Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
513/19.0T8VPA.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: REJEIÇÃO DE RECURSO
INTERPRETAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Não sendo caso de total inexistência, só quando de todo se não consiga vislumbrar conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso; nos demais casos cabe ao tribunal de recurso delimitar o respectivo âmbito, face ao que depreende serem as questões relevantes, considerando a decisão recorrida e o conteúdo da alegação e das conclusões, com respeito do contraditório.

II - Na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.

III – Se o acórdão em apelação procedeu ao confronto dos meios de prova decisivos, alinhando claramente as razões pelas quais decidiu julgar não provados determinados factos, antes julgados provados em 1ª instância, não cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar, em termos materiais, a apreciação da prova efectuada em 2ª instância, mesmo que por substituição da decisão anteriormente proferida em 1ª instância, visto o disposto no art.º 674.º n.º 3 CPCiv.

Decisão Texto Integral:                                                                             

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

AA intentou a presente acção, com processo comum de declaração, contra BB e mulher CC, peticionando a condenação dos Réus a pagar ao Autor a quantia de € 39.803,89, acrescidos dos juros vincendos até integral e efetivo pagamento.

Alegou que, até 2010, o Réu marido solicitou ao Autor a execução de vários trabalhos da arte de eletricidade, nas obras que aquele levava a cabo, bem como lhe solicitou o fornecimento de diversos materiais que aplicava diretamente ou cujos trabalhos entregava a outros profissionais que contratava para o efeito.

Os trabalhos e fornecimentos constantes das folhas de orçamento acabaram por nunca terem sido facturados ao Réu, por este também não pretender facturar os trabalhos que realizava aos seus clientes.

Em finais de 2010, havia um passivo acumulado de € 24 139,30.

Contestando, os Réus impugnaram a invocada prestação de serviços, concluindo pela improcedência da acção.


As Decisões Judiciais

Em 1ª instância, a acção foi julgada parcialmente procedente e os Réus condenados a pagar ao Autor a quantia de € 24 138,80€, acrescida de juros de mora computados à taxa aplicável às obrigações comerciais, desde a citação até integral pagamento.

Tendo os Réus recorrido de apelação, na decisão desta a Relação julgou em parte procedente a impugnação dos factos e, após apreciação do direito aplicável, mais decidiu absolver os Réus do pedido.

Na apreciação preliminar do recurso, na Relação, foi proferido o seguinte despacho:

“Analisando, em pormenor, a alegação de recurso apresentada pelos apelantes, verifica-se que os recorrentes no que fazem constar sob “conclusões”, limitam-se a reproduzir o extenso corpo das suas alegações, aí “colando” e numerando o que, já havia escrito anteriormente com insignificantes alterações de pormenor na redacção e agrupamento.”

“Como vem sendo entendido por forte corrente jurisprudencial de todas as Relações, a repetição nas conclusões, do que é dito na motivação, traduz-se em falta de conclusões, pois é igual a nada, repetir o que se disse antes na motivação- negrito nosso. Por todos Ac. da Relação do Porto de 23/4/2018, processo 6818/14.0YIPRT.P1(relator Manuel Domingos Fernandes).”

“Consideramos, por isso, e porque nada de novo (a sintetizar) foi feito, mas, mero acto inútil, de repetição do já dito, não cumprido o ónus de apresentação de conclusões, o que não pode deixar de conduzir à rejeição do recurso, por aplicação da al. b), do nº 2, do artigo 641º do CPC, decisão esta que vamos proferir.”

“Antes de mais e com vista ao exercício do contraditório notifique as partes desta pretensão e para no prazo de 10 dias se pronunciarem, querendo.”

Em decisão da matéria em causa, do corpo da fundamentação de direito do acórdão proferido, retira-se:

“A formulação das conclusões do recurso tem como objectivo sintetizar os argumentos do recurso e precisar as questões a decidir e os motivos pelos quais as decisões devem ser no sentido pretendido. Com isso pretende-se alertar a parte contrária – com vista ao pleno exercício do contraditório – e o tribunal para as questões que devem ser decididas e os argumentos em que o recurso se baseia, evitando que alguma escape na leitura da voragem da alegação, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.”

