Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2255/19.8T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
ARRENDAMENTO MISTO
CLÁUSULA RESOLUTIVA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
SINAL
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O contrato-promessa de arrendamento pode ser resolvido pelo promitente arrendatário designadamente com base em circunstâncias que integram uma cláusula resolutiva expressa ou na verificação de uma situação de incumprimento definitivo decorrente do decurso do prazo fixado e da efetivação de uma interpelação admonitória.

II. Tendo decorrido o prazo que foi fixado pelas partes para o cumprimento das obrigações que foram assumidas pelas promitentes senhorias, a interpelação que foi feita pelo promitente arrendatário no sentido de ser demonstrado, num prazo suplementar, esse cumprimento, sob pena de devolução do dobro do sinal (como consequência da resolução do contrato) dispensa a efetivação de outra comunicação para efeitos de se considerar resolvido o contrato.

Decisão Texto Integral:

I - SODIUM, Ldª, intentou ação declarativa com processo comum contra AA, BB e HERANÇA de CC, esta representada pela 2ª R., tendo o litígio por objeto um contrato-promessa de arrendamento de dois prédios (um rústico e outro urbano) relativamente ao qual a A. alegou o incumprimento definitivo por parte das RR.

Pediu a condenação das RR. no pagamento da quantia de € 52.000,00 equivalente ao sinal em dobro prestado.

A R. BB contestou e arguiu a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário respeitante aos Herdeiros da Herança de CC e defendeu inexistir incumprimento definitivo do contrato promessa e não estarem verificados os pressupostos da resolução do contrato-promessa.

Entretanto foi admitida a intervenção principal provocada passiva dos herdeiros da Herança Indivisa, DD, EE e FF.

Realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente por considerar que não se verificava o condicionalismo da resolução do contrato-promessa de arrendamento.

A A. apelou e a Relação revogou a sentença, condenando os RR. no pagamento da quantia de € 52.000,00, a título do dobro do sinal prestado, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação.

A BB interpôs recurso de revista em que concluiu que:

1ª- Foi fixado o objeto do presente litígio que consiste em apreciar se, com base no contrato firmado entre as partes e no alegado incumprimento definitivo do mesmo pelas RR., assiste à A. o direito a exigir o pagamento do dobro do sinal por si prestado.

2ª- Esta demarcação do litígio, que sintetiza a causa de pedir e o pedido da A. e que desta não mereceu qualquer reclamação, serviu de base à construção da sentença entretanto revogada pelo acórdão recorrido.

3ª- Após o julgamento, em sede de alegações apresentadas nos termos do art. 604º, nº 3, al. c), do CPC, a A. reiterou que a presente ação foi instaurada com fundamento na resolução – pela conversão de mora em incumprimento definitivo, por força de uma interpelação dita admonitória – de um contrato-promessa de arrendamento, peticionando às RR., em consequência do referido incumprimento, a restituição do sinal em dobro.

4ª- Concluindo que com base no contrato firmado entre as partes e no incumprimento definitivo do mesmo pelas RR., assiste à A. o direito a exigir o pagamento do dobro do sinal por si prestado.

5ª- Nenhuma outra causa de pedir ou solução de direito foi aventada pela A., ou discutida nos autos, até às suas alegações de recurso de apelação.

6ª- Só nestas a apelante reclama a qualificação da cláus. 3ª do contrato-promessa como cláusula resolutiva expressa (al. C) das conclusões), assim como as interpelações admonitórias passaram a ser declarações de resolução do contrato (al. F) das conclusões).

7ª- Desta feita, tratando-se de uma cláusula resolutiva expressa, esta só por o ser, se bastaria na sua essência para destruir o contrato em seu benefício com as mesmas interpelações admonitórias, interpretadas, agora, como declarações de resolução do contrato-promessa.

8ª- O sistema de recursos no direito português é um sistema de reapreciação da decisão proferida nos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido.

9ª- Pelo que não é possível solicitar ao tribunal de recurso que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objeto da causa, tal como foi apresentada e decidida na primeira instância.

10ª- Deste modo, não sendo a matéria da existência de uma cláusula resolutiva expressa sequer aflorada ao longo dos articulados, identificada pelo tribunal no objeto do litígio, objeto da instrução ou do julgamento da mesma e não sendo matéria de conhecimento oficioso, não poderia ter sido atendida pelo acórdão recorrido que a considerou como fundamento da decisão recorrida.

