Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31/13.0TBCDN-A.C2.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
CONTRATO DE SUBEMPREITADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
REPARAÇÃO DOS DEFEITOS
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO E REPOSTA A DECISÃO DA 1ª INSTÂNCIA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO / COMPENSAÇÃO / CONTRATOS EM ESPECIAL / EMPREITADA / DEFEITOS DA OBRA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO A REQUERIMENTO DO RECORRIDO.
Doutrina:
- Ana Taveira da Fonseca, Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, p. 119, 122, 210, 212, 263, 281, 535, 538, 541 e 547;
- José João Abrantes, A Excepção do não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, p. 114;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Tomo XII, p. 896 e 962;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código civil anotado, Volume. I, 2.ª Edição, p. 356;
- Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, p. 327,
- Rui Pinto, Ação Executiva, p. 136 e 366.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 428.º, 847.º E 221.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3 E 636.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-05-2009, PROCESSO N.º 927/2002, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-11-2009, PROCESSO N.º 674/02, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-12-2009, PROCESSO N.º 163/02, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-01-2010, PROCESSO N.º 674/02;
- DE 04-02-2010, PROCESSO N.º 4913/05;
- DE 14-06-2011, PROCESSO N.º 550/05, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-05-2018, PROCESSO N.º1516/15, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O tribunal não está adstrito à qualificação jurídica do fundamento dos embargos de executado apresentada pelo embargante, devendo fazer uso dos poderes oficiosos previstos no art. 5º, nº 3, do CPC, em face dos factos provados.

II. Embora a embargante tenha aludido na petição de embargos de executado à figura da “compensação” como fundamento para a extinção da ação executiva (art. 847º do CC), nada obsta a que, por via da qualificação jurídica dos factos alegados e provados com o objetivo de determinar a extinção da execução, se considere preenchida a “exceção de não cumprimento do contrato”, nos termos do art. 428º do CC.

III. A alegação por parte da empreiteira de que despendeu uma quantia com a reparação dos defeitos imputáveis à subempreiteira ou de que, por causa dos defeitos não reparados, não estava obrigada a efetuar o pagamento da quantia exequenda corresponde substancialmente à invocação da exceção de não cumprimento do contrato.

IV. Num contrato de subempreitada em que, detetados e denunciados os defeitos, a subempreiteira se recusou a proceder à sua reparação, a qual se mostrava urgente, é legítimo à empreiteira substituir-se àquela na execução da reparação, com direito ao reembolso do montante despendido (art. 1221º do CC).

V. O pagamento do preço emergente do contrato de subempreitada pode ser legitimamente recusado pela empreiteira se e enquanto a subempreiteira não a reembolsar do valor despendido com a reparação dos defeitos da obra que a esta são imputáveis.

VI. O facto de a embargante, no âmbito da apelação interposta pela exequente/embargada da sentença que julgou procedentes os embargos, embora com fundamento diverso da compensação, se ter abstido de ampliar o objeto da apelação, ao abrigo do art. 636º, nº 1, do CPC, suscitando a reapreciação desta questão, não impede o Supremo de requalificar os factos que foram alegados e provados, integrando-os na figura da exceção de não cumprimento, por tal constituir matéria de direito.

VII. A correção da qualificação jurídica indicada pela embargante como fundamento de oposição à execução não fica precludida pelo facto de a mesma não ter ampliado o objeto do recurso de apelação, devendo o Supremo Tribunal de Justiça, em sede do recurso de revista, adotar aquela que se revele mais adequada a integrar os factos provados.

Decisão Texto Integral:
I - AA, S.A., deduziu embargos de executado por apenso ao processo de execução que lhe foi movido por BB & Filhos, Lda.

A exequente veio instaurar ação executiva para pagamento da quantia de € 270.754,72 relativa a parte do preço de um contrato de subempreitada que havia celebrado com a executada.

A executada defendeu-se mediante a dedução de embargos alegando inexistência de título executivo. Alegou ainda que, enquanto empreiteira, celebrou com a exequente um contrato de subempreitada para pavimentação de uma estrada, mas esse trabalho foi defeituosamente cumprido. Notificada a exequente para efetuar a reparação dos defeitos, recusou-se a fazê-lo, de modo que, em face da urgência que se verificava, teve de contratar com terceiros a reparação, no que despendeu a quantia de € 301.333,08, pretendendo que opere a compensação.


A exequente contestou a existência do contra-crédito e defendeu a inadmissibilidade da sua invocação, dado tratar-se de um crédito indemnizatório. Alegou ainda que cumpriu o contrato de subempreitada de onde emergiu o crédito exequendo e que foi a executada que determinou que a pavimentação fosse realizada em condições atmosféricas inadequadas para o efeito.


No despacho saneador foi julgada improcedente a arguida inexistência de título executivo.


Realizado o julgamento quanto ao outro fundamento, foi proferida sentença (fls. 509 e ss.) reconhecendo a existência de defeitos na execução da subempreitada, mas considerou que não ficou demonstrado o montante do contra-crédito e que, além disso, o reconhecimento do mesmo deveria ter lugar em ação declarativa e não em sede de embargos de executado (fls. 515).

Apesar disso, julgou procedentes os embargos com o argumento de que “o valor peticionado na execução não é devido, dado que se reporta ao pagamento do contrato de subempreitada que as partes celebraram entre si e que foi cumprido defeituosamente pela exequente/subempreiteira” (fls. 515), julgando extinta a execução.


A embargada veio interpor recurso de apelação principal da sentença (fls. 652 e ss.) relativamente à decisão que declarou a extinção da execução com fundamento diverso do que fora invocado. Defendeu que a invocada compensação implicava a existência de um contra-crédito já judicialmente reconhecido, o que não ocorria no caso concreto. Sem pôr em causa a existência de defeitos na execução da subempreitada, imputou-os às deficientes condições atmosféricas que se verificavam na ocasião e ao facto de a embargante ter determinado, apesar disso, a betumagem da estrada.

