Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7365/13.2TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE SEGURO
PROPOSTA DE SEGURO
NULIDADE
DECLARAÇÃO INEXATA
QUESTIONÁRIO
DEVER DE COMUNICAÇÃO
FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Diversamente do alegado pelos recorrentes, o acórdão recorrido procedeu à eliminação das contradições da decisão de facto em conformidade com o determinado pelo STJ, harmonizando entre si a matéria de facto provada e não provada e cumprindo o objectivo definido de fixar a prova quanto à forma como teve lugar o preenchimento do questionário médico dos autos.

II. Improcedendo todas as questões recursórias relativas à decisão de facto, tal como alterada pela Relação, e perante a abundante prova feita, tanto a respeito da não veracidade das informações relativas à saúde do autor prestadas à seguradora aquando da adesão ao seguro de grupo dos autos, como a respeito de tais informações terem sido fornecidas à funcionária do banco pelos próprios aderentes, não merece censura a decisão do tribunal a quo no sentido da anulação do contrato de seguro dos autos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA e mulher, BB, instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Ocidental, Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A. e Banco Comercial Português, S.A., pedindo a condenação dos RR. a reconhecer:

(i) Que o A. está em situação de invalidez permanente com impossibilidade de angariar meios de subsistência;

(ii) Que a situação de incapacidade é irreversível;

(iii) Que a 1.ª R. deve pagar ao 2.º R. o remanescente do empréstimo do A. ainda em dívida, a contar da data em que ao A. foi reconhecida a situação de reforma por incapacidade permanente;

(iv) Que o 2.º R. deve pagar ao A. as prestações recebidas desde tal data, incluindo a quota-parte do prémio de seguro, acrescidas de juros à taxa legal.

Alegaram, para o efeito, que contrataram com o R. Banco um mútuo para aquisição de habitação própria, no valor de € 79.400,00, e, por exigência daquele, celebraram com a R. Seguradora um seguro de vida, na modalidade de adesão a seguro de grupo, para garantir o pagamento do empréstimo, em caso de invalidez ou morte de qualquer dos AA.. Posteriormente, uma Junta Médica da Segurança Social atribuiu ao A., por motivo de doença, incapacidade de 66%. O A. dirigiu-se ao R. Banco a comunicar a situação, para efeito de accionamento do seguro, mas foi-lhe transmitido não dispor das condições exigidas na apólice por, alegadamente, a sua incapacidade não ser total. Os AA. não tomaram conhecimento das condições gerais ou especiais da apólice do seguro, visto que elas não lhes foram lidas, exibidas, entregues ou enviadas posteriormente à subscrição da proposta de contrato, e apenas têm conhecimento do que consta do certificado de seguro: morte ou invalidez permanente, entendendo por invalidez permanente a situação de, por falta de saúde, não mais se poder exercer a respectiva profissão ou outro trabalho remunerado do mesmo género.

O R. Banco contestou a acção, alegando que, para efeito da celebração do contrato de seguro, cada um dos AA. preencheu os impressos próprios relativos aos seus antecedentes de saúde e recebeu as condições gerais e especiais do contrato de seguro que iam celebrar, delas tomando conhecimento, tendo-lhes sido prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre as garantias e exclusões. Impugnou ainda os demais factos alegados relativos ao sucedido após a celebração dos contratos.

A R. Seguradora contestou, alegando que as condições gerais e especiais do contrato foram entregues aos AA., o seu conteúdo foi-lhes explicado e foram-lhes prestados todos os esclarecimentos sobre coberturas, garantias e exclusões, conforme os mesmos declararam na proposta de adesão; a contratação da cobertura do risco foi aceite com base nas declarações prestadas na proposta de seguro e no pressuposto de que as declarações efectuadas não padeciam de incorrecções ou omissões; a R. nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos AA., desconhecendo em absoluto a razão de ser desta acção, bem como a invalidez que alegadamente afecta o A., a qual não preenche o conceito de invalidez total e permanente prevista nas condições da apólice. Mais impugna os demais factos alegados pelos AA..

Após a realização da audiência de julgamento, e estando o processo concluso para sentença, foi determinada a reabertura da discussão e ordenada oficiosamente a realização de exame médico-legal ao A..

Junto o respectivo relatório, a R. Seguradora apresentou articulado superveniente alegando que, através do referido relatório, tomou conhecimento de que, em 1994, o A. padecia de “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos, estando a ser medicado para essa patologia, facto que omitiu aquando da subscrição do seguro em 2007, sendo certo que, se a R. tivesse tido conhecimento dessa situação, teria aceite a cobertura do risco de morte, mas com agravamento do prémio em 400%, e teria recusado a cobertura do risco de invalidez total e permanente. Tomou igualmente conhecimento de que o A., desde 2004, faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores, de que, em 2001 e em 2003, foi seguido em consultas de cardiologia por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca e de que, em 2004, esteve quarenta e dois dias de baixa médica, não tendo sido explicado o motivo para tal. Todas estas situações eram do conhecimento do A. e foram omitidas, deliberada e dolosamente, no preenchimento da proposta de adesão ao contrato de seguro, revelando que a invalidez actual resulta de doença pré-existente, não comunicada à seguradora. Se as mesmas situações tivessem sido declaradas na proposta de adesão, a R. teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.

O articulado superveniente foi admitido e, no exercício do contraditório, os AA. responderam que não foram eles que preencheram o formulário da proposta de seguro, tendo-se deslocado ao escritório de uma colaboradora do Banco para tratarem da documentação do empréstimo bancário e esta apenas lhes pediu para assinarem os documentos, entre os quais se encontraria a proposta de seguro, já integralmente preenchida, indicando-lhes o local das assinaturas, sem lhes fazer qualquer pergunta; acrescentam que, à data da celebração do contrato, o A. fazia a sua vida normal, desenvolvendo um trabalho duro como fundidor, ocupava as horas vagas na agricultura e tinha um estado de saúde perfeitamente estabilizado, sentia-se bem e tinha a hipertensão perfeitamente controlada.

Foi proferida sentença, em 3 de Janeiro de 2020, que, julgando a acção procedente, decidiu, «condenando a 1ª Ré “Ocidental, Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA”, a pagar ao 2º Réu “Millenium BCP, SA” as prestações do empréstimo bancário vencidas desde 2 de Janeiro de 2013 até atingir o capital seguro. Caso haja remanescente do capital seguro, condena-se a 1ª Ré a entregar o montante respectivo aos AA., seus beneficiários.».

