Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1914/18.7T8BRR.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: TRANSMISSÃO DA UNIDADE ECONÓMICA
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário :
I- Existindo um contrato, cuja validade ninguém pôs em causa, de transmissão parcial de estabelecimento comercial, contrato que, aliás, prevê expressamente a transmissão da posição de empregador relativamente a uma lista de trabalhadores anexa ao contrato, há uma transmissão de unidade económica entre os outorgantes, sem necessidade de mais indagações.
II- O artigo 555.º do Código do Trabalho de 2003, aplicável à situação dos autos, não continha qualquer remissão para o artigo 557.º, mesmo depois da alteração deste último preceito pela Lei n.º 9/2006 de 20 de março, não havendo, pois, manutenção de quaisquer efeitos do IRCT aplicável ao transmitente uma vez esgotados os prazos previstos no artigo 555.º n.º 1.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1914/18.7T8BRR.L1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Relatório

AA intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra REN - Gasodutos, S.A., pedindo ao tribunal que, julgando pela sua procedência, condene a R. a reconhecer ao A. o direito à aplicação do ACT - Grupo EDP, publicado no BTE n° 28 de 29 de julho de 2000, com as sucessivas revisões, e, em consequência, seja condenada a:
a) Pagar ao Autor a retribuição por antiguidade considerando a antiguidade do A. desde 1996 no valor de € 27.852,51, pelas proveniências alegadas na presente, acrescido das quantias que, entretanto, se vençam pela mesma proveniência;
b) Pagar ao Autor o valor correspondente a 2 dias de férias por ano não gozados desde 2006 até 2014 no valor de € 2.218,29;
c) Pagar ao Autor as diferenças salariais que decorrem do incorreto enquadramento profissional do Autor no valor total de € 10.422,78, calculado até dezembro de 2017, pelas proveniências alegadas na presente, acrescido das quantias que, entretanto, se vençam pela mesma proveniência.
Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte teor:
Face ao exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) condeno a R. a reconhecer ao A. o direito à aplicação do ACT - Grupo EDP, publicado no BTE n° 28 de 29.07.2000, até outubro de 2007, e a aplicar, a partir dessa data e até 21.01.2015. o ali estabelecido, nessa data de outubro de 2007 (ou seja, sem atender a. futuras alterações), enquanto cláusulas absorvidas pelo contrato individual de trabalho e, por isso, dele integrantes;
b) condeno a R. a pagar ao A. a quantia que se apurar a título de diferenças salariais entre o que o A. recebeu, em cada mês, a partir de 26/09/2006 e o que o A. deveria ter recebido a partir dessa data e até 31/01/2015, caso a R. o tivesse enquadrado desde 26/09/2006, na categoria que correspondia no ACT – Grupo EDP ao nível 3, BR18, Ano 0 a que correspondia a retribuição base de € 1.943,00, tudo acrescidos dos juros de mora vencidos em cada momento, e até integral e efetivo pagamento, a liquidar em sede de incidente posterior à sentença, nos termos sobreditos;
c) condenar a R. a pagar ao A. a retribuição de férias e o subsídio de férias correspondente a 3 dias e meio de férias, por referência ao valor da retribuição devida no ano do vencimento daqueles dias de férias, tudo acrescido dos juros de mora vencidos em cada momento, e até integral e efetivo pagamento, a. liquidar em sede de incidente posterior à sentença, nos termos sobreditos;
d) condenar a R. a pagar ao A. as diferenças remuneratórias entre o que pagou ao A., a este título, e o que deveria ter pago se o tivesse enquadrado corretamente
- Em 2006 no Nível 3 BR 18 antiguidade 0;
- Em 2007 no Nível 3 BR 18 antiguidade 1;
- Em 2008 no Nível 3 BR 18 antiguidade 2;
- Em 2009 no Nível 3 BR 18 antiguidade 3;
- Em 2010 no Nível 3 BR 18 antiguidade 4;
- Em 2011 no Nível 3 BR 19 antiguidade 1
- Em 2012 no Nível 3 BR 19 antiguidade 2;
- Em 2013 no Nível 3 BR 19 antiguidade 3;
- Em 2014 no Nível 3 BR 19 antiguidade 4;
- Em janeiro de 2015 no Nível 3 BR 19 antiguidade 5;
Em fevereiro de 2015 deveria ser Nível 3 Zona salarial de antiguidade 1 (já ao abrigo do novo ACT), a liquidar em incidente posterior à sentença, acrescidos dos juros de mora em cada momento vencidos até integral e efetivo pagamento;
e) absolvo a R. quanto ao demais, contra si, pedido pelo A.