11ª- Dir-se-á que o foi porque o tribunal de recurso dispunha de todos os factos e usou da liberdade que lhe assiste de conhecer de todas as questões de direito, inclusive das que não tenham sido colocadas pelas partes – art. 5º, nº 3, do CPC.

12ª- Contudo, esta liberdade, não é a de poder conhecer todas as questões de direito mesmo que os factos que permitam conhecê-las estejam disponíveis, porquanto só as que sejam de conhecimento oficioso podem ser objeto de apreciação sem alegação prévia.

13ª- Pelo que, a questão da existência, ou não, no contrato de uma cláusula resolutiva expressa, só poderia ter sido objeto de apreciação em sede de recurso se tivesse sido alegada pela apelante e objeto de apreciação pelo tribunal da 1ª instância.

14ª- A decisão ora recorrida é, assim, uma decisão surpresa, na medida em que a matéria da solução jurídica encontrada pelo tribunal de recurso nunca foi discutida ou ponderada nos autos.

15ª- Apenas foi alegada pela apelante matéria atinente à resolução legal do contrato com fundamento no incumprimento definitivo, com base na perda de interesse por parte do credor na prestação.

16ª- Pelo que, enferma o acórdão recorrido da nulidade prevista pelo art. 615º, nº 1, d), in fine, aplicável por força do art. 666º, ambos do CPC e ainda, por violação do comando do art. 3º, nº 3, do CPC.

De outro lado,

17ª- A cláusula resolutiva expressa constitui uma ou ambas as partes contratantes no direito de resolver o contrato decorrente de acordo por oposição à resolução legal – art. 432º do CC.

18ª- A sua redação, deve ser clara e precisa e não meramente genérica ou imprecisa.

19ª- Deve ser clara quanto à opção de afastar o regime legal de resolução e especificar o fundamento concreto, podendo ainda, estipular o modo de execução da comunicação resolutiva.

20ª- No caso dos autos, a alegada cláusula resolutiva expressa não se refere sequer ao direito por parte da A. à resolução do contrato.

21ª- O incumprimento do dever contratual fundamentador do alegado direito à resolução do contrato é meramente genérico.

22º- Perguntado qual o incumprimento a que a causa se refere: mora?, incumprimento definitivo?, cumprimento defeituoso?, recusa categórica de cumprimento?, imputável, ou não à obrigada?, a cláusula não nos dá qualquer resposta.

23ª-Certo é que, para a A., as RR. estariam em mora, pelo que lhes dirigiu uma carta admonitória com prazo para efetuarem o cumprimento da obrigação que reputava incumprida.

 24ª- Este regime, não só não diverge da resolução legal do art. 808º do CC como, a admitir-se a existência de cláusula resolutiva expressa, implicaria uma nova declaração, esta sim, de resolução do contrato.

25ª- Falta pois, na cláusula, o requisito de reportar um concreto incumprimento que dê causa à resolução identificando, com precisão, o inadimplemento que pode dar lugar àquela resolução.

26ª- Por outro lado, nada consta do texto da cláusula quanto ao momento da sua eficácia, pois também este qualifica a cláusula resolutiva expressa permitindo prescindir do recurso à interpelação judicial para a efetivar.

27ª- Só assim será possível, sem quaisquer dúvidas, identificar o direito de resolução, o concreto incumprimento considerado pelas partes com suficiente gravidade para constituir fundamento de resolução.

28ª- Pelo que, a cláusula 3ª do contrato não pode ser qualificada como cláusula resolutiva expressa.

29ª- E, mesmo que assim se não entendesse, a resolução tem de se traduzir numa comunicação à outra parte declarando resolvido o contrato.

30ª- Pelo que falta, igualmente, a declaração de resolução do contrato, ultrapassados que fossem os 10 dias de prazo extra para cumprimento.

31ª- Assim, sem verdadeira comunicação resolutória e sem ter sido solicitado ao tribunal o reconhecimento como válida da alegada resolução, não podia a Relação ter decidido como decidiu.

32ª- Face à prova produzida não se provou que do licenciamento de alguns dos prédios dependia a celebração do contrato definitivo.

Por outro lado,

33ª- O acórdão recorrido seguiu a tese segundo a qual, se o juiz for chamado a intervir, apenas exerce um controlo da legalidade da resolução limitando-se a declarar a sua existência e a sua eficácia.