Inconformada, a R. Seguradora interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., pedindo a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 18 de Junho de 2020, o recurso foi julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se os RR. dos pedidos.

Desta decisão, interpôs o A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 1 de Julho de 2021, foi decidido o seguinte:

«Pelo exposto, nos termos do art. 683.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, anula-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, sem prejuízo de, se necessário, vir o processo a ser remetido ao Tribunal da 1.ª Instância, para:

a) Serem supridas as contradições da decisão de facto, enunciadas no ponto 5.3. do presente acórdão;

b) Proferir decisão de direito em conformidade.».

Baixados os autos ao Tribunal da Relação para cumprimento do determinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, foi proferida, por acórdão de 21 de Outubro de 2021, decisão que julgou o recurso de apelação procedente, revogando a decisão da 1.ª instância e absolvendo os RR. dos pedidos.


2. Vieram os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«i. O douto acórdão recorrido não obedeceu às instruções do acórdão superior, pois fez uma alteração profunda à factologia, desnecessária e além do era conveniente, especialmente os factos do artº 9, facto não provado da alª b), factos nº 37 e 41, facto não provado da alª g), este a ponto de estar em contradição com o facto nº 9 e o facto 40; aditou também um facto não provado – alª n), cuja intenção parece não ser de aceitar.

ii. Quanto ao facto do artº 9 e não provado da alª b), eles só estariam em contradição se a versão da ocorrência fosse a do 1º acórdão, que o 2º rejeitou e modificou;

iii. O da alª b não provado não deve ser alterado, pois que corresponde à factualidade assente, dando-se aqui por reproduzidas as razões invocadas;

iv. Os factos provados 37 e 41 não necessitam de ser remexidos, pois bastava anular o nº 37, ficando o nº 41;

v. O facto não provado da alª g), tal como foi alterado, entra em conflito com os nº 9 e 40, pois se se dá como não provado que os autores prestaram pessoalmente as informações à funcionária do banco, como pode depois dizer-se que o banco completou a proposta com a informação dos proponentes - 9 – e que a resposta ao questionário clínico foi preenchida electronicamene, pressupondo uma pergunta e uma resposta!;

vi. O facto da alª n) não provado foi introduzido sem outro intuito, salvo melhor opinião, que não seja o do reforço do facto nº 40;

vii. Pelo exposto, não deve ser considerada a alteração factual, na medida em que carece de fundamentação (artº 141 nº 1 CPC), não corresponde a factos alegados (artº 5 CPC), não é feito o exame crítico das provas e dos factos (artº 607 nº 3 e 4 CPC)

viii. Ora, tal decisão, na forma como se processou, é também uma violação do princípio do contraditório - artº 3 CPC, visto que as partes não tiveram oportunidade de se pronunciarem.

ix. Havendo, se houvesse, deficiente fundamentação de facto, sobre algum ponto essencial para o julgamento, impõe por outro lado a lei processual (artº 662 nº 2 alª d)) que o processo seja remetido ao tribunal da 1ª instância para que a fundamente; não tendo isto sucedido, há violação da lei processual.

O que não foi feito.

Sem prejuízo,

x. Salvo o devido respeito, que sempre é devido, a nova decisão de facto (nova) tomada no 2º douto acórdão, contrariando a de 1ª instância, e a do 1º acórdão, quanto aos pontos assinalados, e sobre a qual não tiveram oportunidade de se pronunciar os recorridos, está errada por não atender a todas as provas constantes dos autos e referidas na douta sentença, contrariar provas existentes, não fazer uma apreciação crítica dos factos provados e não provados, que alegadamente acolhe em toda a sua extensão literal, pelo que não pode constituir uma base clara, isenta de dúvidas para fundamentar a decisão de direito; entre outras, mostram-se especialmente violadas, salvo todo o respeito e melhor entendimento, as regras dos artº 607 nº 4, 615 nº 1 alª c), 640, 662 nº 1 CPC . Daí a nulidade do douto acórdão que se invoca para todos os efeitos, por assentar em base factual que não pode ser acolhida para aplicação do direito.

xi. Os factos provados, entre os quais os constantes dos nº 4, 7, 9, 16, 18, 25, 37, 40 e 41 da matéria de facto, aqui dados por reproduzidos, foram mantidos, nos termos do douto acórdão, em toda a sua literalidade, sem qualquer alteração, e, portanto, são eles a subsumir ao direito. Formam caso julgado formal e por isso, fora das condições impostas pelo acórdão superior não podem ser alteradas. Segundo tal factualidade, o A., metalúrgico e de pouca instrução, dirigiu-se ao balcão do banco, com a mulher, onde subscreveram os documentos que aí lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida; nenhum dos AA. preencheu o formulário/proposta de seguro; que os sinais apostos nos quadrados correspondentes aos antecedentes de saúde não são do punho do A. nem de sua mulher, e não lhes foram previamente feitas quaisquer perguntas para o preenchimento dos quadrados; e que não têm consciência de terem incorrido em qualquer omissão na subscrição do contrato de seguro.

xii. Da factualidade do processo (artº 5 CPC), deverá ainda retirar-se que o preenchimento do formulário de saúde da proposta de seguro, foi feito directamente no e através do sistema informático do banco, e necessariamente pelo funcionário adstrito ao processo dos AA.

xiii. Se a literalidade dos factos indica, como indica, que os AA. não tiveram qualquer intervenção, por si ou por outrem nas respostas do formulário de saúde, apenas assinando a proposta que lhes foi apresentada quando chegaram ao banco, que não está comprovado terem sido feitas quaisquer perguntas com vista ao preenchimento do formulário de saúde, que não são do punho de cada um dos AA. os sinais apostos na quadricula do formulário de saúde, que a proposta do seguro de vida era organizada e concluída no sistema informático do banco, então há que concluir da total falta de intervenção de cada um dos AA. no questionário de saúde, havendo que incluir nesta o prévio desconhecimento do mesmo.

xiv. Nunca podendo assim ser imputada a qualquer deles a responsabilidade de cada uma das respostas, admitindo como pugna a R. seguradora a sua inexactidão.

