Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 20 de janeiro de 2023, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ... (Juiz ...), do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que, em conhecimento superveniente do concurso, lhe aplicou uma pena única de 13 (treze) anos de prisão, procedendo ao cúmulo jurídico das penas aplicadas nos seguintes processos:
a) No processo n.º 163/14...., em que foi condenado pelo cometimento de 3 (três) crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, por via de acórdão proferido em 2/05/2016, transitado em julgado em 28/11/2016, nas penas parcelares de prisão de 3 (três) anos e 9 (nove) meses, 3 (três) anos e 6 (seis) meses e 3 (três) anos e 9 (nove) meses (pelos crimes de violência doméstica) e de 2 (dois) anos de prisão, após cumuladas entre si numa pena única de 7 (sete) anos de prisão efetiva;
b) Nos presentes autos (Processo n.º 1735/16.1T9STB) em que foi condenado por acórdão proferido em 11/02/2021, transitado em julgado em 6/09/2022, em virtude do cometimento de 492 (quatrocentos e noventa e dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, com referência aos artigos 171.º e 177.º, todos do Código Penal, em penas parcelares, respetivamente, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (por cada um de 14 crimes daqueles crimes), e de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão (por cada um dos restantes 478 crimes), após cumuladas entre si numa pena única de 9 (nove) anos de prisão efetiva.
2. Discordando da pena aplicada, que considera excessiva e pretende ver reduzida para medida não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, apresenta motivação de que conclui:
«(…)
4 – A pena aplicada, em cúmulo, de 13 anos de prisão efetiva ao Arguido é excessiva, apesar da liquidação a efetuar do tempo de reclusão já assegurado por conta de ambas as condenações em concurso, atento os critérios que se devem mostrar presentes na determinação da pena.
5 – Porquanto, evidencia o comportamento social, sociofamiliar, socioprofissional e prisional do Arguido ter devidamente interiorizado o desvalor das suas condutas, configurando o mesmo um verdadeiro e sincero arrependimento, adotando aquele uma postura socialmente aceite. Possibilitando, deste modo, avaliar positivamente a personalidade do Arguido, e permitindo-se realizar um juízo de prognose futuro muito favorável.
6 – O cumprimento da pena agora aplicada, não vai permitir ao Arguido acompanhar o crescimento e desenvolvimento dos dois filhos menores, nem os apoiar com vista aqueles alcançarem os estudos universitários, numa altura da sua vida em que a figura do progenitor pai junto dos mesmos se revela crucial.
7 – A realização do cúmulo das penas parcelares aplicadas ao Arguido visa, de alguma forma favorecê-lo, por via da ponderação das várias penas e aplicação de uma única pena a executar, e assim, permitir a sua mais fácil ressocialização.
8 – Pelo que, a medida da pena única aplicar in casu, não devia exceder os 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve proceder-se à revogação do douto Acórdão sob recurso, substituindo-se o mesmo por outro, que condene o Arguido a uma pena única de 5 anos prisão, suspendendo-se a sua execução por igual período.»
3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, apresentou resposta, no sentido da improcedência do recurso, dizendo, a concluir:
«1ª – Em relação de concurso nos presentes autos estão três crimes de violência doméstica (cometidos nas pessoas da então mulher do Recorrente e dos dois filhos menores/dependentes de ambos) um crime de detenção de arma proibida e quatrocentos e noventa e dois crimes agravados de abuso sexual de menores dependentes (praticados na pessoa da filha menor do Recorrente);
2ª – É manifestamente improcedente a pretensão do Recorrente de ver reduzida a pena única de treze anos de prisão concretamente aplicada para cinco anos de prisão (para mais, suspensa na sua execução);
3ª – Na verdade, a pena pretendida superaria apenas em um ano e três meses a pena parcelar mais elevada, aplicada a dois dos quatrocentos e noventa e seis crimes em concurso;
4ª – Ademais, tal pena seria significativamente inferior à pena única cominada no Procº nº 163/14.... do ... J4 pela prática de três crimes de violência doméstica e um crime de detenção de arma proibida (a mais baixa, de sete anos) e escassamente superior a metade da pena única anteriormente aplicada nestes autos pela prática de quatrocentos e noventa e dois crimes agravados de abuso sexual de menores dependentes (a mais alta, de nove anos, transitada em julgado apenas em 9 de Junho de 2022) – assim se desagravando de forma absolutamente incompreensível a pena única antes fixada no Procº nº 163/14.... e deixando, na prática, impunes os crimes apreciados nos presentes autos;
5ª – De qualquer forma, a pena única de prisão fixada no acórdão recorrido não é merecedora de qualquer censura;
6ª – Com efeito, ela reflecte adequadamente a natureza dos crimes em causa, a sua assinalável gravidade, a dispersão temporal e a pertinaz reiteração das condutas criminalmente puníveis, a existência de outras condenações para além daquelas que integraram o cúmulo jurídico efectuado nos autos e a personalidade do Recorrente que assim se revela, não sendo o tempo decorrido sobre a prática dos factos tão significativo que permita considerar esbatida a necessidade da pena para influenciar o seu comportamento futuro;
7ª – Aliás, a pena única aplicada quedou-se aquém do ponto médio da moldura abstracta aplicável ao concurso de crimes em apreço (três anos e nove meses a vinte e cinco anos), demonstrando que foram valoradas, na sua justa medida, as circunstâncias susceptíveis de beneficiar o Recorrente, designadamente algumas daquelas que ele vem agora esgrimir em seu favor;
8ª – A pena única de treze anos de prisão mostra-se equilibrada e justa, não deixando transparecer violação dos critérios estabelecidos no artº 77º nºs 1 e 2 do C.P. ou de qualquer outro comando legal, pelo que inexiste fundamento para qualquer redução.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido na íntegra o douto acórdão recorrido.»