“Esse objectivo da boa administração da justiça é, ou devia ser, um fim em si. O não cumprimento dessa exigência constitui não apenas uma violação da lei processual como um menosprezo pelo trabalho da parte contrária e do próprio tribunal. Daí que o artigo 641.º, n.º 2, do Código de Processo Civil comine a falta de conclusões com a sanção da rejeição do requerimento de interposição de recurso, funcionando essa sanção de forma automática, sem qualquer convite prévio ao aperfeiçoamento, como sucede quando as conclusões sejam deficientes, obscuras ou complexas (artigo 639.º, n.º 3 do C.P.C).”

“Ora, no caso, como infelizmente se vai tornando norma, verifica-se que os recorrentes nas intituladas “conclusões” repetiram e muito as alegações.”

“Do ponto de vista substancial, os recorrentes não formularam conclusões do recurso como deviam.”

“Por conseguinte do ponto de vista substancial, a consequência devia ser a pura e simples rejeição do recurso por falta de conclusões. Com efeito, se essa sanção se aplica mesmo nas situações em que a falta se deve a mera desatenção ou até lapso informático, deve aplicar-se por maioria de razão às situações em que consciente e deliberadamente o mandatário se limita a repetir o texto das alegações, não podendo deixar de saber que não está, como devia, a formular conclusões.”

“Considerando, no entanto, a simplicidade das questões vamos prosseguir e apreciar as mesmas.”


Inconformado agora o Autor, recorre de revista, formulando as seguintes conclusões de recurso:

1.ª Conforme o Tribunal da Relação bem notou, o Réu, enquanto Recorrente, limitou-se a reproduzir integralmente em sede de Conclusões o que havia escrito em sede de Motivação.

2.ª Ao actuar da forma descrita, não está em causa a qualidade das conclusões mas a efectiva omissão destas uma vez que recorrente se limita a motivar, duas vezes o recurso.

3.ª A preterição de uma formalidade legal e essencial deveria ter tido como única consequência a rejeição do recurso interposto da Primeira Instância e não a sua admissão por, no entender da Venerada Relatora, a matéria submetida à discussão, ser de apreciação simples.

4.ª Atento o exposto, deverá ser revogada a decisão de admissão do

recurso, e, em sua substituição, ser proferido acórdão que determine a rejeição do recurso de primeira instância interposto pelo Réu. Sem prescindir,

5.ª Na análise da matéria de facto, a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, o que se traduz no facto de a 1.ª instância estar melhor posicionada para a valoração da prova testemunhal.

6.ª Por esse motivo, na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.

7.ª Obrigam, por via disso, os princípios da imediação e da oralidade, enquanto dois corolários do princípio da livre apreciação da prova que o Tribunal da Relação, não pode dar uma excessiva valorização daquilo que foi dito, em detrimento do “como foi dito”.

8.ª A valorização da forma como as coisas foram ditas consta da motivação do julgamento da matéria de facto no âmbito da qual, no caso em apreço, o Tribunal de 1.ª instância entendeu:

a) O A. “Explanou com entorno fundamentante que, entre os anos de 2000 e 2010, executou, a pedido do Réu BB, diversas instalações elétricas e forneceu vários materiais (...) convergência substantiva com o descrito nas notas de encomenda carreadas com a petição inicial;

b) “o Réu reconheceu que (...) o Autor realizou serviços atinentes às respetivas instalações elétricas, juntamente, v.g., com “o DD”, admitindo que foram executados os trabalhos e fornecidos os materiais elencados nas notas de encomendas/orçamentos deduzidos com a petição inicial e não impugnando os respetivos valores/preços, confirmando estes segmentos basilares do quadro objetivo discorrido pelo Autor.

