Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/22.7SHLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
PENA DE PRISÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O factor decisivo ao privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes é, claramente, a considerável diminuição da ilicitude do facto, olhada de forma global, sendo os elementos indicados no artº 25º meramente exemplificativos .

II. Para a análise global da ilicitude do facto devem ser ponderados vários factores, entre os quais, o tipo dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, a sua quantidade, a afetação ou não de parte das receitas obtidas ao consumo pessoal de drogas, a duração da atividade e a sua a frequência, a posição do agente no circuito de distribuição, a extensão geográfica da sua atividade e, também, o modo de execução do tráfico, isto é, se praticado isoladamente, se com recurso a terceiros colaboradores.

III. Porém, dificilmente uma das circunstâncias referidas, individualmente considerada, será susceptível para concluir pela diminuição da ilicitude do facto, em ordem a integrar a respectiva conduta na previsão legal do artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1.

IV. Maugrado ter sido apurada uma única actividade de tráfico, justifica-se a condenação do arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1, quando é certo que o mesmo detinha para venda a terceiros cerca de 250 embalagens, com o peso líquido total de cerca de 35 gramas, de cocaína e heroína, consideradas “drogas duras”, em função do nível de dependência que provocam e dos efeitos nefastos na saúde de quem as consome.

Decisão Texto Integral:

Acordam, neste Supremo Tribunal de Justiça:


I. 1. O arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi – com outro – julgado e condenado, no Proc. comum colectivo nº 38/22.7SHLSB, do Juízo central criminal de ..., J.., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº. 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2. Inconformado, recorreu directamente para este Supremo Tribunal, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1. O presente recurso resume-se à questão da qualificação jurídica dos factos declarados provados em primeira instância, bem como da pena a fixar dentro da medida legal.

2. Na verdade, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão pelo simples facto de ser detentor de um saco com o peso líquido de 14,435 gramas de cocaína com um grau pureza de 51,8%, sendo o equivalente a 249 doses de consumo bem como de 20,140 gramas heroína com grau de pureza de apenas 14,5%, sendo equivalente apenas a 29 doses de consumo, PARECE, salvo melhor entendimento bem excessivo em relação ao grau de culpa.

3. Todo o produto estava embalado para a venda directa ao consumidor.

4. A área geográfica em que o ilícito ocorreu é restrita à zona da ....

5. Não se conhece factualidade que implique a existência de reiteração, pois os factos provados induzem-se ao único dia 10/04/2022.

6. O tempo do ilícito é pois único e pontual, tendo siso absolvido de qualquer co-autoria com o crime do seu co-arguido BB.

7. Por outro lado, provados ficaram todos os elementos e percurso de vida, que figuram no ponto 23 da matéria fixada no Acórdão recorrido e que aqui se dão por reproduzidos e foram transcritos nesta motivação.

8. Do que resulta do seu Certificado de Registo Criminal, transcrito no ponto 22 da matéria de facto provada no Acórdão, importa TAMBÉM verificar que o ora recorrente ostenta uma conduta normal e dentro dos parâmetros da sociedade, desde há 9 anos a esta parte.

9. Ora o recorrente entende, salvo o devido respeito por melhor opinião, que deve ser condenado apenas pelo artº 25º do Dec. Lei 15/93, porquanto o ilícito imputado, pela natureza e quantidade de droga apreendida, achando-se isolado e pontual e numa pequena área geográfica, bem como a sua apresentação para venda directa ao consumidor não permite a sua inserção no artº 21º do mencionado Decreto.

10.Assim sendo, “in casu”, face ao conteúdo do Relatório Social entende-se que a pena a fixar, dentro da qualificação jurídica do artº 25º do Dec. Lei 15/93 não deve ser superior a 3 anos de prisão, ainda que efectiva face aos seus já longínquos antecedentes criminais.

Violaram-se as seguintes disposições legais

- artº 21º do Dec. Lei 15/93, porquanto os únicos factos elencados e provados configuram antes um ilícito p.p.p. artº 25º do mesmo decreto

- artº 40º e artº 71º do C.P.P. porquanto a pena fixada excede a medida da culpa.

Nestes termos, deve o presente recurso obter provimento anulando-se o Acórdão recorrido e condenando-se o ora recorrente pela prática do crime do artº 25º do Dec. Lei 15/93 e fixando-se a pena em 3 anos de prisão».

3. Respondeu a Exmº Magistrada do MºPº junto do tribunal a quo, pugnando pelo não provimento do recurso e assim concluindo:

«1. O presente recurso tem por objeto a alteração da qualificação jurídica da factualidade dada como provada, que não se discute, e ainda a medida concreta da pena aplicada.

2. Carece de razão o arguido.

3. O arguido não é um simples “Vigia”, nem um vendedor de rua, mas sim o dono da “banca”, do estupefaciente que escondeu para ser escoado pelos seus vendedores.