4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido parecer, também no sentido da improcedência do recurso, em concordância com a Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, nos seguintes termos (transcrição):
«(…)
4. Seguindo de perto a fundamentação de facto e de direito inserta no douto acórdão cumulatório, e quanto à suposta severidade da pena única fi-xada ao recorrente (13 anos de prisão), sempre se dirá que, em face da sua culpa reflectida na factualidade apurada e das necessidades de prevenção geral e especial aqui sentidas, a presente pretensão recursiva terá, em nosso enten-der, que naufragar, atendendo à carência de qualquer fundamento legal que a suporte.
5. Numa outra perspectiva, fica demonstrada a coerência e correcta fundamentação do acórdão do Tribunal “a quo”, o qual, não se encontrando ferido de qualquer nulidade processual e não merecendo qualquer censura, deverá ser integralmente mantido.
6. Com efeito, in casu, o recorrente praticou factos, em concurso, de elevado grau de ilicitude, cometendo sucessivos crimes atentatórios de bens jurídicos protegidos, mormente os relacionados com a ofensa à integridade psicológica e ao saudável desenvolvimento da personalidade da vítima menor, na perspectiva da sua autodeterminação sexual, vítima essa seguramente humilhada com a actuação do arguido, seu progenitor, e colocada à mercê dos seus desejos concupiscentes do mesmo agressor.
7. Assim sendo, as exigências de prevenção geral são elevadas, pois é fundamental a tutela dos bens jurídicos referidos e a satisfação das expectativas da comunidade no respeito das normas violadas.
8. Em sintonia com o exposto, e seguindo de perto os fundamentos do acórdão colocado em crise, afigura-se-nos também que, e ressalvando melhor entendimento, não assiste razão ao arguido / recorrente, parecendo-nos que a medida da pena única aplicada é justa, proporcional e adequada, tendo em conta os concretos antecedentes criminais do mesmo arguido, a natureza e o número de crimes em que foi condenado, as elevadas exigências de prevenção geral e especial, bem como os critérios legais constantes dos arts. 40º, 70º, 71º e 77.º e 78.º, todos do Código Penal.
9. Acresce que, in casu, mostra-se integralmente observada a regra de punição do concurso de crimes a que se reporta o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.
10. A pena unitária foi fixada à luz do parâmetro da moldura legal do concurso abstratamente aplicável, sendo de assinalar, por outro lado, que o recorrente não aduziu um único argumento de ordem factual donde fosse possível demonstrar, sem grande esforço, que a pena unitária fixada nos autos foi severa demais e ao arrepio do estatuído nos artigos 40.º, 71.º, 72.º, 77.º e 78.º, todos do Código Penal.
11. Ora, considerando a factualidade fixada no douto acórdão impugnado, o grau de ilicitude dos factos subsumíveis aos crimes, em concurso, pelos quais foi condenado, os antecedentes criminais, a intensidade do dolo, as consequências nefastas do conjunto do seu comportamento, o escasso relevo, senão mesmo ausência, de circunstâncias favoráveis ao recorrente e tudo o mais que a lei manda atender na escolha da medida da pena na punição do concurso de crimes cometidos – cfr. artigo 77.º, nº 2, do Código Penal - há que concluir que a pena unitária concreta imposta ao recorrente não foi nem demasiado severa nem demasiado branda. Foi justa.
12. Considere-se, então e a esse propósito, a decisão recorrida, no que revela:
“ (…)
Assim, estatui o artigo 77º, n.º 2 do Código Penal que a pena a aplicar se encontrará “balizada”, no seu limite mínimo, pela mais alta das penas parcelares concretamente aplicadas, e no seu limite máximo, pelo somatório das penas concretamente a aplicar.
Posto isto, com relevância para o caso dos autos, temos que o limite mínimo da pena a aplicar se firmará tendo por referencial a pena parcelar em concurso mais elevada, a saber, 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, sendo o segmento máximo limitado face ao disposto no artigo 77º, n.º 2 do Código Penal, isto é, tendo por limite intransponível os 25 (vinte e cinco) anos.
No que aos critérios norteadores da determinação, dentro dos indicados limites, da medida concreta da(s) pena(s), haveremos de atender, desde logo, à natureza dos ilícitos que lhe são imputados, e os valores cuja tutela jurídica impor-ta assegurar, bem como o grau da ilicitude no cometimento dos mesmos, a modalidade do dolo e as necessidades de prevenção geral e especial que importa precaver, bem ressaltadas nas decisões parcelares.
Importará, nesse particular, atentar que as condenações em apreço se reportam a criminalidade de índole eminentemente pessoal (sob componentes verbais, física e sexualizada), sendo parcialmente comuns as vítimas dos crimes assumidos pelo arguido.
Igualmente importa salientar que a natureza, intensidade e reiteração ínsita aos comportamentos do arguido sujeitos a condenação permitem denotar do mesmo a imagem de um indivíduo de personalidade autoritária, pouco respeitador da condição humana, porventura propenso à assunção de comportamentos dignos de tutela incriminatória penal.
Apenas a cessação da conduta do arguido e contacto com as vítimas, muito por conta do carácter efectivo das sanções a que foi sujeito nos autos aqui sob concurso, e bem assim a regularidade do enquadramento familiar pelo mesmo registado anteriormente à reclusão, o poderão ainda beneficiar.
Na medida da pena única a aplicar, a balizar no intervalamento supra, deverá também tomar-se, por referencial, a medida dos sancionamentos únicos an-tes aplicados, impondo-se naturalmente que a nova pena única a apurar não venha a “desvirtuar” ou “desautorizar” (“esvaziando”) as anteriores condenações aplicadas.
Nesse desiderato, afigura-se-nos que a pena única a firmar nesta sede deverá ser balizada entre o primeiro terço e a metade da moldura abstractamente aplicável.
Tudo visto e ponderado, e atentos os fundamentos invocados e os elementos supracitados, e no quadro de balizamento de penas acima explicitado julga-se adequada a aplicação da pena única de 13 (treze) anos de prisão.”