A Ré recorreu.

O Tribunal da Relação proferiu Acórdão pelo qual:

1. Julgou parcialmente procedentes nulidades da sentença invocadas no recurso do A. AA;
2. Julgou improcedente a impugnação da decisão de facto deduzida pelo mesmo Autor.
3. Alterou oficiosamente os pontos C., D., e G. dos factos provados na sentença.
4. Eliminou oficiosamente os pontos 1., R., e T. dos factos provados na sentença.
5. Concedeu provimento ao recurso interposto pela R. REN - Gasodutos, S.A. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e absolve-se a mesma do pedido contra ela formulado.
6. Negou provimento ao recurso interposto pelo Autor.

Inconformado o Autor interpôs recurso de revista.

Nesse recurso, pôs em causa:
- a decisão do Tribunal da Relação de eliminar certos factos dados como provados (factos I, R, T) e alterar outros (facto G);
- a decisão do Tribunal da Relação de não considerar como provados os montantes de retribuições pagas pela REN – Gasodutos, S.A. por não considerar como existente o lapso de escrita que resultou de na petição inicial se ter feito referência às retribuições pagas pela TRANSGÁS:
- a decisão do Tribunal da Relação de considerar que não existiu qualquer transmissão de unidade económica da TRANSGÁS para a REN – Rede Elétrica, S.A:
E quanto aos efeitos da transmissão, sustentou que:
“Na falta de disposição própria sobre os efeitos da caducidade prevista no artigo 555º do CT/2003, temos de lançar mão do disposto no artigo 557º do CT/2003, relativamente aos efeitos da caducidade das convenções coletivas, até porque é principio fundamental do ordenamento laboral evitar o vazio convencional-coletivo, e, de acordo com esta referida norma, os trabalhadores mantêm na sua esfera jurídica os direito adquiridos por força da convenção coletiva caducada e respeitantes à (i) retribuição, (ii) categoria profissional e respetiva definição e (iii) duração e tempo de trabalho” (Conclusão 58), invocando ainda a integração dos direitos no âmbito do próprio contrato individual de trabalho e a proibição de retrocesso social.

Rematava, pedindo a revogação do Acórdão recorrido e a manutenção da decisão de 1.ª instância.

A Ré contra-alegou.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º, n.º 3, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.


Fundamentação

De Facto

Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada nas instâncias:

A. O A. foi admitido para trabalhar sob as ordens direção e fiscalização da TRANSGÁS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A. em 05/08/1996, para exercer as funções de ..., afeto ao Centro ..., sito em .../....

B. Posteriormente, passou a desempenhar funções no Centro ..., sito em ..., ..., como ....

C. Em 27 de março de 2006, a TRANSGÁS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A comunicou ao A que iria ser transferido para a REN no âmbito da transmissão da atividade de transporte de Gás Natural, da qual consta:
“(...) estou finalmente em condições de lhe comunicar que a sua transferência para a REN, no âmbito da transmissão da atividade de Transporte de Gás Natural, em consonância com as orientações do Governo, será uma realidade a curto prazo.
Nestas circunstâncias, receberá, brevemente, uma comunicação escrita da Transgás e da REN com uma indicação muito clara quanto à manutenção dos direitos e regalias que lhe assistem independentemente da mudança da sua entidade patronal. É minha convicção que continuará a encontrar, na REN, a satisfação pessoal e profissional”.

