

B – O Direito

I – Das nulidades imputadas ao acórdão recorrido

1. Imputam os recorrentes à decisão recorrida as nulidades previstas nas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, as quais vieram a ser julgadas não verificadas pelo tribunal “a quo” em sede de conferência.

Segundo dispõe o artigo 615.º do CPC (aplicável à decisão proferida pela 2.ª instância por remissão do disposto no artigo 666.º, n.º1, do CPC):

 “1 - É nula a sentença quando:

 (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

A nulidade por omissão de pronúncia reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em “error in procedendo” ou erro de atividade que afeta a validade da decisão. Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Como é de modo reiterado afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “(…) a nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2 do artigo 608.º do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes”( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, proc.º n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1), não incorrendo em omissão de pronúncia o acórdão que, tendo conhecido das questões que lhe competia apreciar, não respondeu, um a um, a todos os argumentos avançados pelo recorrente ou não apreciou questões com conhecimento prejudicado pela solução dada à anterior questão (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2002, proc. n.º 02S1599).  

Efetivamente, a nulidade sob escrutínio só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes – nomeadamente, os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções -, sendo de afastar a verificação de tal vício quando se constata uma ausência de discussão das diversas “razões” e “argumentos” avançados pelas partes.

No caso, não se vislumbra qualquer questão – que os recorrentes, aliás, não individualizam - cuja apreciação tenha sido olvidada ou desconsiderada pelo tribunal recorrido.

Por outro lado, o acórdão recorrido não conheceu de qualquer causa de pedir não invocada, nem violou o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância, não se detetando qualquer violação aos limites impostos pelo artigo 609.º, n.º 1, do CPC através da condenação em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido.

2. Donde se conclui pela não verificação das nulidades previstas nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

3. Os casos de falta de fundamentação e de oposição entre os fundamentos e a decisão respeitando, muito embora, à estrutura da decisão constituem, em rigor, situações de anulabilidade da sentença e não de verdadeira nulidade da mesma.

Competindo ao juiz especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (artigo 607.º, n.º 3, do CPC), há nulidade (no sentido lato de invalidade utilizado pela lei), por falta de fundamentação,  quando, como explicam Lebre de Feitas e Isabel Alexandre, “falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão” (Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, Coimbra, 2017, p. 736), não integrando tal vício a mera deficiência de fundamentação.

4. Quanto à nulidade adveniente da existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, esta só se verifica quando das premissas de facto e de direito constantes da decisão se extraia uma consequência oposta à que logicamente devia ter sido extraída.  Como observam os autores supra citados (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 737), existe contradição lógica entre os fundamentos e a decisão determinativa da nulidade da sentença se “na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente.” Este vício não se confunde com o erro de julgamento, em que o juiz, muito embora mal, “entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre”.

Se é irrefutável que o dever de fundamentação das decisões se impõe ao julgador “(…) por imperativo constitucional e legal (artigos 208.º, n.º1, da Constituição e 154.º, n.º1, do CPC) tendo ainda a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma e com a própria garantia do direito ao recurso (as partes precisam de ser elucidadas quanto aos motivos da decisão, sobretudo a parte vencida, para poderem impugnar os fundamentos perante o tribunal superior)” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-06-2019, proc. n.º 64/15.2T8PRG-C.G1.S1), não é menos verdade que o tribunal “a quo”, quer no julgamento da matéria de facto, quer na apreciação da matéria de direito, não se eximiu de empreender uma fundamentação própria, autónoma e bastante exaustiva e pormenorizada.

Tal fundamentação evidencia as razões (explicitadas através da mobilização de diversos meios de prova) que estiveram na base da formação do juízo decisório quanto à alteração da matéria de facto. É o mérito do julgamento desta matéria, por referência à valoração feita em face dos elementos probatórios disponíveis no processo, que os recorrentes pretendem, em substância, atacar. No entanto, tal argumentação atira a discussão para a arena do mérito do julgamento levado a cabo pelo acórdão recorrido e não para o campo da deficiência estrutural desta peça decisória (na mesma linha, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-03-2022, Proc. n.º 893/19.8T8BJA.E1.S1).

5. Donde se conclui pela improcedência da arguição da nulidade por falta de fundamentação do acórdão recorrido.

6. Por outro lado, e deslocando o prisma de análise para o vício a que respeita a segunda parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, há que realçar que, no regime atual, a ambiguidade ou a obscuridade, agora limitadas à parte decisória, só relevam quando geram ininteligibilidade, isto é, “quando um declaratório normal, nos termos dos art. 236.º/1 e 238.º/1 do CC, não possa tirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.” (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 735).

 Como precisou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-02-2015 (Processo n.º 6391/07.5TBALM.L2.S1),  “I - No âmbito do NCPC (2013), a obscuridade ou ambiguidade do julgado deixou de constituir fundamento de reforma da decisão, passando a sua ocorrência a constituir, quando torne imperceptível a decisão, fundamento para a invocação da nulidade desta (art. 615.º, n.º 1, al. c), do NCPC).   II - Tal alteração pretendeu eliminar os pedidos de esclarecimento com propósitos meramente dilatórios, pois só a verificação de vícios da sentença que atinjam aquele grau de gravidade justificará a intervenção judicial no sentido da sua supressão mediante o reconhecimento da consequente nulidade.  III - Por ambígua deve continuar a ter-se a decisão à qual é razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares, ao passo que será obscura a resolução cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido (…)”

7. No acórdão recorrido, a premissa mobilizada pelo tribunal “a quo” – o facto de a conclusão alcançada pela prova pericial ordenada, no sentido de a área da parcela entre caminhos ser de 12.064,51 m2, não se afigurar, só por si, suscetível de fundar uma convicção positiva acerca do facto vertido no ponto 4 dos factos provados, na linha pretendida pelo apelante/autor – não colide do ponto de vista da coerência lógica com a conclusão alcançada a respeito da consideração como provado do facto de a parcela de terreno em discussão apresentar a área de 12.075,22 m2, considerando que, para fundamentar a sua convicção neste sentido, a Relação fez apelo a outros meios de prova.

8. Numa outra linha de argumentação, os recorrentes afirmam que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o acórdão primeiramente proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 03-10-2019, na medida em que este considerou existir uma dúvida acerca da realidade do facto consistente na exata área da parcela reivindicada tão-só suscetível de ser ultrapassada com recurso a prova pericial, ao passo que o aresto sob censura desprezou os resultados da perícia elaborada, fazendo apelo aos demais meios de prova produzidos para considerar demonstrada a área alegada pelo autor.

9. A oposição entre os fundamentos e a decisão enquanto causa de nulidade da decisão, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, respeita ao vício formal de uma mesma decisão, e não a uma eventual contradição entre o conteúdo de duas decisões, perfeitamente autónomas, sucessivamente proferidas no mesmo processo (como constitui o caso do acórdão recorrido prolatado pelo Tribunal da Relação de Guimarães e o anterior acórdão proferido pelo mesmo tribunal que, anulando a sentença apelada, determinou a reabertura da audiência final, para produção de prova pericial destinada a determinar a área da parcela de terreno em litígio, com a subsequente prolação de sentença). Nesta hipótese, a verificar-se contraditoriedade quanto ao sentido de duas decisões, poder-se-á, sim, colocar a questão da violação do caso julgado formal pela decisão proferida em último lugar (artigo 620.º do CPC) – questão que nesta sede não cabe apreciar.

10. Não se vislumbra, pois, no acórdão recorrido, qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, devendo, também nesta parte, improceder a alegação dos recorrentes.

11. Uma palavra final para referir que, não padecendo a decisão recorrida das nulidades invocadas, na mesma igualmente não se divisa que tenha sido aplicada qualquer interpretação normativa violadora do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição. A suposta violação da citada norma constitucional foi invocada em termos genéricos e não fundamentados, por parte dos recorrentes. Por outro lado, reporta-se à própria decisão recorrida enquanto ato jurisdicional e não a uma norma geral e abstrata ou dimensão normativa, pelo que não estamos perante qualquer questão de constitucionalidade normativa que integre o thema decidendum e vincule este Supremo Tribunal a um dever de pronúncia sobre a mesma.

