Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A4057
Nº Convencional: JSTJ00042876
Relator: FERREIRA RAMOS
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: SJ200203120040571
Data do Acordão: 03/12/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 697/01
Data: 05/31/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ORDENADA A BAIXA DO PROCESSO.
Indicações Eventuais: M SOUSA IN ESTUDOS PAG399.
A GERALDES IN TEMAS II PAG270.
A MENDES IN RECURSOS PAG59.
L REGO IN DIR PROC CIV ANOT ART712.
Área Temática: DIR PROC CIV - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 508 A N2C ARTIGO 522 B ARTIGO 522 C ARTIGO 690-A ARTIGO 698 N6 ARTIGO 712 N1 A N2.
DL 39/95 DE 1995/02/15 ARTIGO 7 ARTIGO 9.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC3678/00 DE 2001/02/22.
ACÓRDÃO STJ PROC3981/00 DE 2001/03/01.
ACÓRDÃO STJPROC435/01 DE 2001/04/19.
Sumário : I - Se o vício da gravação só pode ser detectado e apercebido após a sua audição, e não ocorrendo a audição durante a audiência o prazo das alegações de recurso é dilatado, não seria razoável defender que tivesse de ser arguido na própria audiência nem que seja a partir dela que começa a correr o prazo para essa arguição.
II - Arguido nas alegações não pode a Relação afirmar a irrelevância do depoimento não audível, não se sabendo que perguntas foram feitas e que respostas deu em parte substancial do seu depoimento.
III - A lei consagrou um regime de substituição, não o de cassação, pelo que à Relação cabe alterar de imediato a decisão de facto, não o ordenar ao tribunal a quo a sua reformulação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. A 2.4.97, no Tribunal da Comarca de Vila Nova de Cerveira, A, propôs acção declarativa com processo ordinário contra B e mulher C, pedindo que sejam condenados a pagar-lhe a quantia de 7925063 escudos, acrescida de juros à taxa legal de 15%.
Para tanto, e em síntese, alegou dedicar-se à venda de material desportivo e afins, no exercício de cuja actividade vendeu aos réus os artigos constantes de facturas que perfazem o valor peticionado, sem que eles tenham pago qualquer quantia, não obstante ter sido acordado que o pagamento deveria ser efectuado no prazo de 30 dias a contar da data da emissão da respectiva factura.
Os réus contestaram, defendendo-se por impugnação e por excepção, alegando que as mercadorias lhes foram entregues à consignação, mercadorias que devolveram por as não terem vendido, pelo que nada devem.
No despacho saneador, a 3.11.98, fixou-se a matéria de facto assente e elaborou-se a base instrutória, do que não houve reclamação, tendo, então, sido requerida, pelo mandatário dos réus, a gravação da audiência ao abrigo do disposto no artigo 522º-B do CPC (cfr. fls. 62).
Após julgamento, e respostas aos quesitos (fls. 107), foi proferida, a 17.10.2000, sentença que julgou a acção procedente, condenando os réus a pagar ao autor a quantia de 6588063 escudos, acrescida de juros (fls. 121).
Inconformados, apelaram para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 31.05.2001, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença (fls. 186).

2. Recorreram, então, de revista para este Supremo Tribunal, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões:
"a) Está em causa a qualificação jurídica do contrato acordado entre as partes, sendo que, por força do que se mostra assente nas alíneas C), D) e E) da Especificação, e contrariamente ao que entenderam as instâncias, autor e réu acordaram que este venderia artigos do comércio daquele e que os artigos que vendesse pagá-los-ia por depósito numa conta do autor, em Lisboa, ou remetendo cheque para o domicílio do mesmo;
b) Donde, o contrato acordado entre autor e réu traduz-se naquilo que vulgarmente se denomina por compra e venda à consignação, segundo o qual o comprador, do que o vendedor lhe entregar para ele vender, pagará o preço dos artigos que efectivamente vender e devolverá aqueles que não vender;
c) Condenando os réus a pagar os artigos que não venderam e que, por isso, devolveram, o douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo 874º do Código Civil;
d) E, tendo autor e réu acordado num contrato de compra e venda à consignação o autor só poderia exigir o pagamento dos artigos que provasse ter o réu vendido e, por isso, o Tribunal da Relação, obrigando os réus a pagar artigos que o autor não provou que eles tivessem vendido, violou as regras sobre a repartição do ónus da prova e, consequentemente, o disposto no artigo 342º do Código Civil;