A executada/embargante interpôs recurso subordinado quanto ao despacho saneador, na parte em que considerou improcedente o fundamento dos embargos sustentados na inexistência de título executivo. E apresentou ainda contra-alegações quanto à apelação principal, defendendo que a cobrança do crédito exequendo exigia a demonstração de que a exequente cumprira o contrato de subempreitada ou que o incumprimento não lhe era imputável, o que não ocorreu no caso concreto. Para o efeito invocou que a exequente foi interpelada para reparar os defeitos, o que não fez, levando a executada a resolver o contrato de subempreitada. Além disso, defendeu que a exigência do crédito exequendo nestas condições levaria a um enriquecimento da exequente à custa da executada.

A Relação julgou improcedente o recurso subordinado, confirmando a decisão que julgou improcedente os embargos de executado sustentados na inexequibilidade do título.

Já relativamente ao recurso principal interposto pela exequente/embargada, considerou que, apesar da existência de defeitos da subempreitada e da recusa da exequente em repará-los, os embargos improcediam, prosseguindo a execução, uma vez que a executada não suscitou nas contra-alegações a ampliação do recurso de apelação por forma a apreciar a existência de um crédito indemnizatório sobre a exequente em sede de compensação. Considerou ainda que não foi oportunamente exercido o direito de resolução do contrato de subempreitada, nem o direito à redução do preço da subempreitada e que nem sequer foi invocada a exceção de não cumprimento.

Ou seja, Relação considerou que a procedência dos embargos dependia da verificação do fundamento da compensação, questão que foi apreciada negativamente na sentença, sem que a executada se tivesse promovido a ampliação do objeto da apelação, e que o simples facto de a obra padecer de defeitos imputáveis à exequente não impedia o prosseguimento da execução.



A embargante interpôs recurso de revista excecional na parte em que o acórdão da Relação confirmou a decisão da 1ª instância que julgou improcedente o fundamento de embargos assente na inexistência de título executivo, mas tal recurso não foi admitido pela formação referida no nº 3 do art. 671º do CPC.

A mesma embargante interpôs ainda recurso de revista normal na parte em que a Relação julgou improcedentes os embargos de executado assentes no outro fundamento ligado ao incumprimento do contrato de subempreitada.

Seguem, assim, os autos para apreciação da revista na parte que incide sobre os efeitos que decorrem da execução do contrato de subempreitada com defeitos que, atenta a urgência, foram reparados pela embargante empreiteira.

Nas alegações de recurso e mais concretamente nas respetivas conclusões são enunciados os seguintes pontos essenciais:

a) Provado que a obra executada pela recorrida (subempreiteira) padeceu de anomalias no trabalho de aplicação do pavimento betuminoso, pondo em perigo a circulação rodoviária; que a recorrida subempreiteira, no conhecimento dessas anomalias, se recusou a efetuar os trabalhos de reparação das apontadas anomalias; e que a ora recorrente, empreiteira, dada a urgência da reparação do pavimento betuminoso, mandou efetuar as obras necessárias de reparação, por terceiro, a circunstância de a recorrente não ter requerido, em contra-alegações, a ampliação do âmbito do recurso aos fundamentos por si aduzidos em sede de oposição não é fundamento para conceder o à recorrida subempreiteira o direito a receber da recorrente o valor da quantia exequenda de € 270.754,72, pois num contrato obrigacional bilateral, como o de subempreitada, quem comprovadamente incumpre definitivamente uma obrigação não tem o direito a receber da contraparte a contraprestação ainda não efetuada por esta.

b) Verificando-se o incumprimento definitivo da obrigação, não há necessidade de resolver o contrato de subempreitada para, em virtude desta, se libertar do pagamento da sua contraprestação, pois se a lei admite que o credor, em caso de impossibilidade de cumprimento da obrigação não imputável ao devedor, fica desobrigado da sua contraprestação (art. 795°, nº 1, do CC), por maioria de razão o terá de ficar em caso de impossibilidade de cumprimento imputável ao devedor.

c) Admitir que, perante o incumprimento definitivo da obrigação de reparação da exequente, a recorrente tenha a obrigação de pagar o restante do preço acordado, para além de ter de custear as obras de reparação, e que a recorrida subempreiteira tenha o direito a receber o preço integral por aquilo que executou defeituosamente, não é aceite nem pelas regras da boa-fé e configura uma situação de abuso do direito, como decorre do disposto no art. 334° do CC.

d) A mais elementar razão de sã justiça veda a solução defendida pelo Tribunal a quo de ter a recorrida subempreiteira o direito a receber da recorrente o preço, apesar de demonstrado o gravíssimo grau de incumprimento definitivo da sua obrigação.

e) Para se considerar que não se provou que a recorrente tenha exercido extrajudicialmente o seu direito à resolução do contrato seria necessário que este facto tivesse sido considerado como não provado ou que tal facto não tivesse sido considerado na matéria de facto, neste caso a merecer a complementação ou ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 682°, nº 3, do CPC, com a determinação constante do art. 683°, nº 1.

f) Não obstante, após a recorrente ter exercido extrajudicialmente, perante a recorrida, o direito à eliminação dos defeitos, e perante a expressa recusa desta em proceder às obras de reparação, resolveu o contrato de subempreitada, facto provado com base no doc. de fls. 24 vº e ss. (ata de reunião de 15-3-11), cujo teor foi confirmado pelas testemunhas que nessa reunião e na respetiva ata.

g) Uma coisa é a declaração admonitória que leva à conversão da mora em incumprimento definitivo (nos termos do art. 808º do CC) e outra a declaração resolutiva; porém, nada há que impeça que tais declarações sejam feitas em simultâneo, dizendo-se numa única missiva/comunicação que, caso não ocorra o cumprimento no prazo suplementar concedido, se resolve o contrato.

h) A resolução do contrato de subempreitada materializou-se, ainda que tacitamente, no exato momento em que a recorrida se recusou a proceder às reparações, e sempre no momento em que a recorrente, perante tal recusa, recorreu à contratação de um terceiro para executar os trabalhos de reparação a cargo da recorrida.

i) Ao contrário do que o Tribunal a quo parece subentender, a resolução contratual não tem de ser expressa, dado que o contrato de subempreitada não está sujeito a forma especial.