17. Em confluência com o que vem de expor-se, dir-se-á que o conjunto das condutas criminosas concretizadas pelo recorrente demonstra, claramente, uma personalidade indiferente aos valores tutelados pelas normas jurídicas violadas, o que inculca uma elevação do grau das exigências de prevenção especial e do limite da culpa.
18. Neste enquadramento, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada e no contexto em que os factos ocorreram, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma, da confiança comunitária na prevalência do direito.
19. Nestas circunstâncias, e sem pretender deter sobre a problemática de medida da pena em sede de escolha de um dos critérios traçados pela doutrina e pela jurisprudência: aquele que toma como ponto de referência inicial a média entre o limite mínimo e máximo (Ac. da Relação do Porto de 7/03/84, in Col. Jur. ano IX, tomo 2, pág. 247 e Ac. do S.T.J. de 19/12/84, in BMJ 342, pág. 233) ou aquele que faz apelo a uma " interpretação rígida" dos princípios traçados pelo artigo 72º do Código Penal como único factor para determinação de medida da pena ( Ac. da Rel. de Coimbra de 26/06/85, in Col. Jur., Ano X, tomo 3, pág. 125), a pena fixada nos autos foi justa, atendendo à necessidade de efectiva reacção criminal contra os crimes em concurso cometidos, quer dirigida ao facto cometido pelo arguido apreciado objectivamente, quer à culpa do próprio agente na formação da sua personalidade.
20. Nestes termos, e salvo melhor entendimento, afigura-se-nos que a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da punição do concurso de crimes, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação de todos os factores reputados relevantes à luz do disposto nos artigos 40.º, 71.º, 72.º, 77.º e 78.º, todos do Código Penal, sendo, em função disso, aplicada uma pena unitária de prisão efectiva justa e adequada, não merecendo qualquer censura.
21. É, assim, de entender que essa pena, porque respeita os parâmetros decorrentes dos critérios legais fixados nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal, é justa, adequada e proporcional à gravidade dos factos e à perigosidade do agente, não se descortinando fundamento para que a mesma seja reduzida.
22. E, pelo seu quantum, está obviamente afastada a possibilidade de suspensão na sua execução (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal), para além de que, e como salienta o Ministério Público na 1ª instância, nenhuma das penas que agora foram englobadas no cúmulo jurídico em presença, qualquer delas fixada abaixo dos 5 anos de prisão, foi suspensa na sua execução, antes assumiu carácter efectivo, precisamente por não ser possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que aqui, e agora, teria plena aplicação, se fosse o caso.
23. Pelo exposto, e secundando a posição da Digna Procuradora da República junto da 1ª instância e, por conseguinte, subscrevendo na íntegra, com a devida vénia, os fundamentos exarados no acórdão condenatório, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso interposto e pela manutenção do decidido.»
5. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.
6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi remetido à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.
II. Fundamentação
O acórdão recorrido
7. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
«Factos correspondentes ao processo n.º 163/14....:
1) O arguido e BB começaram a viver juntos como marido e mulher no ano de 1993; contraíram casamento em .../05/1995; divorciaram-se em .../09/6/2015; têm dois filhos em comum, CC, nascido a .../.../1994 e DD, nascida a .../07/1998.
2) Pelo menos desde então, AA e BB viveram com os filhos de ambos em ..., ..., coabitando numa casa de pertença dos progenitores do arguido e de frente à habitação dos mesmos.
3) Pelo menos desde o ano de 2005, o arguido e EE mantiveram um relacionamento amoroso extraconjugal, no seio do que nasceram dois filhos, FF, nascido a .../.../2006, e DD, nascida a .../.../2009.
4) Após a denúncia que deu origem ao processo comum singular n.º 40/06...., BB e os filhos foram acolhidos numa instituição de proteção de vítimas de violência doméstica, que vieram a abandonar, e regressaram para ..., porque o arguido os convenceu que alteraria o seu comportamento e que cuidaria bem deles.
5) O arguido levou a mulher BB e os filhos de ambos para viverem com ele numa casa pertencente aos seus pais, o que ocultou de terceiros, enquanto ele mantinha publicamente o relacionamento amoroso com EE.
6) Não obstante manter o relacionamento conjugal com BB, proibiu-a e aos filhos de ambos de o manifestarem perante terceiros.
7) O arguido tornava-se mais agressivo quando se embriagava, exigia frequentemente obediência incondicional à mulher e aos filhos e apelidava-a de “puta”, “porca”, “filha da puta” e “cabra”; dizia “não vales nada”; ameaçava-a de morte.
8) O arguido costumava mandar o filho CC consultar o extrato da conta de telemóvel de EE através da internet para controlar os contactos feitos por aquela.
9) O arguido sempre teve armas de fogo em casa e obrigava o filho CC a fazer a limpeza das mesmas, bem como, de há cerca de 6 anos, o obrigava a furtar dinheiro da casa da avó materna.
10) Desde os 15 anos até aos 19 anos de idade de CC, o arguido obrigou o filho a conduzir veículos automóveis, não obstante aquele não ser titular de carta de condução.
11) Até 11/11/2014, e por várias vezes, o arguido obrigou o filho CC a subtrair gasóleo pertencente ao avô paterno sem autorização ou conhecimento do respetivo dono.
12) O arguido não batia no filho CC porque, temendo-o, este baixava a cabeça em sinal de submissão e este sempre obedeceu ao pai com medo que este lhe fizesse mal.
13) No dia 6/02/2011, cerca das 16h30m, EE conduzia o seu veículo automóvel, transportando o arguido e a filha de ambos, DD, então com 18 meses de idade.
14) Ao chegarem perto da Quinta ..., em ..., o arguido desentendeu-se com EE e mandou-a parar o veículo, ameaçou-a de morte e agrediu-a com bofetadas na face direita, murros na cabeça e puxões de cabelos.
