Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4680/07.8TBVLG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO OBRIGATÓRIO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
INDEMNIZAÇÃO
PAGAMENTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / ADMISSIBILIDADE DA REVISTA.
Doutrina:
- Cardona Ferreira Guia de Recursos em Processo Civil, 5.ª edição, 255.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO D.L. N.º 303/2007, DE 24-08: - ARTIGOS 691.º, N.º1, AL. H), E N.º2, 721.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 671.º, N.º3.
D.L. N.º 522/85, DE 31-12, NA REDACÇÃO QUE LHES FOI DADA PELO D.L. N.º 122-A/86, DE 30-05, E D.-L. N.º 72-A/2003, DE 14-04: - ARTIGOS 21.º, 23.º, 27.º, N.º 5, 29.º, N.ºS 6 E 8.
LEI N.º 41/2013, DE 26-06: - ARTIGO 5.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 09/02/2012, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 11/12/2012, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Cotejando o que vinha proposto nos arts. 21.º e 23.º do DL n.º 522/85, de 31-12, e ora a ponderar, consubstanciadores dos contornos em que se materializava a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, deles inferimos que, não obstante termos como evidente que o acidente de viação automóvel se desdobra também em acidente de trabalho, isso não confere ao FGA a possibilidade de abater, na indemnização a pagar ao sinistrado, os quantitativos que este tenha recebido da seguradora com quem foi celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho.

II - Mesmo que se considere que assiste ao autor do facto danoso, responsável civil pelo malefício provocado, o direito de, arguindo que esse ressarcimento já está assegurado no âmbito do plano laboral, deduzir perante o lesado o valor da parte da indemnização que lhe compete satisfazer, mesmo assim esta argumentação tem de vir acompanhada, sempre, da comprovação de que essa denunciada facticidade realmente ocorreu.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA, representada pelo seu filho BB na qualidade de seu tutor provisório, instaurou a presente ação declarativa de condenação contra o “Fundo de Garantia Automóvel”, alegando, em breve resumo, que, no dia 19/11/2004, pelas 21,30 horas, quando atravessava a Rua …, em Valongo, foi atropelada por um veículo automóvel que, então, circulava nessa via, o qual lhe causou múltiplas lesões graves, que lhe retiraram qualquer capacidade para trabalhar e cuidar de si própria e a tornaram permanentemente dependente do acompanhamento de terceira pessoa.

O referido atropelamento foi, única e exclusivamente, da responsabilidade do condutor daquele veículo, mas ignora a identidade do mesmo; por isso, pretende que o réu o indemnize, para além dos danos não patrimoniais que já ressarciu, também pela perda da sua capacidade de ganho, que contabiliza em 450.000,00€ e isto porque trabalhava, à data, como empregada doméstica para quatro pessoas distintas e, nessa medida, viu eliminado o seu rendimento.

Termina pedindo a condenação do réu a pagar-lhe o referido valor de € 450.000,00, acrescido de juros moratórios contados desde a data da citação até integral pagamento.


Contestou o réu.

 Sem questionar a sua responsabilidade reparatória, confirma que já ressarciu a autora pelos danos não patrimoniais que a mesma sofreu, no valor de € 50.000,00, tendo ainda pago a quantia de € 7.630.47 pelo seu internamento hospitalar.

A autora, todavia, apesar de ter recebido as indicadas quantias, declarou não prescindir das perdas patrimoniais que não fossem assumidas pela seguradora do acidente de trabalho, sendo que o mesmo acidente estava a coberto de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre CC e a “Seguros DD, S.A..”, estando a ser pagas, assim, no âmbito de tal processo, as indemnizações que lhe são devidas.

Desta forma concluiu que a autora já foi indemnizada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu.

Por outro lado, com o objetivo de a referida seguradora vir a exercer os eventuais direitos decorrentes dos valores já pagos, requereu ainda a intervenção provocada da mesma seguradora.


A autora replicou alegando que a responsabilidade por acidentes de trabalho, acionada no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, não abarca a totalidade dos danos patrimoniais por ela sofridos, na medida em que prestava a sua atividade laboral para quatro pessoas diferentes e naqueles autos interveio apenas uma delas, representada pela sua seguradora.


Entretanto, o réu veio dar conta de que a “DD Seguros, S.A.” tinha instaurado contra si uma ação judicial destinada a efetivar os respetivos direitos decorrentes dos pagamentos efetuados à autora em resultado do contrato de seguro de que a mesma é beneficiária.

Nesta medida, desistiu da intervenção provocada daquela seguradora e requereu, em simultâneo, a apensação daquela ação a esta.


Solicitada certidão daquela ação, que corria termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, sob o n.º 243/08.9TBVLG, bem como informação do seu estado, foi decidido, por despacho datado de 25/09/2009 (cfr. fls. 232/233), indeferir a requerida apensação de ações e ordenada a notificação do réu para, no prazo de dez dias, esclarecer se ainda pretendia a intervenção da “DD Seguros, S.A.”.