34ª- Todavia, consideramos que não é defensável a existência de duas resoluções, a legal e a convencional, assentes numa diversidade de princípios essenciais.

35ª- Donde, a parte legitimada não deve tirar proveito de um fundamento resolutivo, um incumprimento ou outro evento, cuja gravidade não justifique o efeito drástico da cessação contratual.

36ª- Reportando-nos aos autos, importa considerar que não se provou a essencialidade da legalização de algumas construções nem que esta constituísse uma condição essencial para a celebração do contrato definitivo, nomeadamente por impossibilitar a concessão de licença de exploração da unidade de reprodução.

37ª- Só no final dos primeiros 4 anos de contrato, seria ocupada pela promitente locatária a totalidade dos prédios – cf. Cláus. 4ª do contrato.

38ª- Pelo que, o alegado incumprimento das RR. não pode ser considerado como grave, ao ponto de permitir, sem mais, o acionamento da alegada cláusula resolutiva expressa.

39ª- Sendo o seu exercício desproporcionado face às concretas condições contratuais.

40ª- A título de exemplo, refira-se a exigência expressa da cláusula 3ª quanto à necessidade de obtenção de certificados energéticos para os prédios a legalizar quando a atividade de aquicultura, pertencendo à atividade pecuária do setor primário, se encontra, à partida, isenta do sistema de certificação energética de edifícios – art. 4º, al. a), do DL nº 118/13, de 20-8, na redação atual.

41ª- Pelo que, apesar da inexigibilidade de certificação energética dos prédios destinados a aquicultura, de acordo com o alcance atribuído pelo acórdão recorrido à cláusula, bastaria a sua falta para que a apelante pudesse acionar o alegado direito de resolução.


Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

1. Encontra-se registado a favor das RR., por sucessão hereditária, o prédio sito em ... ou ..., com a área de 200.000 m2, dos quais 247 m2 correspondem a área coberta e 199.753 m2 a área descoberta, inscrito na matriz rústica sob o n° ...16 e na matriz urbana sob o n° ...56 composto por marinha de sal com 87 talhos   e um edifício térreo, destinado a moinho movido a água, descrito na CRP de ... sob o n° .....21, da freguesia da ....

2. Atualmente o artigo ...56 corresponde ao artigo ....23

3. A propriedade em causa foi arrendada pelo período de 25 anos à sociedade T......, Ldª.

4. Após a saída da T..., , as duas primeiras RR. apresentaram dois projetos distintos de alteração: um, para instalação de uma maternidade para produção de juvenis de bivalves e peixes e outro para instalação de um estabelecimento de culturas marinhas para crescimento e engorda de espécies piscícolas.

5. Nas plantas do proc. .....77 do ICN, hoje APA, encontra-se identificado o edificado existente à época – Proc. n° ......10.

6. Em 4-2-11, foi elaborado o respetivo auto de vistoria relativo à reunião da comissão de vistoria, para os efeitos previstos nos arts. 14° e 15° do Dec. Regul. n° 14/00, de 21-9, para apreciação do projeto de instalação de um estabelecimento de culturas marinhas para crescimento e engorda de espécies piscícolas e instalação de uma maternidade para produção de juvenis de bivalves e peixe apresentado por sociedade M..., , Ldª, a localizar no ..., concelho de ..., composta por representantes da Capitania do Porto de …, Direção Regional de Agricultura e Pescas do …, Instituto Nacional dos Recursos Biológicos, I.P., Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional d …, Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P., Direção Geral de Veterinária - Ministério da Agricultura e Câmara Municipal de … (GG), entidades que emitiram pareceres favoráveis.

7. Na sequência deste auto de vistoria foi emitida pela Direção Geral dos Recursos Naturais a Licença de Exploração do Estabelecimento de culturas marinhas em 27-11-12.

8. A referida Licença de Exploração foi alterada em 21-2-13 por alteração de espécies - aumento do número, com validade até 17-9-15.

9. Em setembro de 2015, a licença para exploração de culturas marinhas (para estabelecimento de crescimento e engorda) foi renovada até 16-9-17.

10. A referida licença foi prorrogada por um período de 6 anos, a contar de junho de 2015, ou seja, até junho de 2021.

11. Foi emitida autorização de instalação de estabelecimento de culturas marinhas (maternidade) a que corresponde o doc. n° …75 – PT, com validade de 28-4-11 a 28-4-16.