15) Durante tais agressões, por circunstâncias não concretamente apuradas, DD, filha do arguido e de EE, que se encontrava com os pais no interior da viatura, foi atingida na cabeça, sofrendo um hematoma.
16) De seguida, o arguido saiu do veículo e procurou dirigir-se para o lugar de condutor, sendo que EE logrou trancar a porta e sair do local, dirigindo-se com a filha ao Hospital do ..., onde receberam tratamento médico.
17) Como consequência direta e necessária de tais agressões EE sofreu hematoma no pómulo esquerdo, doloroso à palpação e dor à palpação do pavilhão auricular direito, o que lhe determinou 5 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
18) Por seu turno, e na sequência do referido em 15), DD sofreu dores e hematoma na região frontal esquerda, o que lhe determinou 8 dias de doença.
19) No dia 15/03/2011, cerca das 11h, EE, na companhia do arguido e da sua filha DD, dirigiu-se ao posto territorial da GNR ..., onde procedeu à entrega de um requerimento assinado, entre o mais, negando os factos denunciados, recusando prestar declarações e desistindo da queixa apresentada.
20) Em data não determinada, entre os anos de 2012 e 2014, na presença da filha DD, o arguido agrediu BB, puxando-lhe os cabelos e desferindo-lhe vários murros na face, tronco e cabeça.
21) Em data não determinada, em março de 2014, o arguido enfureceu-se com BB, em razão de ser informado no serviço que não comparecia por necessidade de assistência na doença de DD, sua filha, que ditou o seu transporte e consulta por especialistas do Hospital ..., em ....
22) Na sequência do que o arguido a agrediu com pontapés em várias partes do corpo, bofetadas na face e puxões de cabelos, causando-lhe dores.
23) Por várias vezes e em datas não determinadas, mas ao longo da respetiva vivência conjugal, o arguido insultou e ameaçou de morte BB, chegando a exibir-lhe armas de fogo.
24) Ultimamente, o arguido passou também a dirigir a sua fúria contra a filha DD, sendo que, numa ocasião, DD saiu de casa da avó quando o arguido lá chegou, pelo que o arguido lhe bateu sem qualquer motivo quando chegou a casa.
25) Em data não determinada, no ano de 2014, o arguido esbofeteou a filha DD e atirou-a contra as paredes, móveis da sala e projetou-a contra o sofá, causando-lhe dores e hematomas na face e membros.
26) O arguido contraiu vários créditos bancários, que não liquidou, pelo que o vencimento de BB foi penhorado, o que causou graves dificuldades financeiras a esta e aos seus filhos.
27) Não obstante, o arguido decidiu comprar um carro e exigiu que, para pagamento do respetivo preço, o filho CC contraísse um empréstimo bancário.
28) No dia 11/11/2014, BB opôs-se a tal intenção devido às limitações financeiras da família e porque não queria que o filho fosse prejudicado.
29) Com receio de que o arguido fizesse mal a ela e aos filhos, BB pediu ajuda às autoridades e foram todos acolhidos numa instituição de apoio às vítimas de violência doméstica.
30) Feitas buscas domiciliárias na residência do arguido, dos seus pais e de EE, foram encontrados os seguintes objetos pertencentes ao arguido: 13 telemóveis; uma espingarda de caça de funcionamento tiro a tiro, de 1 cano, com o n.º de série ...60, calibre 12mm, cujo cano de alma lisa media 71 cms, classificada como arma de fogo de classe D; 1 catana com lâmina medindo 36 cms de comprimento; 1 moca com 84 cms de comprimento; 1 faca de mato; 1 sovaqueira; um total de 141 munições para arma de fogo; 1 pressão de ar calibre 4,5 mm da marca Cometa, n.º 15353, com mira telescópica; 1 arma de pressão de ar calibre 4,5 mm, sem marca, n.º E......; 1 pistola de alarme.
31) A arma de caça apreendida não se mostrava manifestada nem registada, o que era do conhecimento do arguido.
32) O arguido não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma ou autorização que lhe permita deter a arma e munições supra descritas, o que era do seu conhecimento, não obstante quis mantê-las na sua posse e fez uso de armas de fogo para ameaçar BB conforme supra descrito.
33) Como consequência da atuação do arguido, os ofendidos BB, DD e CC, sentiram-se humilhados, com medo e inquietação, viveram num clima de terror e em constante sobressalto, o que perturbou o seu bem-estar físico e psíquico.
34) O arguido atuou da forma descrita com a intenção de humilhar, causar medo e inquietar os ofendidos, de modo a subjuga-los à sua vontade, bem sabendo que isso afetava a sua saúde e bem-estar, o que quis e conseguiu.
35) O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo qua as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Factos relativos aos presentes autos (processo n.º 173/16....):
36) O arguido AA e BB começaram a viver juntos como marido e mulher durante o ano de 1992, contraíram matrimónio (entretanto dissolvido) em 27 de maio de 1995 e são progenitores em comum de DD, nascida em .../.../1998;
37) A partir de, pelo menos, 2 de julho de 2012, altura em que DD fez 14 anos de idade, o arguido começou a dizer à sua filha e vítima que tinha “um rabo redondo” e “um belo par de mamas”.
38) E simultaneamente, quando chegava a casa, sita em Rua ..., sita em ..., ..., onde residia com a vítima, a sua mãe e o outro filho de ambos, CC, vindo do trabalho, começou a agarrar DD, apertando-a contra o seu corpo, colocando as mãos na parte superior do corpo da menor, sendo umas vezes por cima da roupa que esta envergava, e outras colocando as mãos por baixo da roupa daquela, nestas alturas estabelecendo contacto físico direto com a pele da vítima.
39) Tais situações ocorriam logo quando o arguido chegava a casa, em qualquer uma das divisões em que encontrasse a sua filha e ao longo da noite, antes de todos irem dormir, inclusive no sofá da sala, quando ali se encontrava com a vítima a ver televisão, à noite, depois do jantar.