4. O facto do arguido explorar um café de bairro, e não evidenciar sinais de riqueza, por si só, não permite desqualificar a gravidade da conduta, por forma a enquadrá-la no âmbito de aplicação do art. 25.º do D.l. n.º 17/93 de 22.01;

5. O tráfico do artigo 21º do D. Lei 15/93 também não está reservado apenas às grandes apreensões de estupefacientes.

6. A intervenção do arguido não está limitada a um único dia, e as 351 doses individuais de cocaína e heroína que lhe foram apreendidas não pode ser considerada uma quantidade reduzida, tanto mais que as “bancas” funcionam com quantidade de estupefaciente destinada a ser escoada no próprio dia.

7. Inexiste qualquer circunstância da qual decorra a diminuição da ilicitude da conduta do arguido, atenta a quantidade e qualidade do estupefaciente que colocou num andaime para que terceiros, seus colaboradores, viessem buscar e vender no dia em causa nos autos.

8. O arguido apresenta um extenso rol de condenações pelo mesmo tipo de crime, cumpriu um pena privativa da liberdade até 4.11.2003 quando lhe foi concedida liberdade condicional, em 2011 voltou à pratica do mesmo tipo de factos, beneficiando de uma suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 3 anos, o que ocorreu novamente em 2012, desta vez pelo período de 5 anos (com regime de prova) e que ainda assim voltou a beneficiar pela reiteração do crime de tráfico que voltou a cometer em 2013, tendo esta pena (3 anos e 6 meses) sido julgada extinta em 13.05.2019.

9. Os factos dos autos ocorrem em 2022, pelo que nenhuma destas condenações foi suficiente para que o arguido se afastasse definitivamente do tráfico de estupefacientes, não obstante o seu enquadramento familiar e social e mesmo ter sido beneficiado com rendimentos extras decorrentes do jogo de fortuna e azar.

10. Em sede de julgamento e mesmo em sede do presente recurso, apresenta-se como vítima de perseguição policial, manifestando-se incapaz sequer de qualquer juízo auto-censura.

11. Bem como o seu enquadramento social, familiar e mesmo profissionalmente,

12. As exigências gerais muito elevadas no que respeita a este tipo de crime e as sucessivas condenações do arguido pela prática de crime de igual natureza, a par com a sua atitude processual, desresponsabilizando-se da sua conduta e da sua gravidade, encontra-se no limiar mínimo aceitável para a sociedade e é adequada e proporcional».

II. 1. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso:

«(…)

Em decorrência do que vem de referir-se, e seguindo de perto a fundamentação alicerçada no acórdão impugnado no que à subsunção jurídica da factualidade nele apurada diz respeito, diremos que se concorda, a esse propósito, com o sentido jurídico da decisão proferida, posto que também, a nosso ver, e sempre ressalvando melhor entendimento, apreciados aqueles factos assentes, e correlacionando-os com a previsão normativa - e não concorrendo, à luz da mesma factualidade apurada, qualquer circunstância passível de traduzir a diminuição da ilicitude da conduta do arguido, atenta a quantidade e qualidade do estupefaciente que colocou num andaime de molde a que terceiros, seus colaboradores, viessem a colocá-lo no circuito comercial-, se revelam, in casu, a presença de factos suficientemente aptos a suportar a condenação do arguido pela prática do tipo objectivo e subjectivo do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas Anexas I-A e I-B ao mesmo diploma legal.

Os factos assim dados como assentes, que de forma explícita constam do acórdão impugnado, foram, a nosso ver, correctamente enquadrados pelo tribunal, sem atropelos das regras processuais, nomeadamente das regras que norteiam a produção de prova, sua apreciação e valoração pelo Tribunal.

Donde, e a nosso ver, dúvidas não restam de que o enquadramento-jurídico efectuado no douto acórdão impugnado (crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas Anexas I-A e I-B ao mesmo diploma legal), é o correcto. E tanto basta para que a moldura abstracta aplicável àquele ilícito corresponde a pena de 4 (quatro) anos a 12 (doze) anos de prisão.

4.- Em sintonia com o que vem a expor-se, cumpre assinalar que a Digna Procuradora da República junto da 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão impugnada nos seus precisos termos, pelos fundamentos de facto e de direito insertos na resposta apresentada à motivação de recurso interposto, (sob referência Citius n.º ......32), conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na mesma peça processual, no âmbito da qual foram extraídas as seguintes conclusões, que se permite transcrever:

(…)

5. Neste enquadramento, acompanham-se as considerações tecidas na resposta ao recurso apresentada pela Digna Procuradora da República junto da 1ª instância, pugnando pela manutenção do acórdão condenatório nos seus precisos termos, sendo que aí se identificou correctamente o objecto do recurso interposto pelo arguido/recorrente, rebatendo, para tanto, especificadamente cada uma das questões nele suscitadas, evidenciando argumentos que, pelo rigor, propriedade, clareza e acerto, suscitam a mais completa adesão, dispensando-nos de adicionais reflexão.

6. Assim, e por se afigurar também terem sido devidamente ponderados e valorados pelo Tribunal “a quo” o grau de culpa evidenciado pelo arguido, a ilicitude dos factos apurados, as circunstâncias que rodearam a prática daqueles factos, as elevadas exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se fazem sentir, o que se conclui é que a pena aplicada ao recorrente é justa, por necessária, proporcional e conforme aos critérios definidores dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal.