xv. Assentes estes factos, também não pode aceitar-se, como se declara no douto acórdão, que pelo facto de os AA. terem subscrito a proposta de seguro aceitaram o seu conteúdo e do mesmo são responsáveis; ora, uma vez que demonstraram que quanto ao questionário de saúde são alheios ao seu conteúdo, que não contribuíram para o mesmo, que não se mostra evidenciado o conhecimento prévio do seu conteúdo, aquela proposição não é verdadeira. Acresce que quando o documento de onde constam os factos anotados como respostas suas lhes foi apresentado, o impugnaram (no respectivo articulado) quanto à letra e autoria na parte em que ele não era verídico. Sem mais provas, por parte do apresentante do documento, não lhes pode, pois, ser oposto todo o seu conteúdo (artº 374 CC).

xvi. Por último, mesmo que se admitisse, como se entende no douto acórdão, que não está provado (ou não pode considerar-se provado) que não tenham sido feitas perguntas a cada um dos AA. (o que é contrário à restante factualidade provada), a prova do facto, em face das regras do ónus da prova, é dos RR, se querem prevalecer-se do efeito jurídico previsto no artº 429 CCOM, ou seja, das respostas inexactas. Na verdade, competindo aos RR. prevalecer-se daquela consequência, têm de provar a causa ou o facto jurídico que a ele conduz – as respostas dadas. Todavia, as respostas não exactas dos AA. implicam que haja perguntas ou a demonstração do conhecimento prévio dos factos anotados no inquérito de saúde; ora, isto, na situação concreta, é da responsabilidade das RR., porque todo o processo foi e é organizado dentro do banco e a cargo dos seus serviços.

xvii. Por erro de interpretação e aplicação da lei aos factos, mostra-se, entre outras, violadas as disposições processuais e substantivas apontadas nas alegações de recurso e conclusões, aqui dadas por reproduzidas.».

Por todo o exposto, e mais o douto suprimento de V.Ex.as, pede-se reparação da decisão recorrida, revogando-se o aliás douto acórdão e prolatando-se douto acórdão conforme


A Recorrida Seguradora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.


3. Por acórdão da conferência de 27 de Janeiro de 2022, o tribunal a quo pronunciou-se pela não verificação da invocada nulidade do acórdão recorrido.

Cumpre apreciar e decidir.


4. Foi dado como provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção do acórdão da Relação):

1. Em 26 de Abril de 2007, através de escritura pública, os autores celebraram com o Banco réu, através de uma agência em ..., um mútuo com hipoteca destinado a aquisição de habitação própria, no valor de € 79.400,00.

2. Para o empréstimo, o 2º réu exigiu que os autores subscrevessem um seguro de vida que ficasse a garantir o reembolso do capital, tendo sugerido a modalidade de adesão a seguro de grupo.

3. A proposta de adesão foi subscrita pelos autores a 22-03-2007, e a 1ª ré aceitou e emitiu o contrato de seguro de vida associado ao crédito à habitação contraído junto do 2º réu, identificado pelo certificado individual n.º ...65 (apólice de grupo n.º ...90), com início em 26-04-2007, e coberturas de morte ou invalidez total e permanente para o capital inicial de € 79.400.

4. O tipo de seguro contratado é na modalidade de seguro de adesão ou de grupo, em que a pessoa segura é cada um dos autores, o banco mutuante o tomador e beneficiário, mediante o qual a 1ª ré se obrigou a pagar ao banco mutuante, 2º réu, em caso de morte ou invalidez de qualquer dos autores, o valor do mútuo em débito.

5. O prémio do seguro contratado (anual) era pago em 12 mensalidades, incorporadas no pagamento da prestação do empréstimo, estando os autores em dia no cumprimento dessas prestações.

6. Após submissão a Junta Médica, foi atribuída ao autor marido pela Segurança Social uma incapacidade de 66%, e reconhecida a situação de reforma em 02-01-2013.

7. O autor marido nasceu em .../.../1965, era metalúrgico de profissão, não está ao trabalho desde 2011, e o único rendimento de que agora dispõe é o da pensão de reforma paga pela Segurança Social, no montante de €379,04.

8. Consta do art. 6º das condições especiais da cobertura de invalidez total e permanente que o Segurado deve solicitar à Seguradora, por escrito, a verificação da invalidez total e permanente, nos 60 dias imediatos à constatação da mesma, enviando os seguintes documentos:

a) Relatório do médico ou médicos assistentes, dando informações sobre o início e evolução da invalidez, devendo ser clinicamente comprovada com elementos clínicos objectivos, e declarar a pessoa segura como incapacitada total e definitivamente para o exercício de uma qualquer actividade remunerada;

b) Descrição detalhada da actividade profissional exercida pela pessoa segura antes da invalidez.

9. Com vista à obtenção do empréstimo bancário e concretização da celebração da escritura de compra e venda, os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome CC, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável. [alterado pela Relação]

9i. A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram. [aditado pela Relação]

10. Algum tempo após a dita subscrição, e já depois da concessão do empréstimo, os autores receberam pelo correio o certificado de seguro de vida.

11. Em 2011, o autor começou a ter queixas de cefaleias, tonturas, mialgia e astenia e inchaço na perna esquerda, com situações de febre, bem como um cansaço permanente.

12. Deixou de ter condições físicas para trabalhar, entrando em baixa médica.

13. O autor sofria de “uma doença no sangue”, em virtude da qual tinha de se submeter regularmente a flebotomias.

14. Foi referido ao autor, em data indeterminada, que tal doença não tem cura e há um risco de progressão para neoplasia ou leucemia.

15. A partir de 2011, o autor teve de abandonar todas as actividades que exigem esforço, por não ter condições físicas para as exercer, precisando de repousar o mais que puder.

16. O autor não tem habilitações escolares e técnicas que lhe permitam granjear trabalho que dispense a força física.

17. Era convicção do autor de que preenchia os pressupostos de accionamento do seguro de vida, e por isso dirigiu-se ao balcão do banco, onde lhe foi comunicado não dispor das condições exigidas na apólice por alegadamente a sua incapacidade não ser total.

18. Os autores não tomaram conhecimento das condições gerais ou especiais da apólice do seguro, não lhes tendo sido lida nem explicada qualquer cláusula da apólice ou das condições, designadamente a respeitante à invalidez total e permanente.

19. Foram entregues à pessoa segura as condições gerais e especiais do contrato.

20. A ré aceitou a contratação da cobertura do risco com base nas declarações constantes da proposta de adesão subscrita pelos interessados, não tendo sido necessário solicitar quaisquer outras informações relativas ao estado de saúde, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.

