Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
69/18.1TREVR-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: ESCUSA
JUIZ
IMPARCIALIDADE
QUEIXA
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/ RECUSA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Tal como é apresentada a condição do n.º 1 do art. 43.º do CPP, pode-se integrar nela uma variedade de situações que, analisadas caso a caso, permitam considerar que aquela suspeita existe; e existindo uma suspeita, a confiança comunitária nos juízes, e no sistema judicial e no Estado de Direito, fica abalada.
II - A partir do pedido apresentado pelo Requerente, e dos elementos juntos a estes autos, verificamos que o Senhor Dr. ... apresentou uma queixa-crime contra o Senhor Desembargador; tal facto é por si só suficiente para que, aos olhos do cidadão médio, se coloquem dúvidas sobre a imparcialidade do Senhor Juiz Desembargador na decisão que venha a tomar.
III - O que está em causa não saber se o Senhor Juiz Desembargador iria ou não manter a sua imparcialidade, mas sim o de defendê-la de uma suspeita, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida, e através da aceitação do seu pedido de escusa reforçarmos a confiança da comunidade nas decisões judiciais.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 69/18.1TREVR-B.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. O Senhor Juiz Desembargador AA, em exercício de funções no Tribunal da Relação ……, veio, nos termos do art. 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP), apresentar pedido de escusa nos seguintes termos:

«Na parte final do requerimento de 9/9/2021 (refª ……) o Sr. Dr. BB apresentou queixa-crime contra o signatário, por referência ao despacho proferido em 1/9/2021, “em virtude de tal documento ser subsumível ao disposto nos artigos 180º a 184º, 256º, nº 1, alíneas d) e d), 2, 3 e 4, e 369º, nº 2 e 2, do Cód. Penal, como é evidente”.

Apesar de a apresentação de queixa-crime pelo Sr. Dr. BB não afectar a imparcialidade com que o signatário sempre tem actuado neste processo, pode considerar-se que tal apresentação doravante transmitirá desconfiança sobre essa imparcialidade, enquadrando-se, assim, na previsão do artº 43º, nº 1, do C.P.P..

Face ao exposto, solicito a V. Exªs escusa de intervenção no presente processo.»

2. Tendo em conta o teor do requerimento apresentado, foi junto o requerimento referido, bem como a decisão do Senhor Desembargador, entre outros documentos.  

3. Colhidos os vistos, em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

1.1. Compulsados os autos, verifica-se que por decisão de 01.09.2021, no âmbito do proc. n.º 69/18………, o Senhor Desembargador AA decidiu não apreciar o requerimento apresentado nos seguintes termos:

«Em 2/3/21 o Sr. Dr. BB apresentou recurso do despacho proferido em 29/1/21 que não admitiu a sua intervenção como assistente.

Nessa data (2/3/21) o Sr. Dr. BB tinha (e pelo menos em 5/5/21 continuava a ter – cfr. ofício da O.A. de 5/5/21, refa. citius ……. do apenso de recusa) a sua inscrição na O.A. suspensa.

Assim sendo, tal como já anteriormente se tinha referido no despacho de 29/1/21, não pode praticar actos de advocacia, como é a subscrição do requerimento de interposição de recurso.

Nos termos do artº 49º, nº 1, do Regulamento de Advogados e Advogados Estagiários (Regulamento 913-C/2015 de 28/12), a suspensão da inscrição impede o exercício da Advocacia e o uso de título de «Advogado».

Por outro lado, dispõe o artº 66º, nº 1, do E.O.A. que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 205.º, só os advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar atos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto.”

Apesar disso, o requerente subscreveu um requerimento interpondo recurso de anterior despacho, praticando, assim, um acto de Advocacia e usando o título de Advogado.

Uma vez que não o podia fazer, não será o referido requerimento apreciado.

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Face ao exposto, determino que se extraía certidão do requerimento de interposição de recurso de 2/3/21 e do presente despacho, e se remeta à Ordem dos Advogados para os fins que se entenderem por convenientes.

Determino igualmente que se remeta igual certidão ao Ministério Público para os fins que se entenderem por convenientes, designadamente tendo em conta o que dispõe o arto 358º, al. b), do C.P..

Inclua na certidão a remeter ao MºPº o acima referido ofício da O.A. de 5/5/21.

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Pelo incidente a que deu causa, e sendo certo que o requerente não tem a qualidade de sujeito processual, tal como previsto no Livro I do C.P.P., ao abrigo do disposto no artº 521º, nº 2, do C.P.P., condeno-o no pagamento de 3 UCs de taxa de justiça.»

Além disto, o Senhor Dr. BB, nestes mesmos autos, havia apresentado um pedido de recusa do Senhor Desembargador que foi rejeitado liminarmente (por decisão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.05.2021 — proc. n.º 69/18.1TREVR-A.S1 — cf. decisão junta a estes autos).

2. Nos termos do art. 43.º, n.º 4, do CPP, o juiz pode pedir ao tribunal imediatamente superior (cf. art. 45.º, n.º 1, al. a), do CPP) que o escuse de intervir “quando ocorrer o risco de [a sua intervenção] ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art. 43.º, n.º 1, ex vi n.º 4).