40) Era também frequente, quando o arguido e a vítima se encontravam no interior da residência, que aquele exigisse que a vítima se sentasse no seu colo, altura em que lhe apalpava, por vezes apertando, os seios, a barriga, as ancas e o rabo, umas vezes colocando as mãos por cima da roupa da menor, outras introduzindo-as por baixo da roupa.
41) Por 14 ocasiões, em datas não concretamente apuradas mas compreendidas entre 2 de julho de 2012 e a data limite a definir em 44), o arguido exigiu à vítima que se deitasse junto a si na cama de casal que existia na casa, altura em que a rodeou com os seus braços e as suas pernas e, com as mãos, apalpou-lhe os seios, as coxas e o rabo, por baixo do pijama que esta trazia vestida, ao mesmo tempo que pressionou o seu pénis ereto, por cima da roupa que ambos envergavam, contra as nádegas de DD.
42) Por vezes, aquando dos factos supra descritos, DD sentindo repulsa pelo comportamento do seu pai, afastava-se dele ou empurrava-o, sendo que outras vezes, por causa do medo que sentia do seu pai, que sabia ter um comportamento violento e irascível, sujeitou-se à prática de tais factos.
43) A frequência das interações explicitadas supra, em especial as descritas em 40) e 41), era de, pelo menos, 4 vezes por cada semana, sendo que, destas, a ação indicada em 41) não se repetiu além do número já ali indicado.
44) O arguido praticou estes factos, desde a data supra indicada em 37) até ao dia 11 de novembro de 2014, data aquela em que a vítima, o seu irmão e a sua mãe, foram acolhidos em casa abrigo, não mais residindo com o arguido, tanto mais que este foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva, no dia 27 de janeiro de 2015, no âmbito do processo 163/14...., à ordem do qual veio o arguido a ser condenado a pena de 7 anos de prisão efetiva, entre outros crimes, pela prática de três crimes de violência doméstica, praticados contra a vítima, a mãe desta e o filho de ambos.
45) O arguido começou a praticar tais factos contra a sua filha a partir da data supra indicada, porque se apercebeu que a vítima apresentava já características corporais de uma jovem mulher e não apenas de uma criança.
46) Ao praticar os factos supra descritos contra DD, sua filha, o arguido sabia que a menor tinha idade compreendida entre 14 e 16 anos de idade, e que não possuía maturidade suficiente para se autodeterminar sexualmente.
47) O arguido sabia da relação de afinidade e dependência desta para consigo, que sempre fez parte do seu agregado familiar desde o nascimento, assim como sabia que lhe incumbia prover pelo seu sustento, educação e segurança, o que não o inibiu de atuar do modo descrito.
48) O arguido atuou visando satisfazer os seus instintos sexuais, sabendo que atentava contra o desenvolvimento da menor e que ofendia os seus sentimentos de pudor e vergonha, o que representou quis e conseguiu.
49) Em tudo o supra descrito o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a sua filha, bem sabendo que agia contra a sua vontade.
50) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Das penas parcelares aplicadas nos autos supra e respetivo estado de cumprimento:
51) No Processo n.º 163/14.... foi o arguido condenado pelo cometimento de 3 (três) crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, alíneas c) e d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, por via de acórdão proferido em 2/05/2016, devidamente transitada em julgado em 28/11/2016, nas penas parcelares de prisão de 3 (três) anos e 9 (nove) meses, 3 (três) anos e 6 (seis) meses e 3 (três) anos e 9 (nove) meses (pelos crimes de violência doméstica) e de 2 (dois) anos de prisão, após cumuladas entre si numa pena única de 7 (sete) anos de prisão efetiva;
52) No âmbito dos indicados autos, o arguido cumpriu pena entre 27/01/2015 (data em que iniciou sujeição a medida coativa de prisão preventiva) e 27/11/2022, sendo esta última data correspondente aos 5/6 da pena única de 7 anos ali aplicada, momento em que lhe foi concedida pelo TEP liberdade condicional.
53) Nos presentes autos (Processo n.º 1735/16.1T9STB) o arguido foi condenado por acórdão proferido em 11/02/2021, devidamente transitado em julgado em 6/09/2022, em virtude do cometimento de 492 (quatrocentos e noventa e dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados, p. e p. pelos artigos 172º, n.º 1, com referência aos artigos 171º e 177º, todos do Código Penal, em penas parcelares, respetivamente, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (por cada um de 14 crimes daqueles crimes), e de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão (por cada um dos restantes 478 crimes), após cumuladas entre si numa pena única de 9 (nove) anos de prisão efetiva.
54) Nos presentes autos, o arguido iniciou o cumprimento da pena aplicada nestes autos em 18/07/2022, o que vem fazendo até ao presente, perspetivando-se o términus da pena única aplicada (9 anos) para 18/01/2031.
55) Não regista, além do período de cumprimento de pena, qualquer outro período detentivo sofrido nestes autos.
Do contexto vivencial do arguido:
56) O AA é natural da ... – ..., sendo o único filho do casal.
57) O seu processo de crescimento decorreu junto dos pais, numa comunidade rural em monte isolado, sendo a economia familiar proveniente do trabalho rural de ambos os progenitores que se dedicavam em exclusivo à criação, produção e venda de animais ovinos e de produtos manufaturados com matérias produzidas por estes.
58) O seu grupo familiar movimentou-se sempre num quadro económico estável e suficiente para assegurar o pagamento das despesas.
59) Por volta dos 20 anos de idade (em 1990) que iniciou uma relação de namoro com BB, com quem passou a coabitar e contraiu matrimónio em 1995, nascendo de tal relação dois filhos, entretanto já adultos.
60) O casal organizou a sua vida em ..., permanecendo a viver numa casa cedida pelos pais de AA, localizada na mesma rua onde estes viviam.