j) Sendo a resolução negocial efetuada por simples declaração à parte contrária, não carece de ser confirmada ou ratificada por sentença judicial, tornando-se eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou dele foi conhecida, como é característico das declarações negociais recetícias ou recipiendas (art. 224°, n° 1 do CC).

k) Para vir a beneficiar dos efeitos da resolução do contrato de subempreitada, a recorrente não teria de "invocar" essa resolução na sua oposição à execução.

l) Não tendo a recorrente alegado expressamente que, no seguimento da recusa da execução dos trabalhos de reparação por parte da recorrida, resolveu o contrato de subempreitada e, nesse seguimento, mandou executar os trabalhos de reparação por terceiro, na prática, foi o que relatou no processo, ao contextualizar os factos de acordo e por referência ao que já naquela reunião do dia 15-3-11 havia informado e ao que em ata de reunião ficou dito, escrito e assinado pelas partes.

m) A recorrente alegou o núcleo essencial dos factos que originaram a verificação do incumprimento definitivo da obrigação da recorrida e do seu direito a obter desta essa indemnização, e fê-lo no pressuposto de ter resolvido o contrato de subempreitada, nos termos em que já antes havia informado.

n) A falta da expressa invocação, na oposição à execução, da já anteriormente comunicada e operada resolução do contrato de subempreitada terá de ser entendida como uma imprecisão ou deficiência que afeta a descrição da matéria de facto, e não como uma falta de alegação do núcleo fundamental desta.

o) Resolvido o contrato de subempreitada, dispõem os arts. 433°, 434°, n° 1 e 289º, n° 1, do CC, que a resolução tem efeitos retroativos, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

p) Incumprida definitivamente a obrigação, é de aplicar, por extensão ou analogia, o direito do credor, previsto no art. 801°, nº 2, do CC, a resolver o contrato em caso de impossibilidade da prestação imputável ao devedor, às situações de incumprimento definitivo da obrigação.

q) Resolvido o contrato por impossibilidade de cumprimento da prestação determinativa do incumprimento definitivo da recorrida subempreiteira, teria a aqui recorrente o direito a exigir a restituição da sua prestação por inteiro (o preço pago), seja a tivesse realizado.

r) A contrario sensu, como, no caso dos autos, a recorrente, em virtude do incumprimento da obrigação de reparação, não pagou à recorrida subempreiteira parte da sua contraprestação (aquela que a recorrida reclamou na execução), não está obrigada a pagar àquela a quantia por esta reclamada na execução, por não ter obtido da recorrida a contrapartida que lhe era devida.


Houve contra-alegações.

Ante a panóplia de questões suscitadas pela recorrente, o que importa realmente apreciar é se o facto de a executada ter direito a exigir da exequente o reembolso da quantia despendida com a reparação dos defeitos na obra adjudicada impede o prosseguimento da ação executiva para pagamento da quantia exequenda emergente do mesmo contrato de subempreitada.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

1. Foi dado à execução um conjunto de documentos particulares nos quais a executada declarou, perante CC, S.A.., por cartas datadas de 26-10-10 que:

“Tendo conhecimento do contrato de factoring celebrado entre V. Ex.ªs e o nosso fornecedor BB & Filhos, Lda, vimos de acordo com o solicitado, informá-los de que os valores titulados pela fatura abaixo discriminadas se encontram confirmados”, relativamente às faturas:

- nº 6.492, no valor de € 265.578,35, com vencimento em 1-2-11;

- nº 6.535, no valor de € 496.625,45 e

- nº 6.536, no valor de € 23.774,29, ambas com data de vencimento em 1-3-11.

Assim esta empresa reconhece-se devedora do valor titulado pelas mesmas, obrigando-se a fazer o seu integral pagamento à CC, S.A.., nas datas fixadas” – cf. req. executivo e docs. juntos.

2. Por falta de pagamento das faturas, CC, S.A.., por carta datada de 31-8-12, remetida à executada, declarou que:

“Tivemos oportunidade de informar V. Exªas que todas as faturas emitidas deverão ser liquidadas diretamente ao V/fornecedor BB e Filhos, Ldª, ou a quem por ele for indicado” –doc. fls. 5 da execução.

3. Em 9-10-12 CC emitiu uma declaração dando conta que, pelas faturas referidas em 2. se encontra em dívida a quantia de € 262.749,58 –fls. 5 vº e 6.

4. Em 1-9-10 a embargante celebrou com a embargada um contrato para a execução da subempreitada denominada de “Arranjos Exteriores” no âmbito da empreitada geral “EE do Barreiro”, sendo dono da obra “EE - Hipermercados, S.A..

5. Os valores constante das faturas referidas em 1. respeitavam a parte do preço do contrato descrito no ponto 4.

6. A exequente efetuou os trabalhos recorrendo a mão-de-obra qualificada e a equipamentos tecnicamente ajustados.

7. Em finais de Dezembro de 2010, a embargante e o dono da obra constataram a existência de anomalias no trabalho de aplicação do pavimento betuminoso que havia sido executado pela exequente; o pavimento betuminoso encontrava-se em estado de desagregação acelerada, com os elementos que o compunham soltos e a desfazer-se, o que originava perigo para a circulação rodoviária.

8. A embargante deu conhecimento dessas anomalias à embargada, solicitando-lhe a sua reparação, mas a embargada recusou-se a proceder à reparação, por sua conta, em exclusivo, invocando que as anomalias não eram da sua responsabilidade.

9. Em 15-3-11, no estaleiro da obra, foi efetuada uma reunião com o representante da exequente, executada e dono da obra, onde foram discutidas as causas das anomalias verificadas e apresentado um relatório pericial que apontava as causas da degradação para a incorreta aplicação das massas e falta de compactação.

10. Nessa reunião, a exequente foi interpelada pela executada para iniciar, de imediato, os trabalhos de reparação do pavimento betuminoso, sob pena de, não o fazendo, resolver o contrato e recorrer a terceira entidade para a sua execução.

