Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1128
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
POSSE
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ200605230011286
Data do Acordão: 05/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.

II - O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.

III - Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.

IV- Todavia, são concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse.

V- É o caso do promitente comprador, emigrante em França, que se encontra no gozo de um apartamento que lhe foi entregue pelo promitente vendedor, mostrando-se já paga a totalidade do preço e que desfruta desse apartamento em vários períodos do ano, com a família e amigos, aí estabelecendo a sua residência em Portugal, procedendo ao pagamento do respectivo imposto municipal sobre o imóvel, do consumo de electricidade e do condomínio, tendo a coisa sido entregue ao embargante pelo promitente vendedor, há cerca de vinte anos, como se sua fosse já e sendo nesse estado de espírito que o promitente comprador lá estabeleceu a sua residência em Portugal e praticou diversos actos correspondentes ao direito de propriedade, em nome próprio, com a intenção de exercer sobre ele o direito real correspondente.

VI - À relevância da posse do embargante não obsta a nulidade resultante da inobservância da forma legal do contrato promessa de compra e venda, pois um acto jurídico nulo tem o valor de imprimir à posse o seu carácter, sendo por ele que se há-de averiguar qual o animus do adquirente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 24-4-03, por apenso à execução que Empresa-A, moveu contra Empresa-B, e outros, veio AA deduzir embargos de terceiro, alegando, em síntese, que detém a posse sobre a fracção sita no Lote nº..., piso ... ... cave - apartamento C, do empreendimento denominado "Castelinho", inscrito na respectiva matriz predial de Albufeira sob o art. 13348-C, a qual foi penhorada nos autos de execução de que estes constituem o apenso B.
Tal posse decorre de ter havido tradição da fracção, em consequência de contrato promessa de compra e venda, cujo preço se encontra integralmente pago.
Conclui pelo recebimento dos embargos e pela sua procedência, com o inerente levantamento da penhora.

O Banco exequente contestou, impugnando a posição do embargante, para concluir pela improcedência dos embargos.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que julgou os embargos procedentes e extinta a execução, relativamente à fracção em questão.
Apelou o Banco embargado, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 3 -11-05, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformado o embargado pede revista, onde resumidamente conclui:
1- O contrato promessa de compra e venda, constante do escrito junto aos autos, não respeita à fracção penhorada, mas a outra fracção.
2 - Tendo em conta o disposto nos arts 220 e 221 do C.C. e que houve uma alteração do objecto do contrato promessa junto aos autos, operada através de mera permuta verbal das fracções, o contrato promessa respeitante à fracção penhorada é nulo, por falta de forma, não podendo dai advir efeitos para as partes, como se o contrato fosse válido.
3 - Daí que o embargante não goze de direito de retenção.
4 - Mesmo que o respectivo contrato promessa fosse válido, a posse decorrente da traditio apenas se referia a um direito real de garantia (o direito de retenção), que não é incompatível com a penhora.
5 - De qualquer modo, o embargante é mero detentor ou possuidor precário e não detém posse susceptível de ser defendida por meio de embargos de terceiro.
6 - É inconstitucional a interpretação que o Acórdão recorrido fez dos arts 351, nº1, do C.P.C., 410, nº2, ex vi do arts 875, 755, nº1, al. f) e 1285, todos do C.C., por ofensa do princípio do Estado de Direito democrático (art. 2º da C:R:P.), permitindo a existência de ónus ocultos, que colidem com a garantia geral das obrigações, permitindo a que terceiros da confiança dos devedores ocupem imóveis, a fim de lograrem as legítimas expectativas dos credores.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes :

1 - O Banco exequente é portador, por virtude de endosso e operação de desconto, praticado no exercício do seu comércio bancário, de uma letra, que constitui documento de fls 5 do processo de execução, no montante de 5.500.000$00, emitida em 10-1-94, vencida em 15-6-95, com saque da executada Empresa-B, aceite pelo executado BB.

2 - Apresentada a pagamento na data do vencimento, a referida letra não foi paga.

3 - Até á data, não foi realizada a escritura de compra e venda da fracção sita no Lote...- piso...,... cave- apartamento C.

4 - Em 14 de Fevereiro de 1986, o embargante AA e a executada Empresa-B, outorgaram o escrito que se encontra a fls. 10, intitulado "Contrato de Prestação de Serviços", cujo teor aqui se dá por reproduzido.

5 - O embargante tem interesses na sociedade "Empresa-C", em França.

6 - Através dessa sociedade, o embargante angariou clientes para a aquisição das fracções autónomas do prédio referido no mencionado "contrato de prestação de serviços ".

7 - Foi acordado entre o embargante e a embargada Empresa-B que as retribuição em dívida ao primeiro seriam pagas pela segunda com a entrega de uma fracção autónoma do prédio identificado no denominado "contrato de prestação de serviços ".

