Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/12.5TBSSB-A.E1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: SALRETA PEREIRA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
LIVRANÇA
TÍTULO EXECUTIVO
TRANSMISSÃO
ENDOSSO
CESSÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO DE MÚTUO
GARANTIA DO PAGAMENTO
Data do Acordão: 11/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LIVRANÇA.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO EXECUTIVO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA.
Doutrina:
- Carolina Cunha, Letras e Livranças – Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, 77 a 84.
- Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial – Direito da Empresa, 10.ª ed., 481 a 483.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, 312 a 315.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 577.º E SS., 585.º, 840.º.
LULL: - ARTIGOS 11.º, 77.º.
Sumário :
I - A letra e a livrança podem ser validamente transmitidas a terceiros, quer através do endosso, quer mediante cessão ordinária de créditos (arts. 77.º e 11.º da LULL), sendo esta a única forma de transmissão caso tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente.

II - A cessão de créditos está regulamentada nos arts. 577.º e segs. do CC e tem efeitos distintos do endosso: (i) o cedente não é responsável perante o cessionário pela satisfação do crédito pelo devedor, a não ser que a cessão preencha a figura da “datio pro solvendo” (art. 840.º do CC); e (ii) o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente (art. 585.º do CC); e (iii) na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido.

III - Uma vez cedido o crédito resultante do negócio subjacente à subscrição da livrança (mútuo oneroso), igualmente esta se transmite como acessório de garantia do pagamento do mesmo crédito.

IV - Por via da legitimação material conferida pela escritura pública de cessão de créditos, a exequente é portadora legítima da livrança, podendo, com base nela, executar os seus subscritores pela falta do pagamento.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Os Executados AA, Lda., BB e CC deduziram oposição à execução comum n.º 38/12.5TBSSB, do (ex) Tribunal Judicial de ..., em que figura como Exequente DD, SA., invocando, em síntese:

- a ilegitimidade da exequente, por estar em Juízo desacompanhada do credor pignoratício;

- a falta de título executivo para o pedido executivo “no excedente a € 100.000,00 ou, quando menos, € 705.000,00”, acrescido dos juros à taxa de 4%;

- a falta de endosso da livrança ao exequente;

- a falta de poderes para o seu preenchimento pela exequente.

     

Notificada, a Exequente apresentou contestação, na qual invoca que:

- a BANCO EE, SA. é titular de um penhor cujo objecto é a hipoteca a favor da Exequente, pelo que os Exequentes não têm qualquer relação directa com esta e, consequentemente, a mesma não tem legitimidade para intervir nos autos;

- na data de outorga da escritura de mútuo foram utilizados €100.000,00 pelos Executados, mas, nos termos do acordado, foram entregues aos Executados outras tranches de dinheiro, pelo que existe título executivo quanto à quantia exequenda e a livrança foi correctamente preenchida;

- a Exequente é legítima titular da livrança, quer porque a mesma se encontra endossada em branco, quer porque existiu uma cessão de créditos do BANCO FF à Exequente.

Foi realizada audiência preliminar, na qual as partes acordaram na única matéria de facto controvertida – que foi o BANCO FF, S.A. e não a Exequente a preencher a livrança em causa.

Notificada a Exequente para vir aos autos juntar escritura pública de constituição do penhor e/ou autorização do credor pignoratício (BANCO EE, S.A.) para que a Exequente executasse o seu crédito sobre os Executados e/ou informar/esclarecer o que tivesse por conveniente nessa matéria, veio a mesma informar que o crédito que lhe foi concedido pela BANCO EE, S.A. foi liquidado e, consequentemente, cancelado o penhor em causa, juntando certidão de registo predial comprovativa do cancelamento do penhor.

Considerando-se não existirem questões de facto relevantes controvertidas, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a oposição à execução improcedente, determinando-se o prosseguimento da execução.

Inconformados com a sentença, os oponentes recorreram para o Tribunal da Relação de ..., que proferiu acórdão a julgar improcedente a apelação e a confirmar a sentença.