7. Sublinhe-se, pois, que, no respeitante à determinação do quantum da pena de prisão efectiva fixada ao recorrente, e como se alcança do teor da fundamentação vertida no douto acórdão impugnado, foram observados, para tanto, os inerentes parâmetros jurídicos.

8. Com efeito, depois de escolhida a pena, nos termos do disposto no artigo 40º do Código Penal e para a sua determinação o Tribunal deve eleger os factores relevantes para o efeito, valorando-os à luz dos vectores de culpa e prevenção, nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal que enumera, no seu n.º 2, de forma exemplificativa, alguns dos mais importantes factores de medida da pena de carácter a aferir segundo critérios objectivos.

9. In casu, o Tribunal tomou em consideração, em função de uma moldura abstracta correspondente a punição do crime de tráfico de estupefacientes, previsto pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-A e I-B, anexas ao mesmo diploma, punível com pena de 4 a 12 anos de prisão, todas as circunstâncias a favor e contra o arguido / recorrente, sendo que, em concreto, foi fixada ao mesmo a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva; a qual se mostra graduada de acordo, e em síntese, com as fortes exigências de prevenção geral decorrente do grau de ilicitude do crime apurado; ao dolo directo; ao desvalor do comportamento assumido que se traduz na expressiva difusão, no território nacional, de produtos estupefacientes com a natureza assinalada; existência de extenso rol quanto aos seus antecedentes criminais, mormente por condenações consequentes da prática de factos similares aos apurados nos autos, sendo sopesada, naturalmente, a sua situação pessoal e social.

10. De facto, o Tribunal “a quo” aplicou a pena de prisão efectiva que, em concreto, se mostra adequada, ponderando as elevadas exigências de prevenção geral e especial e demais circunstâncias enunciadas na decisão colocada em crise, tendo por limite a culpa, fixando a pena concreta do crime apurado muito próxima do limite mínimo da moldura abstracta aplicável.

11. Da análise ponderada das circunstâncias pessoais do arguido e das exigências de prevenção especial, por contraponto à gravidade dos factos e às elevadas exigências de prevenção geral, o Tribunal “a quo” não podia concluir pela aplicação de pena que, em concreto, não fosse de prisão efectiva, afastando, de acordo com a prognose não favorável para tanto, a suspensão da respectiva execução.

12. Neste contexto, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada e no contexto em que os factos ocorreram, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma, da confiança comunitária na prevalência do direito.

13. Termos em que, e considerando encontrar-se amplamente fundamentado, com objectividade e rigor, o Acórdão condenatório que, fruto de cabal explicitação acerca do processo de formação da convicção do Tribunal mediante o inerente exame crítico das provas que o sustentou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que merecem (ou não mereceram) os elementos de prova apreciados globalmente pelo Tribunal “a quo”, determinou a aplicação ao arguido /recorrente de uma pena de prisão efectiva, justa e adequada, fixada à luz da subsunção jurídica da factualidade nele apurada e das exigências de prevenção geral e especial do caso concreto».

2. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve respostas.

III. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.

E as questões a decidir são, por isso, as seguintes:

A) A factualidade apurada integra a prática, pelo arguido recorrente, não de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1, mas sim a prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a), ambos do DL 15/93, de 22/1?

B) A proceder a primeira pretensão do arguido, é excessiva e deve ser reduzida a medida concreta da pena aplicada ao arguido?

IV. Mostra-se fixada a seguinte matéria de facto:

1º No dia 09 de Abril de 2022, pelas 11h02m, o arguido BB encontrava-se, no Bairro ..., no Beco ..., com o propósito de proceder à venda de cocaína e de heroína a terceiros, em troca de quantias monetárias.

2º Na mesma data e hora, o arguido AA encontrava-se no início da Rua ..., no cruzamento com a Rua ....

3º Avistando a presença de Agentes policiais no local, de imediato o arguido AA, gritou: “TIA!!!” para alertar o arguido BB da presença das autoridades policiais.

4º Alertado pelo grito dado pelo arguido AA, ao aperceber-se da iminente abordagem policial, o arguido BB arremessou para trás de um conjunto de vasos de flores que ali se encontravam, uma bolsa que continha:

- 8 (oito) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 0,798 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 55,6%, sendo o equivalente a 14 doses de consumo;

- 9 (nove) embalagens de heroína, com o peso líquido de 1,866 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 16,1%, sendo o equivalente a 3 doses de consumo (cfr. exame toxicológico de fls.1251, cujo teor aqui se considera reproduzido), que foi, de imediato, recolhida e apreendida pelos Agentes policiais.

5º Seguidamente, o arguido BB foi interceptado pelos Agentes e revistado.

6º No interior do bolso esquerdo das calças que envergava, o arguido BB, tinha, ainda:

- a quantia monetária de €70,00 (setenta euros).

7º Junto do arguido BB encontrava-se CC, que lhe tinha solicitado heroína, para seu consumo, tendo, para esse efeito, na mão uma nota de €10,00 (dez euros) que se preparava para lhe entregar.