11. Nessa reunião a exequente “informou que não concorda com a conclusão que a AA (a ora executada AA, SA) apresentou relativamente à causa de degradação dos pavimentos do loteamento da Verderena, nomeadamente a falta de compactação”.

12. A executada, dada a recusa da exequente em proceder à reparação e a urgência da mesma (por estar em perigo a circulação rodoviária) efetuou/mandou efetuar as reparações e emitiu uma nota de débito no valor de € 228.986,14 e uma fatura no valor de € 72.346,94.


III – Decidindo:

1. A perceção do verdadeiro cerne do litígio foi prejudicada pelo enredo de alegações e de questões que as partes suscitaram em ambas as instâncias, partindo do errado pressuposto de que, perante a execução de uma obrigação emergente do contrato de subempreitada, o “crédito” que para a executada corresponde às despesas que efetuou com a reparação de defeitos apenas poderia ser suscitado ao abrigo da figura da compensação, como fundamento de embargos de executado.

Podendo tal erro ser atalhado logo de início, as respostas das instâncias acabaram por afastá-las ainda mais da realidade representada pelo conjunto de factos alegados e apurados, culminando com a Relação a concluir que, embora a executada tenha realizado despesas com a reparação de defeitos na obra que foi objeto da subempreitada, a execução prosseguiria para cobrança de parte do preço dessa subempreitada, sem que surtisse efeito algum a realidade que transparece dos factos provados.

Sem perder demasiada energia a desmontar quer as opções de cada uma das partes, quer as respostas das instâncias, parece evidente que ou foram erradamente perspetivados, ou exponenciados, aspetos de natureza formal, acabando por dispersar a atenção relativamente ao que verdadeiramente interessava, com prejuízo manifesto para a justa composição da lide.

No relatório inicial procurámos expor as divergências essenciais das partes e o que foi decidido por cada uma das instâncias. Agora, numa opção de back to basics, importa que, pela forma mais simples e direta, se identifique o verdadeiro objeto dos embargos de executado e aquilo que divide as partes, pois só deste modo se poderá avançar para a solução ajustada a partir da integração jurídica dos factos apurados.

Nesta operação jamais se deverá perder de vista que a quantia exequenda assenta em faturas respeitantes trabalhos executados no âmbito do contrato de subempreitada, de modo que, a par dos aspetos de natureza formal, não poderemos deixar de ponderar o regime jurídico desse contrato quanto aos direitos e deveres de cada uma das partes.

Por outro lado, o facto de a discussão dos aspetos litigiosos ocorrer em sede de embargos de executado não poderá prejudicar a correta integração dos factos apurados, designadamente com recurso às regras do contrato de empreitada ou das obrigações em geral. Na verdade, uma vez que se trata de uma execução sustentada em título executivo extrajudicial, era legítimo à executada invocar quaisquer fundamentos de oposição suscetíveis de ser invocados numa eventual ação declarativa que porventura corresse entre as mesmas partes (art. 731º do CPC).

Por semelhantes motivos, os efeitos a extrair das alegações e dos factos provados deverão ser idênticos aos que se produziriam se acaso, em lugar de nos situarmos em sede de embargos de executado, a discussão ocorresse no âmbito de tal putativa ação declarativa na qual a ora exequente/subempreiteira tivesse formulado a mesma pretensão contra a executada/empreiteira e esta se tivesse defendido do mesmo modo.

Malgrado a variedade de questões jurídicas suscitadas pela recorrente, o que importa realmente apreciar é se o facto de a executada ter direito a exigir da exequente o reembolso da quantia despendida com a reparação dos defeitos da obra que foi objeto da subempreitada impede o prosseguimento da ação executiva para pagamento da quantia exequenda emergente do mesmo contrato.


2. Quanto ao crédito exequendo.

2.1. Da petição inicial de embargos resulta que a embargante começou por alegar que o valor da quantia exequenda de € 262.749,85 “não é devido pela executada” pelo facto de a oponente ser “igualmente credora da exequente” (art. 20º).

Tal conclusão não surgiu isolada, vindo acompanhada da respetiva justificação assente na alegação da ocorrência de uma realização defeituosa da subempreitada por parte da exequente.

Alegou a embargante que, por razões imputáveis à exequente, a obra de pavimentação da estrada foi realizada com defeitos que exigiram a sua posterior reparação. Invocou ainda que, apesar de a exequente ter sido intimada a reparar tais defeitos, recusou fazê-lo, pelo que, em face do risco para a circulação viária, contratou com terceiros a realização dessa reparação, despendendo a quantia de € 301.333,08, superior à quantia exequenda. Culminou com a alegação de que contabilizou o referido custo através da emissão de uma nota de débito no montante das faturas exigidas pela exequente e de uma fatura com o valor remanescente, aludindo à figura da compensação para, a partir daí, obter a extinção da ação executiva.

Esta realidade que integra a defesa por embargos culminou com a dedução de uma pretensão no sentido de ser declarada extinta a execução, objetivo finalístico que não pode deixar de ser ponderado e valorizado no cruzamento entre os aspetos de ordem formal e material, quer para revelar o verdadeiro significado daquilo que as partes alegaram e os efeitos jurídicos que procuraram, quer para detetar e interpretar as normas jurídicas pertinentes, no pressuposto, que é válido para todos os processos, de que, em regra, a matéria de direito é de apreciação oficiosa no quadro dos factos alegados e provados.

A apreciação de todos os aspetos formais no âmbito destes embargos de executado jamais pode fazer olvidar que, como decorre do art. 732º, nº 4, do CPC, e como assinala Rui Pinto, se trata de um instrumento processual que se corporiza numa pretensão no sentido da extinção da execução (Ação Executiva, p. 366).

É, pois, no encadeamento deste objetivo final que devem se analisados e qualificados os factos que a embargante alegou e, dentro destes, os factos que as instâncias apuraram.

Diga-se ainda que, embora a exequente não tivesse reconhecido, em sede de contestação, a existência de qualquer “contra-crédito” da embargante, acabou por admitir que a obra executada apresentava defeitos que imputava à embargante, por ter insistido na pavimentação da estrada, apesar da oposição daquela, tendo em conta as deficientes condições climatéricas que se verificavam. Factos esse que, porém, não se provaram.