21. Através da proposta de seguro, dados das pessoas seguras e respectivos questionários médicos e declarações de saúde, a ré avalia e aceita os riscos garantidos ao abrigo dos contratos de seguro de vida.

 22. Os seguros foram aceites no pressuposto de que as declarações constantes da proposta não padeciam de incorrecções ou omissões que, no futuro, se fosse esse o caso, poderiam originar a resolução do contrato ou a cessação das garantias conferidas, inclusive, numa eventual participação de sinistro.

23. Em 04-01-2013 a ré recebeu um pedido de cópia do contrato de seguro de vida, subscrito pelo autor, tendo em 09-05-2013 remetido ao autor cópia das condições gerais, especiais e particulares.

24. A ré nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos autores.

25. Os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que:

«São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo».

«Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».

26. Nunca os autores participaram por escrito ao banco a ocorrência de qualquer sinistro.

27. A ré não deu seguimento ao procedimento de justificação e reconhecimento do direito às garantias contratuais por não ter uma participação escrita, e não pôde constatar qualquer situação de invalidez que afecte o autor.

28. Constatação essa que teria obrigatoriamente de ser efectuada através da comprovação cumulativa do impedimento do exercício de uma actividade remunerada (documento da Segurança Social ou de outra entidade oficial com a atribuição de pensão de invalidez) e possuir um grau de desvalorização superior a 66,6% determinado com base na Tabela Nacional de Incapacidades – Atestado Médico de Incapacidade Multiusos) – art. 1º, al. e) das condições especiais da cobertura de invalidez total e permanente.

 29. O autor foi remetido em 1994 para consulta de Hematologia Clínica para estudo de “poliglobulia”.

30. O estudo efectuado na consulta externa da referida especialidade no Centro Hospitalar .../... foi compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.

31. O autor iniciou medicação nesse ano, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.

32. Caso a ré tivesse conhecimento destes factos, teria o contrato de seguro sido aceite com um agravamento de 400% do prémio na cobertura de morte, e teria sido recusada a cobertura de invalidez total e permanente.

33. Desde 2004, o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores.

34. Em 2003 e 2001, o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia do mesmo Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca.

35. Trata-se de outro factor que agravaria a cobertura de morte já que a invalidez total e permanente seria recusada.

36. Verifica-se pré-existência de doenças que motivaram a actual invalidez, cobertura que teria sido recusada aquando da aceitação do contrato de seguro, pela existência dos antecedentes clínicos do autor.

37. O autor conhecia os problemas de saúde a que vinha sendo acompanhado medicamente, os quais foram omitidos na proposta de seguro de vida. [alterado pela Relação]

38. Se as referidas patologias tivessem sido declaradas na proposta de adesão (o autor respondeu negativamente a todas as questões do questionário médico…), condicionavam a análise e aceitação do risco, sendo que a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.

39. Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro.

40. Os quadrados com a resposta ao questionário clínico foram preenchidos electronicamente, não tendo os respectivos «vistos» sido feitos pelo punho dos autores. [alterado pela Relação]

41. [dado como não provado pela Relação]

42. Os problemas de saúde que teve em 1994 não afligiam o autor, pois a sua hipertensão estava perfeitamente controlada, e fazia a sua vida normal, com trabalho duro e esforçado.

Com interesse para a decisão, foram dados como não provados, entre outros, os seguintes factos:

b) A CC preencheu a proposta de seguro e a seguir pediu aos autores para assinarem o documento que lhes apresentou. [alterado pela Relação]

g) Os AA. prestaram, pessoalmente, à funcionária do banco as declarações relativas à sua saúde constantes da proposta de adesão por eles assinada. [alterado pela Relação]

j) O A., sua mulher, e uma irmã daquele, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do BCP, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário. [alterado pela Relação]

k) Aí chegados, a colaboradora do BCP – D. CC – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas. [alterado pela Relação]

l) A proposta de seguro de vida estava nessa papelada. [alterado pela Relação]

m) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida. [alterado pela Relação]

n) O preenchimento do questionário clínico não foi antecedido da formulação de quaisquer perguntas aos autores. [aditado pela Relação]

Foi ainda dado como não provado o seguinte facto:

- Os autores não têm consciência de terem omitido qualquer informação sobre o estado de saúde do autor. [dado como não provado pela Relação]


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Desrespeito do acórdão recorrido pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça (concls. i) a vii));

- Alteração da decisão de facto realizada em violação de normas processuais, «na medida em que carece de fundamentação (artº 141 nº 1 CPC), não corresponde a factos alegados (artº 5 CPC), não é feito o exame crítico das provas e dos factos (artº 607 nº 3 e 4 CPC)», ocorrendo também «uma violação do princípio do contraditório - artº 3 CPC, visto que as partes não tiveram oportunidade de se pronunciarem» (concls. vii e vii));

- Erro de julgamento da decisão de facto, verificando-se ofensa às «regras dos artº 607 nº 4, 615 nº 1 alª c), 640, 662 nº 1 CPC», razão pela qual padece o acórdão recorrido de nulidade «por assentar em base factual que não pode ser acolhida para aplicação do direito» (concls. ix) e x));

- Além de que «o documento de onde constam os factos anotados como respostas suas lhes foi apresentado, o impugnaram (no respectivo articulado) quanto à letra e autoria na parte em que ele não era verídico. Sem mais provas, por parte do apresentante do documento, não lhes pode, pois, ser oposto todo o seu conteúdo (artº 374 CC)» (concl. xv, in fine));

- De qualquer forma, os factos dados como provados nos pontos «nº 4, 7, 9, 16, 18, 25, 37, 40 e 41», que foram mantidos em conformidade com o primeiro acórdão da Relação, sempre conduziriam à alteração da decisão de direito em sentido favorável aos AA. (concls. xi) a xiv));

- Por último, e em qualquer caso, deve entender-se que o acórdão recorrido interpretou e aplicou o regime do art. 429.º do Código Comercial em desrespeito pelas regras de distribuição do ónus da prova.


6. Invocam os Recorrentes que o acórdão recorrido desrespeitou a decisão proferida pelo acórdão de 1 de Julho de 2021 do Supremo Tribunal de Justiça ao ter ao realizado «alteração profunda à factologia, desnecessária e além do que era conveniente, especialmente os factos do artº 9, facto não provado da alª b), factos nº 37 e 41, facto não provado da alª g), este a ponto de estar em contradição com o facto nº 9 e o facto 40; aditou também um facto não provado – alª n), cuja intenção parece não ser de aceitar».