12. Foi emitida licença de exploração de estabelecimento de culturas marinhas (unidade de engorda) a que corresponde o doc. n° …74 – PT, com validade de 7-7-16 a 17-9-30.

13. Através da mensagem de correio eletrónico de 29-11-17 enviada por HH para a R. BB foi enviado anexo que corresponde ao Anexo I que veio a ser referido no n° 2 da cláus. 4ª do acordo, com indicação das áreas a explorar.

14. Através de mensagem de correio eletrónico de 12-1-18, enviada por HH para a R. BB foi remetida, em anexo, a "Proposta de Concessão a Longo Prazo".

15. Após, nos dias 23 e 24-2-18, as partes trocaram comunicações eletrónicas sobre o teor do acordo que iriam celebrar.

16. Através de documento escrito datado de 23-2-18, a A. celebrou com as RR. um acordo através do qual declararam o seguinte:

"Entre si estabelecem o presente contrato-promessa de arrendamento não habitacional com prazo certo, que se regulará pelos arts. 410º e ss., 1108º e ss. e 1095º e ss., todos do Código Civil (...)

CLÁUSULA PRIMEIRA (Descrição)

As PROMITENTES SENHORIAS são donas e legítimas proprietárias dos seguintes prédios:

- prédio rústico, sito em ..., composto de uma mina de sal com 87 talhos, com uma área de 28,000 000 m2, inscrito na matriz sob o art. ...82 e descrito na CRP de ... sob o art. ...23, da freguesia da ..., concelho de ...;

- prédio urbano, sito em ..., composto de um prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, com duas divisões, inscrito na matriz predial sob o art. ..., da União das Freguesias de ......, descrito na CRP de ... sob o art. ...59, destinada a habitação.

CLÁUSULA SEGUNDA (Objeto)

1. (...)

2. O contrato de arrendamento será celebrado no prazo de 6 meses a contar da presente data. Caso o procedimento de licenciamento referido na cláusula terceira não esteja concluído por motivos não imputáveis à PROMITENTES SENHORIAS, a PROMITENTE INQUILINA, desde já acorda em prorrogar o prazo de 6 meses acima mencionado pelo período necessário à obtenção das respetivas licenças.

CLÁUSULA TERCEIRA (Situação dos prédios)

1. Os prédios prometidos arrendar carecem de alterações na sua situação jurídica, nomeadamente de legalização de todas as construções que se encontrem edificadas no prédio misto descrito sob o artigo ...59 da CRP de ..., de alteração da finalidade do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...23 da União das Freguesias de ...... para comércio, de Obtenção de Certificados Energéticos para os prédios urbanos e de retificação de áreas.

2. As PROMITENTES SENHORIAS comprometem-se a legalizar a situação dos prédios nos termos acima referidos no prazo máximo de 6 meses a contar da presente data.

3. Decorridos que estejam 6 meses - ou o prazo resultante da prorrogação prevista na cláusula anterior - sem que a legalização dos prédios se mostre concluída, ou se por qualquer outro motivo as PROMITENTES SENHORIAS desistirem do negócio ora prometido, estas devolverão em dobro à PROMITENTE INQUILINA os montantes pagos a título de sinal.

4. (...)

CLÁUSULA QUARTA (Duração do arrendamento prometido)

1. O arrendamento ora prometido terá a duração de 20 anos, com início no dia 1-9-18 ou, caso se verifiquem as circunstâncias previstas na cláus. 2ª, nº 2, no prazo aí referido, sendo renovável automaticamente no seu termo, por períodos de duração de um ano, sem necessidade de qualquer comunicação.

2. O arrendamento prometido terá duas fases: uma primeira fase com a duração de 4 anos, em que será ocupada uma área de aproximadamente 80.000 m2, conforme documento que se anexa como Anexo nº l, do prédio misto descrito na CRP de ... sob o nº ...59, e uma segunda fase, em que será ocupada pela PROMITENTE INQUILINA a totalidade dos prédios resultantes do processo de legalização referido na cláus. 2ª, exceto os identificados no Anexo I como "moinho", "casa do guarda" e "edifício de processamento de produção de ostras".

(...)

CLÁUSULA SÉTIMA (Renda)

1. A renda terá o valor mensal de € 13.000,00 líquidos, durante os primeiros 4 anos de contrato.

2. (...)

3. (...)

4. (...)

CLÁUSULA OITAVA (Sinal)

Nesta data, a PROMITENTE INQUILINA entregará às PROMITENTES SENHORIAS, a título de sinal, a quantia de € 26.000,00, correspondentes ao valor de duas rendas.