2.2. A matéria de facto relevante para o caso é essencialmente a seguinte:

- Em 1-9-10 a embargante contratou com a exequente a subempreitada para a execução de uma obra de pavimentação de estrada de que resultou, além do mais, para a exequente um crédito de € 262.749,58.

- O pavimento betuminoso aplicado pela exequente apresentou anomalias cuja reparação a embargante solicitou, o que foi recusado por aquela, alegando que a reparação não era da sua responsabilidade.

- Em 15-3-11, a exequente foi interpelada pela embargante para iniciar os trabalhos de reparação do pavimento betuminoso, sob pena de, não o fazendo, resolver o contrato e recorrer a terceira entidade.

- Da ata dessa reunião ficou a constar, além do mais, que “caso a BB (a ora exequente) não proceda de modo a dar devido cumprimento ao atrás referido, a AA (a ora executada) informou que irá avançar com as reparações dos pavimentos com recurso à contratação de uma nova empresa, sendo que o custo das reparações serão acertados com a BB”.

- Na mesma reunião a exequente “informou que não concorda com a conclusão que a AA (a ora executada) apresentou relativamente à causa de degradação dos pavimentos do loteamento da Verderena, nomeadamente a falta de compactação”.

- A executada, dada a recusa da exequente em proceder à reparação e a urgência da mesma (por estar em perigo a circulação rodoviária), mandou efetuar as reparações (cujo valor não foi apurado), após o que emitiu a nota de débito no valor de € 228.986,14 de fls. 29 e uma fatura no valor de € 72.346,94.


2.3. Como já se assinalou, os embargos de executado foram objeto de decisões antagónicas das instâncias.

A 1ª instância, embora reconhecendo a existência de defeitos na execução da subempreitada imputáveis à exequente e o direito da embargante a haver daquele a quantia que despendeu com a sua reparação, considerou que não ficou demonstrado o valor despendido. Integrando essa defesa na figura da “compensação de créditos”, concluiu que o reconhecimento do contra-crédito da executada correspondente a tal reparação apenas poderia ser apreciado numa ação declarativa e não nos embargos de executado (fls. 515) (nisto contrariando, de forma direta, quer o disposto no art. 729º, al. h), do CPC, quer o regime substantivo da compensação previsto nos arts. 847º e ss. do CC, designadamente o nº 3 do art. 847º que legitima a invocação desse meio de defesa mesmo quando se trate de créditos ilíquidos).

Apesar de não ter acolhido o fundamento da defesa centrado na figura da compensação, a 1ª instância acabou, ainda assim, por considerar procedentes os embargos, com o argumento de que “o valor peticionado na execução não é devido, dado que se reporta ao pagamento do contrato de subempreitada que as partes celebraram entre si e que foi cumprido defeituosamente pela exequente/subempreiteira” (fls. 515). Ou seja, enquadrou a matéria de facto apurada no incumprimento defeituoso da subempreitada da qual emergia o direito de crédito exequendo.

Já a Relação, malgrado tenha admitido a existência de defeitos da subempreitada e a recusa da exequente em repará-los, concluiu que subsistia o direito de crédito exequendo.

Qual a razão? Apenas porque a embargante, que ficara “vencida” na parte em que decaiu o fundamento de embargos assente na figura da compensação, não suscitou nas contra-alegações do recurso de apelação interposto pela exequente/embargada a ampliação do seu objeto, por forma a permitir a reapreciação daquele fundamento dos embargos.

Num exercício em que foram subalternizados os aspetos de ordem material, a Relação julgou improcedentes os embargos de executado, com fundamento em que a sua procedência dependia da verificação de um contra-crédito da embargante sobre a exequente. Acrescentou ainda que o simples facto de a obra padecer de defeitos e de a executada os ter reparado, através de terceiros que contratou para o efeito, era insuficiente para determinar a extinção da execução assente no crédito correspondente a parte do preço da subempreitada, tanto mais que não fora oportunamente exercido o direito de resolução deste contrato, nem o direito à redução do preço, e também não foi invocada a exceção de não cumprimento.

Com esta justificação formal, deu provimento ao recurso da exequente e julgou improcedentes os embargos de executado, com efeitos no prosseguimento da execução para cobrança da quantia exequenda.

A manter-se esta solução, o resultado seria o seguinte: a execução avançaria até ao pagamento da quantia exequenda e a embargante/executada teria de discutir por outra via o direito a obter da exequente o reembolso da quantia que despendeu com a reparação de defeitos na obra.


2.3. Não se ignora que a atribuição das características da exequibilidade a documentos de natureza particular transporta consigo a assunção da possibilidade de, a partir deles, se promover uma ação executiva destinada à cobrança do correspondente crédito.

O título executivo é, nas palavras de Castro Mendes, a “chave que abre a porta da ação executiva”, fazendo presumir a existência do correspondente direito de crédito, a qual, em regra, apenas pode ser abalada pela prova de algum fundamento legítimo de oposição à execução (sobre a função representativa do título executivo cf. Rui Pinto, Ação Executiva, pp. 136 e ss).

Por outro lado, num processo em que dominam os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, é o demandado que tem o ónus de se defender, invocando os factos e os fundamentos de direito, ou acionando os mecanismos que considere mais ajustados à tutela dos seus interesses (arts. 5º, nº 1 e 731º do CPC), especialmente na ação executiva em que são excecionais os motivos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal com efeito na sua extinção (art. 734º, com referência ao art. 726º do CPC).

No caso concreto, depois de ter sido confrontada com uma pretensão executiva (litígio de pretensão insatisfeita), a executada deduziu embargos (art. 731º), instrumento que é suscetível de projetar efeitos idênticos aos que ocorreriam no âmbito de uma ação declarativa (litígio de pretensão contestada), com a única particularidade de visarem a declaração de extinção da ação executiva.