12. Improcedem, pois, as conclusões 3.ª a 35.ª da alegação de recurso dos recorrentes.

II Do juízo probatório efetuado pelo tribunal “a quo” a respeito da área da parcela reivindicada

13. Os recorrentes pretendem, em substância, colocar em crise a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à impugnação da matéria de facto pedida pelo autor na sua apelação, a respeito do ponto 4 da factualidade dada como assente pela primeira instância (“4 - Desta operação de loteamento sobrou uma parcela de terreno, localizada a norte, com a área de cerca de 4.550 m2, entre o arruamento criado e outro caminho a norte.”), assim como a respeito do ponto 5 da matéria de facto não provada (“5 - Da operação de loteamento sobrou uma parcela de terreno com a área de cerca de 12.000 m2.”)

A facticidade descrita refere-se à área da parcela de terreno cuja entrega por parte dos réus é peticionada pelo autor na presente ação.

Os recorrentes insurgem-se contra a circunstância de o Tribunal da Relação de Guimarães se ter socorrido da prova que já constava dos autos para julgar procedente a impugnação da matéria de facto neste segmento, quando, em primitivo acórdão datado de 03-10-2019, considerou essa mesma prova inconclusiva para demonstrar a área da parcela em dissídio.

O tribunal de 1.ª instância, na primeira sentença proferida, em 23-02-2018, observando que a prova produzida a respeito da área da parcela sob escrutínio se afigurou “contraditória e inconclusiva”, consignou ter ficado na dúvida sobre se a parcela de terreno a que respeitam os pontos transcritos da matéria de facto apresentaria área superior a 4.550 m2, tendo considerado provado, por apelo à regra do ónus da prova estatuída no artigo 414.º do CPC, visto que a dimensão do terreno se tratava de matéria constitutiva do direito do autor, que a parcela apresentava apenas a área admitida pelos réus – 4.550 m2 – e não a pretendida pelo autor, a qual era superior a 12.000 m2.

Interposto recurso desta decisão, o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão prolatado a 03-10-2019, também aí chamado a emitir um juízo probatório acerca dos pontos 4 da matéria de facto provada e 5 da factualidade não provada, lançou mão do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC e determinou a anulação da decisão proferida pelo primeiro grau, ordenando a realização de uma perícia destinada a determinar a área da parcela de terreno em causa nos presentes autos, designadamente, um levantamento topográfico, perícia essa que foi considerada “imprescindível, dado que a prova produzida se mostrou inconclusiva, não permitindo a esta Relação alterar ou confirmar a decisão proferida sobre a matéria de facto, e que a situação de dúvida é suscetível de ser suprida nos termos expostos.”

A prova pericial foi realizada, tendo o respetivo relatório pericial sido junto ao processo a 17-11-2020.

Proferida nova sentença, o tribunal de primeira instância não ultrapassou a situação de dúvida quanto à área da parcela pertença do autor, deixando consignado o seguinte quanto à prova suplementar produzida: “A perícia realizada, documentos juntos com a mesma e esclarecimentos prestados pelo sr. perito, também não permitiram que formássemos convicção distinta da que anteriormente havíamos formado. Não está em causa saber qual seja a área total do terreno localizado a norte do arruamento público identificado nomeadamente a fls. 20, mas sim a de saber, dessa área total, qual a que é pertença do A. e qual a que é pertença da R. (sendo certo que há uma área que é de um prédio do A. e outra que é de um prédio da R.). Divergindo as partes quanto à localização da delimitação entre os dois prédios, a perícia não logrou esclarecer qual é a área do prédio do A., porque os srs. peritos não sabem qual a delimitação entre os dois prédios. O sr. perito que prestou esclarecimentos em audiência de julgamento, como referiu, fez um levantamento da totalidade da área situada a norte do caminho público identificado a fls. 20, área esta com cerca de 12.064,51 m2 e, onde entendeu poder ser a delimitação entre o prédio do A. e o da R. (onde havia parcialmente um muro, a partir do qual traçou uma linha imaginária), calculou, a partir daí, a área da parcela do A. Porém, o sr. perito não sabe (e cremos que ninguém saiba), qual seja a delimitação dos dois prédios, pelo que, não pôde, na nossa convicção, aportar nada de significativamente relevante para nos ajudar a determinar qual seja a área da parcela reivindicada pelo A. Tal dúvida é agravada pelo esclarecido pelo sr. perito, de que, toda a área localizada, a fls. 20, a norte do arruamento público, não fez/não faz parte do loteamento realizado pelo A., não constitui sequer área sobrante do loteamento realizado pelo A., conforme se mostra esclarecido também nas sobreposições que de fls. 712 verso a 715 verso o sr. perito fez, daquilo que foram as áreas de loteamento realizadas pelo A. e respetivas áreas sobrantes.”


14. Já o Tribunal da Relação, na exercitação dos seus poderes de livre apreciação probatória, ultrapassou a situação de dúvida quanto à área da parcela reivindicada através da conjugação da prova pericial suplementar e esclarecimentos prestados pelo perito engenheiro civil DD, em sede de audiência final, com a restante prova já produzida.

Com efeito, após dar nota da coerência interna do relatório pericial, o tribunal recorrido apreciou a idoneidade da base factual pressuposta pela perícia – em concreto, no tocante à existência de um muro encontrado pelo perito no local, que consubstanciou um ponto referencial decisivo para as operações de alinhamento, delimitação e determinação da área da parcela em causa – através do confronto com os depoimentos de três testemunhas que não se revelaram congruentes quanto à circunstância de tal muro fazer a delimitação do terreno camarário para o outro terreno particular.

Concluiu, a este respeito, o tribunal recorrido que a análise conjunta de tais meios de prova não permitia conferir relevância ao muro encontrado pelo perito no local pelo que “a conclusão extraída pelo perito, no sentido de que a área da parcela entre caminhos, pertencente ao autor, é de 12.064,51 m2, não se revela por si só idónea e suficiente para formar a convicção do juízo afirmativo do facto vertido no ponto 4 dos factos provados, no sentido pretendido pelo apelante/autor.”


15. Foi neste conspecto que o tribunal recorrido reapreciou criticamente os meios de prova produzidos, por referência à globalidade da factualidade assente: requerimento apresentado pelo réu junto do Município a 01-06-2006 e respetiva planta anexa, ata n.º ...1 da Câmara Municipal ... datada de 01-06-2006, contrato-promessa datado de 27-06-2006, relatório de fls. 242, datado de 09-06-2006; documento de fls. 52, datado de 15-02-2007; documento de fls. 93 v; documento intitulado “avaliação imobiliária de fls. 98 ss; escrito de fls. 94 vs; declaração do réu datada de 18-05-2016; peças processuais apresentadas no âmbito do procedimento cautelar n.º 142/16....; certidão do registo predial (nos elementos não abrangidos pela presunção registal adveniente do artigo 7.º do Código do Registo Predial); depoimentos das testemunhas NN, OO, EE; declarações de parte do 1.º réu.

Foi com base neste juízo, efetuado à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, que o tribunal recorrido entendeu ser de afastar a solução prescrita no artigo 414.º do CPC, atribuindo prevalência, em termos de credibilidade, aos meios de prova indiciadores de que a parcela de terreno, localizada a norte, entre o arruamento criado e outro caminho a norte, a que alude o ponto 4 dos factos provados, apresenta a área 12.075,22 m2, tal como indicada pelas partes no contrato-promessa que celebraram em 27-06-2006. Decidiu, assim, o tribunal recorrido eliminar o ponto 5 dos factos não provados e conferir nova redação ao ponto 4 dos factos provados, que passou a apresentar o seguinte recorte: “4 - Desta operação de loteamento sobrou uma parcela de terreno, localizada a norte, com a área de 12.075,22 m2, entre o arruamento criado e outro caminho a norte.”