(...)"

17. Com a celebração do dito acordo, a A. pagou às RR., a título de sinal e princípio de pagamento de rendas, o valor de € 26.000,00.

18. Em abril de 2019 a A. enviou missiva, com semelhante conteúdo, às RR. AA e BB, onde se pode ler:

"Assunto: Mora no cumprimento do contrato-promessa de arrendamento celebrado em 23 de fevereiro de 2018

(...)

Serve a presente para notificar V. Exª, nos termos e para os efeitos do disposto art. 808º do CC, e de acordo com o disposto na cláus. 3ª do contrato-promessa acima referido, para procederem à entrega das licenças de utilização que foram emitidas para todas as edificações constantes do local prometido arrendado.

(...)

O contrato-promessa foi assinado em 23-2-18 e até à presente data, não nos foram exibidas as competentes licenças de utilização das edificações existentes.

Em face do exposto, não podemos deixar de considerar que V. Exªs se encontram, neste momento, em situação de mora relativamente à legalização prevista no contrato promessa.

Assim, cumpre-nos informar que, caso V. Exªs não apresentem as licenças de utilização referentes a todas as edificações prometidas arrendar no prazo máximo de 10 dias a contar da presente notificação, perderemos definitivamente o interesse na realização do contrato prometido.

Nessa data consideraremos, então, o contrato-promessa definitivamente incumprido por V. Exªs e prosseguiremos no sentido de obter a devolução, em dobro, das quantias pagas a título de sinal, ou seja, a quantia de € 52.000,00.

(...)

19. As RR. nada responderam à A.

20. Algumas das edificações existentes no prédio encontram-se por legalizar.

21. A Câmara Municipal de ... emitiu informação de que não existe qualquer pedido de licenciamento ou legalização das edificações existentes no prédio em causa.


III – Decidindo:

1. Suscita a recorrente BB a nulidade do acórdão por constituir uma decisão surpresa, na medida em que qualificou como cláusula resolutiva expressa uma cláusula do contrato-promessa de arrendamento, divergindo do objeto do processo que foi fixado oportunamente apenas em torno do incumprimento definitivo.

É manifesta a falta de sustentação deste meio de defesa, na medida em que a Relação, no acórdão recorrido, se manteve circunscrita ao objeto do processo e que se traduz na verificação de uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa de modo a justificar a devolução do sinal em dobro que foi prestado pela A.

Não se evidencia sequer uma divergência da fundamentação, sendo manifesto que todos os argumentos aduzidos pela Relação encontram eco no que foi alegado pela A. e no teor do contrato-promessa de arrendamento.

Aliás, não havendo qualquer dúvida de que com a presente ação a A. visa obter os efeitos da resolução do contrato representados pela devolução do dobro do sinal que foi prestado, pedido sustentado no incumprimento de uma obrigação que os RR. assumiram, dentro do prazo fixado e até da sua prorrogação e, além disso, depois de ter sido feita uma interpelação adicional fixando um prazo suplementar para a demonstração daquele cumprimento, não se duvida que o efeito que a Relação decretou, revogando a sentença de 1ª instância, se enquadrou na causa de pedir que foi invocada nesta ação.


2. Numa perspetiva material, considera a recorrente que, não existindo uma cláusula resolutiva expressa, teria de existir uma declaração de resolução do contrato-promessa, sendo insuficiente a notificação que foi feita pela A. a conceder às RR. o prazo de 10 dias para a demonstração da documentação em falta referida no contrato-promessa.

Também neste ponto se diverge do que foi alegado.

Nos termos do art. 432º do CC, a resolução de qualquer contrato, incluindo o contrato-promessa de arrendamento, para operar algum dos efeitos previstos no art. 442º, nº 2, do CC, pode ser decorrência de uma cláusula resolutiva expressa ou de algum dos fundamentos legais, com destaque para a verificação de uma situação de incumprimento definitivo ou para a perda objetiva de interesse na prestação, nos termos do art. 808º do CC.

Na primeira situação, verificado que seja o condicionalismo que explicitamente tenha sido fixado pelas partes ao abrigo do princípio da liberdade contratual, a declaração resolutiva não depende de qualquer diligência suplementar. Já a situação de incumprimento definitivo, para além dos casos que envolvam, por exemplo, a recusa expressa de cumprimento, a alienação do bem a terceiro ou a verificação de uma situação de inviabilidade objetiva de outorga do contrato definitivo, depende da verificação de uma situação de mora e do decurso de um prazo suplementar através da efetivação de uma interpelação admonitória.