8 - Em 6 de Outubro de 1986, foi celebrado entre o embargante e executada Empresa-B um contrato promessa de compra e venda, constante do documento escrito de fls 38 e segs, de uma fracção autónoma, designada por rés do chão, e da tipologia T2, do lote 2-B, sito na Urbanização denominada Castelinho, em Montechoro,- Zona N, inscrito na matriz sob o art. 8653, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o nº 5891, do Livro B-15.

9 - A pedido da executada, esta e o embargante acordaram em alterar o objecto daquele contrato promessa.

10 - Pois a executada tinha um comprador para identificada fracção, solicitando ao embargante se este não se importaria de adquirir uma outra fracção do mesmo tipo e pelo mesmo preço, já integralmente liquidado.

11 - Fracção essa que seria no lote nº3, piso um, 5ª cave - apartamento C, no dito empreendimento, denominado Castelinho, descrito na Conservatória do Registo predial de Albufeira sob o nº 059467900606, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. 13348- C.

12 - O embargante concordou com a troca de apartamentos, atentas a razões de cordialidade, confiança e amizade que existiam entre ele e os responsáveis da Empresa-B.

13 - A fracção sita no Lote 3, piso um, 5ª cave - apartamento C, foi entregue pela Empresa-B ao embargante.

14 - Desde finais de 1986, o embargante passava partes do ano na fracção em causa.

15 - O embargante desfrutava desse apartamento nas férias da Páscoa e Verão com a família e amigos, bem como em todas as ocasiões que, por qualquer motivo, se tinha de deslocar a Portugal, estabelecendo aí a sua residência em Portugal.

16 - O embargante sempre solicitou à executada que procedesse à escritura pública de compra e venda da fracção sita no lote 3, piso um, 5ª cave - apartamento C.

17 - A executada Empresa-B sempre respondeu afirmativamente às solicitações do embargante para realização da escritura pública.

18 - O embargante continua a viver em França como emigrante.

19 - A escritura de compra e venda não foi realizada até hoje, em virtude da relação de amizade e confiança existente entre o embargante e os responsáveis da executada Empresa-B.

20 - É o embargante quem procede e sempre procedeu à liquidação do imposto municipal de contribuição autárquica referente à identificada fracção sita no lote 3, piso um, 5ª cave- apartamento C, mediante remessa do montante necessário à Empresa-B.

21 - E quem faz os pagamentos de electricidade.

22 - E quem procede ao pagamento do condomínio.

23 - O embargante é tido pelos vizinhos como único proprietário e possuidor da dita fracção.

24 - O embargante apenas teve conhecimento em Março/Abril da venda judicial anunciada para 12-5-03, da dita fracção sita no lote 3, piso um, 5ª cave - apartamento C, penhorada no processo executivo.

A questão fulcral a decidir consiste em saber se o embargante tem posse sobre o questionado apartamento C, que possa ser defendida através de embargos de terceiro.

Vejamos :

O art. 351, nº1, do C.P.C. dispõe :

" Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro ".

É sabido que a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.
Como observam Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. III, 2º ed, pág. 6/7), o "contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente - comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.
O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse".
Trata-se de posição que tem sido sufragada pela doutrina (Antunes Varela, R.L.J. Ano 124-348; Vaz Serra, R.L.J. Ano 109-314 e Ano 114-20 ; Calvão da Silva, no B.M.J. 349, pág. 86, nota 55), bem como pela jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça (Ac. S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º 118; Ac. S.T.J. de 19-11-96, III, 3º, 109 ; Ac. S.T.J. de 11-3-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, 137, entre outros ).

Pois bem.

No nosso caso concreto, o embargante funda os embargos de terceiro na sua posse sobre o apartamento C, prometido vender, e não no direito de retenção da coisa, até ser pago do seu crédito, proveniente do pagamento do preço, por incumprimento do contrato-promessa, imputável à promitente vendedora.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real - art. 1251 do C.C.
A posse pressupõe o "corpus" e o " animus", sendo do cruzamento destes dois elementos que advém o conceito de posse juridicamente relevante.
O corpus é o poder de facto que se exerce sobre a coisa, com carácter de estabilidade, sendo o animus a intenção de exercer aquele poder de acordo ou em termos do direito real correspondente.
Diversa é a situação do mero detentor ou possuidor precário que é a daquele que, tendo embora o corpus da posse (detenção da coisa), não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente (animus possidendi) - art. 1253 do C.C.