Não se vislumbra, assim, qualquer atuação contraditória do tribunal “a quo” que, não deixando de atender à conclusão extraída no relatório pericial, no sentido de que a área da parcela entre caminhos se computava em 12.064,51m2, a conjugou com os restantes meios de prova produzidos (considerados no primeiro aresto, por si só, insuficientes a formar a convicção do juízo afirmativo do facto vertido no ponto 4 dos factos provados no sentido pretendido pelo aí apelante).

Efetivamente, ainda que a decisão recorrida não seja expressa nesse sentido, da sua interpretação integrada extrai-se que a circunstância de a conclusão pericial apontar para uma área de 12.064,51m2 – não obstante ser inidónea a fixar neste valor a área da parcela, tendo em conta as apontadas divergências da prova testemunhal quanto à natureza do muro existente no local – concorreu, juntamente com os elementos de prova pré-existentes no processo, para atribuir verosimilhança prevalecente à declaração constante do contrato-promessa datado de 27-06-2006 no que tange à área da parcela que dele é objeto (12.075,22 m2, notoriamente próxima da área constante do relatório pericial como constituindo “área da parcela entre caminhos”).

Assim – e ainda que tal alegação não haja sido expressamente formulada pelos recorrentes – há que sublinhar que a decisão recorrida, no segmento analisado, não consubstancia qualquer ofensa do caso julgado formal inerente ao fundamento de facto (da decisão jurídica que determinou a produção de prova pericial suplementar) a que se reconduz o juízo probatório levado a cabo no primeiro acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que considerou que os meios de prova produzidos até então se afiguravam insuficientes para ultrapassar a dúvida subsistente a respeito da área da parcela em litígio.


16. Ora, como é consabido, não se discutindo “in casu” a violação pela decisão recorrida das regras atinentes a prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa, o Supremo Tribunal de Justiça encontra-se impedido, nos termos do disposto nos artigos 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, de sindicar o acerto da decisão tomada por parte do tribunal “a quo” a respeito da impugnação da matéria de facto suscitada em sede de apelação no que tange aos aludidos pontos da matéria de facto (cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2020 (n.º 6791/18.5T8PRT.P1.S1), de 14-01-2020 (154/17.7T8VRL.G1.S2), de 14-01-2021 (2342/15.1T8CBR.C1.S1) e de 29-09-2022 (499/17.6T8STB.E1.S1).

Não cabe, pois, nos poderes deste Supremo Tribunal sindicar a decisão tomada pelo tribunal recorrido a respeito da suscetibilidade da prova pericial produzida fundar, em conjugação com outros elementos probatórios, um juízo probatório positivo acerca da área da parcela em crise: a prova pericial encontra-se sujeita ao princípio da livre apreciação (artigo 389.º do Código Civil), sendo definitivo o juízo formulado a seu respeito pelo Tribunal da Relação, nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do CPC (cfr., neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,  de 27-09-2007 (proc. n.º 07B2028), de 13-10-2020 (proc. n.º 12521/14.3T8LSB.L1.S1), de 02-06-2021 (n.º 1281/12.2TBMCN.P2.S1).

A este propósito, e ainda que sobre diversa temática, já foi feito notar por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,  de 02-06-2020 (proc. nº 3278/16.4T8GMR.G1.S1) que “o STJ não tem poderes para alterar o valor probatório atribuído pelo tribunal da Relação às declarações dos peritos, pois, em processo civil, estamos no domínio de prova sujeita a livre apreciação, não podendo o Supremo Tribunal substituir-se ao tribunal recorrido, nem para valorar de outra forma este meio de prova, nem para ordenar a repetição de novos exames, que substituíssem aqueles que já foram realizados, uma vez que foi feita nos autos uma segunda perícia, em relação à qual não se provou qualquer irregularidade, vício ou quebra de imparcialidade.”


17. Improcede, pois, a argumentação expendida pelos recorrentes nos pontos 36.º a 51.º das suas conclusões de recurso.


III - Da prova da propriedade da parcela reivindicada

18. As instâncias convergiram na qualificação da presente ação como uma ação de reivindicação, através da qual o autor pretende obter a condenação dos réus a restituírem-lhe uma parcela de terreno que afirma pertencer-lhe e encontrar-se a ser ocupada pelos recorrentes.

Observou a 1.ª instância que não é discutido - antes é aceite pelos réus - que o autor seja proprietário do prédio inscrito na matriz da freguesia ... sob o art. ...75, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n º ...74, beneficiando o autor da presunção da titularidade do direito consagrada no artigo 7.º do Código do Registo Predial, uma vez que tem registada a aquisição da propriedade de tal prédio a seu favor. Prosseguiu o primeiro grau de jurisdição, assinalando que a controvérsia reside na questão de saber se tal prédio integra uma parcela, situada a norte, entre o arruamento criado e um outro caminho, com a área de cerca de 12.000,00 m2. Ora, como a presunção do registo não abrange a área registada, entendeu a primeira instância que o autor não podia ser considerado presuntivamente, por via de tal presunção registal, proprietário da parcela em discussão, acrescentando que o réu também não poderia prevalecer-se da presunção da titularidade do terreno adveniente da posse a que alude o artigo 1268.º, n.º 1, do Código Civil. Considerou, pois, a primeira instância: “impendia sobre o A. o ónus da alegação e da prova dos factos constitutivos do seu direito de propriedade sobre a parcela com a área por si invocada, ónus a que não deu satisfação, pois pese embora tenha alegado a posse e a aquisição por usucapião do prédio (invocando que, desde 1974 que utilizava o prédio, para concretização dos seus objectivos e prossecução dos seus fins; tendo sido convidado a aperfeiçoar a p.i., no sentido de alegar quais os concretos actos de posse que vem praticando sobre a parcela de terreno em litígio, acedeu ao convite, esclarecendo que, não praticou qualquer acto concreto sobre a parcela), não logrou fazer prova de factos demonstrativos de tal forma de aquisição, relativamente à parcela de terreno em causa.”

Neste conspecto, a sentença tão-só reconheceu pertencer ao autor a parcela de terreno, localizada a norte do loteamento industrial realizado nesse prédio, situada entre o arruamento criado e outro caminho a norte com a área de 4.500 m2 (que os réus não disputavam pertencer ao Município).

Já o tribunal “a quo”, se acompanhou a primeira instância na conclusão de que o autor não logrou demonstrar os factos constitutivos da aquisição originária, por usucapião, do prédio rústico denominado ..., inscrito na matriz predial da freguesia ..., Ribeira ..., sob o art. ...75 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74, considerou que aquele não poderia deixar de beneficiar da presunção legal decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial da existência e titularidade do direito real de propriedade sobre a parcela em discussão – e que em decorrência da modificação da matéria de facto operada se fixou ter 12.075,22 m2 (ponto 4 dos factos provados) – uma vez que, na sequência da impugnação à decisão sobre a matéria de facto foi aditado um novo facto (elencado sob o n.º 33), segundo o qual “A parcela de terreno sobrante da operação de loteamento industrial descrito em 3, localizada a norte, entre o arruamento criado e outro caminho a norte, e a que se refere o ponto 4 dos factos provados, faz parte do prédio inscrito na matriz sob o art.º ...75 da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74.”

Insurgem-se os recorrentes contra este entendimento, afiançando que a posse prevalece sobre o registo, sendo a usucapião a base de toda a ordem jurídica imobiliária e indicando, para ancorar a sua posição, nomeadamente, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-03-2012 e de 15-12-1997, assim como os Acórdãos de uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.os 15/97, 3/99 e 1/2008.