9.ª Pelo que, ao alterar a matéria de facto dada como provada e não provada, ainda que depois de ouvidos os depoimentos, mas desconsiderando a avaliação que o tribunal de 1.ª instância fez dessa mesma prova, ultrapassou o Tribunal da Relação os poderes que lhe são conferidos, o que deverá determinar a revogação daquela decisão.

10.ª Não existe imediação na 2ª instância e o mecanismo de reapreciação da matéria de facto terá de se ter por excecional, só podendo ser alterado o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, o que nunca será admissível se, conforme consta da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, o Réu reconhece que o A. executou as obras e forneceu os artigos melhor discriminados nos documentos que foram juntos aos autos.

11.ª Reconhecimento que faz do A. credor e do R. devedor, das quantias peticionadas.

12.ª O que deverá, a final, determinar a revogação daquela decisão, mantendo-se a condenação da 1.ª Instância porquanto, reconhecido que o A. executou as obras e vendeu os materiais que constam dos orçamentos, tem o direito de ser pago.

13.º Ao assim não decidir violou o Tribunal “a quo” o preceituado nos art.ºs 637.º, 639.º, 641.º, 652.º, n.º 1, al. b), 414.º e 662.º do CPC, bem como os art.ºs 342.º, 352.º, 354.º e 361.º do Código Civil.

Pede se profira acórdão que:

A) Declare que do recurso interposto da primeira instância não constavam, conforme legalmente é exigido, a motivação e as conclusões, ordenando a rejeição daquele recurso; caso assim não se entenda,

B) Declare ter o Tribunal da Segunda Instância ultrapassado os poderes que lhe são conferidos em sede de julgamento da matéria de facto, revogando aquela decisão; em consequência disso,

C) Reconheça que, face ao reconhecimento do Réu que o Autor lhe executou as obras e forneceu os bens que constam das notas de encomenda/orçamentos, tem este direito a ser pago e

D) Revogue a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, mantendo a decisão proferida em sede de Primeira Instância,


Por contra-alegações, os Réus pugnam pela negação da revista.

São os Seguintes os Factos Apurados no Processo, como resultam da decisão proferida em 2ª instância:

1. O Autor AA é empresário em nome individual e exerce a actividade de electricista.

2. O Réu BB exerceu, em nome individual, a atividade de construção civil entre os anos de 2000 e 2012.

3. O Réu BB declarou solicitar ao Autor a execução de vários serviços de electricidade nas obras que aquele levava a cabo e o fornecimento de diversos materiais que aplicava, que o Autor declarou aceitar.

4. Em 16.12.2010, o Réu pagou a quantia de 1.000,00€ (mil euros).

5. Em 12.8.2003, BB e CC declararam celebrar casamento católico na ... da freguesia de ..., sem convenção antenupcial.


E os seguintes os Factos Não Provados:

6. Nos circunstancialismos referenciados em 3), o Autor executou, a pedido do Réu, os seguintes trabalhos:

a) Fornecimento de material, designadamente, um gerador, quinze disjuntores, armaduras, em ..., no valor total de 2.897,50€ (dois mil, oitocentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos);

b) Fornecimento de material, designadamente, um gerador, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos, e montagem da rede elétrica numa numa obra de construção da habitação ao do Sr. EE (da ...), em Ribeira de ..., no valor total de 3.185,50€ (três mil, cento e oitenta e cinco euros e cinquenta cêntimos);

c) Fornecimento do material, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos, e montagem da rede elétrica numa obra de construção da habitação do Sr. FF, em ..., ..., no valor total de 4.937,80€ (quatro mil, novecentos e trinta e sete euros e oitenta cêntimos);

d) Fornecimento do material, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos, e montagem da rede elétrica executado numa obra de construção da habitação Sr.ª GG, em ..., ...., no valor total de 6.254,10€ (seis mil, duzentos e cinquenta e quatro euros e dez cêntimos);