8º Após ter proferido o aludido grito (“TIA!!) o arguido AA encetou fuga apeada em direcção ao Largo ....

9º No dia 10 de Abril de 2022, pelas 08h16, o arguido AA chegou ao Largo ..., conduzindo o veículo de marca e modelo “Volkswagen Golf”, de matrícula ..-EC-...

10º Pelas 08h28, o arguido AA encontrava-se a caminhar pelo Largo ..., vindo do Largo ....

11º Acto contínuo, dirigiu-se junto de uns andaimes de obras que ali se encontravam, junto ao nºs 50 a 54, retirou um saco de cor preta, que levava por debaixo do casaco de fato de treino que envergava, subiu um pouco os andaimes e colocou ali o saco.

12º No interior deste saco preto o arguido guardava:

- 146 (cento e quarenta e seis) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 14,435 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 51,8%, sendo o equivalente a 249 doses de consumo;

- 102 (cento e duas) embalagens de heroína, com o peso líquido de 20,140 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 14,5%, sendo o equivalente a 29 doses de consumo; (cfr. exame toxicológico de fls.253, cujo teor aqui se considera reproduzido).

13º Este saco foi apreendido por Agentes da P.S.P., bem como um telemóvel de marca “Huawei” que, igualmente, se encontrava na posse do arguido.

14º O arguido BB conhecia as características e natureza estupefaciente do produto apreendido no dia 09.04.2022, destinando-o à cedência a terceiros, mediante contrapartida monetária.

15º Mais sabia que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei.

16º Agiu assim o arguido, forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.

17º O arguido AA conhecia as características e natureza estupefaciente dos produtos que detinha no dia 10.04.2022, destinando-os à cedência a terceiros, mediante contrapartida monetária.

18º O arguido AA sabia que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei.

19º Agiu, assim, o arguido AA, de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.

20º a 21º (factos relativos às condições pessoais do co-arguido BB)

22º O arguido AA regista os seguintes antecedentes criminais:

- No processo nº 19044/00.6..., por Acórdão transitado em julgado a 03.12.2002; foi condenado pela prática de crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do D. Lei 15/93, na pena de 5 anos de prisão,

- No processo nº 1928/04.4..., por sentença transitada em julgado em 20.01.2005, foi condenado por crime de condução sem habilitação legal praticado em 28.12.2004, na pena de 100 dias de multa;

- No processo nº 167/11.2..., por Acórdão transitado em julgado a 06.05.2013, foi

condenado pela prática em 5.09.2011, de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 25º do D. Lei 15/93, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período;

- No processo nº 96/12.2..., por Acórdão transitado em julgado a 07.06.2013, foi

condenado pela prática em 5.11.2012, de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do D. Lei 15/93, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova.

- No processo nº 83/13.3..., por Acórdão transitado em julgado a 13.11.2015, foi condenado pela prática em 25.09.2013, de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do D. Lei 15/93, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova.

23º Do percurso de vida de AA e do respectivo enquadramento social, resultou provada a seguinte matéria:

AA é o segundo filho de uma fratria de 3 irmãos e o seu desenvolvimento decorreu no seio de uma família de modesta condição socio económica, sendo o pai motorista e a mãe empregada de limpezas, num contexto relacional harmonioso.

Não obstante, fez um percurso escolar pouco investido e caracterizado por elevado absentismo, tendo reprovado alguns anos até deixar a escola aos 16 anos, com o 6º ano de escolaridade incompleto.

Após ter abandonado a escola passou a desenvolver atividades laborais indiferenciadas e de caracter temporário até ao serviço militar.

O falecimento da progenitora quando tinha cerca de 19 anos, alterou substancialmente o seu modo de vida, uma vez que o pai optou por regressar ao norte do país e AA ficou a viver sozinho na morada de família.

Passou a conviver com grupos de pares problemáticos e iniciou-se no consumo de haxixe e também na prática de trafico de estupefacientes, o que o levou ao cumprimento de uma pena de prisão e durante este período concluiu o 7º ano de escolaridade.

Em liberdade, reintegrou a morada de família e voltou a viver com o progenitor, tendo já os irmãos vida independente. Conseguiu trabalho na construção civil e como estafeta numa firma.

Nesse contexto iniciou vida em comum com a actual companheira e a filha desta, e veio a ter 1 filho desta relação.

Posteriormente optou por residir noutra zona de Lisboa (...), onde veio a abrir uma loja de estética, a qual manteve em actividade durante cerca de 3 anos. Quando encerrou a mesma voltou a trabalhar como estafeta até há cerca de 6 anos, época em que abriu um café, e passou a dedicar-se em exclusividade a esta atividade

A nível económico AA e a família dispunham de condições de sustentabilidade sem dificuldades relevantes, através dos ganhos obtidos pelo arguido e a actividade da companheira como empregada de limpezas. Segundo o próprio, há cerca de 2 anos ganhou 100 mil euros num jogo popular “raspadinha”, que dividiu com um dos irmãos, mas que lhe proporcionou uma folga financeira.