O réu veio, então, no dia 16/10/2009, responder, informando que desistia da "intervenção provocada da seguradora DD Seguros, S.A. e respectiva apensação de processos, dado já existir, quanto a esta, acção judicial em fase de julgamento".


Entretanto, tendo sido ordenada a apensação a esta ação da ação n.º 4043/10.8 TBVLG, por despacho de 27.10.2011 (cfr. fls. 254ª a 254B), considerando que o despacho que ordenou tal apensação não transitou em julgado e não se mostravam também verificados os pressupostos para tal apensação, foi ordenada a devolução do aludido processo à sua origem.


Inconformado com esta ordem, reagiu o réu interpondo recurso, no qual sustenta, em suma, que a indicada apensação de ações é legal e que o Tribunal recorrido não podia ordenar a referida devolução do processo n.º 4043/10.8 TBVLG.

A Relação, todavia, por acórdão proferido em 24.11.2015 (cfr. fls. 515 a 521), com o fundamento em que, face ao disposto nos n.º s 2 e 3 do citado art. 275.°, inexiste fundamento para, em cumprimento da decisão proferida naquele processo n.º 4043/l0.8TBVLG, se admitir a respectiva apensação aos presentes autos, manteve a decisão da 1.ª instância que ordenou a desapensação do processo n.º 4043/l0.8TBVLG  e a sua devolução ao tribunal, donde proveio.


No subsequente desenvolvimento processual teve lugar a audiência prévia e, em seguida, a audiência final.


Finda esta, foi proferida sentença na qual se condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 280.000,00, a título de indemnização, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.


Inconformado com esta sentença, recorreu o réu para a Relação do Porto que, por acórdão de 08.07.2015 (cfr. fls. 445 a 467), negou provimento aos recursos interpostos pela autora e pelo réu em relação à sentença recorrida e, consequentemente, manteve em vigor o decidido nessa sentença.


Irresignado, recorre agora para este Supremo Tribunal o réu Fundo de Garantia Automóvel, que alegou e concluiu pelo modo seguinte:

1. Inconformado com o teor do Acórdão proferido em 08.07.2015 pelo T.R.Porto, interpôs o FGA recurso o qual versará sobre dois temas.

2. O primeiro sobre o recurso de agravo interposto que subiu juntamente com a Apelação, e que o Tribunal a quo decidiu em sede de "II - Questão Prévia", entendendo que o Apelante carecia de legitimidade para o efeito.

3. Mas o facto é que o Tribunal a quo cometeu um lapso ao decidir com tal fundamentação pois confundiu dois pedidos de apensação distintos que o Recorrente fez no decurso do processo em 1.ª instância.

4. À data da Contestação apresentada pelo Apelante, havia apenas mais uma acção, a n.º 322/054TTVLG - acção especial de acidente de trabalho em que a seguradora era a Real Seguros, cuja intervenção se requereu.

5. Entretanto, precisamente por causa dos valores que havia pago na ora referida acção de trabalho, a Real Seguros interpôs uma acção contra o FGA, a Acção com Processo Ordinário n.º 243/08.9TBVLG. Tendo o FGA requerido a apensação da Acção n.º 4680/07.8TBVLG com essa n.º 243/08.9TBVLG.

6. Esse requerimento foi apreciado pelo citado despacho de 25.09.2009 que indeferiu a apensação e ordenou a notificação do FGA para informar se ainda pretendia a intervenção da seguradora.

7. E realmente o Apelante FGA, por requerimento de 15.10.2009, desistiu do incidente de intervenção bem como da apensação da Acção n.º 4680/07.8TBVLG com a n.º 243/08. 9TBVLG.

8. Só que, entretanto, a DD Seguros, então já denominada EE Seguros, interpôs mais uma acção judicial contra o FGA, com o n.º 4043/10.8TBVLG; por causa do mesmo acidente, da mesma sinistrada, só que reclamando o reembolso de novos pagamentos que entretanto havia feito. E nessa acção n.º 4043/10.8TBVLG o FGA, na contestação, requereu a apensação desses autos ao processo n.º 4680/07.8TBVLG.

9. Ou seja, houve um novo pedido de apensação com uma nova acção, apensação essa que foi admitida pelo Juiz do processo 4043/10, que ordenou a remessa daqueles autos aos autos 4680/07 para apensação.

10. Só que, chegados os autos do processo 4043/10 ao processo 4680/07, o Juiz deste processo, em 27.10.2011, proferiu despacho que julgou inadmissível a apensação já decida naqueloutro processo e ordenou a devolução do processo 4043/10.

11. E foi desse despacho, de 27.10.2011, que o FGA interpôs recurso de agravo.

12. Há assim dois pedidos de apensação distintos, quer no tempo quer quanto às acções a apensar e por isso, ao contrário do decidido no Acórdão ora em crise, o Apelante não acatou o despacho de que interpôs recurso, nem desistiu dessa apensação.

13. Não existindo assim fundamentos nem de facto nem de direito que permitissem concluir pela ilegitimidade do Apelante, tendo o Tribunal a quo confundido os elementos constantes do processo, gerando assim uma ambiguidade entre estes e a decisão proferida, o que salvo melhor opinião, gera mesmo a nulidade do Acórdão nos termos conjugados nos artigos 615.º, n.º 1, al. c) e 666.º, n.º 1 do C.P.Civil.