e) Fornecimento do material, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos e montagem da rede elétrica numa obra de remodelação da habitação do Sr. HH (...), sita em ..., no valor total de 1.850,00€ (mil, oitocentos e cinquenta euros);

f) Fornecimento do material, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos e montagem da rede elétrica numa obra de remodelação no café da ..., sito em ..., no valor de 955,50€ (novecentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos);

g) Fornecimento do material, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos e montagem da rede elétrica numa obra de construção da habitação do Sr. II, sita em ..., ..., no valor de 1.764,30€ (mil, setecentos e sessenta e quatro euros e trinta cêntimos);

h) Fornecimento de material elétrico, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, para o Posto da GNR, sito em ..., em ..., no valor de 254,50€ (duzentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta cêntimos);

i) Fornecimento do material, designadamente, cabos, tubagens, diferenciais, disjuntores, tomadas, circuitos, e montagem da rede elétrica numa obra de construção da habitação do Sr. JJ, sita em ..., ..., no valor de 2.155,50€ (dois mil, cento e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos.

7. Entre os anos de 2000 e 2010, o Autor declarou vender ao Réu, que declarou comprar, 95 metros de cabo 4 x 2,5, no valor de 169,10€ (cento e sessenta e nove euros e dez cêntimos), uma caixa de contador, portinhola e tubos para colocar num armazém do Réu no valor de 595,00€ (quinhentos e noventa e cinco euros) e 120,00€ (cento e vinte euros) de fio de terra para ser instalado na casa do Réu.

8. O Autor entregou ao Réu os materiais descritos em 7).

9. O Réu BB pagou ao Autor os valores indicados em 6) e 7).

Conhecendo:


I

Recordando a alegação recursória, a mesma coloca as seguintes questões:

- saber se, do recurso interposto da primeira instância, não constavam, conforme legalmente é exigido, a motivação e as conclusões, devendo ter sido ordenado a rejeição do recurso; caso assim não se entenda,

- saber se o Tribunal da Segunda Instância ultrapassou os poderes que lhe são conferidos em sede de julgamento da matéria de facto, devendo revogar-se a decisão nessa sede;

- saber se o Réu reconheceu no processo que o Autor lhe executou as obras e forneceu os bens que constam das notas de encomenda/orçamentos, tendo o Autor direito a ser pago e assim cabendo, em suma, repristinar a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, mantendo a decisão proferida em sede de Primeira Instância.


II

Quanto à primeira questão, verificou-se de facto, na formulação de conclusões de apelação, uma quase repetição do corpo das alegações – exceptuaram-se apenas algumas transcrições de depoimentos e locuções de interjeição.

Acompanhamos nesta matéria o que se discorreu no recente Ac.S.T.J. 28/10/21, pº 8975/17.4TSTB.E1.S1 (desta mesma 2ª Secção, relatado pelo Consº Rijo Ferreira), onde se ponderou ter-se generalizado, na prática judiciária, uma atitude condescendente em que os Tribunais Superiores desconsideram o incumprimento dos ónus de alegação e conclusão, avançando para a decisão em face do que têm como, e do que depreendem da decisão recorrida e da alegação, as questões que constituem o objecto do recurso.

Tal fica a dever-se a razões de ordem prática:

Por um lado, o reconhecimento da impotência para obviar a um reiterado afastamento dos padrões legalmente estabelecidos por parte dos advogados, aliado a uma percepção de nessa matéria não ser admissível a existência de critérios de exigência diversificados em função de idiossincrasias individuais, que redundariam num tratamento desigualitário e arbitrário dos cidadãos no seu acesso ao recurso.

Por outro lado, e sobremaneira, a consideração de que a utilização de um critério mais rigoroso redundaria num prejuízo para a parte recorrente, que veria o acesso ao recurso negado em função de um comportamento que não lhe será imputável.

Assim, não sendo caso de total inexistência, só em casos extremos em que de todo em todo não se consiga vislumbrar qualquer conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso.