Neste contexto, não se compreende a opção da Relação que, contrariando a “natureza das coisas”, extraiu efeitos tão drásticos de uma errada qualificação jurídica do fundamento de embargos por parte da executada/embargante, quando tinha ao seu dispor o uso dos poderes oficiosos em matéria de direito, nos termos do art. 5º, nº 3, do CPC, que lhe permitiriam integrar os elementos essenciais da defesa nos quadros formalmente ajustados, como, afinal, tinha sido decidido pela 1ª instância.


2.4. No caso concreto, os autos permitem observar a inviabilidade de retomar o fundamento de embargos assente na compensação invocada pela embargante, fundamento que foi julgado improcedente pela 1ª instância, estando tal segmento decisório abarcado pelo caso julgado.

No entanto, tal não determina necessariamente a improcedência dos embargos, na medida em que não está afastada a possibilidade e a necessidade de se operar, relativamente aos factos que foram alegados e provados, a sua requalificação jurídica. Por constituir matéria de direito, está acessível a este Supremo Tribunal, constituindo, aliás, a razão essencial que preside à consagração de um tribunal de revista.

Ora, independentemente da qualificação jurídica que foi atribuída pela embargante à realidade que descreveu na petição de embargos, é inegável que toda a sua defesa foi elaborada em torno da alegação de que não está obrigado ao pagamento da quantia exequenda pelo facto de a exequente ter realizado a obra com defeitos e de se ter recusado a repará-los, depois de terem sido denunciados. Em termos materiais, foi através desta via larga que a executada procurou livrar-se da ação executiva que contra si foi promovida, tendo em vista a declaração da sua extinção.

Ora, o tribunal quando aprecia os efeitos jurídicos dos factos alegados ou provados, seja na ação declarativa, seja no âmbito de embargos de executado, não está adstrito à qualificação jurídica enunciada pela parte. Mesmo tratando-se de questão ou de exceção que não seja de conhecimento oficioso, o importante é que sejam alegados os respetivos factos essenciais com o objetivo de alcançar o correspondente efeito jurídico, cabendo ao tribunal exercer os poderes oficiosos atinentes à sua correta integração jurídica, nos termos do art. 5º, nº 3, do CPC.

Ora, conquanto na petição de embargos, e mesmo em intervenções posteriores, a embargante tenha aludido à figura da compensação como fundamento de oposição à execução, sem qualquer alusão à exceção de não cumprimento, tal opção não pode deixar na obscuridade o efeito jurídico-processual que procurou através da dedução de embargos e que resume à recusa de pagamento da quantia exequenda (com extinção da ação executiva) se e enquanto não for reembolsada da quantia que despendeu com a reparação dos defeitos da obra que eram imputáveis à exequente.

Neste contexto, o facto de a embargante se ter abstido de ampliar o objeto do recurso relativamente à exceção de compensação (art. 635º, nº 1, do CPC), não pode ter o efeito que lhe foi atribuído pela Relação, a qual, em vez disso, deveria ter optado pela valorização dos factos que a embargante alegou inicialmente e que depois se provaram, para deles extrair o efeito jurídico adequado.

Relativamente à correta qualificação jurídica dos factos não existe qualquer efeito preclusivo decorrente da atuação ou inação das partes, devendo ser adotada em cada momento aquela que o órgão jurisdicional considerar mais ajustada, atribuindo relevo à materialidade dos factos alegados e provados.


2.5. O que emerge inequivocamente, quer da petição de embargos quer das posteriores intervenções da embargante, é o objetivo de que seja proferida uma decisão que, no âmbito da presente ação executiva sustentada num crédito da subempreiteira, atribua relevo ao facto de a mesma ter entregue à embargante/executada uma obra com defeitos e de ter recusado repará-los, obrigando-a à realização de despesas. Nessa medida, deve considerar-se legitimada a não efetuar o pagamento daquele crédito enquanto a subempreiteira não assumir a responsabilidade pelas despesas com a reparação dos defeitos (exceção de não cumprimento).

O objetivo final da embargante, ou seja, a extinção da ação executiva que releva da materialidade invocada parte do pressuposto de que pode opor à exigência do cumprimento coercivo da obrigação exequenda o facto de ter realizado despesas que, de acordo com as regras de direito material, incumbiam à exequente. Ao defender-se no sentido de ser considerado o reembolso do valor das despesas que fez com a reparação dos defeitos da subempreitada, a executada procura impedir que a execução prossiga para satisfação daquela pretensão, sendo relativamente indiferente o nomen juris que lhe atribuiu.

Entendemos que o que verdadeiramente corresponde à alegação da executada na petição de embargos é a figura da exceção de não cumprimento do contrato regulada nos arts. 428ºe ss. do CC ou, de uma forma mais genérica, mas com o mesmo efeito prático da compensação, a invocação da recusa de cumprimento de uma obrigação (a obrigação exequenda emergente do contrato de subempreitada) para tutela do seu direito de crédito ao recebimento da quantia despendida com a reparação do defeitos dessa mesma subempreitada (sobre estas duas figuras cf. Ana Taveira da Fonseca, Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito).

No que respeita àquela figura típica, trata-se de um instrumento jurídico que, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “pode ter lugar nos contratos com obrigações correspetivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra”, podendo ser invocada não apenas quando se trate de prestações a cumprir no mesmo prazo, como ainda nos casos em que “a prestação deva ser efetuada depois da do outro” (CC anot., vol. I, 2ª ed., p. 356).


A apreciação de tal exceção dilatória de direito material não é de conhecimento oficioso, mas não pode confundir-se a necessidade da sua invocação com a qualificação jurídica atribuída pela parte aos factos alegados. É relativamente aos factos suscetíveis de a integrar que impõe o ónus de alegação, ficando depois sujeitos à qualificação jurídica que o tribunal considerar mais ajustada (como também o defende Ana Taveira da Fonseca, ob. cit., p. 263, onde refere que “ainda que não se exija a sua invocação literal, é necessário que resulte da alegação do réu que este não pretende realizar a prestação exigida pelo autor, até que a contraprestação seja efetuada”).