14. O segundo fundamento de recurso prende-se com a dedutibilidade dos valores recebidos pela Recorrida aos montantes a pagar pelo Recorrente.

15. O aqui Recorrente, em sede de Apelação, requereu que, a final, lhe fosse reconhecido o direito de descontar do montante indemnizatório fixado os montantes que a apelada já tinha recebido do seguro, como era intenção do Tribunal de 1.ª instância, apesar de não expresso no dispositivo da sentença.

16. O Tribunal a quo considerou que assistia razão ao Apelante, anulou a sentença mas decidiu que não havia que fazer nenhum desconto nem compensação, julgando adequado o pagamento integral de € 280.000,00

17. Tal conclusão assenta em três fundamentos nucleares que o Recorrente considera estarem errados.

18. O FGA é um mero garante da indemnização devida por veículo com condutor desconhecido ou que não beneficie de seguro válido e eficaz, como desde sempre reconhecido pela lei e pela jurisprudência.

19. A obrigação de pagamento que ao FGA pode ser imputada nada tem a ver com a obrigação pendente sobre o responsável civil, nem o FGA é "substituto" dos responsáveis civis. A natureza das obrigações são, por isso, absolutamente distintas e inconfundíveis.

20. A responsabilidade do FGA visa socializar os riscos associados à circulação rodoviária, evitar total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante.

21. Não sendo por isso o FGA nem responsável civil, nem de alguma forma substituto dos responsáveis civis, carece de razão o aresto em crise ao invocar que a Lei 100/97 de 13/09 não prevê a possibilidade de se poder fazer o pretendido abate ou desconto dos montantes já recebidos pela Recorrida.

22. Por outro lado o Recorrente considera que não só não assiste razão ao Tribunal a quo ao invocar a falta de alegação e prova dos montantes pagos como considera ainda inglória tal invocação.

23. Isto porque desde o início do processo que o Recorrente tudo tem tentado fazer o que está ao seu alcance para que o Tribunal pudesse analisar aquilo que a Recorrida já recebeu a título de indemnização por parte da seguradora de acidentes de trabalho, precisamente para que aquela receba exactamente aquilo a que tem direito a receber e evitar, por outro lado, que venha a receber duplamente pelos mesmos danos.

23. O Recorrente requereu a intervenção da seguradora de acidentes de trabalho; depois requereu a apensação do processo de reembolso daquela seguradora; mais tarde requereu nova apensação de novo processo, a qual acabou por ser rejeitada, tendo o Recorrente interposto de agravo, o qual ainda não está definitivamente decidido.

24. Por outro lado o Recorrente ainda não podia nem pode alegar e muito menos comprovar a totalidade pelos valores pagos e a pagar à seguradora de acidentes de trabalho, pois ainda se encontra em curso a segunda acção de reembolso.

25. Ao que acresce que foi dado como provado os pontos 36 e 37 da matéria de facto, e consta dos autos (doc. 13 junto com a P.I.) certidão comprovativa de que a seguradora de acidentes de trabalho aceitou pagar à aqui Recorrida, a partir de Novembro de 2005, a pensão anual de € 4.094,72, a prestação suplementar de acompanhamento de terceira pessoa no montante anual de € 4.387,20, o subsídio de elevada incapacidade no mesmo montante de € 4.387,20 e ainda o subsídio de readaptação também no mesmo valor de € 4.387,20.

26. Entende por isso a Recorrente que deverá ser-lhe reconhecido o direito de, ao montante que tem de pagar à Recorrida, descontar os valores indemnizatórios que a mesma haja recebido por parte da seguradora de acidentes de trabalho pelos mesmos danos, sob pena de se violar o previsto nos artigos 483.º, n.º 1 e 562.º, ambos do C.Civil.

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente nos sentidos atrás enunciados.


Contra-alegou a recorrida pedindo a manutenção do julgado.

    

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. No dia 19 de Novembro de 2004, cerca das 21h30 horas, na Rua …, em Valongo, a Autora foi atropelada por um veículo automóvel que circulava nesse arruamento.

2. A Autora procedia ao atravessamento da via de circulação da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo automóvel.

3. A Autora já se encontrava praticamente na berma direita, atento o sentido do veículo atropelante, quando foi colhida.

4. O veículo automóvel embateu com a sua parte da frente na Autora, projetando-a a cerca de 20 metros do local do embate.

5. A Autora, após o embate, ficou caída na faixa de circulação.

6. Na Rua …, no local onde se verificou o acidente dos autos, existem casas de um lado e do outro da via, que deitam diretamente para a via pública, inserindo-se na zona urbana de Valongo, a qual se encontra devidamente assinalada.