Nos demais casos cabe ao tribunal delimitar o âmbito do recurso em função do que, em face da decisão recorrida e do conteúdo da alegação e suas conclusões, ainda que deficientes, depreende serem as questões relevantes.

Sem embargo, porém, do respeito pelo contraditório, sendo certo que, no caso dos autos, o Autor, ora Recorrente, apresentou contra-alegações de apelação nas quais impugnou a matéria alegada, revelando integral compreensão da mesma.

Diga-se que esta é também a repetida posição do blog do ippc, por Miguel de Teixeira de Sousa (veja-se aquela que é, na presente data, a última entrada, n.º …17, de 24/5/2021).

No caso dos autos, o que estava em causa, substancialmente, era a alteração dos factos provados em 1ª instância, conduzindo, como veio a conduzir, à revogação da decisão de direito anteriormente tomada.

Por via dessa “simplicidade” da impugnação recursória, e porque se entendeu que a impugnação poderia ser apreciada, como veio a ser, prosseguiu-se com a apreciação do recurso.

Nada há que dizer, posto que a pretensão recursória foi efectivamente apreciada e havia sido adequadamente compreendida nas contra-alegações de apelação.

Note-se que o primeiro despacho proferido pelo relator, na Relação, não decidiu efectivamente a matéria, tendo-se limitado, em termos substanciais, a conceder prazo para pronúncia das partes, como é exigência legal – a única decisão sobre a matéria (a eventual relevância da repetição, nas conclusões, do corpo das alegações de recurso, designadamente para a rejeição do recurso) é a que consta, interlocutoriamente, do teor do acórdão recorrido.

Improcede este primeiro fundamento da revista.


III

Quanto à segunda questão, é útil revisitar e transcrever a fundamentação do acórdão impugando, em sede de fundamentação de facto.

“De efeito, quer o autor quer o réu disseram que o autor executou trabalhos para o réu. Realidade que foi depois confirmada pelo depoimento das testemunhas LL (foi várias vezes com o primo entregar material ás obras), MM (filho do autor e que ajudou o pai a fazer algumas obras para o réu; andou na obra da NN e da OO em ... e PP (o réu ia pedir instalações eléctricas e isso era como o meu irmão que exerce a profissão de electricistas). Tendo -se apurado que o autor é que exercia a profissão de eletricista admitimos como possível que o réu tenha solicitado ao autor a execução de vários serviços de electricidade e o fornecimento dos respectivos materiais.”

“Porém no que respeita aos anos a que o autor reporta a factualidade em apreço – entre os anos de 2000 e 2010- e no que se respeita à factualidade constante dos pontos 4º, 5º e 6º dos F. P., revistada toda a prova, estamos perfeitamente de acordo com a apreciação efectuada pelos recorrentes.”

“De efeito,”

“- Nenhuma das testemunhas aludidas pelo Mª juiz na Sentença demonstrou ter qualquer conhecimento sobre qualquer alegada solicitação quer de serviços quer de bens efetuada pelo R. ao A. tendo por objeto as obras constantes nos autos.”

“- Nenhuma testemunha se pronunciou no sentido de ter assistido sequer a qualquer contrato/ encomenda/ negócio existente entre R. e A.”

“- Nenhuma das testemunhas aludidas pelo M,º Juiz do Tribunal "a quo" demonstrou ter conhecimento das específicas obras mencionadas nos factos provados 4., 5. e 6. da Sentença, muito menos dos serviços nelas efetuados e as datas em que as obras foram realizadas.”

“- Nenhuma testemunhas aludidas demostrou ter conhecimento do material que foi fornecido e o tipo de rede eléctrica instalado em cada uma das referidas obras.”

“- Nenhuma das testemunhas demonstrou ter conhecimento do eventual preço contratado para os referidos bens e serviços.”

“No que se reporta aos documentos juntos pelo autor apelidados de orçamentos trata-se de documentos que não se mostram datados nem assinados por qualquer das partes e que foram impugnados pelos réus na contestação.”