D. Em 04.08.2006, a TRANSGÁS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A, remeteu ao A. uma comunicação subscrita por representantes da Transgás - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A., e REN - Rede Elétrica Nacional; S.A., que o A. recebeu, subordinada ao assunto “Transmissão Parcial de Estabelecimento, com o seguinte teor:
“I. Enquadramento
Nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2005 (...), o Governo fixou como orientação estratégica para a energia a autonomização dos ativos, direitos e obrigações relativos às atividades de transporte e armazenagem de gás natural e regaseificação de gás natural liquefeito (doravante “Ativos Regulados”) e subsequente junção à empresa operadora da rede de transporte de eletricidade, REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. (doravante “REN”), à qual passará igualmente a incumbir a operação dos Ativos Regulados.
Nos termos do Decreto-Lei n.º 30/2006 de 15 de fevereiro de 2006, que aprova as bases gerais da organização e funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural em Portugal, prevê-se a autonomização jurídica das atividades de (i) distribuição e comercialização de gás natural, (ii) receção, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito e da (iii) armazenamento subterrâneo de gás natural e (iv) transporte de gás natural.
Neste sentido as atividades relacionadas com os Ativos Regulados, atualmente prosseguidas pela Transgás ao abrigo do Contrato de Concessão, celebrado com o Estado em 14 de Outubro de 1993 (doravante "Contrato de Concessão") deverão ser transmitidas à REN (ou a sociedade(s) por esta controlada(s)).

Em conformidade com a estratégia nacional para a energia aprovada pelos acima referidos diplomas legais, está em curso a revisão do Contrato de Concessão, de forma a permitir a transmissão das atividades de (i) transporte, (ii) armazenagem, (iii) regaseificação de gás natural liquefeito, cujo desenvolvimento será atribuído, mediante a celebração dos pertinentes contratos de concessão, pelo Estado Português à REN (ou a sociedade(s) por esta controlada(s)).
II. Transmissão de estabelecimento comercial.
A prossecução dos objetivos elencados (...) pressupõe a transmissão à REN (ou a sociedade(s) por esta controlada(s)), do estabelecimento comercial que integra os Ativos Regulados.
III. Informação aos Trabalhadores
No cumprimento do dever de informação previsto (...) a Transgás - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A., vem pela presente informar os trabalhadores afetos às atividades de transporte e armazenagem de gás natural e atividades conexas, da transmissão dos seus contratos de trabalho para a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. (ou a sociedade(s) por esta controlada(s)) no âmbito da operação de transmissão de ativos descrita em I. supra.
Data: A transmissão produzirá efeitos aquando da celebração entre o Estado e a REN dos contratos de concessão referidos em I supra.
Motivos: A transmissão será feita em consequência da operação de transmissão de ativos descrita em I supra.
Consequências Jurídicas: A REN assume a posição jurídica do empregador nos contratos de trabalho relativamente aos trabalhadores da Transgás afetos às atividades de transporte e armazenagem de gás, e atividades conexas, mantendo-se plenamente em vigor os termos e condições dos respetivos contratos de trabalho.
Consequências Económicas: Os trabalhadores afetados pela transmissão não sofrerão quaisquer consequências económicas, mantendo-se em vigor, na sua plenitude, os termos e condições dos respetivos contratos de trabalho.
Consequências Sociais: Não estão previstas quaisquer consequências sociais.
Medidas Relativas aos Trabalhadores: Não estão previstas medidas que possam, de algum modo, afetar a posição dos trabalhadores abrangidos pela operação de transmissão de ativos.”
E. O A. estava e está afeto à atividade de transporte e armazenamento de gás natural e atividades conexas.
F. No dia 26 de setembro de 2006 foi celebrada a escritura pública de transmissão parcial de estabelecimento comercial outorgado entre a TRANSGAS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A. e a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A, através da qual a primeira aliena à segunda os “Ativos Regulados ” que enumera, entre eles o prédio, sito em ..., ..., verba 17 como melhor resulta do doc. 3 que se junta e se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, nela se exarando, nomeadamente:
“Que a venda dos bens acima referidos é acompanhada da transmissão para a representada do segundo outorgante, das demais posições jurídicas, constitutivas de direitos e obrigações que integram as unidades económicas afetas às atividades de transporte e de armazenamento subterrâneo nas “Instalações de Armazenamento Subterrâneo” que fazem parte o estabelecimento da sua representada, as quais incluem designadamente:
- a posição jurídica de entidade empregadora nos contratos de trabalho dos trabalhadores das “Transgás” identificados na lista anexa, cuja atividade se encontra afeta às unidades económicas acima mencionadas e cujo vínculo laborai é transmitido para a representada da segunda outorgante nos termos da lei e no âmbito do “Unbundling”, e que constam do documento complementar II, elaborado nos termos do número um do artigo sessenta e quatro do Código do Notariado, que fica a fazer parte integrante desta escritura (...)”
G. O A era trabalhador da TRANSGAS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A e estava afeto às unidades económicas mencionadas na escritura referida no facto F. como transmitidas à REN - Rede Elétrica Nacional, S.A (alterado pelo Tribunal da Relação).