7. No local do acidente, a via de circulação configura uma reta e tem uma largura de cerca de 12 metros.

8. O veículo automóvel que atropelou a Autora circulava a uma velocidade superior a 90km/hora.

9. O condutor do veículo automóvel conduzia o mesmo de forma que não pode evitar embater com ele na Autora.

10. O condutor do veículo automóvel poderia ter avistado a Autora pelo menos a cinquenta metros.

11. O veículo automóvel que embateu na Autora pôs-se em fuga logo após o embate, não tendo sido identificado.

12. Na sequência do acidente dos autos, foi instaurado processo-crime que correu termos sob o n. 775/04.8PAVLG, nos Serviços do Ministério Público de Valongo.

13. E desconhecida a matrícula do veículo automóvel que atropelou a Autora, bem como a identidade do respetivo condutor.

14. O condutor do veículo circulava a uma velocidade que não lhe permitiu evitar o embate na Autora, não obstante tratar-se de uma reta com boa visibilidade e de a Autora estar já a terminar a travessia da via de circulação.

15. Do acidente resultaram para a Autora, designadamente as seguintes lesões: traumatismo crânio-encefálico, traumatismo torácico, com fratura da clavícula esquerda, traumatismo da bacia (sacro direita e bilateral dos ramos ísquio-púbicos); traumatismo do colo do perónio direito.

16. Na sequência do acidente dos autos, a Autora foi internada na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santo António no Porto, tendo transitado para o Serviço de Neurocirurgia do Hospital de S. João, no dia 8 de Dezembro de 2005, de onde teve alta em 31 de Janeiro de 2005.

17. Em 2 de Janeiro de 2005, a Autora foi transferida para o Hospital de Santa Maria, em situação de coma vigil, não colaborante, afasica, dirigindo o olhar, com hemiplegia direita, hemiparésia espástica esquerda, ptose à direita; com midiriase não reactiva à direita, com traqueostomia encerrada e alimentação p.os com disfagia para líquidos.

18. A Autora encontra-se em coma vigil, sem qualquer possibilidade de recuperar as funções mínimas cognitivas.

19. A Autora está afetada de uma incapacidade total e permanente, necessitando se internamento em instalação hospitalar para o resto da sua vida.

20. Por força da irreversibilidade das lesões sofridas, a Autora perdeu todas as faculdades mentais, as quais se encontram grave e irreversivelmente afetadas.

21. As lesões sofridas pela Autora em consequência do acidente dos autos determinaram-lhe uma incapacidade total para qualquer tipo de atividade, ocupação ou trabalho e requerem necessariamente um acompanhamento permanente e continuado durante toda a sua vida.

22. A Autora está, assim, totalmente desprovida de autonomia e incapaz de realizar toda e qualquer tarefa, designadamente, de cuidar de si própria e de, por si só, prover às suas necessidades básicas do dia-a-dia sem a ajuda de terceiros.

23. A data do acidente, a Autora era saudável e fisicamente bem constituída.

24. A Autora nasceu em 11 de Setembro de 1961, tendo 43 anos de idade na data do acidente dos autos.

25. A Autora tem um filho, de nome BB, nascido em 31 de Dezembro de 1984.

26. A Autora é mãe solteira, vivendo com o seu filho.

27. A Autora encontrou-se internada no Hospital de Santa Maria, no Porto.

28. O filho da Autora encontrou-se matriculado e a frequentar o 5.º ano do curso de … da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

29. Aquando do acidente dos autos, a Autora exercia a atividade de trabalhadora doméstica, prestando a sua atividade a quatro entidades patronais, nas respetivas residências, três sitas no Porto e uma em Matosinhos.

30. Ao serviço de FF e na sua residência sita em Matosinhos, a Autora exercia semanalmente a sua atividade de trabalhadora doméstica à 3.ª Feira, entre as 14 e as 19 horas, e à 4.ª Feira, entre as 9 e as 14 horas, auferindo uma, retribuição de 5,00€/hora.

31. Ao serviço de GG e na sua residência sita no Porto, a Autora exercia semanalmente a sua atividade de trabalhadora doméstica às 2.ª e 6.ª Feiras, entre as 9 e as 13 horas, auferindo uma retribuição de 4,50€/hora.

32. Ao serviço de HH e na sua residência sita no Porto, a Autora exercia semanalmente a sua atividade de trabalhadora doméstica à 2.ª Feira, entre as 13.30 e as 17 horas, à 3.ª feira, entre as 9 e as 13 horas, à 4.ª Feira, entre as 14.30 horas e as 17 horas, à 5.ª Feira, entre as 9 e as 17 horas, e à 6.ª Feira, entre as 13.30 e as 17 horas, auferindo uma retribuição de 5,00€/hora.

33. A Autora prestava ainda regularmente trabalho suplementar para HH, durante os fins-de-semana e à noite durante os dias de semana, para a auxiliar na organização de jantares ou almoços para convidados, auferindo mensalmente em média 50,00€.

34. Ao serviço de CC e na sua residência sita no Porto, a Autora exercia semanalmente a sua atividade de trabalhadora doméstica à 2.ª Feira, entre as 17 e as 20 horas, à 4.ª Feira, entre as 17 e as 20 horas, à 5.ª Feira, entre as 17 e as 20 horas, e à 6.ª Feira, entre as 17 e as 20 horas, auferindo uma retribuição de 5,00€/hora.