A independência dos juízes constitui “a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto, da função judicial”[1] só assim se realizando o princípio da separação dos poderes. “Sendo por conseguinte os tribunais no seu conjunto — e cada um dos juízes de per si — órgãos de soberania (...) e pertencendo a eles a função judicial (...), tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais — reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam — é condição irrenunciável de toda a verdadeira jurisprudência”[2]. Se, por um lado, a característica da independência dos juízes assegura que estejam livres de pressões exteriores, por outro lado, “isto não basta para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. (...) [E] o que aqui interessa — convém acentuar — não é tanto o facto de a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados”[3]. Na verdade, a lei, ao estabelecer as situações em que o juiz pode pedir a escusa, está a realizar a tarefa de velar “por que, em qualquer tribunal (...) reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não — uma vez mais o acentuamos — enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu”[4].

O juiz pode pedir escusa de intervir no processo quando se verifiquem diversas condições, nos termos do n.º 1 e 2 do art. 43.º, do CPP, ex vi n.º 4 do mesmo dispositivo:
- sempre que exista risco de a sua intervenção ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (n.º 1 do art. 43.º) e/ouaquela suspeita existe. Na verdade, segundo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a imparcialidade.º).
- de David Sarmento Oli
- a intervenção do juiz em outro processo ou em outras fases do processo distintas das referidas no art. 40.º, do CPP (n.º 2, do art. 43.º).

Tal como é apresentada a condição do n.º 1 do art. 43.º, do CPP, pode-se integrar nela uma variedade de situações que, analisadas caso a caso, permitam considerar que aquela suspeita existe. E existindo uma suspeita, a confiança comunitária nos juízes, e no sistema judicial e no Estado de Direito, fica abalada.

Acresce que “a necessidade de confiança comunitária nos juízes faz-se sentir como muito maior força em processo penal do que em processo civil”[5], pese embora a densidade do regime previsto no Código de Processo Civil, relativamente ao regime previsto no Código de Processo Penal.  

É claro que o fundamento da escusa deve ser objetivamente analisado, não bastando um mero convencimento subjetivo, devendo basear-se em “uma razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro).” (acórdão do STJ, de 13.02.2013, proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, relator: Cons. Santos Cabral[6]). Todavia, este instrumento processual — o pedido de escusa — permite o afastamento do juiz “quando, objectivamente, existir uma razão que, minimamente, possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade” (idem).

Na verdade, “[é] evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto.” (acórdão citado).

A partir do pedido apresentado pelo Requerente, e dos elementos juntos a estes autos, verificamos que o Senhor Dr. BB apresentou uma queixa-crime contra o Senhor Desembargador. Tal facto é por si só suficiente para que, aos olhos do cidadão médio, se coloquem dúvidas sobre a imparcialidade do Senhor Juiz Desembargador na decisão que venha a tomar.

Ora, ainda que não se duvide que o Senhor Desembargador decidiria de forma imparcial, não podemos deixar de entender que, objetivamente e aos olhos da comunidade, aos do cidadão comum e externo ao mundo judiciário, poderiam suscitar-se dúvidas sobre a imparcialidade do julgador. O homem médio suspeitará de qualquer decisão que o Senhor Desembargador venha a adotar nos autos quando souber que o requerente apresentou queixa-crime contra o decisor.

Ora, a Justiça não se compadece com dúvidas sobre a imparcialidade de uma decisão.

Impõe-se que quem venha a decidir esteja livre de qualquer suspeição, assim se assegurando a necessária tranquilidade enquanto condição indispensável a um sadio sistema judicial.

Tal como já foi afirmado neste Tribunal “objectivamente tal coincidência é susceptível de ocasionar perplexidades e dúvidas, para o cidadão medianamente informado que, no mínimo, se questionará sobre a circunstância de a lei processual não conter meios susceptíveis de originar tal situação de melindre” (acórdão citado supra).

Além do mais, não está em causa uma avaliação como parcial da possível conduta do Senhor Desembargador; tanto mais que o simples facto de ter suscitado este incidente é por si só revelador de uma conduta escrupulosa e isenta, a permitir concluir que manteria a sua imparcialidade na decisão do caso. Porém, como dissemos, o que está em causa não é saber se o Senhor Juiz Desembargador iria ou não manter a sua imparcialidade, mas sim o de defendê‑la de uma suspeita, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida, e através da aceitação do seu pedido de escusa reforçarmos a confiança da comunidade nas decisões judiciais.

III

Conclusão

Nos termos expostos acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Nos termos do art. 43.º, do CPP, entende-se que existem fundamentos para conceder a escusa da intervenção do Senhor Juiz Desembargador AA o que se determina.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de outubro de 2021

Os juízes conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Eduardo Loureiro

António Gama

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[1] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 303.
[2] Idem, p. 303-4.
[3] Ibidem, p. 315.
[4] Ibidem, p. 320.
[5] Ibidem, p. 317.
[6] O acórdão pode ser consultado aqui: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e14355fb2048773480257b34004cd244?OpenDocument