H. O A. consta do documento complementar II, onde é especificamente identificado com o n.º 139, correspondente ao n.º mecanográfico atribuído na “Transgás”, e que corresponde parcialmente ao atual atribuído pela R, 410 139.

I. Em 26 de dezembro de 2006, as relações de trabalho entre a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. e os trabalhadores eram reguladas pelo ACT — Grupo EDP, publicado no BTE n°28 de 29.07.2000, com as sucessivas revisões (Eliminado pelo Tribunal da Relação, mas reposto por este Tribunal).

J. O ACT - Grupo EDP, publicado no BTE n.º 28 de 29.07.2000, com as sucessivas revisões, é subscrito pelo S... - Sindicato ....

L. O A. é. associado no S... - Sindicato ... desde ../../1998.

M. A partir de outubro de 2006, foi a R. quem passou a processar o vencimento do A.

N. Também no dia 26 de setembro de 2006, através de escritura pública, a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A., constituiu a REN - Gasodutos, S.A., sendo o capital social "realizado pela transmissão para a sociedade de um conjunto de bens corpóreos, direitos e obrigações, afetos à rede nacional de transporte de gás natural em alta pressão, conforme o disposto no artigo 65.0 do Decreto-Lei n. ° 140/2006 de vinte e seis de julho ”, constantes de lista anexa no termo da qual se fez constar que os mesmos não têm aquisição registada a favor da REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. por terem sido por ela adquiridas através de escritura celebrada nesse mesmo dia e cartório.

O. No dia 26 de setembro de 2006, foi celebrado o Contrato de Concessão - da atividade de transporte de gás natural através da rede nacional de transporte de gás natural - entre o Estado Português e a REN - Gasodutos, S.A., cujos efeitos se iniciaram no mesmo dia.

P. A remuneração mensal relativa ao mês de setembro de 2006, foi ainda processada pela TRANSGAS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A.

Q. O A., enquanto trabalhador da Transgás — Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A. não se encontrava enquadrado em qualquer dos perfis de enquadramento constantes do ACT Grupo EDP (que incluía a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A.) publicado in BTE 28 de 29/07/2000.

R. Os perfis de enquadramento e carreiras profissionais dos trabalhadores do grupo EDP eram os previstos no Anexo I do ACT Grupo EDP (Eliminado pelo Tribunal da Relação, reposto por este Tribunal).

S. Em 2006 o A. auferia na. Transgás a retribuição base de € 1.910,90, que correspondia no ACT Grupo EDP ao nível 3, BR18, Ano 0 a que correspondia a retribuição base de € 1.943,00.