Recordemos o teor da decisão do acórdão de 1 de Julho deste Supremo Tribunal e respectiva fundamentação, na parte ora relevante:

«Afigura-se que a questão nuclear para o desfecho da acção se encontra devidamente identificada pela Relação:

(i) Se as informações não verdadeiras a respeito da saúde do A. resultaram do preenchimento do questionário feito por terceira pessoa de quem os AA. se socorreram, a prestação de informações é-lhes imputável, configurando falsidade de declaração negocial e gerando a anulabilidade do contrato de seguro;

(ii) Se, diversamente, as informações não verdadeiras sobre a saúde do A. resultaram do preenchimento do questionário médico feito por funcionário/a do banco tomador do seguro, sem formulação de quaisquer perguntas ao A., a prestação de tais informações não será imputável aos AA., não determinando, consequentemente, a invalidade do contrato de seguro.

5.3. A Relação entendeu que a factualidade dada como provada leva a dar como assente que se verificou a primeira situação, isto é, que o preenchimento do questionário médico foi feito por terceira pessoa (de seu nome CC), contactada pelos AA. para efeito de organização da documentação relativa à concessão de crédito bancário.

Vejamos se este juízo se apresenta como inequívoco a partir dos factos dados como provados e como não provados pela sentença de 1.ª instância, os quais, recorde-se, não foram impugnados pelas partes:

Factos dados como provados

9. Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os autores contactaram uma terceira pessoa que tratou da documentação necessária, esclarecendo-se que acompanhou os autores ao banco, onde estes subscreveram os documentos que lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida.

25. Os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que:

«São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo».

«Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».

37. Os antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento e foram omitidos deliberadamente pelo autor, quer na proposta de adesão, em 2007, quer na petição inicial.

39. Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro.

40. Os sinais apostos nos quadrados correspondentes aos antecedentes e estado de saúde não são do punho do autor nem da sua mulher e não lhes foram previamente feitas quaisquer perguntas para o preenchimento desses quadrados.

41. Os autores não têm consciência de qualquer [rectius: os autores não têm qualquer consciência de] terem incorrido em qualquer omissão na subscrição do contrato de seguro: à data, o autor fazia um trabalho duro, como fundidor por conta de outrem, ocupava horas vagas na agricultura no seu terreno e tinha um estado de saúde perfeitamente estabilizado, sentindo-se bem.

Factos dados como não provados

b) Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços” sita na Avª ..., em ..., cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida – 5º PI.

g) Foram os AA. que prestaram as declarações relativas à sua saúde constantes da proposta de adesão por eles subscrita - 4º cont. 1ª R.

j) Pouco tempo antes do empréstimo, o A., sua mulher, e uma irmã daquele, a quem iam comprar um apartamento, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do BCP, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário – 10º resp. ao AS.

k) Aí chegados, a colaboradora do BCP – D. CC – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas, e pouco tempo aí permaneceram – 11º resp. ao AS.

l) Entre os formulários respectivos para o empréstimo estavam certamente os das propostas de seguros de vida dos AA., visto que as não tinham assinado antes e depois disso só assinaram a escritura no notário – 12º resp. ao AS.

m) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida, que já dispunha de todos os elementos de identificação dos AA. (que lhe haviam sido entregues previamente pela irmã do A., DD) – 13º e 14º resp. ao AS.

Tal como se encontram formulados, identifica-se uma contradição insanável entre o facto provado 9 (“Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os autores contactaram uma terceira pessoa que tratou da documentação necessária, esclarecendo-se que acompanhou os autores ao banco, onde estes subscreveram os documentos que lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida”), em si mesmo considerado, e também como interpretado pela Relação, isto é, com o sentido de que o preenchimento do inquérito médico foi feito por terceira pessoa (de seu nome CC) contactada pelos AA., e o ponto b) dos factos não provados (“Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços” sita na Avª ..., em ..., cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida”), assim como, ao menos parcialmente, também com os pontos j), k) e l) dos factos não provados.

Assim, o que importa esclarecer, de forma rigorosa, é se o preenchimento do questionário médico foi feito por terceira pessoa, contactada pelos AA. para o efeito, ou se tal preenchimento foi realizado por funcionário/a do banco tomador do seguro; ou ainda se se verificou alguma outra situação relevante ou, no limite, se não se prova quem procedeu ao preenchimento do inquérito.

Também o facto provado 37 (“Os antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento e foram omitidos deliberadamente pelo autor (...)”) contradiz, ao menos no sentido comum da linguagem utilizada, o facto provado 41 (“Os autores não têm consciência de qualquer [rectius: os autores não têm qualquer consciência de] terem incorrido em qualquer omissão na subscrição do contrato de seguro (...)).

Importa, pois, compatibilizar entre si o teor dos factos 37 e 41, harmonizando-os também com os demais factos provados, designadamente com os factos relativos à autoria material do preenchimento do questionário médico e à conduta dos AA..

(...)

7. Pelo exposto, nos termos do art. 683.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, anula-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, sem prejuízo de, se necessário, vir o processo a ser remetido ao Tribunal da 1.ª Instância, para:

c) Serem supridas as contradições da decisão de facto, enunciadas no ponto 5.3. do presente acórdão;

d) Proferir decisão de direito em conformidade.».

Vejamos.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça determinou que a alteração da matéria de facto de forma a eliminar as contradições assinaladas, com o seguinte objectivo:

«(...) o que importa esclarecer, de forma rigorosa, é se o preenchimento do questionário médico foi feito por terceira pessoa, contactada pelos AA. para o efeito, ou se tal preenchimento foi realizado por funcionário/a do banco tomador do seguro; ou ainda se se verificou alguma outra situação relevante ou, no limite, se não se prova quem procedeu ao preenchimento do inquérito.».

Tal esclarecimento implicava compatibilizar, entre si, o facto provado 9. e os factos dados como não provados; bem como compatibilizar, entre si, os factos provados 37. e 41., o que devia ser feito «harmonizando-os também com os demais factos provados, designadamente com os factos relativos à autoria material do preenchimento do questionário médico e à conduta dos AA..».

Temos, pois, que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça delineou uma ampla margem para a alteração da matéria de facto a realizar pelo Tribunal da Relação.