“Ademais estes documentos não têm correspondência com os documentos que o autor descreveu no seu depoimento, nomeadamente não possuem o preço unitário de cada material, parcela a parcela, com a soma das várias parcelas no final.”

“Também o autor não fez prova que esses documentos foram entregues ao réu nos termos alegados no art.º 4 da p.i.”

“E não encontramos correspondência total entre os factos 4., 5., 6., provados com o conteúdo de cada um desses documentos.”

“Restam apenas as declarações do autor. Todavia também se constatou o seguinte:”

“- Em parte alguma do seu depoimento o A identifica os concretos serviços efectuados em cada obra e as respectivas datas concretas;”

“- Em momento algum do seu depoimento se pronuncia sobre o preço dos bens e serviços que diz ter efectuado, bem como sobre a aceitação pelo R. desse preço;”

“- Em momento algum identifica o montante em dívida de cada serviço/ obra;”

“- Em momento algum refere que o R. foi conhecedor de cada um desses concretos "orçamentos" com o aposto material e preço e os aceitou nesses termos.”

“Relatou ainda o autor que o réu fazia o pagamento das obras que se ía fazendo. A não ser assim não se percebeu porque o autor deixou que durante dez anos o réu não pagasse as obras. Esta realidade descrita pelo autor nesta acção não está de acordo com o normal acontecer no relacionamento entre as partes nem com as regras de experiência.”

“Contudo, ainda que o A. tivesse afirmado, nas suas declarações os factos tal como constam provados, também aqui o único elemento de prova seriam as suas declarações de parte, as quais como prova supletiva, não seriam suficientes para considerar como provados os mesmos.”

“De efeito, no que se reporta ao valor probatório das declarações de parte temos seguido o entendimento segundo o qual o depoimento de parte - no que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte - constitui meio de prova de livre apreciação pelo tribunal – artigo 361º do Código Civil.”

“Ou seja, embora configurado processualmente no sentido da obtenção da confissão, foram reconhecidas ao depoimento de parte virtualidades probatórias irrecusáveis perante um sistema misto de valoração da prova em que a par de prova tarifada existem meios de prova sujeitos a livre apreciação.”

“Pensamos que, como princípio geral, em abstrato, a credibilidade das declarações da parte tem de ser apreciada em concreto, numa perspetiva crítica, com vista à descoberta da verdade material, sem pré-juízos devido à sua qualidade de parte mas, igualmente, sem esquecer que se impõe uma aferição cuidada das declarações, de acordo com as regras da experiência de vida, do conhecimento, numa perspectiva de análise conjunta das demais provas produzidas, bem podendo suceder que as respectivas declarações, em concreto, possam merecer muita, pouca ou, mesmo, nenhuma credibilidade.”

“É, assim, em concreto, em face das circunstâncias do caso, com o concurso dos elementos indicados, que se deverão apreciar as declarações de parte, sem pré-juízos.” (ver acórdão da Relação de Guimarães de 01/10/2015 proferido na apelação nº 2159/12.5TJVNF.G1 em que foi relator o Ex Desembargador António Figueiredo de Almeida e no qual interviemos como adjunta).”

“No caso em apreço, há que dizer, no que se refere às declarações do apelante que as mesmas não foram valoradas porque não apoiadas em outros meios de prova.”

“Como tal, nenhuma prova foi produzida que possa sustentar a decisão destes factos como provados, pelo que, bem apreciados os elementos de prova concretamente indicados supra, se impõe que os factos 4., 5, e 6, sejam julgados como não provados.”


IV

Não carece de demonstração que o julgamento efectuado em 1ª instância, dispondo dos benefícios da imediação e da oralidade na apreciação da prova testemunhal, é um julgamento privilegiado.

Tal, porém, não pode afastar, fazer esquecer ou prejudicar que, “na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).”

“Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.”

“Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.”

“Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.”

“Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.”