T. A partir de fevereiro de 2015 ao A. passou a aplicar-se o ACT REN publicado in BTE, I..ª série, n.º 2 de 15/01/2015 (Eliminado pelo Tribunal da Relação, reposto por este Tribunal).

De Direito

No seu recurso de revista o Autor defende que, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal da Relação, houve uma genuína transmissão de estabelecimento da TRANSGÁS para a REN – Rede Elétrica Nacional, bem como a consequente transmissão do contrato de trabalho do Recorrente da TRANSGÁS para a REN – Rede Elétrica Nacional.
Impugna, igualmente, dois outros segmentos da decisão do Tribunal da Relação:
- a circunstância de, à semelhança do que fez o Tribunal de 1.ª instância, o Acórdão recorrido não ter dado como provadas quais as retribuições auferidas pelo Autor e pagas pela Ré, porquanto no aperfeiçoamento do artigo 25º, al. c) da P.I., aquele fez referência aos montantes que auferiu “na TRANSGÁS” a partir de outubro de 2006, tratando-se, segundo o Autor, de um evidente lapso material.
- a decisão de alterar o teor do facto G e de suprimir os factos I, R e T.

Iniciaremos a análise das questões suscitadas por estes dois segmentos relativos à decisão de facto.
Como é sabido, os poderes deste Tribunal enquanto Tribunal de Revista são limitados quanto à sindicância das decisões tomadas pelo Tribunal da Relação no que toca à matéria de facto, mormente quanto à prova que não é legalmente tabelada.

Relativamente ao facto G o mesmo foi alterado pelo Tribunal da Relação por o seu teor originário ser considerado conclusivo. A versão originária do facto G era a seguinte: “O A. era trabalhador da TRANSGAS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A e estava afeto às unidades económicas transmitidas à REN — Rede Elétrica Nacional, S.A”. Ora o que se discute nos presentes autos é precisamente se houve transmissão de unidade económica para a REN- Rede Elétrica Nacional, SA” pelo que o facto é efetivamente conclusivo, justificando-se a sua alteração nos termos efetuados pelo Tribunal da Relação.

Relativamente aos factos I, R e T, que foram eliminados pelo Tribunal da Relação, os mesmos tinham a seguinte redação:
I. “Em 26 de dezembro de 2006, as relações de trabalho entre a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. e os trabalhadores era regulada pelo ACT — Grupo EDP, publicado no BTE n°28 de 29.07.2000, com as sucessivas revisões”.
R. “Os perfis de enquadramento e carreiras profissionais dos trabalhadores do grupo EDP eram os previstos no Anexo I do ACT Grupo EDP”.
T. “A partir de fevereiro de 2015 ao A. passou a aplicar-se o ACT REN publicado in BTE, I..ª série, n.º 2 de 15/01/2015”.

A este propósito pode ler-se o seguinte no Acórdão recorrido:

“Como é patente, a aplicabilidade a determinadas relações de trabalho de um instrumento de regulamentação coletiva objeto de publicação em documento oficial - o Boletim de Trabalho e Emprego - não constitui um facto concreto, mas uma afirmação de direito que deve extrair-se de outros factos provados e que, por isso, não deveriam os factos I. e T. ter sido incluídos no elenco de facto. Aliás, deve dizer-se que, quanto a este último ponto da decisão de facto, constitui o mesmo a resposta concreta a uma das questões essenciais que se colocavam à l.ª instância para decidir e que continua a colocar-se na presente apelação, pois que foi na referida aplicabilidade do ACT - Grupo EDP, publicado no BTE n.º 28 de 29 de julho de 2000, refutada pela R., que o A. radicou todos os pedidos formulados na petição inicial. Deve ainda dizer-se que esta afirmação de facto constante do ponto T. da sentença pressupõe também resolvida a questão fulcral de saber se em 26 de setembro de 2006 se verificou uma transmissão da unidade económica em que o A. exercia funções da Transgás para a REN-Rede Eléctrica Nacional, pelo que também por esta razão nunca poderia a mesma constar do elenco de facto. Igualmente se reveste de cariz conclusivo a afirmação do facto R. de que os perfis de enquadramento e carreiras profissionais dos trabalhadores do grupo EDP eram os previstos no Anexo I do ACT Grupo EDP, constatação que se retira da verificação dos subscritores do indicado instrumento de regulamentação coletiva e do âmbito de aplicação que resulta da análise do seu clausulado, vg. da sua cláusula l.a (“obriga, por um lado, as empresas signatárias do Grupo EDP, adiante designadas por empresas, e, por outro, os trabalhadores ao seu serviço representados pelas associações sindicais outorgantes”).