e) A qualificação jurídica do contrato acordado entre as partes envolve apreciação de matéria de direito e é, por isso, da competência do STJ;
f) Porque as respostas dadas aos quesitos 1º e 2º contradizem o que se mostrava já assente nas identificadas alíneas da Especificação, devem as mesmas (respostas) ter-se por não escritas e o STJ tem, salvo o devido respeito por melhor opinião, competência para assim as considerar pois que, cumprindo-lhe aplicar o direito tem que estar-lhe assegurada a faculdade de eliminar as contradições e divergência factuais desde que indispensáveis, como é o caso, a uma correcta aplicação da lei;
g) O douto acórdão sob recurso enferma da nulidade prevista no nº 1, alínea d), do artigo 668º do CPC, traduzida na circunstância de se ter recusado a reapreciar a prova, pois que dispunha de todos os elementos que serviram de base à formação da convicção do julgador de 1ª instância, não sendo legítimas, face à letra e ao espírito da lei processual - artigos 522º-B e 712º, nº 1, alínea a), ambos do CPC - as razões invocadas para obstaculizarem à reapreciação, acrescendo que a nulidade traduzida em não ter anulado o julgamento para que, em sua repetição, fosse de novo ouvida a testemunha D, cujo depoimento não é audível na gravação durante cerca de sete minutos;
h) É que a norma do artigo 522º-B, permitindo que a parte requeira a gravação da audiência, pressupõe o seu direito à efectiva gravação de todos os depoimentos e a poder ver reapreciada a prova em 2ª instância, sendo que o poder conferido ao Tribunal da Relação pelo artigo 712º, nºs 1, a), e 4, é vinculado e não discricionário;
i) Não reapreciando a prova e não anulando o julgamento, o Tribunal da Relação, além de praticar as arguidas nulidades violou, por não ter usado os poderes aí conferidos, o disposto no falado artigo 712º do CPC, nº 1, alínea a) e nº 4, e o não uso indevido de tais poderes é, sempre salvo o muito e devido respeito, sindicável pelo STJ;
j) Ora, em consequência do que se concluiu em a), b), c), d) e) e f) deve o recurso ser julgado procedente e, por isso, decretar-se a absolvição dos réus;
l) Mas, se assim se não entender, deve ordenar-se a baixa dos autos ao tribunal de recurso para que, anulando o julgamento, determine a repetição da audição da testemunha D ou, ao menos, reaprecie toda a prova gravada para, depois, decidir conforme for de direito".

O recorrido pugnou pela confirmação do julgado (fls. 211-213).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Da matéria de facto considerada provada - para a qual se remete, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 713º, nº 6, e 726º, ambos do CPC - destacaremos, oportunamente, a propósito de cada uma das questões então em análise, os pontos julgados mais pertinentes e relevantes.
No caso vertente, sabido que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões suscitadas são:
- nulidade por omissão de pronúncia, em virtude de o acórdão não ter apreciado a questão da impugnação da decisão de facto;
- contradição entre a matéria assente nas alíneas C), D), e E) da Especificação e as respostas aos quesitos 1º e 2º;
- anulação do julgamento para que, em sua repetição, seja de novo ouvida uma testemunha cujo depoimento é inaudível na gravação durante um certo período de tempo;
- qualificação jurídica do contrato.
Apreciemo-las pela ordem acabada de enunciar.

1ª Questão
Os recorrentes fazem derivar esta causa da nulidade que apontam ao acórdão da não apreciação da questão da impugnação da decisão de facto, como lhe cumpria face ao disposto no artigo 712º, nº 1, alínea a), segunda parte, do CPC.
Não têm razão.
Com efeito, embora aceitando que o concreto ponto da inaudibilidade ou imperceptibilidade do depoimento da testemunha D não foi especificamente apreciado pelo acórdão, impõe-se reconhecer que ele abordou, de algum modo, a questão da pretendida alteração da decisão de facto face à gravação dos vários depoimentos prestados em audiência, nomeadamente do prestado por aquela testemunha "em relação ao qual a gravação não regista o seu depoimento na totalidade" (fls. 186).
Essa era a essência da questão posta ao tribunal.
E sobre ela houve, pois, pronúncia - e pronúncia expressa.
2ª Questão
1. Para dela ajuizar impõe-se que se conheça o conteúdo das invocadas alíneas da Especificação, bem assim das respostas aos quesitos.