Mais recentemente a enteada também começou a trabalhar numa loja, em Lisboa, o que contribuiu igualmente para consolidar a estabilidade financeira.

A nível relacional AA é considerado uma pessoa sociável, solidário com os outros, responsável com a família e um excelente pai,

Perspectiva voltar ao seu agregado e retomar a exploração do café, logo que esteja em liberdade.

No acórdão recorrido consignou-se (e disso se faz expressa referência, porque possui relevância para a decisão deste recurso) que não ficaram provados os seguintes factos:

«Não se lograram provar os demais factos descritos na acusação e que aqui se dão como reproduzidos.

Assim, com relevo para a causa, não se provou, designadamente, que:

- O arguido AA adquiria produtos estupefacientes, procedia ao referido transporte e entregava-os a diversos indivíduos, entre os quais o arguido BB, que procediam à sua venda a terceiros, em troca de quantias monetárias, na zona da ... (designadamente no Largo ..., na Rua ..., na Rua ..., Beco ... e na Rua ...).

- No dia 9 de abril de 2022, AA deslocou-se do Largo... para a Rua ... com a Rua ..., onde entregou ao arguido BB embalagens de cocaína e de heroína, por ambos tendo sido acordado que BB procederia às vendas das embalagens de heroína e de cocaína a consumidores destes produtos, que ali se deslocavam com esse intuito, enquanto que, o arguido AA exerceria funções de vigilância a eventuais actuações policiais, de forma a controlar a sua aproximação ou presença, aquando das transacções de estupefacientes efectuadas pelo arguido BB.

- Que os arguidos tivessem actuado em colaboração mútua e em concertação e conjugação de esforços e intentos.

IV. Decidindo:

A) A factualidade apurada integra a prática, pelo arguido recorrente, não de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1, mas sim a prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a), ambos do DL 15/93, de 22/1?

Com base na matéria de facto acima descrita, o tribunal a quo considerou ter o arguido ora recorrente praticado um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93 de 22/1.

Entende o recorrente, contudo, que tal factualidade integra a prática, por ele, de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do mesmo diploma legal.

Assim se dispõe no primeiro dos dispositivos legais citados:

“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

A heroína e a cocaína integram respectivamente as tabelas I-A e I-B, anexas ao DL 15/93, de 22/1.

Por seu turno, estatui-se no artº 25º do DL 15/93, de 22/1:

“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV”.

Posto isto:

Como se refere no Ac. STJ de 20/1/2021, Proc. 3/18.9PCELV.S1, com o mesmo relator deste acórdão 1, a pedra de toque, o factor decisivo ao privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes é, claramente, a considerável diminuição da ilicitude do facto, olhada de forma global, sendo os elementos indicados no artº 25º meramente exemplificativos 2.

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 2/10/2019, Proc. 2/18.0GABJA.S1, 3ª sec., sintetizando um entendimento generalizado deste Tribunal, considerou-se que «assumem particular relevo na identificação de uma situação de menor gravidade: - o tipo dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração a sua danosidade para a saúde, habitualmente expressa na distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”; - a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim, avaliada não só pelo peso, mas também pelo grau de pureza; - a dimensão dos lucros obtidos; - o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida; - a afetação ou não de parte das receitas conseguidas ao financiamento do consumo pessoal de drogas; - a duração temporal da atividade desenvolvida; - a frequência (ocasionalidade ou regularidade), e a persistência no prosseguimento da mesma; - a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes, tendo em conta nomeadamente a distância ou proximidade com os consumidores; - o número de consumidores contactados; - a extensão geográfica da atividade do agente; - a existência de contactos internacionais; - o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização e meios sofisticados, por exemplo, recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente, ou a automóveis. Estas circunstâncias devem ser avaliadas globalmente. Dificilmente uma delas, com peso negativo, poderá obstar, por si só, à subsunção dos factos a esta incriminação, ou, inversamente, uma só circunstância favorável imporá essa subsunção. Exige-se sempre uma ponderação que avalie o valor, positivo ou negativo, e respetivo grau, de todas as circunstâncias apuradas e é desse cômputo total que resultará o juízo adequado à caracterização da situação como integrante, ou não, de tráfico de menor gravidade» – neste sentido, cfr., também, o Ac. STJ de 23/11/2011, Proc. 127/09.3PEFUN.S1, 5ª sec., www.dgsi.pt 3.

A este propósito, assim se decidiu no acórdão recorrido:

“(…)

No contexto global dos factos, ante a actividade levada a cabo pelo arguido AA desde logo no dia seguinte quando pelas 8h30m chega ao bairro e abre a “banca” com 249 doses de consumo cocaína (divididas em 146 embalagens) e 29 doses de consumo de heroína (divididas em 102 embalagens) que guarda num andaime de obras de um prédio coberto com uma lona, local onde os seus distribuidores a iriam buscar para colocar à venda em locais diversos, o que apenas não chega a acontecer ante a intercepção policial imediata, é manifesto que o seu contributo na actividade de tráfico não só não é de um simples “Vigia”, nem de um vendedor de rua que, à semelhança do arguido BB, ele próprio um consumidor, dispõe de droga que não lhe pertence mas que lhe é entregue para vender directamente ao consumidor, mas antes o do dono daquela “banca”, o dono daquele estupefaciente que escondeu para ser escoado pelos seus vendedores.

