Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª. SECÇÃO | ||
Relator: | SALRETA PEREIRA | ||
Descritores: | EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA LIVRANÇA TÍTULO EXECUTIVO TRANSMISSÃO ENDOSSO CESSÃO DE CRÉDITOS CONTRATO DE MÚTUO GARANTIA DO PAGAMENTO | ||
Data do Acordão: | 11/22/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LIVRANÇA. DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO EXECUTIVO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA. | ||
Doutrina: | - Carolina Cunha, Letras e Livranças – Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, 77 a 84. - Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial – Direito da Empresa, 10.ª ed., 481 a 483. - Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, 312 a 315. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 577.º E SS., 585.º, 840.º. LULL: - ARTIGOS 11.º, 77.º. | ||
Sumário : | I - A letra e a livrança podem ser validamente transmitidas a terceiros, quer através do endosso, quer mediante cessão ordinária de créditos (arts. 77.º e 11.º da LULL), sendo esta a única forma de transmissão caso tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente. II - A cessão de créditos está regulamentada nos arts. 577.º e segs. do CC e tem efeitos distintos do endosso: (i) o cedente não é responsável perante o cessionário pela satisfação do crédito pelo devedor, a não ser que a cessão preencha a figura da “datio pro solvendo” (art. 840.º do CC); e (ii) o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente (art. 585.º do CC); e (iii) na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido. III - Uma vez cedido o crédito resultante do negócio subjacente à subscrição da livrança (mútuo oneroso), igualmente esta se transmite como acessório de garantia do pagamento do mesmo crédito. IV - Por via da legitimação material conferida pela escritura pública de cessão de créditos, a exequente é portadora legítima da livrança, podendo, com base nela, executar os seus subscritores pela falta do pagamento. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Os Executados AA, Lda., BB e CC deduziram oposição à execução comum n.º 38/12.5TBSSB, do (ex) Tribunal Judicial de ..., em que figura como Exequente DD, SA., invocando, em síntese: - a ilegitimidade da exequente, por estar em Juízo desacompanhada do credor pignoratício; - a falta de título executivo para o pedido executivo “no excedente a € 100.000,00 ou, quando menos, € 705.000,00”, acrescido dos juros à taxa de 4%; - a falta de endosso da livrança ao exequente; - a falta de poderes para o seu preenchimento pela exequente.
Notificada, a Exequente apresentou contestação, na qual invoca que: - a BANCO EE, SA. é titular de um penhor cujo objecto é a hipoteca a favor da Exequente, pelo que os Exequentes não têm qualquer relação directa com esta e, consequentemente, a mesma não tem legitimidade para intervir nos autos; - na data de outorga da escritura de mútuo foram utilizados €100.000,00 pelos Executados, mas, nos termos do acordado, foram entregues aos Executados outras tranches de dinheiro, pelo que existe título executivo quanto à quantia exequenda e a livrança foi correctamente preenchida; - a Exequente é legítima titular da livrança, quer porque a mesma se encontra endossada em branco, quer porque existiu uma cessão de créditos do BANCO FF à Exequente.
Foi realizada audiência preliminar, na qual as partes acordaram na única matéria de facto controvertida – que foi o BANCO FF, S.A. e não a Exequente a preencher a livrança em causa.
Notificada a Exequente para vir aos autos juntar escritura pública de constituição do penhor e/ou autorização do credor pignoratício (BANCO EE, S.A.) para que a Exequente executasse o seu crédito sobre os Executados e/ou informar/esclarecer o que tivesse por conveniente nessa matéria, veio a mesma informar que o crédito que lhe foi concedido pela BANCO EE, S.A. foi liquidado e, consequentemente, cancelado o penhor em causa, juntando certidão de registo predial comprovativa do cancelamento do penhor.
Considerando-se não existirem questões de facto relevantes controvertidas, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a oposição à execução improcedente, determinando-se o prosseguimento da execução.
Inconformados com a sentença, os oponentes recorreram para o Tribunal da Relação de ..., que proferiu acórdão a julgar improcedente a apelação e a confirmar a sentença.