A saber:
- em Agosto de 1995 propôs o autor aos réus que estes vendessem, em Lisboa, artigos do seu comércio (C);
- os réus aceitaram e logo o autor lhes entregou alguns artigos que eles trouxeram consigo acabado que foi o período de férias (D);
- os pagamentos dos artigos que vendessem, segundo ficou combinado, fá-los-iam os réus por depósito, em Lisboa, na conta bancária do autor, e remetendo para o domicílio deste cheques preenchidos com as quantias em dívida (E);
- no exercício da sua actividade o autor vendeu aos réus, a seu pedido, artigos de desporto constantes de facturas que juntou, nas datas e pelos preços que delas constam, no valor global de 7925063 escudos (1º);
- o autor e os réus acordaram que o pagamento de tais quantias deveria ser efectuado no prazo de 30 dias, a contar da data da emissão da respectiva factura (2º).
2. Estamos perante questão já suscitada perante o Tribunal da Relação, que entendeu não se verificar qualquer incompatibilidade.
Pensa-se que bem.
Haveria contradição se os factos considerados assentes na Especificação e os emergentes das respostas aos quesitos tivessem um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando eles não pudessem subsistir utilmente, implicando necessidade de derrogar, no todo ou em parte, algum desses factos.
O que não é o caso.
Como quer que seja, sempre haveria de entender-se que se trata de matéria reservada à competência da Relação, que este Supremo não pode censurar.
3ª Questão
1. O DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro, veio consagrar, na área do processo civil, uma solução legislativa traduzida na admissibilidade do registo das provas produzidas ao longo da audiência de discussão e julgamento.
E tal, com um objectivo triplo, de que ora ressaltaremos a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto - garantia (A consagração desta nova garantia das partes implicou a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, como adiante melhor se verá.) que, todavia, nunca poderá envolver a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (do respectivo preâmbulo).
Há, na verdade, uma profunda diferença entre a posição do juiz que, dirigindo a audiência, assiste à prestação dos depoimentos, ouvindo o que as testemunha dizem e vendo como se comportam enquanto ouvem as perguntas que lhes são feitas e a elas respondem, e a outra, bem diversa, daquele que apenas tem perante si a transcrição, nas alegações, do teor dos depoimentos e a possibilidade de ouvir as respectivas gravações sonoras (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil", LEX, 1997, pp. 399-400, António Abrantes Geraldes, "Temas da Reforma do Processo Civil", vol. II, 2ª ed., pp. 270-271, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.04.2001, Proc. nº 435/01).
Mas então, sendo o juiz de 1ª instância quem se encontra em melhor posição para avaliar, de forma objectiva e global, o valor a atribuir a um depoimento nas formação da sua convicção, qual o "papel" reservado ao Tribunal da Relação?
Desde logo, sublinhe-se a reapreciação das provas (nº 2 do artigo 712º do CPC), bem assim a renovação dos meios de prova produzidos (nº 3 do mesmo artigo).
Como se salientou no referido acórdão de 19.04.2001, a lei consagrou aqui um regime de substituição e não de cessação - à Relação cabe, não a anulação da decisão para que o tribunal de 1ª instância a reformule, mas, diferentemente, a imediata alteração do que foi inicialmente decidido, substituindo-se, em tal caso, ao tribunal a quo.
Por isso, prossegue o acórdão que estamos a acompanhar, a alteração que a Relação introduza terá subjacente a nova e diferente convicção entretanto formada e, ao confirmar a decisão da 1ª instância, estará, numa formulação verbal mais correcta, a aderir à convicção àquela subjacente e não, simplesmente, a ter como razoável o que aí se consagrou - "num caso e noutro a nova convicção deverá radicar-se no teor dos depoimentos invocados e transcritos, no número e qualidade das testemunhas em cada sentido opinantes, nos outros elementos probatórios ao seu alcance e, inclusivamente, no próprio teor da fundamentação da decisão impugnada".

2. Fechado este excurso teórico, importa conhecer, ainda que sucintamente, o quadro legal atinente à matéria.
A gravação da audiência pode ser requerida na audiência preliminar (artigo 508º-A, nº 2, alínea c), do CPC).
"As audiências finais e os depoimentos, informações e esclarecimentos nelas prestados são gravados sempre que alguma das partes o requeira, por não prescindir da prova nelas produzida, ou quando o tribunal oficiosamente determinar a gravação", sendo a gravação "efectuada, em regra, por sistema sonoro, sem prejuízo do uso de meios audiovisuais ou outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor" (artigos 522º-B e 522º-C, do CPC (Redacção à data vigente.
O DL nº 183/2000, de 10 de Agosto, deu nova redacção a esses artigos, e também ao artigo 690º-A.)).
Os artigos 3º a 9º do citado DL nº 39/95 regem acerca da gravação: efectuada por funcionários de justiça, de modo a que facilmente se apure a autoria dos depoimentos gravados ou das intervenções e o momento em que os mesmos se iniciaram e cessaram, incumbe ao tribunal que efectuou o registo facultar cópia a cada um dos mandatários ou partes que o requeiram.
"Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade" (artigo 9º).
De primordial significado, atenta a economia do presente recurso, sublinhe-se que o DL 39/95 acrescentou uma segunda parte à alínea a) do n. 1 do artigo 712 do CPC, a qual veio permitir à Relação alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto:
"se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690-A, a decisão com base neles proferida".
Artigo 690-A que veio impor um particular ónus de alegação a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto, o qual se traduz na necessidade de especificar:
- quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, caso em que, tendo sido gravados os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, incumbe ainda ao recorrente proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda (nºs 1 e 2).
Ónus que, tendo o recurso por objecto a reapreciação da prova gravada, deve ser satisfeito, se bem se pensa, nas alegações de recurso para a Relação (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pp. 527-528, Armindo Ribeiro Mendes, "Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto", LEX, 1998, pp. 59-60, António Abrantes Geraldes, ob. e loc. cits, pp. 268-269).
Assim se compreende que o nº 6 do artigo 698º estabeleça que os prazos para as alegações e resposta referidos nos números anteriores "são acrescidos de 10 dias" se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada - acréscimo que se justifica pelo ónus de transcrição das passagens da gravação em que as partes fundamentam a impugnação, imposto pelos nºs 2 e 3 do citado artigo 690º-A (Miguel Teixeira de Sousa, ob. e loc. cits.).
3. No caso em apreço, requerida e deferida a gravação de depoimentos, veio o recorrente impugnar a decisão de facto ao abrigo do disposto no artigo 712º, nº 1, alínea a), segunda parte.
Dispõe o nº 2 deste artigo 712º:
"No caso a que se refere segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e de recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados".
Em anotação a este artigo, Lopes do Rego escreve:
"A forma e a amplitude da apreciação do recurso sobre a matéria de facto, quando as provas houverem sido gravadas, dependerá, em boa medida, da seriedade da impugnação e da plausibilidade do erro no julgamento, liminarmente valorada face ao conteúdo das alegações. (...)
Se o conteúdo das alegações e contra-alegações criar dúvida razoável quanto ao acerto da decisão sobre os pontos impugnados, o recurso será naturalmente julgado em conferência, fundando-se a decisão prioritariamente nas razões (e transcrições) aduzidas pelas partes, sem prejuízo de a Relação poder oficiosamente considerar quaisquer outros elementos probatórios, ainda que omitidos pelas partes, mas que hajam servido de fundamento ao decidido sobre a matéria impugnada.
Finalmente, em casos de excepcional e particular complexidade, goza ainda a Relação da possibilidade de, mesmo oficiosamente, determinar a renovação, perante si, de certo ou certos meios probatórios, quando repute tal diligência absolutamente indispensável ao apuramento da verdade" ("Comentário ao CPC", 1999, p. 485.).
4. Está em causa o depoimento da testemunha do réu, D, cujo "depoimento ficou gravado com início do lado A da cassete nº 1 no nº 542 terminando no lado B da mesma cassete no nº 167" (cfr. fls. 103).
Testemunha que respondeu aos quesitos 4, 7, 8, 11, 12, 16, 17 e 18, a todos sendo respondido "não provado", à excepção do 8º, provado parcialmente.
E na motivação escreveu-se: "assentam os factos provados e não provados no depoimento das testemunhas ouvidas" (cfr. fls. 107).
Ao abrigo do disposto no artigo 7 do DL nº 39/95 foi facultada aos ora recorrentes uma cópia da gravação (fls. 112 e 113).
No seguimento do que os réus/recorrentes levantaram, nas alegações do recurso de apelação, a questão de o depoimento da testemunha D não ser "perceptível durante cerca de sete minutos, o que gera a impossibilidade de se saber o que ela disse e a relevância do que disse" (cfr. alegações a fls. 139), pelo que "haverá que anular o julgamento para que, na sua repetição, seja de novo ouvida a testemunha dos réus D, pois que o respectivo depoimento não é, durante cerca de sete minutos, audível, e, por isso, não se sabe que perguntas lhe foram feitas e que respostas deu em parte substancial do seu depoimento" (cfr. conclusão m), a fls. 146).
E com as alegações juntaram, em escrito dactilografado separado, transcrição dos depoimentos das várias testemunhas, embora não do da referida D.