61) No ano de 2005, o arguido iniciou relacionamento extra-conjugal com EE, do qual vieram a nascer outros dois filhos.
62) Quando BB abandonou o lar conjugal, acompanhada dos dois filhos (entre os quais a ofendida), passando a residir em instituição de proteção de vítimas de violência doméstica, EE mudou-se com os filhos do casal para a casa que era de família e iniciou vida em comum com o arguido.
63) Mais tarde, AA conseguiu localizar a mulher e os dois filhos forçando-os a voltar a fazer uma vida em comum, embora desta vez em segredo, uma vez que havia já assumido publicamente a relação marital com EE, mantendo assim os dois relacionamentos afetivos em simultâneo.
64) Em 2014 a mulher voltou a solicitar apoio às autoridades competentes para ela e para os filhos e, em 2015, conseguiu o divórcio na sequência da queixa que deu origem ao processo n.º 163/14.....
65) AA apresenta um percurso escolar pouco investido, tendo abandonado os estudos por volta dos 16 anos de idade, sem conseguir concluir o 6º ano de escolaridade.
66) Posteriormente obteve a licença de condução para conduzir e manobrar máquinas agrícolas e iniciou funções laborais junto do progenitor na agricultura, registando um percurso mais ou menos contínuo nesta área, quer por conta própria, quer por conta de outrem.
67) Também assumiu experiências em empresas de prestação de trabalho temporário em várias áreas laborais, mas sobretudo relacionadas com o complexo industrial da zona de ....
68) No período temporal antecedente à última reclusão do arguido, o mesmo trabalhava como técnico de manutenção no Hospital do ....
69) AA assumiu hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas desde muito jovem, problemática que potencia o seu comportamento violento.
70) Declara ter entretanto superado tais temáticas aditivas.
71) Em data que precedeu à sua reclusão, AA mantinha vida em comum com EE e os filhos do casal na casa propriedade dos seus pais em ....
72) Após a sua reclusão a companheira regressou para junto dos seus pais com os filhos, mantendo residência em ....
73) Os filhos desta relação continuam a viver com a mãe.
Do contexto prisional (atual) do arguido:
74) AA encontra-se presentemente no Estabelecimento Prisional ..., tendo sido recentemente transferido para o mesmo oriundo do Estabelecimento Prisional de ....
75) Formulou pedido de transferência para Estabelecimento Prisional mais próximo da área habitual de residência (...), aguardando resposta a tal pedido.
76) Não se encontra inserido em qualquer atividade ocupacional/laboral.
77) Recebe, uma vez por mês, as visitas da família com quem antes à reclusão vinha residindo (companheira e filhos menores), sendo a escassez de visitas relacionada com a elevada distância física e os elevados custos de deslocação.
78) Após cumprimento da pena em curso, perspetiva regressar para o núcleo vivencial em que se mostrava antes inserido, retomando a convivência familiar e o exercício laboral.
Do passado criminal do arguido:
79) Além das condenações aqui a sujeitar a cúmulo (aquelas a que se referem os pontos 51) a 55), do CRC do arguido constam ainda averbadas as seguintes condenações penais:
a) por crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11º, n.º 1, alínea a) do DL n.º 454/93, de 28/12, por factualidade ocorrida em 8/0/199, sancionada por sentença de 10/10/1995, na pena de 210 dias de multa (Proc. N.º ...5 do Tribunal Judicial ...);
b) por crime da mesma natureza, ocorrido em 18/02/1993, sancionado por sentença de 15/12/1997, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob condição, penalidade essa que viria a ser declarada prescrita (Proc. N.º 275/97.... do Tribunal Judicial ...);
c) por crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea a) e 3 do Código Penal (à data vigente), por factos tidos lugar em 15/02/1995, sancionados por sentença de 9/02/1999, na pena de 100 dias de multa (Proc. N.º ...8 do Tribunal Judicial ...);
d) pelo cometimento de 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º do Código Penal, praticado em 19/01/2003, sancionado por sentença de 21/02/2003, nas penas de 60 dias de multa e proibição de conduzir pelo período de 3 meses (Proc. N.º 27/03.... do ... Juízo do Tribunal de ...);
e) por cometimento do mesmo tipo de ilícito, tido lugar em 15/11/2003, sancionado por sentença de 20/10/2003, nas penas de 70 dias de multa e proibição e conduzir pelo período de 3 meses e 15 dias (Proc. N.º 56/03.... do ... Juízo do Tribunal de ...);
f) por cometimento de novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º do Código Penal, por factos tidos lugar em 17/04/2004, sancionados por sentença de 20/01/2005, transitada em julgado em 22/02/2005, nas penas de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 16 meses, e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses (Proc. N.º 160/04.... do Tribunal Judicial ...);
g) por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, ocorrido em 28/02/2010, sancionado por sentença de 26/03/2010, transitada em julgado em 26/04/2010, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 1 ano sob condição de acompanhamento no domínio da alcoologia, e proibição de conduzir pelo período de 1 ano (Proc. N.º 77/10.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ...);
h) pela autoria de 1 crime de condução perigosa de veículo e de 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p., respetivamente, pelos artigos 291º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, e 86º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, ambos ocorridos em 17/10/2009, por sentença datada de 30/09/2010, transitada em julgado em 3/11/2010, na pena única de 1 ano de prisão, substituída por trabalho comunitário, e 1 ano e 2 meses de proibição de conduzir (Proc. N.º 20/09.... do ... – Juiz ...);
i) por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, por factualidade tida lugar em 30/05/2009, sancionada por sentença de 3/03/2011, transitada em julgado em 4/04/2011, na pena de 6 meses de prisão, substituída por trabalho comunitário, e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses (Proc. N.º 289/09.... do ... – Juiz ...).»
Âmbito e objeto do recurso
8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena única de prisão superior a 5 anos.
Limita-se ao reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (artigos 432.º, n.º 2, e 434.º do CPP), não vindo invocados fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o citado artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que não se identificam.