De novo inconformados, os oponentes vêm recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso admitido como revista excepcional, alegando com as seguintes conclusões: 1º. No dia 19.12.2007, os recorrentes BB e CC, na qualidade de sócios gerentes e em representação da sociedade comercial por quotas AA, e o BANCO FF celebraram um contrato de mútuo, em que este concedeu à representada dos primeiros outorgantes um empréstimo no montante de € 705.000,00, com garantia hipotecária. 2º. Os valores em dívida ao mutuante BANCO FF ficaram, ainda, caucionados pela livrança em branco, subscrita pela mutuária e avalizada por BB e mulher, CC, destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela mutuária perante o BANCO FF, ficando este autorizado a preenchê-la. 3º. Em 20.12.2010 o BANCO FF preencheu a livrança com o valor de € 810.606,42, com vencimento em 28.01.2011. 4º. No dia 23.12.2010 o BANCO FF outorgou escritura pública de cessão do dito crédito e das correlativas garantias reais e pessoais à sociedade DD. 5º. A livrança não foi paga na data do respectivo vencimento, nem posteriormente. 6º. A DD deu à execução a livrança em causa, a que os executados deduziram a presente oposição.
FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A única questão suscitada pelos recorrentes é a de saber se a livrança pode ser validamente transmitida a terceiro por outra forma que não seja o endosso, designadamente através de escritura pública de cessão de créditos. Os artºs. 77º e 11º da LULL parecem não deixar dúvidas que a livrança é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. Aliás, caso a letra ou a livrança tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, as mesmas só podem ser transmitidas pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. Isto significa que a letra e a livrança não podem ser endossadas se tiverem inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, mas traduz também que podem ser livremente transmitidas pela forma e com os efeitos duma cessão de créditos (Miguel J. A. Pupo Correia – Direito Comercial – Direito da Empresa, 10ª ed., pág. 481 a 483, Carolina Cunha – Letras e Livranças – Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, pág. 77 a 84). A cessão de créditos está regulamentada nos artºs. 577º e seg. do CC e tem efeitos diferentes do endosso. Na cessão de créditos, o cedente pode não ficar responsabilizado perante o cessionário pela satisfação do crédito pelo devedor, a não ser que a cessão preencha a figura da “datio pro solvendo” (artº. 840º do CC). Por outro lado, o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, o que não acontece na transmissão por endosso (artº 585º do CC). A cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido. A livrança foi subscrita pela devedora e avalizada pelos respectivos sócios gerentes como caução do pagamento da importância em dívida por força do contrato de mútuo oneroso celebrado entre a AA, Lda. e o BANCO FF. As partes subscreveram a livrança como caução do pagamento da dívida resultante do mútuo oneroso, pretendendo que a livrança acompanhasse como garantia o crédito resultante do mútuo. As partes não pretendiam que a livrança se autonomizasse da dívida caucionada, mas não inscreveram na mesma as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente. Apesar disso, o BANCO FF cumpriu a intenção das partes e transmitiu, como devia, a livrança caução com a cessão do crédito caucionado. O BANCO FF estaria, de certo modo, a frustrar as espectativas da devedora se, em lugar de transmitir a livrança com a cessão de créditos, autonomizasse a obrigação cartular, endossando-a em branco ou à DD. O endosso em branco ou à DD permitiria a esta o seu reendosso, permitindo que a devedora e os avalistas fossem demandados por um qualquer portador legítimo da mesma, sem lhe poder opor o eventual pagamento da sua dívida à DD ou qualquer outro meio de defesa invocável perante esta. No caso dos autos, o negócio subjacente à subscrição da livrança foi o mútuo oneroso, celebrado por escritura pública entre o BANCO FF e os executados. A convenção executiva foi inserida neste negócio subjacente, onde ficou convencionado que os fundos do financiamento seriam utilizados mediante a subscrição pelo mutuário de livrança, avalizada pelos seus sócios gerentes. Esta convenção executiva é vinculativa e faz incorrer em responsabilidade civil contratual quem a não cumprir (Pedro Pais de Vasconcelos – Direito Comercial-vol.I, pag. 312 a 315). Não se entende a oposição dos executados, pois a transmissão da livrança como acessório de garantia do pagamento do crédito cedido só os beneficia, em contraponto com o endosso da mesma livrança. A transmissão da livrança juntamente com o crédito que a mesma cauciona é válida e legalmente prevista, em nada prejudicando o devedor, antes acautelando os seus direitos de defesa, pelo que a exequente é legítima portadora da livrança, legitimação material a suprir a legitimação formal, já que não consta do próprio título, e pode accionar os seus subscritores pelo seu não pagamento, até porque o título de transmissão é o mais solene, escritura pública, não suscitando quaisquer dúvidas quanto à respectiva autenticidade. Assim, nos termos expostos, a oposição à execução é improcedente, razão pela qual se confirma o acórdão recorrido, negando a revista. Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 22 de novembro de 2016
Salreta Pereira – Relator João Camilo Fonseca Ramos
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