35. Ao serviço das diversas entidades patronais auferia a Autora, na data do acidente dos autos, uma retribuição mensal média no valor de 1.217,006, 14 vezes por ano.

36. O acidente dos autos configurou igualmente um acidente de trabalho, estando o mesmo coberto pelo seguro de acidentes de trabalho celebrado entre CC e a Companhia de Seguros DD, S.A., e deu origem a ação especial de acidente de trabalho que correu termos sob o processo n.º 322/05.4TTVLG, no Tribunal de Trabalho de Valongo.

37. A Companhia de Seguros DD S.A pagou à Autora uma pensão mensal por incapacidade temporária absoluta, bem como pagou ou tem vindo a pagar as quantias fixadas em transação judicial celebrada em 18 de Maio de 2007 no âmbito daquela ação especial de acidente de trabalho de fls. 192 e segs.

38. As despesas de internamento e tratamento médico e com
medicamentos da Autora são integralmente suportadas pela Companhia de Seguros DD S.A.

39. A Autora, representada pelo seu filho, BB, acordou com a Ré numa indemnização por danos não patrimoniais emergentes do acidente dos autos, tendo já sido efetuado o respetivo pagamento conforme fls. 279 e 280, ou seja, liquidou a R a quantia de 50.000 euros a título de danos não patrimoniais e 7.630,47 euros ao Hospital de S. João, pelo internamento da Autora.



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Tomando as palavras do recorrente, a presente revista versa, essencialmente, dois temas:

1. A apensação da ação n.º 4043/10.8 TBVLG a esta é legal e, por isso, o tribunal recorrido não podia ordenar a devolução daquele processo ao tribunal donde proveio, questão esta que está já definitivamente julgada, como procurámos demonstrar atrás; e

2. Saber se ao FGA/recorrente assiste o direito de deduzir aos montantes a pagar à recorrida os valores por ela recebidos da seguradora que assumiu os riscos de acidentes de trabalho; no seu entender, ao montante que tem de pagar à recorrida devem ser deduzidos os valores indemnizatórios que a mesma haverá de tomar da seguradora de acidentes de trabalho pelos mesmos danos: a pensão anual de € 4.094,72, a prestação suplementar de acompanhamento de terceira pessoa no montante anual de € 4.387,20, o subsídio de elevada incapacidade no mesmo montante de € 4.387,20 e ainda o subsídio de readaptação também no mesmo valor de € 4.387,20.


Vejamos se assim é.


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Admissibilidade da revista

Pretexta a recorrida AA que a presente revista é inadmissível, pois que estamos perante uma verdadeira “dupla conforme”, já que o acórdão recorrido mantém integralmente a sentença da 1.ª instância e com idênticos fundamentos.

Estando cumulativamente verificados os requisitos de dupla conforme, subsumível à previsão normativa do art.º 671.º, n.º 3, do C.P.Civil, isso impede a admissão e conhecimento dos fundamentos da revista, completa a recorrida.


Vejamos.

I. O Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, suprimindo o recurso de agravo, procedeu à anunciada e repetida reforma dos recursos cíveis, introduzindo ainda expressivas modificações no que diz respeito à sua admissibilidade para o STJ com a postura de mais apertada malha na rede do leito por onde eles terão de passar - infere-se uma tentativa de combate à “banalização” de acesso ao STJ (Cardona Ferreira; Guia de Recursos em Processo Civil; 5.ª edição; pág. 255).

    

Com o intuito de racionalizar a possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal de Justiça (até aí a parte podia recorrer - recurso de revista - até ao STJ mesmo no caso de existirem duas decisões convergentes (a decisão do tribunal de 1.ª instância e a decisão da Relação), ex vi do estatuído no n.º 3 do art.º 721.º do C.P.Civil daquele diploma legislativo, “não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida”.

    

Por imposição do decretado no n.º 1 do art.º 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho[1], o regime de recursos a aplicar ao caso “sub judice” é o que vem preconizado pela atual lei adjetiva e aprovada por aquela Lei n.º 41/2013, de 26/06.

Neste enquadramento jurídico-processual havemos de considerar que, conforme resulta da preposição inserta no n.º 1 do art.º 7.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, “aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008 aplica -se o regime de recursos decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, com as alterações agora introduzidas, com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei”.

    

Quer isto dizer que, se é certo que a regra geral a atender para o nosso caso é a que aponta para o regime processual preconizado pela reforma que o Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, lhe incutiu, também é verdade que esta descrição legal comporta a exceção pormenorizada no n.º 3 do artigo 671.º do atual Código de Processo Civil (“não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância…”), desta feita permitindo a revista apesar de se verificar a ”dupla conforme”.

Deste modo, o desfecho da problemática suscitada, da admissibilidade do recurso de revista interposto, não vai buscar-se ao regime da “dupla conforme”, mas antes haverá de resultar da verificação dos pressupostos enunciados no n.º 1 do art.º 721.º do C.P.Civil (na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei n.º 303/2007, de 24/08).