Tais circunstâncias, diversidade, tipologia e quantidade de estupefaciente, preparado para ser colocado à venda, com uma difusão do produto imediata destinada a um universo de consumidores não despiciendo, em face justamente da quantidade de droga que ali foi deixada, apontam para uma ilicitude global de uma actividade de tráfico acentuada e não consideravelmente diminuída.

Não é a circunstância de o arguido também explorar um café de bairro, nem de não evidenciar sinais de riqueza, que por si só apontariam para uma qualificação de um tipo de tráfico privilegiado.

A actividade de tráfico não tem de ser exercida em regime de exclusividade e nem todos os traficantes enriquecem, tudo depende da dimensão do negócio, sendo que o tráfico do artigo 21º do D. Lei 15/93 também não está reservado apenas às grandes e pesadas apreensões de estupefacientes.

Afasta-se, assim, a possibilidade de punir o arguido AA por um tráfico de menor gravidade.

No caso em apreço, ficou ainda assente que qualquer um dos arguidos agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Se conheciam os elementos objectivos do tipo do crime de tráfico de estupefacientes e actuaram com intenção de o realizar, agiu, cada um deles, com dolo direto – art. 14º, nº 1, do Código Penal.

Assim impõe-se a condenação dos arguidos nos sobreditos termos”.

Vejamos:

Como é entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico, o tipo legal do crime previsto no artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1, não constitui o tipo base, nem o tipo legal do crime previsto no artº 21º do mesmo diploma constitui uma forma agravada daquele. Distintamente, é o artº 21º do DL 15/93, de 22/1 que define o tipo base do crime de tráfico de estupefacientes e é em função dele que se há-de verificar se, em cada caso concreto, a imagem global da conduta do agente permite concluir pela acentuada diminuição da ilicitude do facto, caso em que a conduta será punida nos termos previstos no artº 25º, al. a) do diploma legal referido.

Que a conduta do recorrente preenche, em abstracto, a previsão legal do artº 21º do DL 15/93, de 22/1, é algo de inquestionável: o recorrente, no dia a que os autos se reportam, ilicitamente detinha substâncias (heroína e cocaína) compreendidas nas tabelas I-A e I-B anexas ao referido diploma, não destinadas a consumo próprio.

A questão consiste, pois, em saber se, no caso concreto e face ao factualismo apurado, a imagem global da conduta do arguido permite concluir pela acentuada diminuição da ilicitude do facto.

Ora, encontra-se provado que o arguido e ora recorrente, no dia 10 de Abril de 2022, se dirigiu a uns andaimes de obras situados junto aos nºs 50 a 54 do Largo ..., retirou um saco de cor preta, que levava por debaixo do casaco de fato de treino que envergava, subiu um pouco os andaimes e colocou ali o saco.

No interior deste saco preto o arguido guardava

- 146 (cento e quarenta e seis) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 14,435 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 51,8%, sendo o equivalente a 249 doses de consumo;

- 102 (cento e duas) embalagens de heroína, com o peso líquido de 20,140 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 14,5%, sendo o equivalente a 29 doses de consumo.

A heroína e a cocaína são consideradas “drogas duras”, em função do nível de dependência que provocam e dos efeitos nefastos na saúde de quem as consome.

E o recorrente, no dia 10/4/2022, detinha para venda quase 250 embalagens desses produtos.

É um facto que a única conduta delituosa apurada nestes autos, relativamente ao arguido ora recorrente, é a supra referida, ocorrida no dia 10/4/2022.

Tal circunstância, porém, não é de per si apta a determinar uma diminuição da ilicitude, em ordem a integrar a conduta do arguido na previsão legal do artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1.

É verdade que, para a análise global da ilicitude do facto devem ser ponderados vários factores, entre os quais, o tipo dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, a sua quantidade, a afetação ou não de parte das receitas obtidas ao consumo pessoal de drogas, a duração da atividade e a sua a frequência, a posição do agente no circuito de distribuição, a extensão geográfica da sua atividade e, também e no que para o caso releva, o modo de execução do tráfico, isto é, se praticado isoladamente, se com recurso a terceiros colaboradores.

E é também verdade que, no caso em apreço, estamos perante uma conduta isolada, não se tendo demonstrado que o recorrente actuasse com recurso a colaboração de terceiros 4.

Porém, dificilmente uma das circunstâncias referidas, individualmente consideradas, será susceptível para concluir pela diminuição da ilicitude do facto, em ordem a integrar a respectiva conduta na previsão legal do artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1.

Como bem se refere no Ac. deste Supremo Tribunal de 11/5/2023 5, “podem mesmo caber na previsão ampla do art. 21.º algumas hipóteses que na representação social dos traficantes de produtos estupefacientes são consideradas de pequeno tráfico, mas que em face dos critérios exemplificativamente indicados no art. 25.º ou outros igualmente relevantes do ponto de vista da ilicitude (v.g. modalidade da ação, a qualidade ou quantidade de estupefaciente, aqui incluídas, em nosso ver, a sua maior ou menor perigosidade intrínseca, a duração da atividade ilícita ou a dimensão do universo de compradores e/ou consumidores abrangidos por aquela mesma atividade), não têm cabimento naquele art. 25.º, antes se integrando no art. 21º”.

Ora,

Se é certo que estamos perante uma única conduta apurada, praticada de forma isolada pelo recorrente, certo é igualmente que estamos perante heroína e cocaína, drogas duras com uma enorme capacidade para criar dependência e com efeitos particularmente nocivos para a saúde.

E estamos perante quase 250 embalagens desses produtos, susceptíveis de disseminação por um elevado número de potenciais consumidores, sendo que o arguido exercia uma actividade “por conta própria”, não sendo um vendedor de rua, um “comissionista” por conta de outrem.

Assim vistas as coisas, isto é, encarada a apurada conduta do recorrente de forma global, não se vê de que forma se possa concluir por uma diminuição da ilicitude da mesma, ainda para mais considerável, isto é, de forma importante, assinalável, em ordem a integrá-la na previsão legal do artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1.

A conduta do recorrente integra a prática, por ele, do crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1, razão pela qual deve o acórdão recorrido ser mantido, no segmento em que desse modo decidiu.

B) A proceder a primeira pretensão do arguido, é excessiva e deve ser reduzida a medida concreta da pena aplicada ao arguido?

A redução da medida concreta da pena aplicada foi peticionada pelo recorrente apenas como decorrência da procedência da primeira questão por si suscitada, isto é, na eventualidade de se proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, condenando o recorrente pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/1 6.

E compreende-se que assim o tenha feito:

Sendo o arguido condenado como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º do mesmo diploma, a pena a aplicar é fixada entre os 4 anos e os 12 anos de prisão.

A pena concretamente aplicada – 5 anos e 6 meses de prisão – situada pouco acima do primeiro quinto da pena abstractamente aplicável, dificilmente poderá ser questionada, por excessiva.

E daí que, cremos, o recorrente tenha limitado a sua pretensão de ver reduzida a pena aplicada, para a hipótese de procedência da sua primeira pretensão de ver alterada a qualificação jurídica dos factos apurados.

Improcedente a primeira pretensão, prejudicado fica o conhecimento da segunda, formulada para a hipótese de procedência da primeira.

Não obstante, para a hipótese de se considerar que o recorrente peticiona a redução da pena aplicada, mesmo dentro da moldura penal correspondente ao crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22/1, sempre diremos o seguinte:

A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artºs 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.

No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).

Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.

Posto isto:

A medida concreta da pena aplicada ao recorrente foi assim justificada no acórdão recorrido:

«(…)

O legislador visou com a criação do crime de tráfico de estupefacientes evitar a degradação e destruição da pessoa, provocada pelo consumo de estupefacientes que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia.

O tráfico de estupefacientes põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos, como a vida, a integridade física e a liberdade dos consumidores, afecta a vida em sociedade, dificultando a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos, estando na base de elevado número de crimes contra o património e pessoas, mesmo alheias aos malefícios das drogas.

As exigências de prevenção geral são muito elevadas, pois o tráfico de estupefacientes é um flagelo para a sociedade pelas inúmeras consequências negativas que tem no domínio da saúde pública, da família, e da vida, entre outras.

A situação que se vive em Portugal em termos de tráfico e de toxicodependência é grave, reflectida, por um lado, no aumento da criminalidade e na degradação de parte do sector mais jovem da sociedade, o que, obviamente, impõe acrescidas exigências de prevenção, por outro lado, na circunstância de o nosso país, ser identificado como porta de entrada para o tráfico de cocaína e de haxixe na Europa.

Com efeito, Portugal está desde 2018 no top 5 dos países europeus com mais cocaína apreendida, sendo que de acordo com dados provisórios da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes, em 2022, só em cocaína foram apreendidas mais de 16 toneladas, conforme divulgou o DN em 16 de janeiro: https://www.dn.pt/sociedade/mais-de-16-toneladas-de-cocaina-apreendidas-em-2022-portugal-prepara-se-para-a-tempestade-branca-15663739.html.

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas do n.º 2 do artigo 71º do Código Penal.

Assim, há que ponderar:

(…)

Relativamente ao arguido AA, considerando a moldura abstracta do crime de tráfico do artigo 21º do D. Lei 15/93 é de 4 a 12 anos de prisão e ainda que:

O arguido regista sucessivas condenações por crimes de tráfico de estupefacientes, tendo cumprido um pena privativa da liberdade até 4.11.2003 quando lhe foi concedida liberdade condicional, o que não o demoveu de em 2011 voltar ao mundo do tráfico beneficiando de uma suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 3 anos, a mesma que beneficiou pela sua nova actividade de tráfico praticado em 2012, desta vez pelo período de 5 anos (com regime de prova) e que ainda assim voltou a beneficiar pela reiteração do crime de tráfico que voltou a cometer em 2013, tendo esta pena (3 anos e 6 meses) sido julgada extinta em 13.05.2019.

Dois anos depois o arguido regressa à actividade de tráfico o que nos leva a concluir que quer a sua experiência de reclusão, quer as demais condenações e penas que cumpriu em liberdade não constituíram censura suficiente para que o arguido se afastasse definitivamente do tráfico de estupefacientes.

Em face da postura processual que adoptou e que manteve em julgamento, vitimizando-se de uma perseguição policial que dura há décadas, denegrindo a actuação policial a quem implicitamente acusa de montar um ardil conducente à sua incriminação, o arguido manifesta-se incapaz sequer de qualquer auto-censura.

Apesar de manter um enquadramento social, familiar e mesmo profissionalmente, favorável, tendo inclusive sido bafejado pela sorte ao jogo, o arguido parece não aproveitar tais factores para prosseguir a sua vida de forma conforme ao direito.

Daí que revisitando os factos, a sua gravidade, grau de ilicitude e de culpa elevados, frisando-se a carreira que o arguido já consolidou pela mesma tipologia de crime e a personalidade desconforme que os factos e postura mantida em audiência revelam, bem como as elevadas necessidades quer de prevenção geral, quer de prevenção especial, conduzem a que o tribunal condene o arguido na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão».

Vejamos:

O crime de tráfico de estupefacientes previsto no artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1, é punível com prisão de 4 a 12 anos.

Presentes os critérios de determinação da medida concreta da pena enunciados no artº 71º do Cod. Penal, haveremos de concluir que, no caso, o arguido agiu com dolo directo, daí que intenso. É de algum relevo o grau de ilicitude dos factos, traduzido na detenção de cerca de 250 embalagens de heroína e cocaína, destinadas à venda a terceiros.

São significativas as exigências de prevenção geral, traduzidas na necessidade de manter a confiança da sociedade nos bens jurídico-penais violados; como significativas são, in casu, as exigências de prevenção especial, quando é certo que o arguido possui quatro condenações anteriores, pela prática de crimes da mesma natureza (em 3 ocasiões, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1, uma delas – aliás – em prisão efectiva, que cumpriu; noutra ocasião, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artº 25º, al. a) do mesmo diploma legal), evidenciando alguma indiferença relativamente à censura que lhe vem sendo feita.

Possui, contudo, enquadramento social, familiar e laboral.

E assim vistas as coisas, uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão, situada pouco acima do primeiro quinto da pena abstractamente aplicável, está longe de ser excessiva, afigurando-se-nos, outrossim, justa e equitativa, adequada a satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial, razão pela qual deverá ser mantida.

V. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando inteiramente o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC´s – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 25 de Outubro de 2023 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (relator)

Ana Brito (1ª adjunta)

Lopes da Mota (2º adjunto)

____


1. Acessível, como todos os demais, relativamente aos quais não for indicada fonte diversa, em www.dgsi.pt.

2. “É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21º. Em síntese: o artigo 25.º encerra um específico tipo legal de crime, o que pressupõe a sua caracterização como uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do artigo 21.º. A sua aplicação tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição do ilícito; pressupõe um juízo positivo sobre a ilicitude do facto, que constate uma substancial diminuição desta, um menor desvalor da acção, uma atenuação do conteúdo de injusto, uma menor dimensão e expressão do ilícito” – Ac. STJ de 22/10/2020, Proc. 476/17.7PALGS.S1, 5ª sec.

3. No mesmo sentido, cfr. Acs. STJ de 23/2/2022, Proc. 4/17.4SFPRT.P1.S1 e de 24/9/2020, Proc. 109/17.1GCMBR.S1.

4. No acórdão recorrido foi incluído no rol da factualidade não apurada o seguinte: “O arguido AA adquiria produtos estupefacientes, procedia ao referido transporte e entregava-os a diversos indivíduos, entre os quais o arguido BB, que procediam à sua venda a terceiros, em troca de quantias monetárias, na zona da ... (designadamente no Largo ..., na Rua ..., na Rua ..., Beco ... e na Rua ...)”. Daí, aliás, que careça de qualquer razoabilidade e, principalmente, de sustentação fáctica, a afirmação contida na mesma peça de que o recorrente guardou a droga que lhe viria a ser apreendida num andaime, “local onde os seus distribuidores a iriam buscar para colocar à venda em locais diversos, o que apenas não chega a acontecer ante a intercepção policial imediata” (subl. nossos).

5. Proc. 5/20.5GAETZ.E1.S1, rel. António Latas, acessível em www.dgsi.pt.

6. Na sua motivação de recurso, o recorrente pede a redução da pena aplicada “que lhe parece excessiva face ao seu grau de culpa e dentro da qualificação jurídica do arº 25º do Dec. Lei 15/93”; “Assim sendo, “in casu”, face ao conteúdo do Relatório Social entende-se que a pena a fixar, dentro da qualificação jurídica do artº 25º do Dec. Lei 15/93 não deve ser superior a 3 anos de prisão, ainda que efectiva face aos seus já longínquos antecedentes criminais” (subl. nossos), pretensão que retoma na conclusão 10ª da sua motivação.