19. Vejamos:

Nos termos do n.º 1 do artigo 1311.º do Código Civil “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”

A ação de reivindicação, que é uma ação real, implica para a sua procedência a prova da titularidade do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e da sua ocupação pelos demandados. A demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, o que implica a demonstração da aquisição originária desse direito - por usucapião (artigo 1287.º do Código Civil), ocupação (artigos 1318.º e seg. do Código Civil) ou acessão (artigos 1325.º e seg. do Código Civil) - ou a prova de factos legalmente reconhecidos como aptos a presumir a existência dessa titularidade -  a posse (artigo 1268.º, n.º 1, do Código Civil) ou o registo (artigo 7.º do Código do Registo Predial).

Como se fez notar no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-01-2021(Processo n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1), Conquanto a teoria da substanciação, consagrada no direito adjetivo civil, não sofre reservas que a causa de pedir nas ações de reivindicação pode confinar-se ao facto base da presunção legal, donde, ao titular do registo, porque beneficiário de uma presunção, apenas basta invocá-la, sendo desnecessária a prova do facto presumido. Ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, o artigo 7.º do Código do Registo Predial quer significar que se trata de uma presunção juris tantum, elidível por prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil) de que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância (a que o registo define). Ou, dito de outra forma, não obstante o artigo 581.º, n.º 4, 2ª parte, do Código de Processo Civil, adotando o princípio da substanciação, definir a causa de pedir, quanto às ações reais, na base do facto jurídico de que procede o direito real (ou seja, o que constitui o direito e determina de certo modo o seu conteúdo, é a causa originária de que provém), a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade (como é o caso do artigo 7.º do Código do Registo Predial, ao consagrar a presunção de que o direito existe na esfera do titular inscrito), dispensando, então, tais presunções legais o beneficiário delas de provar o facto presumido, como decorre claramente do artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil.”

Assim, como sublinha o citado acórdão, no caso do artigo 7º do Código do Registo Predial: “- O facto-base da presunção, será o facto registado (por ex.: o contrato de compra e venda, doação, usucapião, etc.); - E confere o seguinte alcance, quanto ao efeito presumido: (i) existência do direito que emerge do facto jurídico inscrito; (ii) titularidade desse direito na esfera do beneficiário inscrito; (iii) o objeto e o conteúdo dos direitos, ónus ou encargos, nos precisos termos definidos no registo.”

Como constitui jurisprudência absolutamente consolidada, a presunção adveniente da inscrição da aquisição do direito no registo predial, a que alude o artigo 7.º do Código do Registo Predial, não abrange a área, limites ou confrontações dos prédios descritos (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-11-2013, Processo n.º 74/07.3TCGMR.G1.S1, de 11-02-2016, Processo n.º 6500/07.4TBBRG.G2.S3), de 18-01-2018, Processo n.º 668/15.3T8FAR.E1.S2)  e de 19-09-2017, Processo n.º 120/14.4T8EPS.G1.S1).

Com efeito, como se realçou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-02-2016 (Processo n.º 6500/07.4TBBRG.G2.S3), “(…) incidindo a controvérsia, não sobre a titularidade dos prédios em confronto, mas, mais propriamente, sobre a sua precisa delimitação física, em consequência de ambas as partes se arrogarem a propriedade de determinada parcela de terreno situada na confluência dos lotes de que se reconhecem proprietários, a acção de reivindicação só poderá proceder na totalidade se puder considerar-se processualmente adquirido, como verdadeiro facto essencial, que o efectivo exercício de actos possessórios pelos AA e seus antecessores, susceptível de conduzir à usucapião, incidiu também sobre a parcela de terreno cuja titularidade é controvertida

O tribunal recorrido estendeu de forma mediata a presunção registal de titularidade do direito à parcela em discussão, ao fazer apelo ao facto introduzido sob o n.º 33 (de acordo com o qual aquela parcela faz parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n º ...74), concluindo: “uma vez que pela Ap. ... de 2003/01/10 o autor registou definitivamente a aquisição, por acessão industrial imobiliária, do prédio rústico denominado ..., inscrito na matriz predial da freguesia ..., ..., sob o art. ...75 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74 (ponto 1 dos factos provados), do qual faz parte a parcela de terreno, localizada a norte, entre o arruamento criado e outro caminho a norte, que corresponde à parcela reivindicada na presente ação, resulta indiscutível que o autor se deve considerar, presuntivamente, titular do direito de propriedade sobre tal parcela, nos termos que decorrem do artigo 7.º CRPredial, como, aliás, concluiu a sentença recorrida. Isso mesmo decorre, aliás, da matéria de facto definitivamente dada por assente, do qual resulta que a parcela de terreno sobrante da operação de loteamento industrial descrito em 3, localizada a norte, entre o arruamento criado e outro caminho a norte, e a que se refere o ponto 4 dos factos provados, faz parte do prédio inscrito na matriz sob o art.º ...75 da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74.”

Como tem sido observado pela jurisprudência, a enunciação da matéria de facto constante das decisões pode conter a referência, nas palavras do já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 12-01-2021 (Processo n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1) “a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, isto é, desde que sejam usadas sem representar uma aplicação do direito à hipótese controvertida (quando se trate de elementos adquiridos sobre os quais não vai incidir um esforço de apreciação normativa)”.

Ora, no caso, o facto foi aditado pela Relação com o argumento de que os réus expressamente admitem que a parcela em discussão se encontra integrada numa outra parcela de que o autor se arroga dono, com a área de 92.447m2, parcela essa que faz parte do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74. Este raciocínio levou o tribunal “a quo” a eliminar o ponto 2 dos factos não provados (2 - A parte sobrante [à operação de loteamento] constitui agora o prédio rústico, inscrito na matriz sob o art. ...75 rústico, da freguesia ...) e a incluir um novo facto na factualidade assente, com a redação já deixada transcrita e que aqui se recupera: “A parcela de terreno sobrante da operação de loteamento industrial descrito em 3, localizada a norte, entre o arruamento criado e outro caminho a norte, e a que se refere o ponto 4 dos factos provados, faz parte do prédio inscrito na matriz sob o art.º ...75 da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74.” (facto provado n.º 33).

Tal ponto factual refere-se a uma situação jurídica que foi colocada em causa pelos réus. Com efeito, ainda que estes, no artigo 20.º da sua contestação, afirmem que a parcela em discussão “estava e ainda está integrada numa parcela de que o A. se arroga dono, com a área de 92447m2”, esta afirmação terá de ser conjugada com a defesa dos réus considerada no seu conjunto (artigo 574.º, n.º 2, do CPC), em concreto, com a sua posição perentória no sentido de que a parcela reivindicada apresenta a área tão-só de 4550m2 (cfr. arts. 10.º a 12.º da contestação). Neste conspecto, entendemos que da interpretação integrada das declarações dos réus constantes da contestação não se poderá extrair a conclusão de que os mesmos confessam que a parcela sobrante da operação de loteamento industrial descrito no ponto 3 dos factos provados – e que o tribunal “a quo” deixou assente apresentar, não a área admitida pelos recorrentes, de 4550m2, mas a área de cerca de 12.000m2 - faz parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...74.

Donde se conclui que o ponto n.º 33 da facticidade assente se reporta a uma matéria controvertida com uma importância nevrálgica para a decisão da causa – a titularidade do direito de propriedade sobre a parcela reivindicada de 12.075,22 m2 -, que engloba um conceito conclusivo (que se reconduz à locução “faz parte”, que pressupõe, não um juízo sobre uma concreta ocorrência da vida real, mas um juízo de valor formado com base num critério legalmente firmado) que, por si só, encerra a solução jurídica do pleito, integrando-se no thema decidendum. Deve, por isso, ser considerado não escrito.


Esta solução extrai-se do disposto no n.º 3 do artigo 607.º do CPC, de acordo com o qual o juiz deve na sentença discriminar os factos que considera provados, em conjugação com o preceituado no artigo 410.º do mesmo Código, sendo que, como se fez notar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-03-2017 (Processo n.º 301/14.0T8STR.E1.S1, não publicado na “dgsi.”)  “a falta de previsão no actual CPC de disposição semelhante à do art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC – em que se estabelecia que eram tidas como não escritas as respostas sobre questões de direito – não pode significar que agora essas respostas possam ser consideradas como matéria de facto.”

Na mesma linha, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-09-2014 (proc. n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1), que “(…) constituindo a possibilidade de eliminação de factos conclusivos equiparados a questões de direito uma prerrogativa dos tribunais superiores de longa tradição doutrinal e jurisprudencial, esta pode ser exercida mesmo que não esteja prevista expressamente na lei processual.”

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2017 (Proc. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1) que, para além de realçar que “a questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado”, fez notar que o conceito de questão de direito, que se deve expurgar da matéria de facto, engloba, “como vem sendo pacificamente aceite (…) por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.”


20. Esta alteração da matéria de facto por via da consideração como não escrito do facto n.º 33, apesar de não ter sido peticionada pelos recorrentes, poderá ser oficiosamente determinada pelo Supremo Tribunal de Justiça (neste sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-05-2010, Processo n.º 251/2002.P1.S1, não publicado na “dsgi.”)

Daqui decorre que a presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial de que o autor beneficia, por ter registada a seu favor a inscrição definitiva da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio rústico em causa, não se estende à parcela referida no ponto 4) dos factos provados, pelo que só se poderá reconhecer o seu direito de propriedade, à semelhança do que decidiu a primeira instância, sobre a parcela de terreno com a área de 4.500 m2, reconhecida pelos recorrentes como pertencendo ao recorrido (Município).


Cumprirá, assim, em nossa perspetiva, julgar procedente o recurso dos réus neste segmento, determinando-se a revogação parcial do acórdão recorrido, com a alteração do ponto C) do seu dispositivo e a repristinação do que nesta sede foi decidido em primeira instância, condenando-se os réus a reconhecerem o autor como proprietário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., pela freguesia ..., sob o n º ...03, e especificamente, de uma parcela de terreno pertença do mesmo, com a área de 4.550 m2, localizada a norte do loteamento industrial realizado nesse prédio, situada entre o arruamento criado e outro caminho a norte;


21. Em consonância, os réus deverão ser condenados a entregar ao autor a parcela a que alude o ponto anterior, com a área de 4.550 m2, alterando-se, neste sentido, os pontos E) e F) do dipositivo do acórdão recorrido e repristinando-se o que nesta sede foi decidido em primeira instância, nesta parte procedendo o recurso em análise.


22. Insurgem-se, ainda, os recorrentes contra a decisão proferida a respeito do contrato-promessa celebrado em 27-06-2006, asseverando que tal contrato é “impossível de operar” porque o seu objeto se revela inexistente - pelo menos da forma como configurada pelo autor, como parcela a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71. Acrescentam que o dito contrato-promessa foi celebrado com erro sobre o objeto.

Como se deixou já antever, o direito de propriedade do autor deverá ser unicamente reconhecido quanto à parcela de terreno com a área de 4.550 m2, reconhecida pelos recorrentes – o que torna despicienda a análise da argumentação por estes expendida a respeito do objeto do convénio.

De resto, a invocação dos recorrentes no sentido de que a causa de pedir e do pedido são inexistentes “no que diz respeito quer ao prédio identificado no art. 1.º e ss, quer à parcela identificada em 14.º, 19.º e 20.º da petição inicial” revela-se ininteligível, uma vez que a existência daqueles elementos não fica, naturalmente, dependente da prova dos factos que integram a causa do pedir ou da procedência do respetivo pedido;

IV – Da resolução do contrato promessa de alienação celebrado em 27-06-2006

23. Quanto à resolução do contrato-promessa celebrado em 27-06-2006 entre o autor e o 1.º Réu, que os recorrentes afirmam não poder ter lugar “por falta de pressupostos para o feito, mormente por erro sobre o objeto”, cumpre ressaltar que as instâncias consideraram que tal contrato foi declarado validamente resolvido por parte do promitente-vendedor e que assim decidiram com uma fundamentação adequada aos factos provados.

Vejamos:

«20 - Não foi realizado o destaque da parcela prometida vender.

21 - A escritura de compra e venda não chegou a ser marcada ou celebrada.

22 - O R. não obteve o licenciamento do projecto do empreendimento turístico.

23 - O R. não iniciou a construção da unidade hoteleira».

Com efeito, por interpretação da cláusula  d) do contrato referido no ponto 11 dos factos provados, decorre que as partes convencionaram uma condição resolutiva (artigo 270.º do Código Civil), sujeitando-o à verificação de um evento condicionante suscetível de operar automaticamente a resolução do contrato, ao acordarem que, caso não fosse instalado o empreendimento turístico previsto nas cláusulas do contrato até ao final do ano de 2011, a parcela de terreno objeto do mesmo reverteria para o autor (artigos 433º e 289º, n º 1, do Código Civil). Nesse caso, como também se estipula no contrato, não haveria devolução da quantia paga pelo Réu, nem este teria direito a qualquer indemnização. Este regime contratual explica-se pela circunstância de estar em causa um preço simbólico de 0,5 euros por metro quadrado (cláusula c) do contrato promessa referido no n.º 11 dos factos provados) e pela necessidade de o Município, como entidade pública, dar primazia ao interesse público. 

Assim, não tendo o hotel sido construído dentro do prazo acordado tornou-se impossível cumprir a finalidade que presidiu à celebração do contrato, verificando-se o acontecimento futuro e incerto ao qual as partes subordinaram a resolução do contrato.

Invoca o recorrente que só não começou a construir o hotel porque a Câmara não fez o destaque da parcela de terreno, como lhe competia. Entendeu o acórdão recorrido que não resulta do contrato um dever de o Município proceder ao destaque da parcela, pelo que não se pode imputar incumprimento do contrato ao Município, nem culpa na não realização do destaque.

Todavia, dizer que não houve incumprimento do contrato por parte do município não implica admitir que a sua conduta é irrelevante em termos jurídicos, pois, de acordo com a boa fé, o Município devia ter atuado de outra forma procedendo de forma diligente ao destaque da parcela prometida vender para construção do hotel. Como demonstra a matéria de facto, ambas as partes estavam cientes que era necessário proceder ao destaque para se proceder à outorga da escritura pública (facto provado n.º 12), sendo que o destaque se tornou possível a partir de setembro de 2009 (facto provado n.º 17), ainda a tempo de proceder à construção do hotel até 2011 conforme estipulado no contrato.

O recorrente alega que o Município perdeu o interesse na construção do hotel, uma vez que outra empresa construiu um hotel na mesma zona, a cerca de 500m da parcela em causa, inaugurado em abril de 2016, o que consta dos factos provados 18 e 19. Todavia, a matéria de facto não permite afirmar um nexo causal entre a construção do novo hotel e a perda de interesse do município no negócio acompanhada da não realização, culposa, do destaque da parcela. A culpa do Município, dadas as vicissitudes legais da aprovação do projeto pelas diversas entidades competentes e a demora dos procedimentos, também não decorre da matéria de facto provada.  E, a matéria de facto não provada –«9 - O A. garantiu ao R. que a alteração ao PDM ocorreria antes do Natal de 2006 e que a mesma não comprometeria o investimento. 10 - O empreendimento projetado, que deu entrada na Câmara, mereceu aprovação de todas as entidades consultadas (Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil, Delegação de Saúde, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e Direcção Geral do Turismo)» – aponta em sentido contrário, impedindo que este Supremo Tribunal faça um juízo de culpa sobre o Município.

Assim, entende-se procedente a resolução automática do contrato, por falta de verificação do evento condicionante – a construção do hotel – e, tendo-se acordado no contrato, que, nessa hipótese, não haveria direito do promitente-comprador a qualquer indemnização, também não se pode, nesta sede, condenar a Câmara Municipal a indemnizar o réu pelos danos sofridos.

Em consequência, mantém-se o segmento decisório constante do ponto D) do dispositivo do acórdão recorrido relativo à resolução do contrato promessa de alienação.

V - Do pedido reconvencional: qualificação do acordo datado de 29-03-2013 a que se refere o ponto 24 dos factos provados

24. Pretendem os recorrentes reverter a decisão do tribunal “a quo” de improcedência do pedido reconvencional por si deduzido de condenação do autor a reconhecer ter sido celebrado entre este e o 1.º réu, no dia 29-03-2013, um denominado contrato-promessa de permuta que teria visado substituir o contrato datado de 27-06-2006. Invocam este contrato-promessa de permuta como título legítimo para a detenção da parcela de terreno reivindicada pelo autor.

A primeira instância condenou o autor a reconhecer a celebração de tal contrato-promessa de permuta celebrado entre o Presidente da Câmara Municipal ... e o réu, referente ao dia 29-03-2013.

O tribunal recorrido revogou este segmento decisório, observando que da análise do escrito aludido no ponto 24 dos factos provados, intitulado contrato promessa de permuta (reproduzido a fls. 94 vs. e que corresponde ao documento n.º 17 junto com a contestação através de requerimento datado de 19-09-2006, referência "Citius" n.º ...20) se extrai a conclusão “(…) que o acordo que nele vem documentado não permite consubstanciar um contrato-promessa, antes traduzindo um acordo preparatório ou acordo de princípio celebrado pelo Presidente da Câmara Municipal ... com o réu, sendo certo ainda que tal acordo sempre se revela ineficaz em relação ao Município por ter sido celebrado por quem não tinha poderes para vincular o autor Município quanto à matéria em causa, nos termos conjugados do disposto no artigo 268.º, n.º 1, do CC e artigos 53.º, n.º 2, al. i), e 64.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 169/99, de 18-09, estes últimos na redação aplicável.”

Os recorrentes disputam este entendimento, trazendo à colação o depoimento de várias testemunhas (cuja apreciação exorbita os poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça) e observando que, através do acordo em crise, o autor prometeu ceder a parcela que fica à entrada da Zona Industrial ..., do lado direito, com a área de 4500m2, tendo o réu, em contrapartida, prometido ceder ao Município a exploração das águas, o que foi concretizado pela colocação de uma bomba e pela extração de água para obviar à falta de água do Município para abastecimento público.


Vejamos:

No ponto 24 da factualidade assente, que reproduz o citado contrato promessa de permuta, pode ler-se: “

«24 - Em escrito designado por “Contrato de Promessa de Permuta”, assinado pelo então Presidente da Câmara Municipal ... e o R., ali se consignou que:

“Na reunião ocorrida em 29 de Março de 2013, entre o Presidente da Câmara Municipal ..., EE e LL (…) acordaram as partes que será cedida por AA a propriedade da nascente de água e consequente exploração de imediato, através de uma permuta com o lote de terreno que fica à entrada da Zona industrial, do lado direito, cuja propriedade é do Município ..., conforme proposta enviada por AA em 29 de Fevereiro de 2012, aguardando apenas pela legalização do terreno do Município ... como lote, que tem cerca de 4.500 m2, conforme levantamento feito pelo Município. Fica o Município ... com o direito de utilizar o furo artesiano pertencente a LL, que se encontra no limite das propriedades da Câmara Municipal e de AA, no verão e quando necessário. Fica desde já expresso que AA pode tomar posse do terreno em causa para a realização de mais valias que julgue necessárias”.


25. O Tribunal da Relação, começando por proceder à distinção entre acordos preparatórios e acordos contratuais (nos quais se insere o contrato-promessa), deu conta que, não obstante a denominação ou epígrafe aposta no escrito em causa, “a interpretação do teor da declaração e de todos os elementos atendíveis que dele decorrem leva a concluir que no acordo em análise falta o aludido requisito da completude, posto que as declarações que dele resultam são manifestamente insuficientes e incompletas quanto a determinados elementos essenciais do negócio, como é o caso da identificação ou individualização dos concretos elementos físicos, fiscais e registrais do lote de terreno a que alude, impedindo assim a completa determinação do respetivo objeto material.”

Para sustentar a sua conclusão de que o acordo em análise não consubstancia um contrato-promessa, antes se reconduzindo a um acordo preparatório ou acordo de princípio celebrado entre o Presidente da Câmara Municipal ... e o réu, o tribunal “a quo” avançou com argumentos corroborantes: sublinhou que do teor do documento (marcadamente descritivo ou narrativo das negociações tendentes ao acordo de vontades) não resulta sequer a menção da data em que foi subscrito; afirmou que a referência expressa à necessidade de se aguardar pela legalização do lote de terreno a que se reporta, “remete para a necessidade de ulteriores negociações para obtenção de um acordo final”; notou que o documento “não menciona de forma expressa que o primeiro subscritor nele intervenha em representação do Município e fazendo uso de poderes legalmente conferidos, nem resulta que o tenha feito em execução de deliberação formalmente assumida e tomada pela entidade com competência decisória sobre tal matéria, à luz do disposto nos artigos 53.º, n.º 2, al. i), e 64.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 169/99, de 18-09, na redação aplicável”; e rematou que “do teor deste documento também não decorre qualquer declaração expressa e/ou inequívoca no sentido da substituição das obrigações decorrentes do contrato anteriormente outorgado entre o Município e o 1.º réu, tal como se impunha no caso de se pretender a extinção ou a revogação da relação obrigacional validamente constituída por contrato escrito de 27-06-2006, posto que a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada (cf. artigos 857.º e 859.º CC).”


26.  Na situação em apreço, não tendo ficado demonstrada a vontade real das partes na outorga do escrito em análise, a interpretação das declarações no mesmo insertas deverá seguir os critérios fixados nos artigos 232.º, 236.º e 238.º, ambos do Código Civil (para os quais, aliás, remete o artigo 295.º do mesmo diploma), constituindo matéria de direito sujeita a sindicância por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

No caso sub judice, interpretando o acordo (documento n.º 17) junto aos autos pelos réus na contestação, verifica-se que estamos perante um mero acordo de princípio ou um acordo preparatório entre o Presidente da Câmara e o 1.º Réu no sentido de virem a celebrar, no futuro, um contrato promessa vinculativo para a Câmara Municipal, mas não perante um contrato promessa propriamente dito.

À luz do artigo 232.º do Código Civil «O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo». Ora, tendo em conta as circunstâncias de se encontrarem omissos os elementos físicos, fiscais e registrais do lote de terreno em referência e de as partes terem expressamente previsto a necessidade de se aguardar pela legalização do terreno “como lote”, tudo parece indicar que não se trata de um contrato promessa. Para além deste aspeto, o facto de o Presidente da Câmara ter intervindo no ato sem qualquer menção à sua atuação como representante do Município, confere ao acordo as notas da provisoriedade e da eventualidade típicas do período pré-contratual e inerentes a um esquema contratual de formação progressiva muito comum nas situações (como a vertente) em que um dos contraentes é uma pessoa coletiva que atua através de órgãos, uns singulares (como o Presidente da Câmara), outros colegiais (como a Câmara Municipal).

 A forma como está redigido o documento, começando por referir uma “reunião”, confirma esta qualificação de mero acordo preliminar ou prévio: «Numa reunião ocorrida em 29 de Março de 2013, entre o Presidente da Câmara ..., EE e AA….(…)”.

Ademais não está identificado com clareza no citado documento n.º 17 o objeto do suposto contrato promessa, pois nele não consta o número da matriz do lote de terreno alegadamente prometido dar em permuta pelo Município, nem qualquer  referência à certidão do registo predial, como é costume nos contratos-promessa, mas apenas a indicação genérica de um “lote de terreno que fica à entrada da Zona Industrial, do lado direito, cuja propriedade é do Município ... (…) aguardando apenas pela legalização do terreno do Município ... como lote, que tem cerca de 4500m2, conforme levantamento feito pelo Município”.

Tudo indica, pois, que o documento sob escrutínio, não obstante o seu nomen iuris, consubstancia um projeto de acordo que deveria ser sujeito à apreciação do órgão autárquico com competência para decidir pela alienação do imóvel em causa (em concreto, a Câmara Municipal ..., em conformidade com o estipulado no artigo 64.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, na redação vigente à data da outorga do documento), carecendo, pois, de natureza contratualmente vinculativa.


27. Entende o recorrente que os documentos complementares juntos na contestação, e que antecedem o documento n.º 17 (facto 24 dos factos provados) permitem corroborar a tese do contrato promessa.

Todavia, analisados os documentos 12 a 16 juntos aos autos pelos recorrentes na contestação, concluímos pela sua insuficiência para determinar o objeto negocial e colmatar as lacunas do documento intitulado “Contra Promessa de Permuta”, assinado pelo Presidente da Câmara e pelo réu, AA.

No documento 12, o Presidente da Câmara manifesta interesse em saber das condições de cedência da exploração da nascente propriedade do réu; no documento n.º 13, o réu responde ao Município ..., confirmando que a nascente lhe pertence e manifestando-se disponível para vender a mesma ou cedê-la em troca do lote de terreno sito na zona industrial que tem cerca de 4550 m2.

Esta troca de missivas consubstancia apenas um ato preparatório inicial para uma futura contratação, mas ainda sem os elementos necessários fiscais e registais para a identificação dos bens em causa, e nela não estão contidas declarações de vontade, nem sequer de mera intenção. Nos documentos 14  e 15,  um perito avalia, respetivamente, o lote de terreno sito em ..., freguesia ..., concelho ... e a nascente de água, esclarecendo no documento 14 que «Não foi fornecida ao perito avaliador qualquer certidão matricial ou certidão da Conservatória do Registo Predial, relativa ao prédio em avaliação. Não é do conhecimento do perito a existência de qualquer licenciamento ou viabilidade de construção aprovados pela respetiva Câmara Municipal e/ou outra entidade licenciadora» e no documento 15 na rubrica “Identificação do imóvel” «Refere-se a presente avaliação imobiliária a uma nascente de água, situada no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., propriedade da Sra Dr.ª PP». O documento n.º 16 é insuficiente para identificar com precisão os limites da parcela de terreno e os seus dados registais e fiscais. Pelo que entendemos que o acórdão recorrido fez uma correta avaliação dos documentos quando entendeu que eram insuficientes para preencher as omissões do documento n.º 17.


28. Como refere Carlos Ferreira de Almeida (Contratos – Conceito – Fontes -Formação, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2008, p. 38) se, enquanto ato, o contrato se qualifica como negócio jurídico plurilateral, enquanto acordo, “o contrato caracteriza-se pela natureza dos efeitos que produz – jurídicos, performativos e reflexivos.” De acordo com a sua definição, o contrato é “o acordo formado por duas ou mais declarações que produzem para as partes efeitos jurídicos conformes ao significado do acordo obtido”.

O contrato-promessa, como é consabido, é a convenção pela qual as partes - ou apenas uma delas - se obrigam a celebrar determinado contrato, o contrato prometido (artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil).

No enquadramento que da figura é feito pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-04-2017 (Processo n.º 75193/05.0YYLSB-A.L1.S1), o contrato-promessa é definido como “um contrato transitório, com vida precária, sempre acessório de outro negócio a celebrar futuramente. Ou seja, as partes, após negociações preliminares, concluem pela conveniência de celebrarem certo contrato. Porém, não o fazem de imediato, ou porque não se consideram habilitadas para detalharem, desde logo, todo o clausulado, ou porque não pretendem que os efeitos do contrato se produzam de imediato. Daí que o contrato-promessa, tenha, noutras sedes doutrinarias alienígenas as designações de “antecontrato”; “pré-contrato”; “the contract to make future contract”; e, em latim “pactum de contrahendo” ou  de “pactum de inuendo contractu”. Então, optam pelo contrato promessa, como acordo preparatório do negócio definitivo.”

Existe, todavia, uma realidade preliminar no iter negotii que fica a montante da modalidade contratual em análise. Com efeito, “(…)fruto, designadamente, da complexidade dos interesses em confronto e da importância económica do objecto negociado, os contratos são frequentemente precedidos de um período, por vezes longo, de preparação e negociação entre as partes. Para além de um vasto e variado conjunto de actos materiais (reuniões, estudos, etc.), surgem muitas vezes acordos de carácter preliminar e instrumental, pré-contratuais. Estes acordos não contratuais[3] são "instrumentos jurídicos, destituídos de natureza contratual, auxiliares da negociação de um dado contrato, que servem essencialmente para determinar a forma como as negociações entre as partes contratantes se processarão ou para cristalizar o estado dessas negociações em determinado momento"[4]. Exemplos desses acordos são as chamadas cartas de intenção ou acordos de princípio (letters of intent) que, na maioria dos casos, constituem meros acordos de negociação, e os acordos de base (heads of agreement) que servem essencialmente para registar e consagrar os consensos que vão sendo obtidos sobre pontos essenciais do negócio” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-02-2014, Processo n.º 934/11.7TBOAZ.S1).

No conspecto doutrinal, a figura dos acordos intermédios tem sido tratada, com mais profundidade, ao nível dos contratos internacionais e, em concreto, sob a ótica da responsabilidade pré-contratual (cfr. Luís Menezes Leitão, “Negociações e Responsabilidade Pré-Contratual nos Contratos Comerciais Internacionais”, ROA, 60, 2000, pp. 47-51)

Santos Júnior (“Acordos Intermédios: Entre o Início e o Termos das Negociações para a Celebração de um Contrato”, ROA, 57, 1997, p. 591) traça a distinção entre a figura dos acordos intermédios e do contrato-promessa, observando que “o contrato-promessa é, sem dúvida, um contrato preliminar do contrato definitivo; mas não é, «hoc sensu», um acordo intermédio, porque ele próprio é tradução do termo das negociações, sabido que dele resulta a obrigação de contratar e que dele hão-de constar as cláusulas do contrato definitivo ou final. Após a celebração do contrato-promessa, nada há que negociar. Ele não se situa, pois, antes do termo das negociações, não é, assim, no nosso sentido, um acordo intermédio.”

Também no domínio mercantil, marcado pela complexidade dos interesses em jogo, pela internacionalização e plurilocalização das partes contratantes, Engrácia Antunes (Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra, Almedina, 2009, p. 97) dá conta do surgimento de acordos preparatórios e ancilares da negociação (também apodados de “acordos intermédios” ou “contratação mitigada”) que define como “instrumentos jurídicos, destituídos de natureza contratual, auxiliares da negociação de um dado contrato mercantil, que servem especialmente para determinar a forma como as negociações entre as partes contratantes se processarão ou para cristalizar o estado dessas negociações em determinado momento.”

No entanto, como salienta Filipe Albuquerque Matos (“A Fase Preliminar do contrato”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977 – Direito das Obrigações, volume III, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 311), a criação de novos expedientes técnico-jurídicos de natureza pré-contratual, marcados pela nota da heterogeneidade, não deixa de assumir relevância no âmbito do tráfico jurídico interno, em setores em que se verifica uma complexidade da realidade socioeconómica.

A questão em análise convoca a operação de qualificação do acordo datado de 29-03-2013 a que se refere o ponto 24 dos factos provados, em concreto, a determinação do âmbito de vinculação jurídica inerente ao mesmo, uma tarefa que se reconduz à atividade de interpretação da vontade jurídico-negocial das partes de acordo com as regras postuladas pelo artigo 236.º do CC (neste sentido, cfr. Filipe Albuquerque Matos, ob. cit., pp. 367-368).

Efetivamente, como nota Calvão da Silva (“Negociação e formação do contrato”, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil, (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1999, p. 60), a demarcação entre negociação (contrato in itinere) e a conclusão de contrato (contrato-promessa ou contrato definitivo) há-de fazer-se segundo o critério da vontade das partes.

A este propósito, considerou o Supremo Tribunal de Justiça, no citado acórdão de 18-02-2014: “(…) a questão (…)  de saber se, no caso, estamos em presença de um verdadeiro contrato (contrato-promessa) ou apenas de um acordo pré-contratual levanta essencialmente e, em primeira linha, um problema de interpretação da vontade declarada pelos contraentes e, depois, de qualificação. Trata-se de uma "interpretação preliminar, para apurar da existência ou não de um contrato final ou definitivo e não para apurar o sentido final de todas as cláusulas do mesmo". Isto é, visa "apurar qual haja sido a intenção das partes: se foi a de se vincularem ou não num contrato definitivo. Nessa tarefa, ainda que o ponto não seja inteiramente pacífico, deve ter-se em conta o critério previsto no art. 236º nºs 1 e 2 do CC, que consagra a teoria da impressão do destinatário: o sentido das declarações negociais será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Tratando-se de negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – art. 238º nº 1. Como elementos essenciais, haverá a considerar na interpretação "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e costumes por ela recebidos”. Importa ainda referir que a interpretação das declarações contratuais constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias. Constitui matéria de direito, sindicável pelo Supremo, determinar se na interpretação das declarações foram observados os critérios legais impostos pelos citados artigos 236º e 238º”.

Como salienta Ana Prata (O contrato-promessa e o seu regime civil, Coimbra, Almedina, 1999, p. 568), desde logo por decorrência do princípio da equiparação (art. 410.º/1 do Código Civil), “para que de contrato-promessa se possa falar, ponto é que ele se identifique pela referência ao negócio que constitui seu objecto, e, para que tal identificação seja bastante, é necessário que nele se encontrem desde logo determinados os elementos essenciais desse negócio definitivo”.

Observa, a este respeito, a civilista (ob. cit., p. 568) que a caracterização distintiva dos acordos pré-contratuais do contrato-promessa funda-se, frequentemente, na “consideração da incompletude ou da completude do acordo como indício da vontade das partes de ainda não se vincularem ou de se considerarem já obrigadas.”


29. Não, estamos, pois perante um contrato de promessa de permuta. Contudo, o Município permitiu que os réus utilizassem e fruíssem o terreno (facto provado n.º 26) e fez uso da nascente propriedade dos réus (facto provado n.º 25), criando assim expetativas nestes de que viria a ser celebrado o contrato que estavam a negociar.

Nas relações contratuais (e no processo de negociação), existe, como decorre da boa fé, um dever de cuidado ou de solidariedade com os interesses da outra parte, que exige a cada uma delas um dever de atuar de forma correta e evitando que a contraparte sofra prejuízos desnecessários ou evitáveis.

Entendemos, pois, que impende sobre o Município o dever de indemnizar os réus, ao abrigo do artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil, por se terem frustrado as negociações que de boa fé os réus aguardavam.

A doutrina (cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, coleção teses, Almedina, Coimbra, reimpressão, 1997, p. 585) e a jurisprudência (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11-09-2007, Revista n.º 2402/07) têm entendido que, tratando-se de responsabilidade obrigacional, demonstrada a violação dos deveres pré-contratuais que determinaram a frustração do negócio, presume-se a culpa da parte faltosa, nos termos do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil.

A doutrina tem também entendido que a responsabilidade por violação da confiança «(…)não depende, ao invés do que sucede no campo delitual, de qualquer censura agravada, bastando a simples negligência» (cfr. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, coleção teses, Almedina, Coimbra, 2004, p. 723).    

Nos termos do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11-09-2007, já citado, «II A responsabilidade pré-negocial não existe apenas quando as partes não adoptam um padrão de lisura, honestidade negocial, consideração dos interesses da contraparte, observando deveres de conduta compagináveis com a natureza do negócio em formação, mas também quando tendo aproximado pela via dessa negociação a conclusão do negócio, por facto seu, este já em fase adiantada não é concluído. III - O interesse protegido pelo normativo do art. 227.º do CC é a boa-fé a confiança de quem negoceia para a conclusão do negócio, sendo que aquele que induz a confiança terá de ser responsabilizado se a trai, já que o Direito tem cada vez mais uma componente ética traduzível na sempre actual máxima romanista alterum non laedere».


A jurisprudência, maioritariamente, considera, que o dano indemnizável é o do interesse contratual negativo, ou dano da confiança, isto é, a indemnização visa repor o lesado na situação em que estaria se não houvesse iniciado as negociações ou ressarcir o dano em que lesado incorreu por ter confiado nas negociações e na aparência objetiva de que o negócio se celebraria, pelo tempo perdido com as negociações e pelo investimento que fez nelas.

Assim, se os réus investiram, de boa fé, no terreno, contando com a sua aquisição e confiando no almejado contrato-promessa – a boa fé presume-se – têm, por força da lei, o direito a indemnização por danos patrimoniais, por exemplo, benfeitorias ou despesas com a preparação do terreno para edificação, conforme invocaram na contestação e na reconvenção, a calcular em sede de execução de sentença.

Relativamente aos danos não patrimoniais peticionados, considera-se não estarem abrangidos pela cláusula geral do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, na medida em que se trata de contrariedades e incómodos inerentes a negociações com entidades públicas, às quais a lei exige, e bem, uma série de procedimentos e autorizações para a contratação, que nem sempre se concretizam.


30. Não havendo factos suficientes para decidir acerca do quantum da indemnização dos danos patrimoniais indemnizáveis, remete-se o processo para o Tribunal da Relação para o efeito da ampliação da matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ao abrigo do artigo 682.º, n.º 3, do CPC.


31. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Da interpretação do contrato promessa de alienação referido a 11 dos factos provados decorre que nele foi aposta uma cláusula a fixar uma condição resolutiva nos termos da qual se não fosse construído um empreendimento turístico de Hotel, até 2011 na parcela de terreno prometida vender, a referida parcela de terreno reverteria automaticamente para a Câmara Municipal, sem qualquer indemnização do promitente-comprador.

II - A falta de previsão no atual Código de Processo Civil de disposição semelhante à do artigo 646.º, n.º 4 do anterior Código de Processo Civil – em que se estabelecia que eram tidas como não escritas as respostas sobre questões de direito – não pode significar que agora essas respostas possam ser consideradas como matéria de facto.

III - Para que de contrato-promessa se possa falar é necessário que nele se encontrem determinados os elementos essenciais do negócio definitivo e que dele resulte a obrigação de celebrar o contrato prometido.

IV – Não estando o objeto negocial determinado através dos seus elementos fiscais e registais, estamos apenas perante um acordo intermédio ou preparatório.

V – Se o Município permitiu que os réus utilizassem e fruíssem o terreno (facto provado n.º 26) e fez uso da nascente propriedade dos réus (facto provado n.º 25), criando assim expetativas de que o contrato-promessa almejado viria a ser celebrado, impende sobre o Município o dever de indemnizar os réus, ao abrigo do artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil, por se terem frustrado as negociações que de boa fé os réus aguardavam.

 

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se conceder parcialmente a revista, e:

a) Condenar os réus a reconhecerem o Autor como proprietário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., pela freguesia ..., sob o n º ...03, e especificamente, de uma parcela de terreno pertença do mesmo, com a área de 4.550 m2, localizada a norte do loteamento industrial realizado nesse prédio, situada entre o arruamento criado e outro caminho a norte;

b) Determinar o reenvio do processo ao Tribunal da Relação, para ampliação da matéria de facto no que diz respeito aos prejuízos patrimoniais sofridos pelos réus com despesas feitas na parcela de terreno que estão obrigados a restituir, nos termos dos n.ºs 29 a 32 do corpo do presente Acórdão.

c) Manter no mais o acórdão recorrido.

Custas da revista pelo recorrente e recorrido na proporção do respetivo decaimento.


Lisboa, 28 de fevereiro de 2023


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)



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[1] No tribunal de 1.ª instância deu-se como provado sob o n.º 4 o seguinte: «Desta operação de loteamento sobrou uma parcela de terreno, localizada a norte, com a área de cerca de 4.550 m2, entre o arruamento criado e outro caminho a norte».