A citação efectuada tem por base o Ac.S.T.J. 11/11/21, pº 2961/19.7T8PNF.P1.S1 (Abrantes Geraldes), e a ela se adere de pleno.

Foi essa, de resto, a posição habitual da doutrina, após a revisão do Código de Processo Civil de 95/96, e que encontra expressão em Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pgs. 227ss., e M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pg. 415.

E como se retira da presente fundamentação, em III, o acórdão recorrido procedeu ao confronto dos meios de prova decisivos, alinhando claramente as razões pelas quais decidiu julgar não provados determinados factos, antes julgados provados em 1ª instância.

Não nos cumpre sindicar, em termos materiais, a apreciação da prova efectuada em 2ª instância, mesmo que por substituição da decisão anteriormente proferida em 1ª instância, pois que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” – art.º 674.º n.º3 CPCiv.

Note-se que não existe dissídio entre sentença e acórdão quanto ao facto de o Autor ter executado trabalhos para o Réu – mas a valorização das declarações de parte do Autor (e a desvalorização do depoimento de parte do Réu), tal como apreciação da sentença, resultou inteiramente ao invés, no acórdão, pelas razões ali expostas e relativas aos anos 2000 a 2010:

- Nenhuma das testemunhas aludidas na Sentença demonstrou ter qualquer conhecimento sobre qualquer alegada solicitação quer de serviços quer de bens efetuada pelo R. ao A. tendo por objeto as obras constantes nos autos.

- Nenhuma testemunha se pronunciou no sentido de ter assistido sequer a qualquer contrato/ encomenda/ negócio existente entre R. e A.

- Nenhuma das testemunhas aludidas na sentença demonstrou ter conhecimento das específicas obras mencionadas nos factos provados 4., 5. e 6. da Sentença, muito menos dos serviços nelas efetuados e as datas em que as obras foram realizadas.

- Nenhuma testemunhas aludidas demostrou ter conhecimento do material que foi fornecido e o tipo de rede eléctrica instalado em cada uma das referidas obras.

- Nenhuma das testemunhas demonstrou ter conhecimento do eventual preço contratado para os referidos bens e serviços.

Os documentos juntos para sustentar a alegação do Autor, no dizer do acórdão, não se mostram datados nem assinados por qualquer das partes e foram impugnados pelos réus na contestação.

Documentos sem correspondência “com os documentos que o autor descreveu no seu depoimento”, nomeadamente por não possuírem o preço unitário de cada material, parcela a parcela, com a soma das várias parcelas no final.

Nada existe assim que sindicar, no acórdão, quanto à forma e ao resultado pelos quais foram apreciados os depoimentos testemunhais, de parte e as declarações de parte formulados em audiência, igualmente na sua comparação com os documentos juntos, documentos estes cuja apreciação probatória não possuía força vinculada.

Improcedem assim os últimos segmentos das alegações de recurso, ficando prejudicada a pretendida reapreciação juscivilística da causa.


Concluindo:

I – Não sendo caso de total inexistência, só quando de todo se não consiga vislumbrar conteúdo útil na alegações e/ou conclusões se deve lançar mão da rejeição do recurso; nos demais casos cabe ao tribunal de recurso delimitar o respectivo âmbito, face ao que depreende serem as questões relevantes, considerando a decisão recorrida e o conteúdo da alegação e das conclusões, com respeito do contraditório.

II - Na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.

III – Se o acórdão em apelação procedeu ao confronto dos meios de prova decisivos, alinhando claramente as razões pelas quais decidiu julgar não provados determinados factos, antes julgados provados em 1ª instância, não cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar, em termos materiais, a apreciação da prova efectuada em 2ª instância, mesmo que por substituição da decisão anteriormente proferida em 1ª instância, visto o disposto no art.º 674.º n.º 3 CPCiv.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelo Recorrente.


STJ, 16/12/2021


Vieira e Cunha (relator)    

Abrantes Geraldes                                              

Manuel Tomé Soares Gomes