5. Sobre a questão posta, o acórdão, após consignar que "a gravação não regista o seu (Da testemunha D, entenda-se.) depoimento na totalidade", ponderou:
"Desde logo os réus não alegaram que o depoimento prestado por esta testemunha foi relevante para as respostas que se pretendem alterar. Os próprios réus fundamentam o seu pedido de alteração das respostas no depoimento da testemunha E e não nesta; e em parte alguma das suas alegações alegaram que o depoimento da testemunha D continha declarações que levariam à reapreciação da prova. Os recorrentes invocam, tão-só, o facto de não existir gravação de parte do seu depoimento. Ora neste contexto nada justifica a repetição da prova, quando a própria parte não alega razão de ser para essa repetição no contexto da prova produzida e relevante para as questões em apreciação" (cfr. fls. 187).
Que dizer?
Desde logo, que a questão, suscitada nas alegações de recurso, o foi na peça própria e atempadamente - como já antes se intentou demonstrar (na parte final do antecedente ponto 2).
Concretizando: se a "incompletude" ou "vício" da gravação só pode ser detectado e apercebido após a sua audição, e não ocorrendo a audição durante a audiência, aquando da recolha do depoimento, não poderá razoavelmente defender-se que o vício tenha de ser arguido na própria audiência, nem que seja a partir dela que começa a correr um qualquer prazo para essa arguição.
Seria mesmo uma impossibilidade prática; aliás, como se disse já, o prazo das alegações é, então, dilatado (nº 6 do artigo 698º).

6. Portanto, em nosso entender os réus não só suscitaram a questão, impugnando a matéria de facto, em tempo oportuno, como também o fizeram de modo adequado, dando satisfação - quanto baste e lhes era exigível face ao circunstancialismo concreto - ao especial ónus de alegação que sobre eles faz impender o artigo 690º-A.
O que significa, e com respeito se diz, que não podemos acompanhar, no seu todo, o passo do acórdão transcrito no ponto antecedente.
Na verdade, se a gravação, tal como se consignou no acórdão, não regista o depoimento da testemunha na totalidade - os réus falam em sete minutos que são inaudíveis ou imperceptíveis -, pode dizer-se até, numa dada vertente, que estamos, apesar de legalmente requerida e deferida a gravação da prova, perante um depoimento não gravado e, consequentemente, perante uma formalidade que, em bom rigor, foi omitida e que, influindo no exame e decisão da causa, importa nulidade (Acórdão do STJ de 01.03.2001, Proc. nº 3981/00, onde também se considera que a formalidade da gravação, sendo ela possível, visa possibilitar ao requerido o exercício do contraditório mas, sobretudo, permitir ao tribunal de recurso reavaliar a apreciação dos meios de prova feita pelo tribunal que procedeu à inquirição.
Cfr. acórdão do STJ de 22.02.2001, Proc. nº 3678/00.).
Como quer que seja, no circunstancialismo descrito não é razoável argumentar-se que "os réus não alegaram que o depoimento prestado por esta testemunha foi relevante para as respostas que se pretendem alterar", que esse depoimento "continha declarações que levariam à reapreciação da prova", nem, enfim, que "nada justifica a repetição da prova, quando a própria parte não alega razão de ser para essa repetição no contexto da prova produzida e relevante para as questões em apreciação".
Como assim?
Se o depoimento não consta, por qualquer forma, dos autos, se inexiste, semelhante argumentação não pode colher.
Como assinalam os recorrentes, sendo o depoimento inaudível ou imperceptível durante cerca de sete minutos é impossível saber o que a testemunha disse e a relevância do que disse, não se sabendo que perguntas lhe foram feitas e que respostas deu em parte substancial do seu depoimento.
E assim sendo, como "quod non est in actis, non est in mundo", não era sequer possível ao acórdão recorrido uma efectiva reapreciação ou renovação da prova a que se referem os nºs 2 e 3 do artigo 712º do CPC.
Contexto em que tem interesse recordar o teor do já citado artigo 9º do DL nº 39/95:
"Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade".

Face a todo o exposto concluímos, a nosso ver fundadamente, que a matéria de facto ainda não está devidamente fixada, pelo que se impõe a revogação do acórdão com o consequente regresso dos autos ao Tribunal da Relação para que seja de novo julgado o recurso (Cfr. citado acórdão de 19.04.200.
E assim sendo, não há que apreciar a última questão enunciada.).

Termos em que se revoga o acórdão recorrido e se determina que os autos voltem ao Tribunal da Relação do Porto para que aí, se possível com intervenção dos mesmos Senhores Desembargadores, se julgue de novo o recurso, nos termos que se deixaram apontados.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 12 de Março de 2002
Ferreira Ramos,
Lemos Triunfante,
Reis Figueira.