Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1499/07.0TVLSB.L1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: PROVA DE CASAMENTO
PROVEITO COMUM DO CASAL
PATRIMÓNIO COMUM
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Quando o casamento dos réus não é questão jurídica nuclear no processo e não tendo os demandados, pessoal e regularmente citados, posto em causa o estado civil que lhes é atribuído, seria excessiva a exigência imposta pelo art. 4º C.R.Civil para comprovação dessa situação.
A confissão, ainda que tácita, daquele estado é suficiente, nesta acção, para se ter como assente que os réus são casados entre si.
2. Para que se possa concluir pela comunicabilidade de uma dívida não basta que aquele que a contraiu seja casado. Necessário se torna apurar se a dívida decorre da satisfação de interesses comuns do casal.
Impõe-se, em primeiro lugar, averiguar qual o fim em vista aquando da contracção da dívida. E depois indagar se, perante esse fim, a dívida foi efectivamente contraída em proveito comum.
Se aquela primeira indagação se move no campo naturalístico das ocorrências concretas da vida, ou seja, envolve apenas uma questão de facto, a segunda implica uma valoração daquele fim, um enquadramento jurídico dessas ocorrências, o que se traduz numa questão de direito.
3. Também o conceito património comum é ainda e igualmente jurídico. Para se poder chegar a este patamar, para se poder concluir pelo carácter comum do bem, necessário se torna saber a data do casamento e respectivo regime de bens. Sem este suporte factual não é possível definir verdadeiramente o direito, não é possível concluir, de direito, que o bem integrou o património comum do casal.
Decisão Texto Integral:
1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório


BANCO AA, SA,

intentou, a 28 de Março de 2007, a presente acção declarativa, com processo ordinário,

contra

BB e mulher CC,

pedindo que:
a- seja decretada a resolução do contrato de locação financeira celebrado com o réu marido;
b- ambos os réus sejam condenados, solidariamente, a restituírem-lhe o equipamento locado;
c- e a pagarem-lhe a quantia de € 1.309,32 e de € 2.013,96, acrescidas de juros de mora até integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, ter celebrado um contrato de locação financeira, como locadora, com o réu marido, como locatário, incidente sobre um veículo automóvel, tendo o réu, a certa altura, deixado de pagar as prestações mensais devidas por este contrato, o que determinou a sua resolução.
E que este contrato foi celebrado pelo réu marido em vista do proveito comum do casal, tendo o veículo revertido para o património comum, pelo que a ré mulher é solidariamente responsável pela satisfação do peticionado.

Citados, os réus não contestaram.

A autora foi convidada a complementar a deficiente exposição factual sobre o proveito comum do casal, bem como a juntar certidão de casamento, convite que expressamente declinou.

Declarados confessados os factos articulados, foi seguidamente proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente contra o réu marido e totalmente improcedente relativamente à ré mulher, com a consequente absolvição dos pedidos contra si formulados.

Inconformada com o assim decidido, apelou a autora, mas sem sucesso, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa julgado improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.

De novo irresignada, recorre agora de revista para este Tribunal, pugnando pela condenação da ré mulher.

Os recorridos não contra-alegaram.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir


II. Âmbito do recurso

A - De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo da recorrente radica, em síntese, no seguinte:

1- Os recorridos, apesar de terem sido regularmente citados para os termos da acção, não apresentaram contestação, nem deduziram qualquer oposição, designadamente não impugnaram que fossem casados entre si, pelo que o casamento dos recorridos deveria ter sido considerado provado.

2- Acresce que, na presente acção, não se está perante direitos indisponíveis, pelo que a vontade das partes é plenamente eficaz para produzir os efeitos jurídicos que pela acção se pretendem obter, sem necessidade da junção de certidão para prova do casamento dos mesmos.

3- Por isso, é legalmente admissível a prova do casamento dos réus por confissão, de harmonia com o disposto nos arts. 1º, n° 1, al. d), 4° e 211° C.R.Civil, e 484° C.Pr.Civil.

4- Tendo os recorridos sido regularmente citados para os termos da acção e não a tendo contestado, nem deduzido qualquer oposição, não impugnando, pois, o seu casamento, a falta de contestação implica a confissão dos factos articulados pela autora, nos termos e de harmonia com o disposto no art. 484° C.Pr.Civil.

5- Para além disso, a ora recorrente alegou expressamente que o empréstimo concedido ao réu marido, que se destinava à aquisição de um veículo automóvel, reverteu em proveito comum do casal formado pelos recorridos, o que constitui matéria de facto.


B- Face ao teor das conclusões formuladas reconduzem-se a duas as verdadeiras questões controvertidas a decidir:
- se se deve ter por provado o casamento dos réus;
- e por demonstrado o proveito comum do casal.