A factualidade, dada como provada e como não provada, alterada pelo acórdão recorrido, é a seguinte:

9. Com vista à obtenção do empréstimo bancário e concretização da celebração da escritura de compra e venda, os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome CC, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável. [alterado pela Relação]

9i. A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram. [aditado pela Relação]

37. O autor conhecia os problemas de saúde a que vinha sendo acompanhado medicamente, os quais foram omitidos na proposta de seguro de vida. [alterado pela Relação]

40. Os quadrados com a resposta ao questionário clínico foram preenchidos electronicamente, não tendo os respectivos «vistos» sido feitos pelo punho dos autores. [alterado pela Relação]

41. [eliminado pela Relação]

Factos dados como não provados:

b) A CC preencheu a proposta de seguro e a seguir pediu aos autores para assinarem o documento que lhes apresentou. [alterado pela Relação]

g) Os AA. prestaram, pessoalmente, à funcionária do banco as declarações relativas à sua saúde constantes da proposta de adesão por eles assinada. [alterado pela Relação]

j) O A., sua mulher, e uma irmã daquele, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do BCP, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário. [alterado pela Relação]

k) Aí chegados, a colaboradora do BCP – D. CC – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas. [alterado pela Relação]

l) A proposta de seguro de vida estava nessa papelada. [alterado pela Relação]

m) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida. [alterado pela Relação]

n) O preenchimento do questionário clínico não foi antecedido da formulação de quaisquer perguntas aos autores. [aditado pela Relação]

E ainda:

- Os autores não têm consciência de terem omitido qualquer informação sobre o estado de saúde do autor. [dado como não provado pela Relação]

Analisadas as alterações da decisão de facto, considera-se que, diversamente do alegado pelos Recorrentes, o acórdão ora recorrido procedeu à eliminação das contradições da dita decisão em conformidade com o determinado por este Supremo Tribunal, harmonizando entre si a matéria de facto dada como provada e como não provada e cumprindo o objectivo definido de fixar a prova quanto à forma como teve lugar o preenchimento do questionário médico dos autos. Prova esta que se encontra consubstanciada no facto 9i., aditado pela Relação, que tem o seguinte teor:

«A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram».

Nada havendo a censurar à intervenção do tribunal a quo, conclui-se, assim, pela improcedência do recurso nesta parte.


7. Em relação à alteração da decisão de facto pelo acórdão recorrido, invocam ainda os Recorrentes que a mesma:

- Foi realizada em violação de normas processuais, «na medida em que carece de fundamentação (artº 141 nº 1 CPC), não corresponde a factos alegados (artº 5 CPC), não é feito o exame crítico das provas e dos factos (artº 607º nº 3 e 4 CPC)», ocorrendo também «uma violação do princípio do contraditório - artº 3 CPC, visto que as partes não tiveram oportunidade de se pronunciarem»;

- Está ferida de erro, desrespeitando as «regras dos artº 607º nº 4, 615 nº 1 alª c), 640º, 662º nº 1 CPC», razão pela qual padece o acórdão recorrido de nulidade «por assentar em base factual que não pode ser acolhida para aplicação do direito».

7.1. É patente a falta de rigor na enumeração dos vícios imputados à decisão de facto. Procuremos responder de forma esquemática:

- O erro de facto não é susceptível de sindicância pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo nas hipóteses previstas na parte final do art. 684.º, n.º 3, do CPC, que aqui não estão em causa;

- Tendo o acórdão recorrido apreciado a matéria de facto em conformidade com o determinado pelo anterior acórdão deste Supremo Tribunal e tendo procedido (a págs. 15 a 20) à análise crítica dos meios de prova, não padece o mesmo de nulidade por falta de fundamentação nem desrespeita as normas que regulam os poderes do Tribunal da Relação;

- Uma vez que, por despacho de 13.09.2021, a Relação notificou as partes «para se pronunciarem, querendo, sobre o modo como esta Relação deverá proceder e decidir com vista à sanação das contradições da matéria de facto que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu ser necessário superar», vindo, aliás, os ora Recorrentes a responder, por requerimento de 20.09.2021, tampouco se verifica a invocada violação do princípio do contraditório.

7.2. Quanto à alegada não correspondência com os factos alegados, consideremos o que, a esse respeito, resulta da fundamentação do acórdão recorrido, na parte relevante:

«Refira-se que no artigo 5º da petição inicial os autores afirmaram que «para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços”, que lhes foi indicada, sita na Avª ... em ..., cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida». Desse modo, naquela peça os autores não atribuem aos serviços do banco o preenchimento do questionário médico da proposta, atribuem-na sim à «agência de serviços» que contactaram para tratar de todo o expediente por sua conta (isto é, à testemunha CC).

Na resposta ao articulado superveniente, a posição dos autores apenas muda num pormenor. O que os autores passam a alegar é que «(10) Pouco tempo antes do empréstimo, o A., sua mulher, e uma irmã daquele, a quem iam comprar um apartamento, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do BCP, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário. (11) Aí chegados, a colaboradora do BCP – D. CC – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas, e pouco tempo aí permaneceram. (12) Entre os formulários respectivos para o empréstimo estavam certamente os das propostas de seguros de vida dos AA., visto que as não tinham assinado antes e depois disso só assinaram a escritura no notário. (13) Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida.».

Portanto, a diferença consistiu na conversão da «agência de serviços» pela «D. CC» e na designação desta como «colaboradora do BCP», embora os autores aleguem que se deslocaram ao escritório desta e não ao balcão da agência bancária. O que se retira desta alegação é que os autores continuam a atribuir a autoria do preenchimento do questionário médico à D. CC, não a qualquer funcionário ou colaborador do banco. Nos seus depoimentos de parte os autores mantiveram essencialmente essa versão.». [negritos nossos]

O que se retira, com meridiana clareza, da transcrição do articulado pelos AA. é que, em ambas as versões dos factos por eles apresentadas, nunca alegaram que o preenchimento do questionário médico tenha sido realizado por funcionária do BCP, que presta serviço num balcão do banco, antes imputaram tal preenchimento a uma terceira pessoa a cujos serviços recorreram, qualificando-a, na petição inicial, como “gerente” de uma “agência de serviços” e, na resposta ao articulado superveniente apresentado em 25.02.2019, como “colaboradora do BCP” a cujo escritório se dirigiram.

Temos, assim, que a factualidade dada como provada pela Relação («A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram.») corresponde à concretização dos factos alegados pelos AA. (cfr. art. 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC).