Ora, resultou provado que o embargante e a executada Empresa-B outorgaram um escrito, que intitularam "Contrato de Prestação de Serviços ", mediante o qual aquele angariava clientes para aquisição das fracções autónomas do prédio denominado "Urbanização do Castelinho" da mesma executada.
Foi acordado entre o embargante e a executada que as retribuições em dívida ao primeiro seriam pagas pela segunda, com a entrega de uma fracção autónoma do referido prédio.
Na sequência desse contrato, em 6 de Outubro de 1986, entre embargante e executada foi celebrado o contrato promessa de compra e venda, constante do documento escrito junto aos autos, de uma fracção autónoma, designada por rés do chão, da tipologia T2, do Lote 2-B, sito na mencionada urbanização.
Porém, a pedido da executada, esta e o embargante acordaram em alterar o objecto daquele contrato promessa, pois a executada tinha um comprador para identificada fracção, solicitando ao embargante se este não se importaria de adquiri uma outra fracção do mesmo tipo e pelo mesmo preço já integralmente liquidado, fracção essa que seria no Lote 3, piso um, 5ª cave- apartamento C, no aludido empreendimento "Urbanização do Castelinho".
O embargante concordou verbalmente com a troca dos mencionados apartamentos, atentas as relações de cordialidade, confiança e amizade que existiam entre ele e os responsáveis da Empresa-B, sendo que a fracção sita no Lote.... Piso um... cave- apartamento C, foi efectivamente entregue pela Empresa-B ao embargante.
Na sequência disso, desde finais de 1986, o embargante passava partes do ano na fracção em causa, desfrutava desse apartamento nas férias da Páscoa e Verão com a família e amigos, bem em todas as ocasiões que, por qualquer motivo, se tinha que deslocar a Portugal, estabelecendo aí a sua residência em Portugal.
Acresce que é o embargante quem procede e sempre procedeu à liquidação do imposto municipal sobre o dito apartamento C, remetendo o dinheiro para tanto necessário, sendo também o embargante quem faz os pagamentos da electricidade e do condomínio.
E tudo isto acontece há quase 20 anos, sendo o embargante tido pelos vizinhos como único proprietário e possuidor do dito apartamento C.

Assim sendo, como é, deve ser entendido que estamos perante um daqueles casos excepcionais de posse efectiva do promitente comprador, relativamente ao aludido apartamento C, em virtude de se mostrar satisfeita a totalidade do preço e de a coisa ter sido entregue ao embargante como se sua fosse já, de tal modo que foi nesse estado espírito que este lá estabeleceu a sua residência em Portugal e praticou diversos actos correspondentes ao direito de propriedade, em nome próprio, com a intenção de exercer sobre ele o direito real correspondente - art. 1263, al. b) do C.C.
Tal situação de posse do embargante, que perdura há quase vinte anos, é mesmo susceptível de poder conduzir à aquisição do direito de propriedade sobre aquele apartamento C, por usucapião, nos termos do art. 1287 do C.C.
À relevância da posse do embargante não obsta o facto da nulidade resultante da inobservância da forma legal do contrato promessa de compra e venda atinente ao apartamento C, por falta da sua própria redução a escrito ou da ausência de redução a escrito da estipulação verbal posterior a que houve lugar da alteração do objecto do primitivo contrato promessa que havia sido outorgado e que operou a troca verbal das fracções - arts 220 , 221, nº2 e 410, nº2, do C.C.
Na aquisição bilateral da posse, o animus resulta da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse.
É a teoria da causa.
Ao acto jurídico, quando existir, se há-de recorrer para averiguar qual o animus daquele que, em virtude dele, detém uma coisa.
Mas se o acto jurídico for nulo ?
Poderia pensar-se que, sendo nulo o negócio jurídico, nenhum efeito produz, pelo que para nada pode ser tido em conta.
Mas não é assim.
Mesmo em face da teoria da causa, deve admitir-se o princípio " de que um acto jurídico nulo, de nulidade absoluta, tem o valor de imprimir à posse o seu carácter, e portanto, que é por ele que se há-de averiguar qual o animus do adquirente " (Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, pág. 224).
A razão disso é que um negócio jurídico nulo denuncia, com mais segurança do que qualquer outro processo, a vontade do adquirente.
Daí que a lei preveja a possibilidade da posse ser titulada ou não titulada - art. 1258 do C.C.
Consequentemente, no caso concreto, como o embargante exerceu o corpus da posse com animus possidendi, ou seja, com animus rem sibi habendi, deve ele ser considerado um verdadeiro possuidor do apartamento C e não mero detentor precário, podendo socorrer-se dos embargos de terceiro, ao abrigo do art. 351, nº1, do C.P.C., para defesa da sua posse, perante o conhecimento que teve da venda judicial daquele apartamento, anunciada para 12-5-03.
Tudo isto sem que se mostre inconstitucional a interpretação de qualquer dos preceitos legais atrás citados, nem ofendido o princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2º da C.R.P., invocado pelo recorrente.

Termos em que negam a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 23 de Maio de 2006
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Afonso Correia