    

II. Consagrando, quanto a este aspeto, equiparado regime recursório ao que está atualmente em vigor no n.º 1 do art.º 671.º do atual C.P.Civil, nos termos do n.º 1 do art.º 721.º do C.P.Civil (na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei n.º 303/2007, de 24/08) e ao caso aplicável, cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do artigo 691.º, ou seja, da decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo ou do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa.


Tomando a descrição posta nesta discernida regra legal, haverá recurso para o STJ, apenas do Acórdão da Relação que aprecie e decida sobre decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo (n.º 1) ou que incida sobre o despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa (n.º 2, alínea h).


O acórdão da Relação que, com o fundamento em que, “face ao disposto nos n.º s 2 e 3 do citado art. 275.º, inexiste fundamento para, em cumprimento da decisão proferida naquele processo n.º 4043/l0.8TBVLG, se admitir a respectiva apensação aos presentes autos, manteve a decisão da 1.ª instância que ordenou a desapensação do processo n.º 4043/l0.8TBVLG e a sua devolução ao tribunal, donde proveio” e contra o qual o recorrente interpôs recurso, não se enquadra neste pormenorizado enquadramento normativo.


Esta ponderação permite-nos concluir que, não se incluindo naquela proposição (n.º 1 do art.º 721.º do C.P.Civil, na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei n.º 303/2007, de 24.08) esta resolução proferida no acórdão recorrido - incluída no agravo de que foi tomado conhecimento em 24.11.2015 (cfr. fls. 515 a 521) - segue-se que, porque está vedado ao Supremo Tribunal a apreciação desta questão também posta no presente recurso (pontos 1. a 13. das conclusões do recurso), dela não podemos nem vamos conhecer.


III. O direito de o FGA poder deduzir os valores recebidos pela lesada da seguradora laboral.


O Fundo de Garantia Automóvel apareceu no nosso meio jurídico através do Decreto-Lei n.º 408/79 e nos termos do Decreto Regulamentar n.º 58/79, ambos de 25 de setembro, para preencher um vazio, que não raras vezes se evidenciava, que resultava do facto de o responsável pelo acidente não ter possibilidades de satisfazer ao lesado a indemnização pelos prejuízos que causou e também não ter transferido validamente essa responsabilidade civil para uma Seguradora.   

O Fundo de Garantia Automóvel veio colmatar esta brecha, funcionando como uma seguradora estatal - sobrevivendo do erário público (artigo 27.º, n.º 5, do Dec. Lei n.º 522/85) - deste modo acautelando os justos interesses do lesado, ao mesmo tempo que, possibilitando-se-lhe o eventual direito de regresso contra o obrigado à indemnização, fica posta de parte a possibilidade de agentes, pouco escrupulosos e votados a molestar o real sentido da lei, poderem desvirtuar o sentido que está incutido nos fins nele objectivados.


IV. Nos termos do que está predisposto no n.º 6 do art.º 29.º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido ou eficaz, devem obrigatoriamente ser interpostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.

Só quando o responsável civil por acidentes de viação for desconhecido é que o lesado pode demandar diretamente o Fundo de Garantia Automóvel (n.º 8 do art.º 29.º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12).

Quer isto dizer que o lesado, quando aciona diretamente o FGA nos termos do normativo atrás referenciado, terá de articular na sua petição, e demonstrar na demanda, que é ignorado o condutor do veículo que é responsável pelo acidente; ao invés, se a vítima/autora tiver conhecimento da identidade do condutor do veículo causador do acidente e a razão da sua vinda a juízo se fundamenta na detetada falta de seguro válido ou eficaz do condutor culpado pelo acidente, então haverá o demandante de, sob pena de ilegitimidade, fazer acompanhar o Fundo de Garantia Automóvel do seu responsável civil.


Atualmente, o âmbito de intervenção e as atribuições do Fundo de Garantia Automóvel estão definidos no âmbito do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto que, transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.ºs. 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (“5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel”), entrou em vigor a partir de 20.10.2007 e, por isso, não é aplicável ao caso “sub judice”.

Tendo o acidente ocorrido em 19/11/2004, é aplicável ao caso de que ora nos ocupamos o regime jurídico do seguro obrigatório em vigor naquela data, ou seja, as disposições deste diploma legislativo incluídas na sua 17.ª versão e que integra as alterações preconizadas pelos Dec. Lei n.º 122-A/86, de 30.05 e Dec. Lei n.º 72-A/2003, de 14/04.

Vale isto por dizer que, como proficientemente refere a Relação, considerando o que está proposto nos artigos 21.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na redação que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 122-A/86, de 30 de Maio, e Decreto-Lei n.º 72-A/2003, de 14 de Abril, tudo se passa, para os efeitos que ora estão em apreciação, como se o Fundo de Garantia Automóvel seja um responsável civil comum, isto é, sem qualquer estatuto especial.