De novo inconformados, os oponentes vêm recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso admitido como revista excepcional, alegando com as seguintes conclusões:
1.ª O presente recurso é interposto do aliás douto acórdão que confirmou a sentença e a decisão de julgar a oposição improcedente, ao entender que “as letras e livranças podem ser transmitidas, para além do endosso, também por acto entre vivos, com os efeitos de uma normal cessão de créditos, não perdendo, por isso, a sua natureza de títulos executivos”.
2.ª A livrança dos autos, na qual os ora recorrentes intervieram como avalistas do subscritor, quando ainda se encontrava em branco, foi preenchida pelo BANCO FF em 2010.12.20 (data da emissão), com vencimento em 2011.01.28 e o acto entre vivos que se considerou ter operado a sua transmissão a favor da ora recorrida – escritura de cessão de vários créditos – foi outorgado em 23.12.2010, data anterior ao vencimento.
3.ª O BANCO FF não endossou a livrança, nem a favor do portador nem em branco, pelo que de acordo com o seu texto, o BANCO FF é o legítimo portador da livrança dos autos.
4.ª A livrança é um título que incorpora um direito de crédito e que é unanimemente entendido revestir as características da autonomia, abstracção e literalidade.
5.ª Da literalidade decorre que o direito se define exclusivamente pelo teor do título, pelo que a validade e persistência da obrigação cambiária não pode ser comprovada por meios exteriores, não reconhecíveis pelo simples exame do título.
6.ª Assim é que “A execução instaurada com base em letra de câmbio subscrita pelo executado, como aceitante, e no endosso ao exequente desse título de crédito efectuado pelo sacador, é uma típica acção executiva cambiária em que o executado só é demandado pela obrigação incorporada na letra, obrigação essa formal e abstracta onde funciona o princípio da literalidade. Não constando da letra dada à execução, expressamente, o endosso feito pelo sacador ao exequente-embargado - único caso em que poderia ser feito no rosto da letra - assim como não constando no seu verso qualquer endosso em branco operado por aquele, o exequente não justifica, por forma válida, a sua posição como legítimo portador da letra, sendo, por via disso, parte ilegítima” (Ac. Trib. Rel. Porto, 10.1.2000 - proc. n.º 9951326 - Caimoto Jácome – www.trp.pt).
7.ª A livrança dada à execução foi subscrita a favor do BANCO FF e dela não consta qualquer endosso, pelo que do seu exame resulta que a ora recorrida e exequente não é a sua legítima portadora (cf. arts. 77º, 13º e 16º L.U.L.L.).
8.ª À conclusão anterior não obsta o contrato de cessão de créditos celebrado entre o BANCO FF e a recorrida:
9.ª O contrato de cessão de créditos tem que respeitar os requisitos, designadamente de forma, do negócio que lhe serve da base (cfr. Artº. 578º nº 2 do CC).
10.ª Os títulos de crédito são nominativos ou ao portador: se nominativos transmitem-se por endosso, se ao portador mediante a entrega do título.
11.ª A livrança dos autos, porque não está endossada ao portador nem em branco é um título nominativo, por isso apenas transmissível por endosso (cfr. artºs. 77º e 13º da LULL).
12.ª A livrança dos autos não se mostra endossada, pelo que a exequente não é sua portadora e não serve como título executivo (cfr. artºs. 55º e 56º do CPC), ou, noutra perspectiva, a executada é parte ilegítima.
13.ª Sob pena de ser impossível cumprir a obrigação cambiária com um mínimo de segurança, assim prejudicando os princípios fundamentais do direito cambiário, nem o subscritor nem o seu avalista estão obrigados a pagar a livrança a quem não é o seu portador legítimo, segundo o que dela consta (cfr. artºs. 77º, 40º, III e 16º da LULL).
14.ª A livrança dos autos não foi apresentada a pagamento nem no vencimento, nem posteriormente, nem através da presente acção, pois a ora recorrida não é a sua legítima portadora.

A recorrida contra alegou, pugnando pela negação da revista e confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

De interesse para a decisão estão provados os seguintes factos:

1º. No dia 19.12.2007, os recorrentes BB e CC, na qualidade de sócios gerentes e em representação da sociedade comercial por quotas AA, e o BANCO FF celebraram um contrato de mútuo, em que este concedeu à representada dos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de € 705.000,00, com garantia hipotecária.

2º. Os valores em dívida ao mutuante BANCO FF ficaram, ainda, caucionados pela livrança em branco, subscrita pela mutuária e avalizada por BB e mulher, CC, destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela mutuária perante o BANCO FF, ficando este autorizado a preenchê-la.