7.3. Quanto à alegação dos Recorrentes de que «o documento de onde constam os factos anotados como respostas suas lhes foi apresentado, o impugnaram (no respectivo articulado) quanto à letra e autoria na parte em que ele não era verídico. Sem mais provas, por parte do apresentante do documento, não lhes pode pois ser oposto todo o seu conteúdo (artº 374 CC)», compulsado o processado, verifica-se que o facto 25., que os Recorrentes vêm agora pôr em causa, foi dado como provado pela sentença da 1.ª instância sem que o mesmo tivesse sido impugnado em sede de ampliação do objecto do recurso de apelação nos termos previstos no art. 636.º, n.º 2, do CPC («Pode ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário (...) impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas»). Não pode, pois, a questão ser suscitada inovatoriamente em sede de revista.

Improcedem, assim, todas as questões recursórias relativas à decisão de facto, tal como alterada pela Relação.


8. Invoca ainda o Recorrente que os factos dados como provados nos pontos «nº 4, 7, 9, 16, 18, 25, 37, 40 e 41» sempre conduziriam à alteração da decisão de direito em sentido favorável aos AA. (concls. xi) a xiv)).

Assinale-se que esta questão recursória – erro na decisão de direito – não se apresenta formulada com clareza, uma vez que tanto surge apresentada como questão dependente da prévia alteração da decisão de facto, como como questão não dependente de tal alteração; isto é, no sentido de que, ainda que a decisão de facto se mantenha, sempre a factualidade dada como provada permitiria uma decisão de direito favorável aos AA..

Na primeira hipótese (o invocado erro da decisão de direito encontrar-se dependente da alteração da decisão de facto), deve concluir-se que, tendo improcedido a pretensão desta alteração, improcede também a pretensão de alteração da decisão de direito.

Na segunda hipótese (o invocado erro da decisão de direito não depender da alteração da decisão de facto), importa afirmar que a referência feita pelos Recorrentes à factualidade provada (pontos 4, 7, 9, 16, 18, 25, 37, 40 e 41) não se afigura nem completa nem rigorosa. Não é rigorosa porque, como se viu supra, os factos provados 9., 37. e 40. foram alterados pelo acórdão recorrido e o facto provado 41. foi dado como não provado pelo mesmo acórdão. Não é completa porque, designadamente, foi aditado um facto essencial – o facto 9i – referente à forma como o questionário médico foi preenchido.

Para a apreciação da questão relativa ao invocado erro de direito, relevam assim, em especial, os seguintes factos dados como provados:

9. Com vista à obtenção do empréstimo bancário e concretização da celebração da escritura de compra e venda, os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome CC, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável. [alterado pela Relação]

9i. A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram. [aditado pela Relação]

25. Os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que:

«São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo».

«Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».

36. Verifica-se pré-existência de doenças que motivaram a actual invalidez, cobertura que teria sido recusada aquando da aceitação do contrato de seguro, pela existência dos antecedentes clínicos do autor.

37. O autor conhecia os problemas de saúde a que vinha sendo acompanhado medicamente, os quais foram omitidos na proposta de seguro de vida. [alterado pela Relação]

38. Se as referidas patologias tivessem sido declaradas na proposta de adesão (o autor respondeu negativamente a todas as questões do questionário médico…), condicionavam a análise e aceitação do risco, sendo que a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.

39. Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro.

40. Os quadrados com a resposta ao questionário clínico foram preenchidos electronicamente, não tendo os respectivos «vistos» sido feitos pelo punho dos autores. [alterado pela Relação]

Consideremos os termos em que o acórdão recorrido fundamentou a decisão de direito a respeito da questão da veracidade do conteúdo da declaração de adesão do A. ao seguro dos autos:

«B) AO APRESENTAR A SUA PROPOSTA DE ADESÃO AO SEGURO DE GRUPO O AUTOR ESCONDEU À SEGURADORA INFORMAÇÕES SOBRE O SEU ESTADO DE SAÚDE POR SI CONHECIDAS E ESSAS INFORMAÇÕES ERAM RELEVANTE PARA A CELEBRAÇÃO DO CONTRATO OU PARA OS TERMOS DO MESMO:

Da proposta de seguro que os autores apresentaram à ré seguradora consta um questionário médico com seis perguntas, para as quais são apresentadas duas respostas possíveis, sim ou não.

A primeira pergunta é se o proponente já foi aconselhado a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica. Na quarta pergunta questiona-se entre outras coisas se o proponente tem alguma alteração física ou funcional.

Em resposta a todas as questões foi colocado visto na quadrícula «não», dando-lhes assim resposta sempre negativa.

Resulta dos autos que a proposta de seguro foi apresentada e aceite em Março de 2007, tendo o seguro tido início em Abril de 2007.

Não obstante isso, provou-se que:

1. Em 1994, o autor foi remetido para consulta de Hematologia Clínica num Hospital para estudo de “poliglobulia”, vindo a apurar-se em resultado desse estudo que o autor sofria de patologia compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.

2. O autor iniciou nesse ano medicação a essa patologia, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.

3. Em 2001 e 2003 o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca.

4. Desde 2004, o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores.

5. Em 2011, o autor começou a ter queixas de cefaleias, tonturas, mialgia e astenia e inchaço na perna esquerda, com situações de febre, bem como um cansaço permanente, vindo a apurar-se que o autor sofria de “uma doença no sangue”, em virtude da qual tinha de se submeter regularmente a flebotomias com risco de progressão para neoplasia ou leucemia.

Parece dever concluir-se que as respostas dadas ao questionário médico não correspondiam à verdade. À data o autor não apenas já tinha sido aconselhado a consultar médicos, como fizeram inclusivamente consultas de duas especialidades que haviam detectado patologias com alguma gravidade e que demandavam tratamento medicamentoso continuo. As declarações constantes da proposta são assim falsas e/ou reticentes.

Provou-se ainda que o autor conhecia os problemas de saúde a que vinha sendo acompanhado medicamente, apesar do que eles foram omitidos na resposta ao questionário médico (37).

Coloca-se a questão de saber se esta falha é imputável aos autores.

Está provado o seguinte com relevo para essa questão:

Com vista à obtenção do empréstimo bancário e concretização da celebração da escritura de compra e venda, os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome CC, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável (ponto 9).

A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram (ponto 9i).

Os quadrados com a resposta ao questionário clínico foram preenchidos electronicamente, não tendo os respectivos «vistos» sido feitos pelo punho dos autores (ponto 40).

Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro (39).