Deste modo, ante a realidade refletida pela matéria de facto provada, fácil é constatar que a Relação deveria ter encontrado outra solução mais ajustada ao caso na interseção entre o regime jurídico do contrato de subempreitada e a figura da exceção de não cumprimento.


2.6. É verdade que nos encontramos numa situação em que os defeitos da obra já foram reparados, mas nem isso impede o funcionamento daquela exceção.

A obra adjudicada à subempreiteira consistia na pavimentação de arruamentos, no que pode ver-se uma obrigação de resultado, nos termos dos arts. 1207º e 1208º, em conjugação com o art. 1213º do CC. Estando obrigada, por isso a executar e entregar a obra em conformidade com o acordado, verifica-se que a mesma apresentava defeitos que foram oportunamente denunciados pela embargante/empreiteira, nos termos do art. 1220º do CC: em pouco tempo se verificou que material aplicado começou a soltar-se, criando uma situação de perigo para a circulação viária.

Para se eximir à responsabilidade pela reparação, a subempreiteira alegou que os defeitos se deveram ao facto de o betume ter sido colocado quando as condições atmosféricas o desaconselhavam, de nada servindo os avisos que fez à empreiteira no sentido de se adiar a execução da pavimentação para ocasião mais conveniente.

Porém, os factos através dos quais a exequente procurava subtrair-se à sua responsabilidade, imputando-a ao credor (isto é à empreiteira, ora executada), não se provaram, funcionando, assim, a presunção de culpa a seu desfavor, nos termos do art. 799º, nº 1, do CC.

A exequente foi intimada a proceder à sua reparação, o que se recusou a fazê-lo. Tratava-se, ademais, de uma situação que implicava uma atuação urgente, atentos os riscos para a circulação viária, o que levou a executada a realizar a reparação através de terceiros.

Esta atuação que beneficia da legitimidade que é consentida pela interpretação do art. 1221º do CC.

Segundo o entendimento corrente na jurisprudência, máxime a deste Supremo Tribunal, e na doutrina, a sucessão de atos para que tal preceito aponta pode ser ultrapassada em determinadas circunstâncias, designadamente quando haja recusa perentória do empreiteiro (in casu do subempreiteiro) no que concerne à eliminação dos defeitos ou em situações em que a demora no acionamento de algum dos mecanismos aí previstos colida com razões de urgência (v.g. Acs. do STJ de 24-5-18, 1516/15, de 14-6-11, 550/05, 26-5-09, 927/2002, em www.dgsi.pt).

Nestas situações, constitui-se na esfera da parte que recebe a obra adjudicada o direito a obter o reembolso das despesas efetuadas, realidade que, respeitando o princípio da proporcionalidade e as regras da boa fé, pode justificar a invocação da exceção de não cumprimento, nos termos do art. 428º do CC, quando lhe seja exigido o pagamento do preço.

Neste sentido decidiu o Ac. do STJ de 26-11-09, 674/02, em www.dgsi.pt (e também o Ac. do STJ de 10-12-09, 163/02), de cujo sumário consta que:

- Num contrato de empreitada, a invocação da exceptio pelo dono da obra a quem é pedido o pagamento do preço, e que invoca o cumprimento defeituoso da obrigação do empreiteiro, é independente do pedido de eliminação dos defeitos por aquele formulado em reconvenção, e o seu conhecimento (da exceção) deve, na economia da sentença, preceder o conhecimento sobre a exceção de caducidade do mencionado pedido reconvencional.

 – O cumprimento defeituoso constitui um tipo de não cumprimento das obrigações, e são-lhe aplicáveis as regras gerais da responsabilidade contratual; daí que, no contrato de empreitada, o recurso ao instituto da exceção do não cumprimento do contrato seja admissível em caso de prestação imperfeita ou defeituosa (exceptio non rite adimpleti contractus).

Menezes Cordeiro, citando os Acs. do STJ de 12-1-10, 674/02 e de 4-2-10, 4913/05, também afirma perentoriamente que “o dono da obra (e, no caso o empreiteiro em relação ao subempreiteiro) pode, inclusive, recusar o pagamento em face dos vícios da obra, desde que haja proporcionalidade perante a gravidade do vício” (Tratado de Direito Civil, tomo XII, p. 896). Ideia que explicita noutro local, quando conclui que “a exceção de incumprimento pode ainda ser usada no caso de cumprimento defeituoso, desde que a falta seja significativa, em face de um juízo de razoabilidade: é a exceptio non rite adimplento contarctus” (p. 962).

No mesmo sentido cf. Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, p. 327, referindo a necessidade de o dono da obra denunciar os defeitos, a fim de possibilitar a sua reparação por parte do empreiteiro, condição também referida no anterior aresto deste Supremo.

Semelhante entendimento é defendido por José João Abrantes, A Excepção do não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, p. 114.

Se nos ativermos apenas à figura típica da exceção de não cumprimento, teremos de nos confrontar com a apreciação do seu requisito fundamental assente na sinalagmaticidade dos créditos, matéria que é abundante e profundamente tratada por Ana Taveira da Fonseca, na citada obra, da qual se respigam algumas considerações que nos parecem pertinentes quer para o enquadramento do presente litígio, quer para a sua resolução nos termos que já antecipámos.

Com pertinência para situações como a presente em que o crédito emergente da execução da subempreitada se confronta com o crédito da executada correspondente à indemnização substitutiva emergente das despesas com a reparação dos defeitos, observa a referida autora, a respeito da mora no cumprimento da obrigação, que “o devedor pode continuar a recusar o cumprimento, invocando a exceção de não cumprimento, em respeito pelos limites impostos pelo princípio da boa fé, quando o credor se propõe exigir (e não “cumprir”, como, por lapso, consta da obra) a obrigação principal sem pagamento da indemnização moratória de que, por sua vez, o primeiro é credor” (ob. cit., p. 119).

Noutro passo, em torno da indemnização decorrente da impossibilidade de cumprir, refere que “o direito à indemnização consubstancia, do ponto de vista jurídico, uma continuação do direito de crédito original, o que, por sua vez, justifica a manutenção da relação de sinalagmaticidade e a consequente oponibilidade da execução de não cumprimento” (p. 121). E a seguir explica que “para que a exceção possa ser reclamada, não é necessário que a prestação seja a principal, basta que exista uma relação de correspetividade entre a prestação não cumprida e a contraprestação recusada” (p. 122).

Com mais direta aplicação ao caso concreto, considerando a verificação do cumprimento defeituoso do contrato de subempreitada de onde emerge o crédito exequendo, refere a mesma autora que, “existindo cumprimento defeituoso, o contraente que aceitou a prestação só pode socorrer-se da exceptio se e na medida em que puder exigir a eliminação do defeito” (p. 212), considerando ainda que “a relação de sinalagmaticidade que existia entre as prestações emergentes do mesmo contrato bilateral mantêm-se relativamente à indemnização substitutiva da prestação em falta” (p. 213).

Reafirma-se, pois, a legitimidade da invocação da exceção de não cumprimento do contrato como fundamento material de oposição à execução que encontra sustentação quer nos factos alegados, quer nos factos provados.


2.7. Em reforço da mesma solução, outros argumentos podem ser enunciados.

A referida exceção de não cumprimento do contrato constitui um instrumento que se integra num princípio geral que potencia a autodefesa do devedor contra pretensões do credor em casos que encontram a sua justificação na figura da equidade ou nos valores imanentes de uma justiça comutativa, para além de poderem ser invocadas também as regras da boa fé a que a embargante alude nas alegações desta revista.

Ana Taveira da Fonseca, assinalando precisamente os vetores da boa fé (pp. 210 e 281), da equidade (pp. 281 e 541) e da legitimidade da autotutela (p. 544), refere que “noutros ordenamentos jurídicos ... há uma tendência do legislador, ora da doutrina e da jurisprudência para admitir a possibilidade de o devedor poder recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela do direito de crédito de que, por sua vez, é titular, sempre que entre estes exista uma relação de conexão” (p. 532).

É essa relação de conexão que, não fora a correspetividade já anteriormente afirmada, também poderia justificar, numa situação como a dos autos, que uma a empreiteira se recuse a cumprir a sua obrigação se e enquanto não for reembolsada pela subempreiteira das despesas que foram originadas pelo defeituoso cumprimento da sua obrigação.

Partindo das figuras típicas da exceção de não cumprimento, do direito de retenção e da figura da compensação, associadas às regras da boa fé, da equidade e da Justiça como valor imanente, a mesma autora enuncia um princípio geral em torno da legitimidade da recusa de cumprimento como forma de tutela do direito de crédito.

Defendendo que a legitimidade da recusa de cumprimento da obrigação em circunstâncias, como a dos presentes autos, em que o credor, por seu lado, não cumpriu a obrigação correspetiva, em função das regras da boa fé (p. 283), conclui ser possível extrair do nosso ordenamento jurídico “um princípio mais amplo, que desonere o devedor de prestar ao credor que não se dispõe a cumprir perante ele uma obrigação exigível” (p. 535), rematando que “corresponde à natureza das coisas que um sujeito que seja obrigado a realizar uma prestação a favor de outrem que não se dispõe a cumprir uma obrigação exigível de que é, por sua vez, devedor para com o primeiro, bem assim não tenha de realizar uma prestação quando é credor do seu credor e as duas obrigações têm por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade” (p. 538), sendo exigida simplesmente uma relação de conexão, como ocorre em casos em que os créditos emergem da mesma relação jurídica (p. 547).

Ora, a exequente que promoveu a cobrança coerciva de quantias faturadas em função da obra adjudicada é, por seu lado, devedora da quantia que a executada despendeu com a reparação dos defeitos da obra adjudicada.

Assim se confirma que uma solução como a que foi encontrada pela Relação, de julgar improcedentes os embargos sem ponderação dos efeitos típicos da exceção de não cumprimento, contraria o referido princípio geral e os valores da equidade, da boa fé e da justiça que lhes estão subjacentes, podendo afirmar-se a legitimidade, por esta via atípica, da recusa de cumprimento invocada pela embargante.


2.8. Neste contexto, perdem valia os argumentos tecidos no acórdão recorrido em torno da necessidade de a executada/embargante ter ampliado o âmbito do recurso de apelação.

O facto de a executada se ter conformado com a opção da 1ª instância de declarar a procedência dos embargos e a extinção da execução a partir de uma fundamentação diversa da compensação (inexistência de crédito exequendo por causa do defeituoso incumprimento da subempreitada) não prejudica a possibilidade de se retomar a qualificação jurídica correta dos factos que foram alegados e provados.

Também se discorda da conclusão da Relação quando considerou que não foi cumprido o ónus de alegação respeitante à exceção de não cumprimento, juízo a que, como já se disse anteriormente, parece estar subjacente a confusão entre a alegação expressis verbis dessa figura jurídica, com efeitos impeditivos, e a alegação dos factos que essencialmente a integram.

Tendo a embargante agido por si, ante a recusa da exequente e a urgência da situação, contratando com terceiros a realização das obras de reparação da obra, deve considerar-se legítima a recusa de pagamento da quantia exequenda que suscitou nos embargos de executado, com efeitos que determinam a extinção da ação executiva.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, de modo que:

a) Revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que considerou improcedente o fundamento de embargos em torno da inexistência do crédito exequendo;

b) Com base na fundamentação anteriormente exposta, julgam-se procedentes os embargos e declara-se a extinção da execução, como foi declarado na sentença da 1ª instância.

Custas da revista, da apelação, dos embargos e da execução a cargo da exequente.

Notifique.


Lisboa, 19-12-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo (com declaração de voto junta)

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Declaração de voto

Votei o acórdão, circunscrito apenas à questão da exigibilidade do direito de crédito do exequente, em função da decisão do acórdão de fls. 949, proferido pela formação a que alude o nº 3 do art. 672º, do Código de Processo Civil, que não admitiu o recurso quanto à questão da falta de exequibilidade do título. De qualquer forma, a reapreciação desta última questão sempre seria irrelevante para o desfecho do recurso, uma vez que os embargos foram julgados procedentes.