V. A problemática que a presente revista encerra traduz-se na questão de saber se, ao montante da indemnização devida à recorrida, fixada a título de dano futuro por perda de capacidade de ganho e a suportar pelo FGA, deve ser deduzido o valor pago pela seguradora de acidentes de trabalho (a pensão anual de € 4.094,72, a prestação suplementar de acompanhamento de terceira pessoa no montante anual de € 4.387,20, o subsídio de elevada incapacidade no mesmo montante de € 4.387,20 e ainda o subsídio de readaptação também no mesmo valor de € 4.387,20).


Cotejando o que vinha proposto nos artigos 21.º e 23.º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31-12 e ora a ponderar, consubstanciadores dos contornos em que se materializava a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, deles inferimos que, não obstante termos como evidente que o acidente de viação automóvel se desdobra também em acidente de trabalho, isso não confere ao FGA a possibilidade de abater, na indemnização a pagar ao sinistrado, os quantitativos que este tenha recebido da seguradora com quem foi celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho.


A esta razão acresce o argumento que, igualmente, se retira da letra da lei posta no art.º 31.º da Lei 100/97, que não põe à disposição do responsável civil a permissividade de este contrapor ao lesado/sinistrado a excepção peremptória consistente na pormenorizada satisfação da indemnização laboral referente aos mesmos danos que comportam a pretensão compensatória formulada na acção que visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual.

Ao abrigo do regime do seguro de responsabilidade civil automóvel regulado pelo Dec. Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o facto de o acidente de viação automóvel constituir simultaneamente acidente de trabalho não confere ao FGA a possibilidade de deduzir na indemnização a pagar ao interessado os quantitativos que este receba ou tenha recebido da Seguradora com quem foi celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho (Ac. STJ de 09.02.2012; Abrantes Geraldes - Relator; www.dgsi.pt.)


De ambos aqueles normativos legais resulta que o FGA é o primordial, decisivo, absoluto e exclusivo responsável civil pela efectivação dos prejuízos que ao lesado advierem em consequência de particularizado acidente de viação, nestes se incluindo também os danos que o trabalhador/acidentado sofreu no caso de o acidente se catalogar, ainda, como acidente de trabalho.


Queremos com isto dizer que, havendo o FGA de ressarcir o lesado/trabalhador pela totalidade dos malefícios que a este sinistrado/trabalhador foram causados, esta indemnização abrange a reparação da plenitude dos males que em tal circunstancialismo do acidente de viação ocorreram para o sinistrado/trabalhador.

Sendo assim, haverá o FGA de em primeira linha compensar o lesado/trabalhador pelos danos que do acidente de viação lhe advieram e, outrossim, satisfazer ao empregador (ou sua seguradora) tudo o que, a título de responsabilidade pelo também identificado acidente de trabalho, haja pago ao acidentado/trabalhador, impendendo sobre aquela identidade a prova de que tal embolso foi realizado e que esse recebimento constituiu um pagamento indevido.


Deste desenredado entendimento podemos, natural e racionalmente, inferir que o FGA - porque é esta instituição a exclusiva responsável civil por estes danos - está imprescindivelmente impossibilitado de, corporizando o acidente de viação também um acidente de trabalho, deduzir na indemnização que tenha de satisfazer ao sinistrado/trabalhador, o montante que a entidade patronal (ou sua seguradora), tenha concedido ao trabalhador a título de indemnização pelo acidente de trabalho ocorrido.

A este propósito dizemos que a cada uma daquelas entidades (entidade patronal ou sua seguradora) põe o nosso ordenamento jurídico os meios técnico-jurídicos, designadamente mediante a propositura da competente ação contra o FGA, destinados poderem obter o ressarcimento daquele invocado e indevido pagamento.


Relembremos que foi por esta via jurídico-processual que a “Real Seguros”, então denominada “EE Seguros”, encaminhou a satisfação dos seus direitos, ao pretender conseguir, através da ação n.º 4043/10.8TBVLG em que demanda o FGA, reaver do réu o montante pago à lesada em consequência do acidente de viação/trabalho tratado nos autos e sobre a qual se verificou a vicissitude da sua apensação à presente ação.


Perscrutemos o que sobre esta temática expressa o Acórdão STJ de 11.12.2012; Relator - Lopes do Rego; www.dgsi.pt.[2]:

É que no caso de o lesado desencadear a pertinente acção de indemnização contra o lesante, apenas são previstas duas hipóteses:

 - Ou a entidade patronal/seguradora deduz oportunamente incidente de intervenção principal, peticionando em via de regresso aquilo que já pagou ao sinistrado, não podendo, neste caso obviamente o tribunal condenar o responsável a pagar indemnizações sobrepostas simultaneamente ao lesado e à interveniente, repartindo-as logo pelo A. e pelo interveniente activo conforme a medida dos seus direitos (Ac. de 6/3/07, proferido pelo STJ no P.07A189);

- Ou não foi deduzida intervenção principal pela entidade patronal ou respectiva seguradora e, neste caso - não estando legalmente previsto o desconto ou abate da indemnização pelos danos já ressarcidos no foro laboral - terá de reconhecer-se o direito do lesado ao ressarcimento da totalidade do dano sofrido, cabendo a quem satisfez a indemnização laboral a faculdade de, em nova acção movida agora contra o lesado, obter, em via de regresso, as quantias pecuniárias que hajam implicado duplo ressarcimento do mesmo dano concreto sofrido pelo lesado/sinistrado.


Desta análise jurisprudencial podemos concluir, como o faz este aresto do STJ, o seguinte:

 - A responsabilidade primacial e definitiva pelo ressarcimento dos danos decorrentes de acidente de viação que igualmente se perspectiva como acidente de trabalho é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado - pelo que esta fisionomia essencial do concurso ou concorrência de responsabilidades (que não envolve um concurso ou acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita.

 - O interesse protegido através da consagração da regra da proibição de duplicação ou acumulação material de indemnizações é, não o do lesante, responsável primacial pelos danos causados, mas o da entidade patronal (ou respectiva seguradora) que, em termos de responsabilidade meramente objectiva, garantem ao sinistrado o recebimento das prestações que lhe são reconhecidas pela legislação laboral - pelo que não assiste ao lesante o direito de, no seu próprio interesse, se desvincular unilateralmente de uma parcela da indemnização decorrente do facto ilícito com o mero argumento de que um outro responsável já assegurou, em termos transitórios, o ressarcimento de alguns dos danos causados ao lesado - sendo antes indispensável a iniciativa do verdadeiro titular do interesse protegido (traduzida, ou na dedução de oportuna intervenção principal na causa, ou no exercício do direito ao reembolso contra o próprio lesado que obteve indemnização pela totalidade do dano ou na propositura de acção de regresso em substituição do lesado que, no prazo de 1 ano, não mostrou interesse no exercício do seu direito à indemnização global a que teria direito).

 - Aliás, o reconhecimento ao lesante da faculdade de opor ao lesado a excepção peremptória de recebimento da indemnização laboral - alegando na contestação e provando cabalmente que os danos peticionados abrangiam prestações decorrentes da legislação laboral, já integralmente satisfeitas pela entidade patronal ou respectiva seguradora - sempre teria de depender de uma condição fundamental : ser permitido ao titular do direito de regresso ou reembolso efectivá-lo no confronto do lesante ou respectiva seguradora; é que, a não se entender assim, o regime legal conduziria a um resultado anómalo e materialmente inadmissível, traduzido em o abate da indemnização laboral no quantitativo global peticionado pelo lesado acabar por reverter em benefício do próprio lesante, autor do facto ilícito.

    

Relembremos ainda a este propósito que, mesmo que se considere que assiste ao autor do facto danoso, responsável civil pelo malefício provocado, o direito de, arguindo que esse ressarcimento já está assegurado no âmbito do plano laboral, deduzir perante o lesado o valor da parte da indemnização que lhe compete satisfazer, mesmo assim esta argumentação tem de vir acompanhada, sempre, da comprovação de que essa denunciada facticidade realmente ocorreu.

Ora, esta prova, como realça a Relação, não está assegurada.

   

A determinação tomada pela Relação no sentido de que o pretendido direito ao desconto das quantias devidas à autora, a título de reparação do acidente dos autos, na sua dimensão laboral, não pode aqui ser considerado, tem o apoio da lei e da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e, por isso, nela consentimos.


Concluindo:

1. Cotejando o que vinha proposto nos artigos 21.º e 23.º do Dec. Lei n.º 522/85, de 31-12 e ora a ponderar, consubstanciadores dos contornos em que se materializava a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, deles inferimos que, não obstante termos como evidente que o acidente de viação automóvel se desdobra também em acidente de trabalho, isso não confere ao FGA a possibilidade de abater, na indemnização a pagar ao sinistrado, os quantitativos que este tenha recebido da seguradora com quem foi celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho.

2. Mesmo que se considere que assiste ao autor do facto danoso, responsável civil pelo malefício provocado, o direito de, arguindo que esse ressarcimento já está assegurado no âmbito do plano laboral, deduzir perante o lesado o valor da parte da indemnização que lhe compete satisfazer, mesmo assim esta argumentação tem de vir acompanhada, sempre, da comprovação de que essa denunciada facticidade realmente ocorreu.


Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 21 de abril de 2016


António Silva Gonçalves (Relator)

Fernanda Isabel Pereira

Pires da Rosa

_______________________

[1] Artigo 5.º (ação declarativa).

   1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, é imediatamente aplicável às ações declarativas pendentes.

 [2] Solucionou este aresto o conflito de entendimentos jurisprudenciais professados pela Relação de Coimbra nos seus acórdãos referentes aos processos n.º 555/04.0GTAVR.C1 (que estabeleceu que à indemnização a pagar pelo responsável civil deveria ser reduzido o montante já indemnizado no âmbito da responsabilidade por acidentes de trabalho pelo responsável laboral) e n.º 40/08.1TBMMV.C1.S1 (que decidiu que o responsável civil por acidente de viação não tem o direito de abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos), datados de 16/1/08 e 02.02.2010, respetivamente.