Está ainda provado (25) que os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que: «São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo».

«Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».

 O que revelam estes factos?

A proposta de seguro é a declaração negocial dos proponentes que visa ser transmitida à seguradora para esta decidir se a aceita. É, pois, uma declaração dos autores.

A proposta de seguro encontra-se assinada pelos autores, como não podia deixar de ser, sob pena de não existir proposta, logo de nem sequer existir contrato de seguro.

A aposição da assinatura de uma pessoa num documento significa a sua vinculação aos termos do mesmo, nos precisos moldes em que o teor ou conteúdo do documento se reporta à pessoa que assina. A aposição da assinatura num documento, a não ser que se trate de um acto inconsciente ou resultante de algum vício da vontade, consiste assim na assunção da autoria do documento, em fazer sua a declaração contida no documento.

Para ficar vinculado nesses termos o autor da assinatura não necessita de ser em simultâneo a pessoa que redige ou preenche o documento, este pode ser-lhe apresentado com uma redacção feita por outra pessoa e, por ser de sua vontade assumir o que consta do documento, a pessoa limitar-se a fazer nele a sua assinatura, assumindo como seu o teor do documento.

A proposta de adesão ao seguro é um formulário que tem espaços para serem preenchidos, sendo uma parte relativa à identificação dos proponentes e aos dados do mútuo para cuja garantia se pretendia celebrar o contrato de seguro, e outra parte relativa ao inquérito médico que se destina a ser preenchida apenas com a colocação de um sinal na quadrícula correspondente à resposta.

Quanto ao preenchimento do inquérito médico resultou provado que não foram os autores que efectuaram esse preenchimento (facto 39) uma vez que o documento era um documento electrónico que se encontrava no sistema informático do banco e cujo preenchimento foi feito pelo funcionário do banco, através do respectivo computador, que colocou no documento os vistos assinalando as respostas com as informações dos autores que lhe foram fornecidas (facto 9i).

Em face disso e estando ainda provado que para a obterem o empréstimo bancário e concretizarem a celebração da escritura de compra e venda os autores encarregaram a irmã do autor e, através dela, outra pessoa indicada por esta, de nome CC, de realizar junto do banco as diligências necessárias e tratar de toda a documentação indispensável, não pode deixar de se imputar à esfera de actuação dos próprios autores (e/ou da pessoa que contactaram para o efeito e que desse modo actuou se não em seu nome, pelo menos por sua conta) o modo como foi feito o preenchimento do questionário médico.

Isso determina que ao nível do preenchimento do inquérito médico os autores (ou alguém cuja actuação é, no caso, imputável à esfera de interesse dos autores) prestaram informações falsas ou reticentes sobre o estado de saúde do autor.

Esse facto importa a anulabilidade do contrato? A resposta, face à matéria de facto provada, parece-nos clara.

Por um lado, está demonstrado que as patologias que o autor já apresentava e em relação às quais o autor vinha tendo consultas médicas para diagnóstico e posterior acompanhamento e vinha fazendo tratamentos regulares com medicamentos, são o motivo (a causa) da actual situação de invalidez. Está, pois, demonstrada a existência de um nexo entre as informações omitidas e o risco coberto pelo contrato de seguro.

Por outro lado, está demonstrado que as informações médicas omitidas interferem claramente com a avaliação do risco por parte da seguradora (condicionavam a análise e aceitação do risco) e que se a seguradora tivesse sido informada dos antecedentes clínicos do autor teria recusado assumir o risco da invalidez total e permanente. Está, por isso, demonstrada a influência da informação omitida para a formação da vontade negocial da seguradora e bem assim qual seria a vontade negocial da seguradora no caso de possuir essa informação.

Independentemente da discussão teórica que no domínio da legislação anterior ao regime jurídico do contrato de seguro se travava sobre a necessidade ou desnecessidade destes requisitos para gerar a invalidade (a anulabilidade) do contrato, no caso, uma vez que ambos os requisitos estão demonstrados parece inevitável concluir que o contrato de seguro é efectivamente inválido, pelo menos no tocante ao risco da invalidez total e permanente que é aquele que no caso se discute.

Em suma, a acção deveria ter sido julgada improcedente e, não o tendo sido, o recurso procede.». [negritos nossos]

Perante a abundante prova feita, tanto a respeito da não veracidade das informações relativas à saúde do A., prestadas à seguradora aquando da adesão ao seguro de grupos dos autos, como a respeito de tais informações terem sido fornecidas à funcionária do banco pelos próprios aderentes, conclui-se que a decisão do tribunal ‘a quo’ no sentido da anulação do contrato de seguro dos autos não merece censura, não assistindo razão aos Recorrentes ao invocarem ter a Relação interpretado e aplicado o regime do art. 429.º do Código Comercial em desrespeito pelas regras de distribuição do ónus da prova («mesmo que se admitisse, como se entende no douto acórdão, que não está provado (ou não pode considerar-se provado) que não tenham sido feitas perguntas a cada um dos AA. [...], a prova do facto, em face das regras do ónus da prova, é dos RR, se querem prevalecer-se do efeito jurídico previsto no artº 429 CCOM, ou seja, das respostas inexactas»).

Com efeito, tendo sido dado como provado que «A proposta de seguro proveio de um documento electrónico existente no sistema informático do banco que a funcionária do banco completou com a informação dos proponentes que lhe foi fornecida e depois imprimiu para os proponentes assinarem o documento em papel, o que, no caso, os autores fizeram» (facto 9.i), desnecessário se torna recorrer às normas de distribuição do ónus da prova, uma vez que, nas palavras de Rita Lynce de Faria (anotação ao artigo 342.º, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 812):

«No nosso direito processual, ter o ónus da prova significa sobretudo determinar qual a parte que suporta a falta de prova de determinado facto, mais do que saber qual a parte que tem de efetuar a prova de determinado facto.».

O que sucede em virtude de:

«No nosso sistema processual as partes não têm um ónus de prova em sentido rigoroso. O princípio da aquisição processual (artigo 413.º do CPC), bem como o princípio do inquisitório em matéria de prova (artigo 411.º, n.º 3, do CPC), permitem concluir que, ainda que a parte onerada não logre a prova dos factos que lhe aproveitam, isso não significa que estes não resultem provados. Daí que as regras sobre o ónus da prova sejam mais regras de ‘decisão’ do que regras de distribuição do ónus da prova.». (ob. cit., pág. 811).


9. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 24 de Maio de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira