Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
402/18.6T8ABT.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
DIREITO DE REGRESSO
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
OFENSA DO CASO JULGADO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A procedência da exceção do caso julgado, não se traduz em qualquer violação incluída na previsão especial do art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, antes ficando a decisão proferida sujeita ao regime geral da admissibilidade do recurso de revista.
II - Pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho, a empregadora só transfere para a entidade seguradora a responsabilidade objetiva, e não a subjetiva fundada no art. 18.º da LAT, isto é, a designada atuação culposa do empregador.
III - Em conformidade se o acidente de trabalho tiver sido provocado pela entidade patronal, ou resultar da falta de observância das regras de segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade decorrente deve ser suportada pelo empregador, se a seguradora tiver satisfeito o pagamento ao sinistrado, até ao limite dos danos cobertos pela responsabilidade objetiva em acidentes de trabalho, exigindo-a em regresso, por via de ação.
Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 402/18.6T8ABT.E1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. SOCAPE – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO FLORESTAL, LDA. veio propor contra LUSITANIA, COMPANHIA DE SEGUROS, SA., ação declarativa com processo comum, pedindo que na sua procedência seja declarado que a A. nada deve à R., estando cobertos pelos riscos próprios do contrato de seguro os danos decorrentes do acidente de trabalho verificado no dia 16 de março de 2015, no estabelecimento da A. no qual foi sinistrado AA, por não ser imputável a qualquer ato culposo da A, que fosse suscetível de a responsabilizar, condenando-se a R. nas custas dos autos, por ter dado causa à ação ao insistir junto da A. por um pagamento a que não tem direito, não obstante lhe terem sido fornecidos todos os elementos necessários para chegar a essa conclusão.

2. Alega para tanto, no relevante, que no dia indicado, nas suas instalações ocorreu um acidente de trabalho, no qual foi sinistrado o referido trabalhador ao seu serviço, tendo sido transferida para a R. a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pelo seu pessoal.

Em conformidade, em processo instaurado no Tribunal do Trabalho ... (processo n.º 1849/15....) não tendo havido conciliação, a R. terá pago a quantia de 48.168,63€, reclamando agora da A. o respetivo reembolso, tendo a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) verificado que a A. não tinha cometido qualquer infração, não dando seguimento ao processo de contraordenação instaurado, pois ao utilizar a máquina com a qual ocorreu o sinistro, estava a servir-se de um equipamento devidamente certificado, por entidade credenciada, que obedecia aos requisitos e regras de segurança exigíveis, enquanto, por outro lado, o trabalhador sinistrado recebeu formação adequada, que lhe foi ministrada por um técnico da empresa proprietária da máquina, tomada de aluguer, que para esse efeito se deslocou às instalações da A. no dia 13.03.2015, tendo o acidente ocorrido no dia 16.03.2015, por descuido ou distração do operador sinistrado.

Tendo sido observados todos os procedimentos legais aplicáveis, não responde pelos danos sofridos pelo trabalhador sinistrado, nem pelo ressarcimento desses danos feito pela R, por não demonstrados que houvesse riscos não cobertos pelo seguro, pelos quais pudesse ser responsabilizada.

3. A R. veio contestar, alegando ser imputável à A. a inobservância das Condições de Segurança necessários ao bom desempenho das tarefas do sinistrado, quando no exercício da sua atividade profissional, ocorreu o acidente de trabalho, e deduzir pedido reconvencional, porquanto a A, entidade patronal, nada fez, permitindo que os trabalhadores laborassem numa máquina, que é notoriamente perigosa, violando as elementares normas de segurança e saúde no trabalho, colocando em risco o sinistrado.

Sendo imputável à A. a inobservância das Condições de Segurança no Trabalho, tendo em conta o acidente em concreto, assiste à R. o direito de regresso das quantias pagas por causa desse acidente, que totalizam 47.971,63€, e também devidos 197,00€, satisfeitos à empresa de averiguações.

Deve assim a A. ser condenada a pagar à R a quantia de 48.168.63€, acrescida dos juros legais.

4. A A. veio responder, pronunciando-se no sentido da improcedência da reconvenção, na reafirmação da falta da devida atenção e cuidado por parte do trabalhador, não havendo facto, omissão nem fundamento algum que determine a responsabilidade pretendida.

5. Foi admitida a intervenção acessória da Sociedade Amorim Florestal, SA. vindo a mesma contestar, invocando que não se concluindo que o acidente resultou apenas da distração do trabalhador, a responsabilidade pode eventualmente recair sobre a entidade patronal, mas não sobre a interveniente, porque a máquina estava devidamente certificada, não tinha qualquer defeito e não necessitava de colocação de protetores de segurança para ser operada.

6. Foi admitida a intervenção acessória SGS Portugal, SA., que na sua contestação invocou a intempestividade e ilegalidade do chamamento, e em termos de impugnação fez o reporte dos trabalhos de verificação e relatórios de inspeção à máquina.

7. Realizado julgamento foi proferida sentença concluindo que “o acidente ocorreu porque o trabalhador, por distração ou descuido, não observando as condições de segurança a que estava obrigado, inexistindo qualquer omissão por parte da Autora que tivesse contribuído para a verificação da ocorrência”, considerou a ação totalmente procedente por provada e a reconvenção totalmente improcedente por não provada e em consequência: a) Declara-se que a A. nada deve à R, em consequência dos danos decorrentes do acidente de trabalho ocorrido em 16.03.2015, no qual foi sinistrado AA, por não lhe ser imputável atuação culposa suscetível de responsabilizar a A.; b) Absolve-se a A/reconvinda do pedido de condenação no pagamento à R/reconvinte, da quantia de 48.168,83, a título de direito de regresso por indemnização paga em sede de acidente de trabalho ocorrido no dia 16 de março de 2015, no qual foi sinistrado AA.

8. Inconformada, veio a R/reconvinte interpor recurso de apelação, questionando o decidido quanto a indicados pontos da matéria de facto, e decorrente enquadramento jurídico, tendo a A/reconvinda se pronunciado que resultava da análise e ponderação da prova produzida que o acidente fora consequência de um erro do operador na utilização da máquina, e não de qualquer deficiência desta, devendo aquela ser condenada como litigante de má fé, por ter alterado a verdade dos factos.

9. Após convite para as partes se pronunciarem sobre a competência em razão da matéria, caso julgado e possibilidade de condenação por litigância de má fé, foi proferido Acórdão da Relação ... que entendendo “que violaria o caso julgado formado pela anterior sentença (na sua vertente negativa) discutir de novo a responsabilidade da entidade patronal” e que a Recorrente litiga de má fé, julgou procedente a exceção do caso julgado, absolvendo a R. da instância, mais a condenando como litigante de má fé, na multa de 50 UC´s.

10. Veio a R., inconformada, interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: (transcritas)

1-A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.

2-A sentença do Tribunal de ... não definiu a responsabilidade pela eclosão do acidente, tendo tratado, unicamente, de conhecer o direito do sinistrado às prestações definidas nos termos da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro.

3- Concluiu a Exma. Juíza de Direito no processo de acidente de trabalho, no despacho saneador, que a decisão naquele processo, não faz caso julgado quanto a um eventual Direito de Regresso da seguradora, o que aliás, é refletido na sentença, daquele processo, quando a mesma Exma. Juíza concluiu, na página 9, nesse sentido, pelo que foram proferidas duas decisões contraditórias.

4- No âmbito do processo de acidente de trabalho ficou assente, somente, por acordo o facto 1 dos factos provados na sentença, relativo ao acidente, o que não permite concluir qualquer responsabilidade pela eclosão do mesmo, tendo a Recorrente sempre referido no processo de trabalho que não aceitava qualquer responsabilidade pelo acidente, já que este tinha ocorrido devido ao incumprimento das regras de segurança por parte da sua entidade patronal.

5-Em 07.11.2016 o sinistrado, com o patrocínio do M.P, deu entrada a P.I somente contra a Recorrente, quando o podia fazer também contra a Entidade Patronal.

6-O pedido formulado na ação de acidente de trabalho consistia no pagamento de prestações devidas ao sinistrado a título de pensão e, bem assim, de despesas de transporte e deslocações.

7-O Tribunal não se pronunciou sobre a responsabilidade da dinâmica do evento ocorrido, tendo ficado assente por acordo nos articulados e tentativa de conciliação somente um facto, ou seja, que “No dia 16/03/2015, pelas 16h55, em ..., ..., o autor, ao operar com uma máquina, ficou com o braço direito preso nessa, resultando traumatismo do braço direito”.

8- Entre a questão tratada no processo de trabalho e o processo movido pela recorrida não existe identidade de partes, pelo que não há risco de contradição naquilo que é igual nem coloca em causa os fins de segurança jurídica e de pacificação social tal como defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 5765/17.8T8LRS.L1.S1, 08-06-2021.

9- Conforme a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a autoridade do caso julgado pressupõe a identidade de sujeitos entre as duas ações, conforme vários acórdãos indicados nas alegações.

10-A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior de trabalho, cujo objeto se insere no objeto da segunda, não obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda.

11-As partes no processo em análise, em relação ao processo de trabalho, são terceiros juridicamente indiferentes, a quem a decisão de trabalho não produz nenhum prejuízo jurídico, porque não interfere com a existência e validade do seu direito.

12- Da conjugação entre o disposto no nº 1 do artº 18º e no nº 3 do artº 79º nº 1 da LAT resulta que, quando o acidente resultar da falta de observância pelo empregador das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.

13-Ao contrário do entendimento do tribunal a quo, considera a Recorrente que não existiu qualquer preterição da Autoridade do Caso Julgado, até porque não existe qualquer prejudicialidade entre objetos processuais.

14- A Recorrente não litiga de má-fé.

15- É a própria juíza do processo de acidente de trabalho que relega o eventual direito de regresso da Recorrente para uma ação posterior.

16-O pedido reconvencional é desencadeado numa ação intentada pela Recorrida entidade patronal, na qual a mesma pretendia provar que não teve qualquer culpa na produção do acidente de trabalho e em que em nenhum articulado invoca a situação da Autoridade do caso Julgado.

17-Não se pode entender que a recorrente deduziu, com dolo ou negligência grave, pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tendo-se limitado, isso sim, a expor o atinente entendimento jurídico, sendo que, não se vislumbra fundamento legal para a respetiva condenação como litigante de má-fé.

18- A sanção por litigância de má-fé apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, como também ao seu antagonista no processo, o que não aconteceu no presente caso.

19-A litigância de má-fé pressupõe a verificação de alguma das situações previstas no art. 542º do CPC, de onde ressalta a dedução de oposição cuja falta de fundamento se não devia ignorar, desde que a parte tenha agido com dolo ou negligência grave, o que o tribunal a quo não demonstra, muito menos só pelo simples facto da recorrente ser uma seguradora que “bem conhece as regras desta matéria”.

11. A A. veio apresentar contra-alegações formulando nas mesmas as seguintes conclusões: (transcritas)

1º) O recurso interposto pela Ré-Reconvinte, “Lusitânia Companhia de Seguros S.A .” não pode fundar-se na regra do art. 629, nº 2, al a) do C.P.C, posto que, justamente, no recurso, a Recorrente nega que haja ofensa de caso julgado, que nesse dispositivo se pressupõe como fundamento de recurso, “independentemente do valor da causa e da sucumbência”;

2º) O fundamento do recurso previsto na citada al. a) do dito artigo 629º, nº 2, é apenas a ofensa do caso jugado, pelo que apenas é admissível se a decisão recorrida ofender caso julgado – o que não é, manifestamente, o caso do douto acórdão recorrido, o qual, ao contrário, julgou improcedente a douta apelação, por entender que o pedido reconvencional, em si mesmo, viola a autoridade do caso julgado;

3º) Transitou em julgado, por conseguinte, a decisão de mérito que foi proferida pelo douto acórdão recorrido;

4º) Sendo legalmente admissível o recurso da douta decisão que condenou a Recorrente como litigante de má-fé (art. 542º, nº 3, CPC), só essa matéria pode ser objeto de conhecimento do tribunal ad quem;

5º) Nesse conhecimento, não poderá deixar de se levar em conta que a interposição da presente revista, pelas razões que foram expostas, apenas reforça a conclusão sobre a má-fé da Recorrente, a qual, não se limitando a questionar o juízo sobre a litigância de má-fé, procura à outrance discutir ainda o mérito da causa, sobre a qual se formou antes caso julgado, fazendo desse modo um uso manifestamente reprovável dos meios processuais;

6º) Deverá a Ré-Reconvinte ser condenada a pagar à A, uma indemnização global de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), acrescendo a esse valor o IVA que for devido, nos termos previstos pelo art. 543º, nº 1, al. a) do Cod. Proc. Civil, exclusivamente visando o pagamento dos honorários de advogado, embora se considerem assim ressarcidos todos os prejuízos que a ação lhe causou, sendo alguns dificilmente quantificáveis – sendo o pagamento efetuado, não ao Advogado, mas sim diretamente à A., que os processará, a final, com a liquidação do IVA e a dedução de IRS, e deixando, nessa hipótese, de se reclamar, em sede de custas de parte, a compensação prevista na alínea c) do nº 3 do art. 26º, do Regulamento das Custas Processuais. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.

12.  A A. veio requerer que fosse estendida a condenação da R como litigante de má-fé à indemnização a esse título, que fora expressamente peticionada.

13. Em conferência, o Tribunal da Relação condenou a R na indemnização de 2.000,00€.

14. Novamente inconformada, veio a R. interpor recurso, formulando nas suas alegações, as suas conclusões:(transcritas)

1-O tribunal a quo não se pronunciou sobre os factos, alegados pela Recorrida, em que, segundo ela, assenta a litigância de má-fé da Recorrente pelo que nos termos do art.º 615 nº1 al d) do C.P.C (primeira parte) o referido acórdão é nulo.

2-Não podia o tribunal a quo condenar a Recorrente em valor como litigante de má-fé sem avaliação dos pressupostos invocados pela Recorrida.

3-Não merece qualquer juízo de censura o facto da Recorrente trazer ao processo a invocação que a recorrida fez no processo de contraordenação, da sua atuação sem consciência da ilicitude, relegando este facto para livre apreciação do tribunal da relação.

4-O documento nº 5 representa tão só a contestação no processo contraordenacional e não a defesa na impugnação judicial da decisão de aplicar a coima nos termos do artº 32 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.

5-Não faltou a Recorrente à verdade dos factos quando invocou nas suas alegações de recurso que a Recorrida, no processo de contraordenação alegou a sua atuação sem consciência da ilicitude, já que este facto é confirmado pela sentença do processo de contraordenação, junta aos autos, onde se discutiu tal questão.

6-Não apresentou a Recorrida qualquer prova dos prejuízos sofridos e despesas, nos termos do artº 543 nº1 al b)

7- Por regra, a indemnização ao abrigo do preceito, 543 nº1 al b) do C.P.C, não pode exceder o âmbito processual em que a má-fé operou, o que foi olvidado pelo tribunal a quo, ao aplicar um valor indemnizatório manifestamente exagerado.           

15. Em conferência, o Tribunal da Relação ... julgou improcedente a arguição da nulidade efetuada pela Recorrente.

16. Cumpre apreciar e decidir.

*

            II – Enquadramento facto-jurídico

1. da factualidade

Na sentença proferida foi considerada como provada a seguinte factualidade:

Do seguro de acidentes de trabalho

1. No dia 16 de Março de 2015, pelas 16h 55m, no estabelecimento da Autora, onde se produz carvão vegetal, sito no ..., na freguesia ..., concelho ... ocorreu um acidente de trabalho, no manuseamento de uma máquina de descasque de lenha, no qual foi sinistrado o trabalhador ao serviço da Autora, AA.

2. A Autora tinha transferido para a Ré, Lusitânia Companhia de Seguros S.A., a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos por pessoal ao seu serviço, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...16, do ramo acidentes de trabalho. [Vide doc. de fls. 124 e ss.]

3. No processo instaurado no Tribunal de Trabalho ... pelo sinistrado AA, contra a ora Ré Lusitânia Companhia de Seguros S.A. (processo nº 1849/15....) não tendo havido conciliação, foi considerado que “… nos termos do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre a entidade patronal do sinistrado e a segurador, é esta última responsável pelos pagamento devidos ao sinistrado, sendo, por isso, condenada nesse pagamento, podendo depois, se assim o entender, exercer o direito de regresso contra a entidade patronal daquele, em ação cível própria a intentar, caso julgue estarem verificados os necessários pressupostos que legitimem essa pretensão” [Vide fls. 151 e ss.]

4. Assim, na referida ação, a Ré Lusitânia Companhia de Seguros S.A., foi condenada a pagar ao referido AA “..o capital de remição de uma pensão anual e obrigatoriamente remível de € 1.746,32, devida desde 31/10/2015 acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde essa data e até integral pagamento e no pagamento da quantia de €80,00 a título de indemnização por deslocações obrigatárias, acrescida de juros legais desde 07/07/2016 até integral pagamento”. [Vide fls. 151 e ss.]

5. Em consequência do acidente de trabalho a Ré Lusitânia pagou as seguintes quantias:

a) Serviço ambulatório € 348,33;

b) Despesas judicias €907,80;

c) Despesas com o Serviço Nacional de Saúde €10.009,34;

d) EAD – RX 11,00;

e) Honorários de advogado e representante legal no Tribunal de Trabalho €992,50;

f) Incapacidade temporárias absolutas € 3.479,28;

g) Juntas médicas € 300,00; h) Juros €1.995,64;

i) Medicamentos €0,63;

j) Medicina Física e Reabilitação €400,00; k) Subsídios € 524,40;

l) Transportes coletivos €110,25;

m) Transporte próprio €313,92;

n) Capital de remissão €28.688,54;

o) Pagamento efectuado a empresa de averiguações €197,00.

6 . Tudo no total de €48.186,63 (quarenta e oito mil cento e sessenta e oito euros e sessenta e três cêntimos) [Vide documentos de fls. 210 a 212, 215 a 216, 217 a 225 e 453 a 482]

7. Reclamando agora da Autora o reembolso dessa importância [Vide doc. de fls. 17 e 18]

8. Na sequência, aliás, de anteriores solicitações, no mesmo sentido [Vide docs. de fls. 19 a 22]

9. Já desde 2016,

10. Apesar de a Autora lhe der explicado as razões pelas quais não podia reconhecer à Ré, qualquer direito de regresso [Vide docs. de fls. 21,22, 83 a 84 e 85 a 87]

Da máquina

11. A máquina de descasque é constituída por dois rolos cuja função consiste no descasque e condução da lenha [vide fls. 404 e 405v]

12. Do Manual de instruções da máquina consta:

a) Em todo o processo, existe apenas um operador que coloca a lenha entre dois rolos que neste caso tem a dupla função de puxar e descascar a lenha em simultâneo;

b) A separação dos dois produtos não exige a intervenção humana, caindo um num tapete específico;

c) Nunca se deve ter as mãos próximas dos rolos quando a máquina se encontra em funcionamento [Vide fls. 51,52 e 53]

13. A máquina tem uma zona de trabalho do operador do equipamento [Vide foto 2 de fls. 405v e fls. 404]

14. (..) e tem uma zona de elementos móveis. [Vide foto 3 de fls. 405v e fls. 404]

15. As duas zonas estão separados por um protetor em rede metálica que impedia o acesso do operador à zona perigosa [Vide foto 1de fls. 405v e fls. 404]

16. Na zona de trabalho do operador além dos comandos existe uma betoneira de emergência que quando acionada interrompe o movimento do elemento móvel [Vide fls 404]

17. O elemento móvel é constituído por dois rolos, na abertura dos quais são introduzidos os troncos a descascar, e com recurso a uma alavanca situada na zona de trabalho do operador, os rolos vão-se aproximando um do outro descascando os troncos, deixando de pressionar a alavanca os rolos param [Vide fotografias de fls 181, 240, 241, 404 e 405v]

18. O operador da maquina posiciona-se de lado, na zona dos comandos, introduz manualmente os troncos, depois ajusta os mesmos e põe a máquina a funcionar, os rolos procedem ao descasque dos troncos, sem intervenção do operador, que se mantém na sua zona, protegido pela rede metálica de segurança. [Vide fotografias de fls. 181, 240, 241, 404 e 405v]

19. Para introduzir mais troncos deve previamente parar os rolos, introduzir os troncos, mantendo-se sempre na zona protegida, e aciona novamente os rolos. [Vide fotografias de fls 181, 240, 241, 404 e 405v]

Da inspeção à máquina

20. A máquina pertencia à sociedade Amorim Florestal S.A. a quem a Autora a tomou de aluguer.

21. Em Fevereiro de 2013, a pedido da Amorim Florestal S.A,. a ora SGS Portugal – Sociedade Geral de Superintendência S.A., inspecionou a máquina em causa, tendo concluído:

- não existir identificação de modo a ser possível o seu rastreamento;

- não se encontrarem identificados os comandos

- não se encontrarem identificados os pontos de abastecimento de combustível;

- não existir sinalização de segurança;

- não existir manual de instruções; [Vide fls. 338a 341]

22. Em Agosto de 2013, a referida SGS Portugal – Sociedade Geral de Superintendência S.A., procedeu a nova inspeção e verificou que todas as não conformidades detetadas em Fevereiro tinha sido, supridas, pelo que elaborou novo relatório que confirmou a aceitação da máquina, concluindo:

- reunia os requisitos aptos a evitarem o “risco de contacto mecânico”, pois os seus elementos móveis dispunha de proteção conformes ao Dec. Lei 50/2005;

- tinha uma protetor que impedia o acesso à zona perigosa;

- tinha um dispositivo que impedia o movimento dos elementos móveis antes de o operador ter acesso a essa zona;

-os protetores e dispositivos de proteção eram de construção robusta, não causavam risco suplementar, a sua robustez não permitia que fossem facilmente neutralizados, estavam situados a distância suficiente da zona perigosa e não limitavam a observação do ciclo de trabalho [Vide fls. 338a 341 e 405]

Formação para manuseamento da máquina

23. O trabalhador sinistrado recebeu formação adequada, que lhe foi ministrada por um técnico da empresa proprietária da máquina.

24. Que para esse efeito se deslocou às instalações da Autora, no dia 13 de Março de 2015.

Do acidente

25. O acidente resultou do facto de o sinistrado, no dia hora e local acima referidos, ao operar com a referida maquina, ter, por descuido ou distração sua, introduzido um tronco com os rolos em movimento, o que determinou que a sua mão fosse arrastada com o toro de madeira que estava a ser descascado, devido à circunstância de a luva que usava nessa operação ter ficado presa no mecanismo de corte da máquina.

Do Recurso de contraordenação

26. Na sequência do acidente supra referido, a Autoridade Para as Condições de Trabalho, levantou um Auto de Notícia e imputou à ora Autora a prática de uma contra ordenação prevista e punida pelo nº1 do artº16 e nº1 do artigo 4º do Dec. Lei nº 50/2005 de 25 de Fevereiro, [Vide fls. 24a 32]

27. (…) consubstanciada na ausência, na máquina em questão, de protetores que impedissem o acesso às zonas perigosas ou dispositivo que interrompa o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essa zona; [Vide fls. 24 a 32]

28. (..) concluindo que a máquina não cumpria os requisitos mínimos de segurança. [Vide

fls. 24a 32]

29. A ora Autora apresentou Resposta, na qual, além do mais alegou que o equipamento em causa obedecia às regras de segurança aplicáveis e que acidente se deveu a erro do operador e não a deficiência da máquina. [Vide 86 a 87]

30. Na sequência de recurso de contraordenação apresentada pela Autora e que correu termos no Tribunal de Trabalho ... – ... sob o nº 1836/18...., foi, em 19/02/2019, proferida decisão que absolveu a então Arguida e ora Autora da prática da supra referida contra ordenação com fundamento que “… a arguida agiu sem consciência da ilicitude do facto, não lhe sendo o erro censurável” [Vide certidão fls. 374 a 388].

3. do direito

3.1. da admissibilidade do recurso.

A Recorrente veio interpor recurso do Acórdão proferido pela Relação ... ao abrigo do disposto nos artigos 629, n.º 2, a) e 542, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil (CPC), invocando a não preterição da autoridade do caso julgado e a inexistência de litigância de má fé.

Nas contra-alegações apresentadas pela Recorrida (SOCAPE – Sociedade de Exploração Florestal, Lda.), concluiu a mesma ser apenas admissível o recurso quanto à litigância de má fé, já que o fundamento invocado – ofensa do caso julgado, não se verifica.

No despacho que ordenou a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, admitindo o primeiro recurso apresentado, bem como o segundo relativamente à indemnização na sequência da condenação por litigância de má fé solicitada pela Recorrida, consignou-se que a questão colocada por esta última no que concerne à admissibilidade do recurso, tinha mais que ver com o objeto do recurso do que com a sua admissão.

Sabendo-se que tal despacho não vincula este Tribunal, conforme decorre do art.º 641, n.º 5, do CPC, em causa está o recurso do Acórdão do Tribunal da Relação ... que entendendo discutir de novo a responsabilidade da entidade patronal – Recorrida, violaria o caso julgado formado pela anterior sentença (na sua vertente negativa) não conheceu do mérito da causa englobando a impugnação da matéria de facto, e assim no julgamento da exceção de caso julgado, absolveu a Recorrida da instância, e  considerou ainda que a Recorrente litigava de má fé, condenando-a na multa de 50 UC’s e a após, no suprimento de nulidade por omissão de pronúncia, na indemnização de 2.000,00€.

A Recorrente estriba-se no disposto no art.º  542, n.º 3, do CPC, no concerne ao recurso desta última condenação, o que não suscita quaisquer dúvidas, em termos de admissibilidade, porquanto tendo a mesma ocorrido em sede do Acórdão da Relação, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível o recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.

Convoca também o previsto no artigo 629, nº 2, a), do CPC, isto é, “Independentemente do valor da causa e da sucumbência é sempre admissível recurso (…) na ofensa de caso julgado”.

Importa contudo precisar o entendimento que se vem seguindo do sentido da “ofensa do caso julgado” vertido nessa disposição legal, porquanto apenas haverá ofensa do caso julgado no caso de decisões que não respeitando uma anterior decisão que tenha incidido sobre a mesma questão fundamental de direito, na vertente material ou processual, conheça daquela decidindo de forma diversa, e não na situação que considerando-se materialmente idênticas duas decisões, sobre tais questões, haja uma recusa em conhecer de uma delas invocando a preexistência da primeira, isto é, a pronuncia sobre a exceção de caso julgado, dando a mesma como procedente, não tem como fundamento a ofensa ou violação do caso julgado[1].

Deste modo, como no caso sob análise, considerando-se procedente a exceção do caso julgado, não se verifica qualquer violação incluída na previsão especial do aludido art.º 629, n.º2, a), antes ficando a decisão proferida sujeita ao regime geral da admissibilidade do recurso de revista.

Ora o art.º 671, n.º1, do CPC, estabelece que “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação, proferido sobre a decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

Sem prejuízo da formulação normativa adotada em tal preceito, não se questiona o relevo atribuído ao efeito extintivo da instância, ou da instância reconvencional por efeitos adjetivos, como é o caso da absolvição da instância por afirmada a existência de caso julgado, sendo certo que a mesma põe termo ao processo.

Por outro lado, verificados os requisitos gerais de admissibilidade, tempestividade, valor e sucumbência, não se constata a existência de dupla conforme, porquanto, estamos perante duas decisões com fundamentação essencialmente diferente, em 1.ª instância apreciando o mérito da ação e reconvenção, enquanto no Acórdão sob recurso houve pronúncia sobre uma exceção dilatória.

Mostram-se assim reunidos, os pressupostos necessários para o conhecimento do objeto dos recurso de revista interpostos.

3.2. da exceção do caso julgado.

Em sede do Acórdão sob recurso, considerando que o direito de regresso da seguradora, aqui Recorrente, contra a entidade empregadora, Recorrida, existe nos casos em que haja responsabilidade desta por violação de regras de segurança, nos termos dos artigos 18.º e 79, n.º 3, da Lei de 98/2009, Lei de acidentes de trabalho (LAT), entendeu, contudo, que o tribunal que definiu a situação jurídica e as responsabilidades emergentes do acidente não atribuiu nenhuma responsabilidade à entidade empregadora, pese embora a questão tivesse sido levantada pela Recorrente, não tendo esta merecido assentimento pelo Tribunal, pois definiu a situação como uma responsabilidade objetiva, pelo que violaria o caso julgado formado pela anterior sentença (na sua vertente negativa) discutir de novo a responsabilidade da empregadora.

Vejamos.

Como se sabe a decisão forma caso julgado quando o nela contido se torna imodificável ou imutável, consignando o art.º 628, que transita em julgado, logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, isto é, no primeiro caso, recurso ordinário, por as partes terem deixado decorrer o prazo para interposição do recurso, art.º 638, n.º1, por terem renunciado ao recurso ou dele terem desistido,  art.º 632, ou no caso do valor da causa ou sucumbência não comportar a interposição do recurso, art.º 629. Já quanto ao segundo, reclamação, quando as partes deixam decorrer o prazo geral de dez dias para arguição de nulidades ou reforma do despacho, conforme decorre dos artigos 149, n.º1, 615, n.º4 e 616, todos do CPC.

Compreensivelmente o caso julgado consubstancia-se na expressão dos valores da segurança e da certeza precisos em qualquer ordenamento jurídico, numa exigência de boa administração da Justiça, com o correto funcionamento dos tribunais, obstando que sobre a mesma situação recaiam decisões contraditórias, assegurando assim a sempre pretendida paz social.

Também não se questiona que o caso julgado material reporta-se a decisão que se prende com o mérito da causa, no concerne à relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo, obstando que o mesmo ou outro tribunal possa definir de modo diverso o direito concreto aplicável à relação material em litígio, art.º 619 n.º 1, do CPC, o designado efeito negativo, com a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente outros à decisão proferida, efeito positivo.

A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, cuja finalidade é evitar a repetição das causas, art.º 580, do CPC, implicando a tríplice identidade, de sujeitos, pedido e causa de pedir, enquanto a autoridade de caso julgado, por via da qual é exercida a função positiva, pode funcionar independentemente da indicada tríplice identidade, pressupondo, contudo, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida[2].

Saliente-se, com relevância, em termos do alcance do caso julgado sobretudo material, mas com interesse para o caso julgado formal, que apesar da discussão quanto a tal âmbito, é prevalecente o entendimento que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é, o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, como conclusão de certos fundamentos, no reconhecimento de autoridade de caso julgado a todos os motivos objetivos, enquanto questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado[3].

Doutro modo, pode dizer-se, que embora o dispositivo da decisão constitua caso julgado, frequentemente há que relacioná-lo com os seus fundamentos para se determinar o verdadeiro alcance da decisão[4], pelo que a formação do caso julgado, para além da parte dispositiva do decidido, alarga-se à resolução das questões que a sentença tenha a necessidade de resolver como premissa da conclusão formada[5].

Atente-se que na atividade interpretativa da decisão judicial, releva atender não só ao que expressamente consta do seu dispositivo, mas também ao pedido e a causa de pedir, na sua devida articulação, e ao que da mesma dimana no decidido, com recurso, se necessário aos tramites processuais desenvolvidos, enquanto antecedentes lógicos que permitiram a formulação achada, na procura da sua total inteligibilidade[6], e até quando controvertida, a consideração autónoma da sua extensão a outros litígios entre as mesmas partes[7].

Reportando aos autos, quer em termos de simples apreciação negativa, por parte da Recorrida, quer como reconvenção, deduzida pela Recorrente, mostram-se os mesmos configurados como o exercício do direito de regresso por parte da seguradora, Recorrente, contra a entidade patronal, Recorrida, por ter satisfeito uma indemnização a um dos seus trabalhadores, vítima de acidente de trabalho, no cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrados por ambas, sob a invocação de falta de observância de condições de segurança pela empregadora, a que esta estava adstrita, com respaldo nos artigos 79, n.º1, “O empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, e n.º 3, da LAT, “Verificando-se alguma das situações referidas no art.º 18, a seguradora responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso”, isto é, conforme o aludido art.º 18, também da LAT, ocorra atuação culposa da empregadora, caso da aludida inobservância das regras sobre a segurança e saúde no trabalho.

Com efeito, o regime especial da responsabilidade civil por acidentes de trabalho, e posterior exigência de seguro obrigatório “ foram concebidos como um regime mais favorável para os sinistros do trabalho, garantindo-lhes, desde logo, uma reparação do dano mais rápida (…). Na realidade, a introdução desta responsabilidade era, na matriz histórica, concebida como uma significativa vantagem para o sinistrado, porquanto sendo inicialmente uma responsabilidade pelo risco, primeiro pelo risco profissional e depois pelo risco de autoridade, dispensava um dos requisitos tradicionais da responsabilidade civil, a saber, a culpa do agente”[8].

Sendo acidente de trabalho, nos termos do art.º 8, n.º 1, da LAT, aquele que se verifica no local e tempo de trabalho, produzindo direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional, ou doença de que resulte redução da capacidade de trabalho ou de ganho, a “reparação nos acidentes de trabalho, quando se trata de responsabilidade objetiva, centra-se exclusivamente na perda da capacidade de trabalho ou de ganho[9].        

No entanto, a LAT não consagra apenas a responsabilidade objetiva da entidade patronal, acolhendo também situações de responsabilidade subjetiva, a designada atuação culposa do empregador, prevista no aludido art.º 18,  numa abrangente reparação da totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e os seus familiares, nos termos gerais.

Pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho, a empregadora só transfere para a entidade seguradora a responsabilidade objetiva, e não a subjetiva fundada no art.º 18, da LAT, daí que se o acidente tiver sido provocado pela entidade patronal, ou resultar da falta de observância das regras de segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade decorrente deve ser suportada pelo empregador, e deste modo se a seguradora tiver satisfeito o pagamento ao sinistrado, até ao limite dos danos cobertos pela responsabilidade objetiva em acidentes de trabalho, tendo em conta o também já referido art.º 79, n.º 3, da LAT, “em regresso exige esse valor ao responsável”[10].

Volvendo aos autos temos vertido na sentença, que em processo instaurado no Tribunal do Trabalho pelo sinistrado, contra a seguradora, aqui Recorrente, por não ter  havido conciliação, veio esta a ser condenada a pagar uma pensão obrigatoriamente remível, juros de mora e despesas com deslocações, satisfazendo aquela o pagamento do capital de remissão e mais despesas indicadas, cujo montante pretende agora se ver ressarcida no processo ora em curso.

Resulta desde logo que na ação de acidente de trabalho o sinistrado configurou a sua pretensão em termos de responsabilidade objetiva, conforme fora transferida para a seguradora, e desse modo veio a obter satisfação, não sendo irrelevante tal enquadramento na atendibilidade dos possíveis danos ressarcíveis, muito mais vasta do que a compensação pretendida e obtida.

Atente-se, que independentemente da invocação ali realizada pela Recorrente enquanto demandada, que a empregadora teria inobservado regras de segurança próprias da atividade desenvolvida, entendida como visando, de imediato, exonerar-se da obrigação que sobre a mesma impendia por força da celebração do contrato de seguro, não foi a empregadora, ora Recorrida, chamada a tais autos, nem discutida a eventual responsabilidade subjetiva que sobre a mesma pudesse incidir, face não só à causa e pedido formulado na ação de acidente de trabalho, mas também perante o mecanismo legalmente estabelecido de “direito de regresso”, a ativar em momento e sede próprias, como o caso dos presentes autos, permitindo o ressarcimento da seguradora do que satisfizera, desde que reunidos os pressupostos para tanto, maxime, a inobservância das devidas regras de segurança.

E nesta sequência, não releva uma aludida preclusão, no sentido que não tendo sido discutida a eventual responsabilidade subjetiva da entidade patronal em sede da ação de acidente de trabalho, não só no sentido apontado no Acórdão sob recurso, de toda a defesa dever ser apresentada na contestação, mas também por não haver imposição adjetiva própria decorrente do art.º 127, n.º1, do Código de Processo de Trabalho, pois a possibilidade de o juiz fazer intervir qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, justifica-se quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o que não era, e assim foi entendido, o caso na ação de acidente de trabalho interposta, determinada que estava a entidade responsável, conforme os termos delineados do litígio, isto é, a seguradora, respondendo em primeira linha, em termos objetivos, como se vinculou.

Por outro lado, e como já se referiu, estando em discussão nestes autos saber se estão reunidos os pressupostos do direito de regresso invocado pela Recorrente, na invocação de não acatamento de condições de segurança no desempenho da atividade laboral no qual ocorreu o acidente de trabalho, e cujo factualismo se mantém aqui incólume, no concerne à responsabilidade objetiva, não se afigura que esteja reunida a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir quanto à ação de acidente de trabalho e os presentes autos, que permita concluir pela existência da exceção de caso julgado, obstando a que seja apreciado o pedido diverso formulado pela Recorrente, isto é, o pagamento do satisfeito ao sinistrado, tendo causa de pedir distinta reportada a responsabilidade subjetiva em sede acidentes de trabalho, patenteando-se serem diferentes as partes.

Deste modo, afastada a existência da exceção do caso julgado, tal como foi entendido no Acórdão recorrido, não pode tal decisão manter-se, sendo assim anulada, ficando sem efeito a condenação por litigância de má fé, e remetidos os autos à Relação, com vista ao conhecimento do objeto do recurso de Apelação interposto pela Recorrente.

           

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III – DECISÃO

Nestes termos, anula-se o Acórdão recorrido, com baixa dos autos ao Tribunal da Relação para conhecimento do objeto do recurso de apelação.

Custas pela Recorrida, conforme o n.º1 e n.º 2 do art.º 527, do CPC.

Lisboa,  12 de julho de 2022

Ana Resende (Relatora)

Ana Paula Boularot

José Rainho

                                                          

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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Cf. entre outros, Ac. STJ de 18.02.2021, processo n.º 26151/16.1T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, na referência dos Acórdãos do STJ de 24.05.2018, processo n.º 2332/14.1TBALM.E1.S2, de 18.10.2018, processo n.º 3468/16.0T9CBRC.C1.S1, e de 4.7.2019, processo n.º 2010/12.6TBGMR-E.G1.
[2] Cf.  entre outros, o Ac. STJ de 17.12.2019, processo n.º 1181707.8TTPRT-H-P1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Ac. STJ de 8.03.2018, processo, n.º 1306/14.7TBACB-T.C1.S1, com ampla referência doutrinária, in www.dgsi.pt,
[4] Cf. Ac. STJ de 17.02.2022, processo n.º 1347/21.8T8BRG.S1, referenciando, para além de avultada jurisprudência, a síntese feliz, de Carnelutii, a sentença não é “nem dispositivo, sem motivos, nem motivos sem dispositivo, mas a fusão deste com aqueles”, in www.dgsi.pt.
[5] Cf. Ac. STJ de 16.02.2016, processo n.º 199/12.3TBFND.C1.S1.
[6] Cf. Ac. STJ de 24.11.2020, processo n.º 22741/12.0YYLSB-A.L1.S1,in www.dgsi.pt.
[7] Cf. Ac. STJ 19.05.2020, processo n.º 6673/10.9TBCSC-D.L1.S1.
[8] Júlio Manuel Vieira Gomes, “Algumas reflexões críticas sobre a responsabilidade civil por acidente de trabalho”, in JULGAR, n.º 43, 2021, pág. 133.
[9] Júlio Manuel Vieira Gomes, obra citada, pág.135 e 136, referindo “ a própria morte só releva, no essencial, como destruição final dessa força de trabalho”.
[10]   Pedro Romano Martinez, in “Direito do Trabalho”, 9.ª edição, pag. 900 e 901, referindo que na versão anterior da LAT estipulava-se que em caso de atuação culposa do empregador o segurador era subsidiariamente responsável pelas prestações, sendo tal responsabilidade subsidiária criticada e interpretada restritivamente, nos termos agora constantes do art.º 79, n.º 3, da LAT.