É sobejamente conhecida a dificuldade em distinguir questões de facto e questões de direito, até porque os factos podem ser factos sociais que implicam a prévia aplicação de conceitos e normas, inclusive, por vezes, jurídicos. Assim, por exemplo, é um facto que a Constituição da República Portuguesa se aplica em todo o território nacional, ainda que para formular tal facto seja necessário anteriormente realizar várias operações jurídicas (decidir o que se designa por Constituição, o que é o território, etc.). A convenção coletiva é uma fonte de direito, como tal de conhecimento oficioso pelo Tribunal. No entanto, afirmar-se, por exemplo, que uma determinada empresa é parte outorgante de um acordo de empresa é um facto, como é um facto que um trabalhador determinado é filiado no sindicato outorgante desse mesmo acordo de empresa. E nesse caso se esse trabalhador for trabalhador subordinado dessa empresa é um facto que a sua relação laboral está abrangida pelo âmbito de aplicação desse mesmo acordo de empresa, ainda que tal facto resulte da aplicação de normas legais.  Do mesmo modo, não se pode excluir do elenco dos factos dados como provados certos factos só porque eles só relevam se uma determinada tese jurídica sustentada por uma das partes for a correta (no caso a transmissão de unidade económica).  Não se pode, em suma, excluí-los do elenco dos factos provados com o argumento de que eles só relevam se houver uma transmissão de unidade económica, antes de decidir se a referida transmissão ocorreu ou não.
Assim, o recurso procede quanto aos pontos I, R e T da matéria de facto, os quais foram incorretamente eliminados pelo Tribunal da Relação da matéria de facto dada como provada.

Analisemos, agora, a questão fulcral da existência, ou não, de uma transmissão de empresa ou estabelecimento da “Transgás - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A.” para a “REN - Rede Elétrica Nacional, S.A.”.
O Tribunal da Relação concluiu pela inexistência de transmissão. Depois de uma cuidadosa análise do conceito de transmissão à luz do direito europeu e do Código do Trabalho de 2003, então vigente e aplicável aos factos dos autos, sublinha, no entanto, que “não pode perder-se de vista todo o contexto que envolveu a mudança da entidade que, depois da Transgás, continuou a explorar como concessionária do Estado português, a atividade de transporte e armazenamento de gás natural e atividades conexas, incluindo atos provindos do próprio Estado e, sobretudo, deve ter-se sempre como pano de fundo desta análise que o critério determinante para concluir pela aplicabilidade do regime laborai da Diretiva n.º 2001/23/ CE e 318.° do Código do Trabalho é o da manutenção da identidade económica do estabelecimento e da prossecução da sua atividade, ainda que sem continuidade contratual e sem relações negociais diretas entre transmitente e transmissário”. Afirma que “não resulta dos factos provados que a atividade de transporte e armazenamento de gás natural prosseguida pela Transgás. S.A. empregadora do ora recorrido até setembro de 2006, tenha alguma vez sido prosseguida pela REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. Como vimos, esta sociedade não poderia desenvolver esta atividade, atenta a necessidade de garantir a separação jurídica dos operadores dos dois sistemas (eletricidade e gás natural), e foi incumbida por ato normativo de constituir uma sociedade, a ora R. REN - Gasodutos, S.A., para o efeito. Aliás, nem o A. ora recorrido alguma vez alega que a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A. tenha exercido a atividade antes concessionada ao seu empregador, nem a sentença sob censura alguma vez o afirma”.
Afirma-se, igualmente, que “no contexto da análise global das circunstâncias de facto que envolveram a sucessão de concessionários do serviço público de transporte e armazenamento de gás natural verificada no dia 26 de Setembro de 2006, é muito mitigado o relevo formal da escritura celebrada entre a Transgás, S.A. e a REN - Rede Eléctrica Nacional, S.A. para efeitos de condicionar a apreciação do caso sub judice”.
Não podemos sufragar esta motivação.
A jurisprudência do TJ desenvolveu efetivamente o conceito de unidade económica que mantém a sua identidade e dá um relevo central à esta manutenção da identidade. Contudo, importa realçar que tal se deve designadamente a não se exigir qualquer relação contratual entre transmitente e transmissário e ser suficiente para que haja transmissão que alguém prossiga, mesmo que de facto, a atividade de uma unidade económica como conjunto organizado de modo duradouro de fatores de produção capaz de operar autonomamente. No entanto, não se pretende, de modo algum, afastar a relevância de um contrato e nem se pretende que, havendo um contrato que opera efetivamente a transmissão este possa ser considerado uma realidade puramente formal e secundária. Como resulta do facto F houve um contrato, celebrado por escritura pública, de transmissão da unidade económica entre a TRANSGAS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A. e a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A, em que esta última foi transmissária, e havendo um contrato é irrelevante que a REN – Rede Elétrica Nacional, S.A.
Não tenha ela própria prosseguido a atividade, tanto mais que nunca ninguém sugeriu que o contrato fosse simulado ou que tivesse havido uma interposição fictícia de pessoas. Aliás uma empresa pode ser alienada por A a B, sendo que este último de imediato a vende a C, e em tal caso haverá uma transmissão de A a B e, posteriormente, outra, de B a C. A natureza instrumental da escritura pública referida em C no contexto da operação não permite reduzir o contrato, como pretende o Acórdão recorrido, a algo com “um relevo formal mitigado”.

A verificação de que existiu efetivamente uma transmissão de unidade económica da Transgás para a  REN-Rede Elétrica Nacional, S.A.  acarreta, à luz do artigo 555.º do Código do Trabalho de 2003, em vigor à data dos factos, que “o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho que vincula o transmitente é aplicável ao adquirente até ao termo do respetivo prazo de vigência e no mínimo durante doze meses a contar da data da transmissão, salvo se, entretanto, outro instrumento de regulamentação coletiva de trabalho negocial passar a aplicar-se ao adquirente”.
No seu recurso de revista o Recorrente pretende que:
“Consequentemente, o Recorrente incorpora no seu contrato individual de trabalho os direitos laborais adquiridos por força da passagem pela REN - Rede Elétrica Nacional, a quem se aplicava o ACT – Grupo EDP/2000 e sucessivas revisões”. (Conclusão 57)
“Na falta de disposição própria sobre os efeitos da caducidade prevista no artigo 555º do CT/2003, temos de lançar mão do disposto no artigo 557º do CT/2003, relativamente aos efeitos da caducidade das convenções coletivas, até porque é principio fundamental do ordenamento laboral evitar o vazio convencional-coletivo, e, de acordo com esta referida norma, os trabalhadores mantêm na sua esfera jurídica os direito adquiridos por força da convenção coletiva caducada e respeitantes à (i) retribuição, (ii) categoria profissional e respetiva definição e (iii) duração e tempo de trabalho” (Conclusão 58).
Terá razão quanto a este aspeto do seu pedido?
Sublinhe-se, desde já, que o referido artigo 555.º do CT de 2003 não continha norma similar ao atual n.º 2 do artigo 498.º do CT de 2009. Ora a norma do n.º 2 do artigo 498.º do CT é uma norma inovadora que não se aplica aos factos dos presentes autos.
Com efeito, a 26 de setembro de 2006, quando a transmissão operou o artigo 555.º do CT de 2003 previa apenas a continuação da aplicação do IRCT que vinculava o transmitente até ao seu termo de vigência (excluindo-se a relevância de posteriores renovações do IRCT) e (a lei atual, mais precisamente o n.º 1 do artigo 498.º do CT de 2009 diz “ou”) no mínimo durante doze meses. O artigo 555.º do CT de 2003 não continha qualquer remissão para o n.º 5 do artigo 557.º do mesmo Código, na redação introduzida pela Lei n.º 9/2006 de 20 de março. Assim sendo, não se mantinham quaisquer efeitos do IRCT aplicável ao transmitente uma vez passados os prazos anteriormente mencionados. E não há qualquer fundamento legal para se defender que, nessa data, haveria uma incorporação no contrato individual de trabalho das disposições da convenção coletiva.
Contrariamente ao que pretende o Recorrente, o artigo 555.º do CT de 2003 não previa uma qualquer situação de caducidade de uma convenção coletiva. A caducidade de uma convenção coletiva (e a manutenção já depois da morte da convenção de efeitos por esta produzidos nas relações individuais de trabalho) é realidade distinta da cessação de aplicação de uma convenção que continua em vigor e eficaz, mas de cujo âmbito pessoal de aplicação o trabalhador acabou por ser excluído por força da transmissão, findos os prazos referidos. Na falta de remissão legal (como a hoje operada pelo n.º 2 do artigo 498.º do CT de 2009) todos os efeitos do IRCT aplicável ao transmitente cessam para o adquirente com o termo de vigência desse IRCT e no mínimo passados 12 meses, isto se, entretanto, o adquirente não passar ele próprio a estar vinculado por um novo IRCT negocial. A partir dessa data, e tendo em conta as normas legais aplicáveis à situação no momento temporal em que esta ocorreu, o trabalhador deixava de ter direito às retribuições previstas no IRCT que lhe tinha sido aplicável, bem como a qualquer direito de atualização ou reclassificação profissional, pelo simples motivo de que tinha deixado de ser aplicável a fonte de direito respetiva.

Aqui chegados, e ao abrigo do disposto no artigo 682.º, n.º 3 e no artigo 683.º, n.º 1 do CPC, deverá o Tribunal da Relação proceder a novo julgamento da causa tendo em atenção que:
 1. Houve transmissão de estabelecimento da TRANSGAS - Sociedade Portuguesa de Gás Natural, S.A. para a REN - Rede Elétrica Nacional, S.A a 26 de setembro de 2006 e, no mesmo dia e subsequentemente, uma transmissão de unidade económica da REN – Rede Elétrica Nacional S.A. para a REN – Gasodutos, S.A.
2. O IRCT aplicável à REN – Rede Elétrica Nacional, S.A. era aplicável ao adquirente, mas apenas nos estritos termos do artigo 555.º do CT de 2003.
3. Haverá, pois, que verificar qual o prazo de vigência (sem atender a subsequentes renovações) do IRCT que vinculava o transmitente, considerando igualmente o prazo mínimo de doze meses e verificar se o adquirente não celebrou, entretanto, outro IRCT negocial com o mesmo sindicato (ou associação sindical em que este sindicato esteja filiado).
4. Para o efeito do cálculo de eventuais diferenças salariais caberá ao empregador/transmissário provar não apenas que pagou as retribuições, mas quais os montantes pagos (com o que se dá resposta a uma das questões suscitadas pelo Recorrente no seu recurso).
5. Quando o IRCT aplicável ao transmitente deixar de se aplicar ao transmissário por força do mencionado em 3., cessa também qualquer direito de reclassificação ou atualização profissional ou de categoria.

Decisão: Concedida parcialmente a revista, devendo o processo ser novamente julgado pelo Tribunal da Relação.
Custas do recurso a dividir pelo Recorrente e Recorrido na proporção de 20/80

22 de junho de 2022

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos Morais