III. Fundamentação

A- Os factos

Apesar do acórdão recorrido, quanto à matéria de facto, ter remetido, ao abrigo do disposto no nº 6 do art. 713º C.Pr.Civil, para os factos dados como assentes na sentença da 1ª instância, o certo é que também esta, apoiada no estatuído no nº 3 do art. 484º C.Pr.Civil, não alinhou aqueles que teve por assentes, limitando-se a considerar provados todos os alegados na petição.
E esses são todos aqueles que na petição sejam factos, à excepção dos alegados sob o art. 20º, concretamente que os réus sejam casados entre si e que o veículo fosse utilizado em proveito comum do casal e para o património comum, que as instâncias consideraram não se terem por adquiridos por força de confissão, dado não integrarem matéria de facto.
Ficou, assim, apenas factualmente assente, perante as instâncias, a celebração do contrato de locação financeira entre a autora e o réu marido e o seu incumprimento por parte deste ao deixar de pagar as rendas devidas.


B- O direito


1- casamento dos réus

O casamento dos réus, um com o outro, não é questão jurídica nuclear neste tipo de processo.
Aliás, numa acção que tem por objecto um contrato de locação financeira, em que os demandados, pessoal e regularmente citados, não puseram em causa o estado civil que lhes é atribuído, seria excessiva a exigência imposta pelo art. 4º C.R.Civil para comprovação dessa situação.
A confissão, ainda que tácita, daquele estado é suficiente, nesta acção, para se ter como assente que os réus são casados entre si.

Mas não basta que os réus sejam casados para se concluir que o veículo reverteu em proveito comum do casal e da consequente responsabilidade da ré mulher pela satisfação das importâncias reclamadas, o que nos reporta à apreciação da segunda questão controvertida.


2- proveito comum do casal

São da responsabilidade de ambos os cônjuges, dispõe-se na al. c) do nº 1 do art. 1691º C.Civil, as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.
Para que se possa concluir pela comunicabilidade de uma dívida não basta que aquele que a contraiu seja casado. Necessário se torna apurar se a dívida decorre da satisfação de interesses comuns do casal. Como afirmam Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (1), o proveito comum afere-se, não pelo resultado mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu. Se este fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se aplicada em proveito comum dos cônjuges, embora, na realidade, dessa aplicação tenham resultado prejuízos.
Impõe-se, em primeiro lugar, averiguar qual o fim em vista aquando da contracção da dívida. E depois indagar se, perante esse fim, a dívida foi efectivamente contraída em proveito comum.
Se aquela primeira indagação se move no campo naturalístico das ocorrências concretas da vida, ou seja, envolve apenas uma questão de facto, a segunda implica uma valoração daquele fim, um enquadramento jurídico dessas ocorrências, o que se traduz numa questão de direito.

A expressão proveito comum configura-se como uma questão de natureza jurídica que tem de emergir das reais ocorrências sobre o destino dado ao dinheiro aplicado, de que resultou a dívida. Este, aliás, o entendimento predominante acolhido pelo Supremo (2).
E não integrando esta expressão matéria de facto não é possível ter-se como adquirida a situação jurídica que ela retrata com base na falta de contestação, já que a confissão daí decorrente, em conformidade com o estatuído no nº 1 do art. 484º C.Pr.Civil, apenas contempla os factos articulados pelo autor.
Por outro lado, e como o proveito comum do casal não se presume (nº 3 do citado art. 1691º), o cônjuge que não assumiu a responsabilidade por que é demandado tem de ser convencido da real existência desse requisito, imprescindível à assunção da satisfação da respectiva dívida.

Alega ainda o recorrente que o veículo reverteu para o património comum do casal dos réus.
Mas o conceito património comum é ainda e igualmente jurídico. Para se poder chegar a este patamar, para se poder concluir pelo carácter comum do bem, necessário se tornava saber a data do casamento e respectivo regime de bens. Sem este suporte factual não é possível definir verdadeiramente o direito, não é possível concluir, de direito, que o bem integrou o património comum do casal.

Ora, não se mostra sequer alegado que os recorridos fossem casados aquando da constituição da dívida, ou seja, que existisse então já património comum do casal, falta de alegação que poderia ser suprida pela mera junção da certidão de casamento, o que não foi (não quis ser) feito.
Acresce que à responsabilização do outro cônjuge é essencial que a dívida tivesse sido contraída pelo cônjuge administrador, actuando este dentro dos seus poderes de administração, tudo omitido na petição inicial.

Não estando alegados factos que permitissem concluir pelo proveito comum do casal, a ré mulher tinha forçosamente que ser absolvida dos pedidos, como o foi.

IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2009

Alberto Sobrinho (Relator)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Lázaro Faria


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(1) in Curso de Direito da Família, I, 2ª ed., pág. 411
(2) cfr., entre outros, os acs. de 2005/07/12, nº 05B1710; de 2008/11/11, nº 08B3303; e de 2009/09/10, nº 07B3536, in dgsi.pt/jstj.