9. Tendo em conta as conclusões da motivação, este Tribunal é, pois, chamado a apreciar e decidir se a pena única aplicada, de 13 anos de prisão, é excessiva e se, tendo-o sido, deve ser reduzida, como pretende o recorrente, para medida não superior a 5 anos de prisão e suspensa na sua execução.
Da medida da pena
10. Nos termos do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. De acordo com o artigo 78.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, esta regra é aplicável quando, após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória por qualquer desses crimes, se mostrar, perante condenações transitadas em julgado, que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes.
Decidindo controvérsia jurisprudencial a propósito do momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes em caso de conhecimento superveniente, este Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que tal momento “é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2016, DR I, n.º 111, de 9.6.2016).
11. A determinação da pena única efetua-se através de uma nova sentença que efetue o cúmulo jurídico, mediante realização de audiência e das diligências necessárias (artigo 472.º do CPP), sendo territorialmente competente para o efeito o tribunal da última condenação, nos termos do artigo 471.º do CPP, o qual “por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e atualizados, nomeadamente, quanto aos factos e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e atual do trajeto de vida do arguido”, sendo irrelevante a data do respetivo trânsito [acórdão de 6.1.2010, Proc. 98/04.2GCVRM-A.S1 (Pereira Madeira), em www.dgsi.pt].
Como se consigna no acórdão recorrido, “Os processos em referência contam com decisões deviamente transitadas em julgando, versando sobre factualidade globalmente compreendida entre 2011 e 2014, isto é, sendo todos os factos ali em apreço praticados em data temporalmente anterior à de ocorrência do primeiro trânsito em julgado de ambas as condenações (ocorrido em 28/11/2016 no processo n.º 163/14). São os presentes autos e é este Tribunal Coletivo competente para apreciar cúmulo superveniente das penas, a abarcar as penalidades aplicadas nos presentes autos e nos Processos indicados supra, isto por força do estatuído no artigo 471º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, porquanto ali se encontram aplicadas penas de prisão de execução efetiva.”
12. A determinação da pena única mostra-se fundamentada nos seguintes termos:
«Assim, estatui o artigo 77º, n.º 2 do Código Penal que a pena a aplicar se encontrará “balizada”, no seu limite mínimo, pela mais alta das penas parcelares concretamente aplicadas, e no seu limite máximo, pelo somatório das penas concretamente a aplicar.
Posto isto, com relevância para o caso dos autos, temos que o limite mínimo da pena a aplicar se firmará tendo por referencial a pena parcelar em concurso mais elevada, a saber, 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, sendo o segmento máximo limitado face ao disposto no artigo 77º, n.º 2 do Código Penal, isto é, tendo por limite intransponível os 25 (vinte e cinco) anos.
No que aos critérios norteadores da determinação, dentro dos indicados limites, da medida concreta da(s) pena(s), haveremos de atender, desde logo, à natureza dos ilícitos que lhe são imputados, e os valores cuja tutela jurídica importa assegurar, bem como o grau da ilicitude no cometimento dos mesmos, a modalidade do dolo e as necessidades de prevenção geral e especial que importa precaver, bem ressaltadas nas decisões parcelares.
Importará, nesse particular, atentar que as condenações em apreço se reportam a criminalidade de índole eminentemente pessoal (sob componentes verbais, física e sexualizada), sendo parcialmente comuns as vítimas dos crimes assumidos pelo arguido.
Igualmente importa salientar que a natureza, intensidade e reiteração ínsita aos comportamentos do arguido sujeitos a condenação permitem denotar do mesmo a imagem de um indivíduo de personalidade autoritária, pouco respeitador da condição humana, porventura propenso à assunção de comportamentos dignos de tutela incriminatória penal.
Apenas a cessação da conduta do arguido e contacto com as vítimas, muito por conta do caráter efetivo das sanções a que foi sujeito nos autos aqui sob concurso, e bem assim a regularidade do enquadramento familiar pelo mesmo registado anteriormente à reclusão, o poderão ainda beneficiar.
Na medida da pena única a aplicar, a balizar no intervalamento supra, deverá também tomar-se, por referencial, a medida dos sancionamentos únicos antes aplicados, impondo-se naturalmente que a nova pena única a apurar não venha a “desvirtuar” ou “desautorizar” (“esvaziando”) as anteriores condenações aplicadas.
Nesse desiderato, afigura-se-nos que a pena única a firmar nesta sede deverá ser balizada entre o primeiro terço e a metade da moldura abstratamente aplicável.
Tudo visto e ponderado, e atentos os fundamentos invocados e os elementos supra citados, e no quadro de balizamento de penas acima explicitado julga-se adequada a aplicação da pena única de 13 (treze) anos de prisão.
À pena única acabada de aplicar será posteriormente a descontar, em liquidação oportunamente a efetuar, o tempo de reclusão já assegurado por conta de ambas as condenações em concurso.
Quanto à forma de execução da pena supra:
Sendo a pena única apurada em medida superior a 5 (cinco) anos, mostra-se inviável a suspensão de pena, impondo-se assim que a mesma se cumpra sob regime de efetividade (mantendo inalterados os pressupostos e escolhas punitivas das decisões condenatórias aqui sob concurso.»
13. Retomando o que se afirmou em acórdãos anteriores (por todos, o acórdão de 6.7.2022, no Proc. 571/19.8T8AVR.P1.S1, que se segue de perto), a pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável), que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).
Em caso de conhecimento superveniente, como é o dos autos, esse procedimento encerrou-se definitivamente, quanto às penas que o integram, com o trânsito em julgado da decisão relativamente a cada uma delas, nos processos em que foram aplicadas, havendo que anular, como também sucede neste caso, os cúmulos jurídicos anteriores efetuados relativamente a parte das penas que devem integrar o cúmulo por conhecimento posterior das relações de concurso.
Assim definida a moldura do concurso, deve o tribunal determinar a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, isto é, a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, contribuindo para essa personalidade, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1). O substrato da medida da pena, devendo incluí-los, não pode, pois, bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender às circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (assim, acórdão de 19.2.2020, Proc. n.º 161/10.0GHSTC.E2.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada).
14. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento do agente. Há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido e ao “fio condutor presente na repetição criminosa”, procurando estabelecer uma “relação desses factos com a personalidade do agente”, com sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza destes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto “tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa”, isto é, “se significará já a expressão de algum pendor” para uma “carreira”, de uma “inclinação” para a prática de crimes, ou se, diversamente, a repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de “fatores meramente ocasionais” [assim, o citado acórdão de 6.7.2022, citando-se o que se afirmou em anteriores acórdãos, nomeadamente nos acórdãos de 18.5.2022, Proc. 2711/20.5T8STR.E1.S1, de 2.12.2012, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1, de 21.11.2018, ECLI:PT:STJ:2018:114.14.0JACBR. A.S1.73, citando-se, entre outros, os acórdãos de 06-02-2008 (Proc. n.º 4454/07), de 18.1.2012, Proc. 34/05.9PAVNG.S1 (Raul Borges), de 14.07.2016 e de 17.06.2015 (Proc. 4403/00.2TDLSB.S1) (Pires da Graça) e 488/11.4GALNH (Maia Costa), em www.dgsi.pt]. Convocando o afirmado em decisões anteriores: “Na avaliação da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291).
15. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. A consideração destes fatores por referência à globalidade dos factos, na determinação da pena única, não implica violação do princípio da proibição da dupla valoração relativamente a fatores anteriormente tidos em conta na determinação das penas singulares aplicadas aos crimes em concurso.
Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).
16. Retomando considerações produzidas em acórdãos anteriores (por todos, o acórdão de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1, em www.dgsi.pt, e convocando, da doutrina, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357):
A projeção destes princípios na determinação da pena justifica-se pela necessidade de proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito e “pelas qualidades desvaliosas da personalidade que se exprimem no facto”, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2).
Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).
Na consideração das exigências de prevenção, no momento da determinação da pena, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.
Como se tem sublinhado, é na determinação e consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, os acórdãos de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit.).
Devendo, por conseguinte, a operação de determinação da pena alhear-se de considerações de natureza geral pressupostas pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração de fatores relevantes para a determinação da medida da pena (como se observou, designadamente, nos acórdãos de 18.5.2022, Proc. 2711/20.5T8STR.E1.S1, e de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1, www.dgsi.pt).
17. No seu conjunto, são muito graves os factos praticados.
Os atos repetidos de elevada violência física, verbal e psicológica exercidos sobre as vítimas ao longo de anos, que levaram o cônjuge e os filhos a abandonar a casa em que viviam e a ser acolhidos numa instituição de proteção de vítimas de violência doméstica e a solicitar ajuda às autoridades, o comportamento posterior do arguido em relação a estas, num ambiente de autoritarismo, terror e intimidação, agravado pela posse de armas e pelo excesso de bebidas alcoólicas, e a repetição regular, por quase três centenas de vezes, pelo menos quatro vezes por semana, dos atos de abuso sexual da sua filha menor, durante cerca de dois anos, com elevadíssimo grau de violação dos deveres que se lhe impunham para a sua proteção, saúde, educação e bem-estar, causando-lhe medo e repulsa, o que levou também ao seu acolhimento em casa de abrigo, revelam um comportamento altamente censurável, pelo muito elevado grau de ilicitude e pela gravidade das suas consequências, militando, assim, severamente contra o arguido, por via da culpa, com projeção de caraterísticas muito desvaliosas de personalidade.
O mesmo ocorre por via das razões de prevenção, não se identificando elementos que evidenciem capacidade e preparação do arguido para manter uma conduta lícita, com respeito por valores pessoais e das regras de vida em sociedade. Embora respeitem a crimes diversos, os antecedentes criminais mostram repetição de crimes cometidos em estado de embriaguez, elemento que também está presente na execução dos crimes por que agora vem condenado. O que não pode deixar de ser valorado negativamente, a reforçar as demonstradas necessidades de socialização.
O conjunto dos factos praticados não podem, nas circunstâncias provadas, ser consideradas como resultado de meros fatores ocasionais, podendo afirmar-se que a repetição dos atos criminosos, nos contextos descritos, radica em razões de personalidade, que justificam a aplicação da pena.
Embora se possa admitir um percurso pessoal positivo do arguido, que vem invocado no recurso e que poderá associar-se ao efeito da prisão, não podem estes elementos constituir objeto de valoração própria, pois que se não encontram refletidos na matéria de facto provada (cfr. nomeadamente, os pontos 74 a 78). Valerão, se for o caso, no âmbito do processo de execução da pena.
18. Assim, tendo em conta a moldura abstrata da pena aplicável aos crimes em concurso – de 3 anos e 9 meses a 25 anos de prisão – e os fatores relevantes, em particular, o critério especial definido no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, não se encontra motivo de discordância quanto à medida da pena aplicada, a qual se encontra justificada pela diversidade, frequência, número e concreta gravidade dos factos, no seu conjunto, sem ocorrer violação dos critérios de adequação e proporcionalidade, na consideração dos limites impostos pela culpa e das necessidades de proteção dos bens jurídicos e de reintegração que a sua aplicação visa realizar (artigo 40.º do Código Penal).
Pelo que se conclui pela improcedência do recurso.
19. Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Sendo a pena fixada em medida superior a 5 anos de prisão, não há que conhecer da questão da suspensão da execução da pena.
Quanto a custas
20. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
III. Decisão
21. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
Supremo Tribunal de Justiça, 29 de junho de 2023.
José Luís Lopes da Mota (relator)
Maria Teresa Féria de Almeida
Sénio Manuel dos Reis Alves