3º. Em 20.12.2010 o BANCO FF preencheu a livrança com o valor de € 810.606,42, com vencimento em 28.01.2011.

4º. No dia 23.12.2010 o BANCO FF outorgou escritura pública de cessão do dito crédito e das correlativas garantias reais e pessoais à sociedade DD.

5º. A livrança não foi paga na data do respectivo vencimento, nem posteriormente.

6º. A DD deu à execução a livrança em causa, a que os executados deduziram a presente oposição.

FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A única questão suscitada pelos recorrentes é a de saber se a livrança pode ser validamente transmitida a terceiro por outra forma que não seja o endosso, designadamente através de escritura pública de cessão de créditos.

Os artºs. 77º e 11º da LULL parecem não deixar dúvidas que a livrança é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

Aliás, caso a letra ou a livrança tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, as mesmas só podem ser transmitidas pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

Isto significa que a letra e a livrança não podem ser endossadas se tiverem inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, mas traduz também que podem ser livremente transmitidas pela forma e com os efeitos duma cessão de créditos (Miguel J. A. Pupo Correia – Direito Comercial – Direito da Empresa, 10ª ed., pág. 481 a 483, Carolina Cunha – Letras e Livranças – Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, pág. 77 a 84).

A cessão de créditos está regulamentada nos artºs. 577º e seg. do CC e tem efeitos diferentes do endosso.

Na cessão de créditos, o cedente pode não ficar responsabilizado perante o cessionário pela satisfação do crédito pelo devedor, a não ser que a cessão preencha a figura da “datio pro solvendo” (artº. 840º do CC).

Por outro lado, o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, o que não acontece na transmissão por endosso (artº 585º do CC).

A cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido.

A livrança foi subscrita pela devedora e avalizada pelos respectivos sócios gerentes como caução do pagamento da importância em dívida por força do contrato de mútuo oneroso celebrado entre a AA, Lda. e o BANCO FF.

As partes subscreveram a livrança como caução do pagamento da dívida resultante do mútuo oneroso, pretendendo que a livrança acompanhasse como garantia o crédito resultante do mútuo.

As partes não pretendiam que a livrança se autonomizasse da dívida caucionada, mas não inscreveram na mesma as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente.

Apesar disso, o BANCO FF cumpriu a intenção das partes e transmitiu, como devia, a livrança caução com a cessão do crédito caucionado.

O BANCO FF estaria, de certo modo, a frustrar as espectativas da devedora se, em lugar de transmitir a livrança com a cessão de créditos, autonomizasse a obrigação cartular, endossando-a em branco ou à DD.

O endosso em branco ou à DD permitiria a esta o seu reendosso, permitindo que a devedora e os avalistas fossem demandados por um qualquer portador legítimo da mesma, sem lhe poder opor o eventual pagamento da sua dívida à DD ou qualquer outro meio de defesa invocável perante esta.

No caso dos autos, o negócio subjacente à subscrição da livrança foi o mútuo oneroso, celebrado por escritura pública entre o BANCO FF e os executados.

A convenção executiva foi inserida neste negócio subjacente, onde ficou convencionado que os fundos do financiamento seriam utilizados mediante a subscrição pelo mutuário de livrança, avalizada pelos seus sócios gerentes.

Esta convenção executiva é vinculativa e faz incorrer em responsabilidade civil contratual quem a não cumprir (Pedro Pais de Vasconcelos – Direito Comercial-vol.I, pag. 312 a 315).

Não se entende a oposição dos executados, pois a transmissão da livrança como acessório de garantia do pagamento do crédito cedido só os beneficia, em contraponto com o endosso da mesma livrança.

A transmissão da livrança juntamente com o crédito que a mesma cauciona é válida e legalmente prevista, em nada prejudicando o devedor, antes acautelando os seus direitos de defesa, pelo que a exequente é legítima portadora da livrança, legitimação material a suprir a legitimação formal, já que não consta do próprio título, e pode accionar os seus subscritores pelo seu não pagamento, até porque o título de transmissão é o mais solene, escritura pública, não suscitando quaisquer dúvidas quanto à respectiva autenticidade.

Assim, nos termos expostos, a oposição à execução é improcedente, razão pela qual se confirma o acórdão recorrido, negando a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 22 de novembro de 2016

Salreta Pereira – Relator

João Camilo

Fonseca Ramos