Este é o regime que, conquanto não esteja explicitado desta forma tão clara nos preceitos legais aplicáveis, vem sendo evidenciado tanto pela doutrina, em termos de enquadramento geral, como pela jurisprudência no confronto com as concretas situações da vida.

Entre a abundante jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça neste mesmo sentido, poderão encontrar-se diversos arestos deste mesmo coletivo e relatados pelo ora relator, destacando, com interesse para o caso, o Ac. do STJ, de 16-11-17, 768/08, www.dgsi.pt, de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte:

III. A resolução de contratos pode ser despoletada tanto a partir da verificação de uma situação de incumprimento definitivo, como a partir do preenchimento de uma cláusula resolutiva expressa.

IV. É de qualificar como cláusula resolutiva expressa a convenção inserida num contrato-promessa de compra e venda segundo a qual se consideraria em situação de incumprimento definitivo o promitente-comprador que, depois de faltar ao pagamento de pelo menos três prestações consecutivas, deixasse decorrer o prazo de três meses para efectuar o pagamento de todo o preço, facultando ao promitente-vendedor a declaração de resolução.

V. Verificado o condicionalismo contratualmente fixado pelas partes, deve considerar-se legitimamente exercitada a resolução do contrato-promessa de compra e venda comunicada pelo promitente-vendedor.

Outra situação, com solução contrária que então foi justificada pelos factos apurados, foi apreciada no Ac. do STJ, de 2-11-17, 27768/15, www.dgsi.pt, de cujo sumário consta que:

“A resolução de contrato-promessa pode ser declarada em face da verificação de uma cláusula resolutiva expressa (art. 432º, nº 1, do CC), da verificação de uma situação mora que, por si, revele a falta de interesse objetivo na conclusão do contrato definitivo (art. 808º, nº 2) ou do decurso de um prazo razoável que tenha sido concedido à contraparte para cumprir (art. 808º, nº 1).

Assim também o Ac. do STJ, de 9-7-15, 1966/05, em www.dgsi.pt, relatado pelo ora relator e subscrito também pelo primeiro adjunto:

1. A resolução de contrato-promessa de compra e venda de ações de uma sociedade pode operar ou por via do disposto no art. 808º do CC, designadamente quando se verifique uma situação de incumprimento definitivo, ou por via de uma cláusula resolutiva expressa reportada ao decurso de um prazo perentório.

2. Deve ser interpretada como cláusula resolutiva expressa a cláusula aposta num contrato-promessa de compra e venda de ações de uma sociedade anónima estipulando que “no prazo máximo de 15 dias decorridos sobre a data de receção desta notificação, a promitente-compradora deverá pagar o preço correspondente a uma área de construção efetiva de 3.500 m2” e que “se a promitente-compradora não proceder ao respetivo pagamento no mesmo prazo, o contrato considerar-se-á imediatamente resolvido e o promitente-vendedor fará suas as quantias prestadas a título de sinal e respetivos reforços”.

3. Recebida pelo promitente-comprador a comunicação do promitente-vendedor com indicação do prazo para o pagamento do preço remanescente e para a correspondente entrega das ações, a verificação do efeito resolutivo do contrato decorrente do decurso do prazo não dependia da emissão de outra interpelação admonitória para cumprimento do contrato prometido.


3. No caso concreto, a recorrente considera que não existia qualquer cláusula resolutiva expressa e que, por outro lado, não bastava a interpelação admonitória, devendo ser seguida de outra comunicação contendo uma declaração resolutiva.

Nenhum dos argumentos procede.

Ao invés do que a recorrente defende, existia uma cláusula resolutiva expressa. Mas mesmo que porventura não fosse essa a qualificação jurídica da cláusula, a atuação da A. preencheria a transformação de uma situação de mora em incumprimento definitivo, momento em que operou o efeito resolutivo que antecipadamente foi declarado na referida interpelação.

A cláusula 3ª do contrato traduz, sem dúvida alguma, uma cláusula resolutiva expressa que operaria ao fim de 6 meses se não fosse demonstrada a documentação em falta ou, em caso de atraso não imputável às RR., ao fim da prorrogação de mais 6 meses.

Estipularam as partes que:

Cláus. 3ª:

1. Os prédios prometidos arrendar carecem de alterações na sua situação jurídica, nomeadamente de legalização de todas as construções que se encontrem edificadas no prédio misto descrito sob o artigo ...59 da CRP de ..., de alteração da finalidade do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...23 da União das Freguesias de ...... para comércio, de obtenção de certificados energéticos para os prédios urbanos e de retificação de áreas.

2. As PROMITENTES SENHORIAS comprometem-se a legalizar a situação dos prédios nos termos acima referidos no prazo máximo de 6 meses a contar da presente data.

3. Decorridos que estejam 6 meses - ou o prazo resultante da prorrogação prevista na cláusula anterior - sem que a legalização dos prédios se mostre concluída, ou se por qualquer outro motivo as PROMITENTES SENHORIAS desistirem do negócio ora prometido, estas devolverão em dobro à PROMITENTE INQUILINA os montantes pagos a título de sinal.

E constava da cláus. 2ª que:

O contrato de arrendamento será celebrado no prazo de 6 meses a contar da presente data.

Caso o procedimento de licenciamento referido na cláus. 3ª não esteja concluído por motivos não imputáveis à PROMITENTES SENHORIAS, a PROMITENTE INQUILINA, desde já acorda em prorrogar o prazo de 6 meses acima mencionado pelo período necessário à obtenção das respetivas licenças.

Ora, uma vez que o contrato foi celebrado em 23-2-18, o prazo inicial terminou em 23-8-18. Mas ainda que se admitisse que se encontravam verificadas as condições para a prorrogação do prazo (dependente da verificação de um motivo não imputável às RR.), esta terminou em 23-2-19.

Por conseguinte, quando, em abril de 2019, a A. dirigiu às RR. a interpelação, ainda assim a conceder um prazo adicional de 10 dias para o cumprimento da obrigação assumida, estava justificada a exigência da devolução do sinal em dobro como decorrência da verificação anterior da resolução contratual.


4. Todavia, para a resolução no caso concreto nem sequer se mostra necessário sustentar nessa cláusula contratual a procedência da pretensão da A., bastando atentar no teor da comunicação que foi feita, depois de ter decorrido o prazo inicial de 6 meses e a prorrogação de mais 6 meses, para se constatar que, estando as RR. manifestamente em situação de mora, nem sequer responderam à interpelação que lhes foi feita pela A. no sentido de comprovarem em 10 dias os elementos em falta e cuja existência seria imprescindível para a outorga do contrato definitivo.

Nas circunstâncias em que ocorreu a referida interpelação e em face do seu teor, não existem motivos para questionar que a mesma tinha subjacente uma declaração resolutiva do contrato-promessa com o objetivo de reclamar, perante a situação de incumprimento definitivo, nos termos do art. 808º do CC, a devolução do sinal em dobro, nos termos que foram contratados e que igualmente resultariam da aplicação das normas legais supletivas, máxime do art. 442º, nº 2, do CC.

A referida comunicação continha já o pretendido efeito resolutivo que decorreria, nesta segunda perspetiva mais favorável às RR., do decurso do prazo suplementar de 10 dias para a demonstração do cumprimento das obrigações que as partes fixaram no contrato.


5. Alega finalmente a recorrente que as falhas que existiam não justificavam a declaração de resolução que, assim, seria desproporcional.

Também não se acolhe esta argumentação em face da clareza do que foi convencionado pelas partes.

Se, como consta do contrato, a outorga do contrato definitivo ficou condicionada pela prévia demonstração da documentação ainda em falta respeitante à legalização de algumas construções, alteração da licença de utilização do prédio urbano, comprovação de certificado energético e retificação de áreas, não pode a posteriori desvalorizar-se o interesse que as partes colocaram no estabelecimento dessas obrigações a cargo das RR. e a que atribuíram força suficiente para justificar a resolução do contrato.

Perante o que as partes acordaram de modo tão explícito é indiferente para a obtenção do efeito resolutivo se as instalações estavam ou não em condições de poderem funcionar para a atividade pretendida pela A., sendo inequívoco, por outro lado, que todas as referidas obrigações estavam relacionadas com a regularização administrativa do prédio sobre que iria incidir o contrato de arrendamento pelo prazo de 20 anos mediante o pagamento de uma renda anual de € 13.000,00.


IV - Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da recorrente.

Notifique.


Lisboa, 9-12-21


Abrantes Geraldes (relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo