Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2639/21.1T8VFR.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
TRIBUNAL CÍVEL
DIREITO CANÓNICO
FUNDAÇÃO
EXTINÇÃO
ILICITUDE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RECURSO PER SALTUM
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
A competência dos tribunais eclesiásticos para conhecerem da questão prévia da licitude ou ilicitude da extinção de uma fundação de direito canónico não determina a incompetência absoluta dos tribunais civis para conhecerem da questão principal da responsabilidade pelos danos causados ao Autor ou pelo pelo enriquecimento da Ré.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA





I. — RELATÓRIO





1. AA propôs acção declarativa de condenação contra a Arquidiocese de Braga e a Congregação do Santíssimo Redentor — Missionários Redentoristas, pedindo a condenação das Rés no pagamento de uma indemnização de 16194571,50 euros pelos danos alegadamente sofridos em consequência da extinção da Fundação Lusitânia para o desenvolvimento universitário e empresarial.


2. O Tribunal judicial da comarca de Aveiro absolveu as Rés da instância, declarando-se incompetente, em razão da matéria.


3. Inconformado, o Autor AA interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça.


4. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:


1. No presente litígio, o Autor, ora Recorrente, interpôs uma ação junto do Tribunal Judicial ( Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível ...) por entender que, face do pedido formulado, é este o tribunal competente, em razão da matéria, com os fundamentos que constam na Petição Inicial( doravante P.I).


2. Citadas as Rés, ARQUIDIOCESE DE BRAGA e PROVÍNCIA PORTUGUESA DA CONGREGAÇÃO DO SANTÍSSIMO REDENTOR – MISSIONÁRIOS REDENTORISTAS, ora Recorridas, apresentaram contestação onde excecionam a falta de competência do Tribunal Judicial, com os fundamentos que constam das contestações.


3. O Tribunal a quo julgou-se incompetente, em razão da matéria, considerando, e em síntese, que, em face da concordata estabelecida entre a Santa Sé e o Estado Português, estabeleceram que certas questões fossem submetidas a normas pertencentes à ordem jurídica canónica e apreciadas pelos respetivos tribunais.


4. Nesse entendimento, considerou que o foro próprio para dirimir este conflito é o Tribunal Eclesiástico e, consequentemente, declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu as Rés, ora Recorridas, da instância.


5. O Autor, ora Recorrente, contudo, pugna pela competência do Tribunal Judicial por entender que, em face do pedido formulado ser sustentado em responsabilidade delitual e ter deduzido uma pretensão ressarcitória,


6. A competência para apreciar a ação indemnizatória, intentada pelo Autor, ora Recorrente, é dos tribunais comuns.


7. Deste modo, com o devido respeito, a douta decisão violou, entre outros, o disposto nos artigos 64º, 96º nº 1, 99º, 607º e 608º todos do CPC.


Por fim,


8. O ora Recorrente, nos termos do artigo 678º nº 1 CPC, requer que, o presente recurso suba diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, porquanto o valor da causa é superior à alçada do Tribunal da Relação, o valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação, o Autor, ora Recorrente, só suscita o reexame da matéria de direito e não existem decisões interlocutórias suscetíveis de ser apreciadas.


Por todo o exposto, pois mais dos autos e max ex. supl., deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença do Tribunal de 1ª instância e considerar-se o Tribunal de 1ª instância competente em razão da matéria.


Assim se faça JUSTIÇA!





5. A Arquidiocese de Braga e a Província Portuguesa da Congregação do Santíssimo Redentor — Missionários Redentoristas contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade e, subsidiariamente, pela improcedência do recurso.


6. O Tribunal judicial da comarca de Aveiro não admitiu o recurso, por intempestividade, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 644.º, n.º 2, alínea b), e 638.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


7. Inconformado, o Autor AA apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil.


8. A reclamação foi deferida e. em consequência, o recurso per saltum foi admitido.





II. — FUNDAMENTAÇÃO


9. O Tribunal de 1.ª instância fundamentou a decisão de absolvição da instância na relação de precedência ou de prioridade entre a questão da licitude ou ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia e a questão da responsabilidade das Rés, agora Recorridas, pelo facto ilícito da extinção da Fundação Lusitânia.


10. A sentença recorrida começa por expor, sinteticamente, as razões da incompetência absoluta dos tribunais civis: “toda a sua causa de pedir […] se suporta na apreciação da alegada ilicitude da extinção de uma fundação eclesiástica e no alegado incumprimento dos seus estatutos, de que faz decorrer, ora a título de responsabilidade civil aquiliana ora à luz do instituto do enriquecimento sem causa, o seu direito a ser ressarcido. Por uma ou por outra via, antes da apreciação de um eventual crédito ressarcitório, a sua pretensão exige a apreciação da legalidade de uma decisão eclesiástica de extinção uma Fundação de direito canónico e da apreciação dos seus estatutos”.


11. Ora, a relação de precedência ou de prioridade entre as duas questões é semelhante àquele que se estabelece entre a situação condicionante e a situação condicionada no quadro da (chamada) referência pressuponente [1].


12. Situação condicionante é em concreto a licitude ou ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia. Em termos mais amplos, a licitude ou ilicitude do comportamento das Rés, agora Recorridas. Situação condicionada é, em concreto, a responsabilidade das Rés, agora Recorridas — seja a responsabilidade pelos danos causados ao Autor, agora Recorrente, como se sustenta no pedido deduzido contra a 1.ª Ré, agora Recorrida, seja a responsabilidade pelo enriquecimento, como se sustenta no pedido deduzido contra a 2.ª Ré, agora Recorrida.


13. O Autor, agora Recorrente, e as Rés, agora Recorridas, estão de acordo em que os tribunais competentes para se pronunciarem sobre a situação condicionante, sobre a licitude ou ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia, são os tribunais eclesiásticos.


14. O Autor, agora Recorrente, alega que a competência dos tribunais eclesiásticos para se pronunciarem sobre a situação condicionante não prejudica a competência dos tribunais civis para se pronunciarem sobre a situação condicionada; daí que os tribunais civis fossem competentes para se pronunciarem sobre a questão da responsabilidade das Rés.


15. As Rés, agora Recorridas, alegam que a competência dos tribunais eclesiásticos para se pronunciarem sobre a situação condicionante prejudica a competência dos tribunais civis para se pronunciarem sobre a situação condicionada; daí que os tribunais civis não fossem competentes para se pronunciarem sobre a questão da responsabilidade das Rés.


16. O caso está em averiguar se o facto de os tribunais eclesiásticos serem competentes para se pronunciarem sobre a situação condicionante, sobre a licitude ou ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia, tem ou não como corolário a incompetência absoluta dos tribunais civis para se pronunciarem sobre o pedido deduzido pelo Autor, agora Recorrente.


17. Os tribunais civis deveRIAM ser declarados incompetentes, em razão da nacionalidade, desde que a relação entre as duas situações, entre a situação condicionante e a situação condicionada, resultasse das disposições de direito adjectivo ou processual — designadamente, das disposições de direito processual civil sobre a competência internacional dos tribunais portugueses — e devem ser declarados competentes desde que a relação entre as duas situações resulte das disposições de direito material ou substantivo [2].


18. Entendemos que a relação entre as duas situações, condicionante e condicionada, resulta das disposições de direito civil — dos arts. 483.º e 798.º do Código Civil, em que se pressupõe a ilicitude, ou do art. 473.º do Código Civil, em que se pressupõe a ausência de causa, a ausência de justificação ou a ausência de causa justificativa do enriquecimento.


19. O problema é de conhecimento de mérito da causa, no que diz respeito ao pressuposto da ilicitude da responsabilidade civil ou, subsidiariamente, ao pressuposto da ausência da causa justificativa ou da ilicitude do enriquecimento das Rés, agora Recorridas — a ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia é tão só um pressuposto da procedência do pedido de indemnização ou do pedido de restituição deduzido pelo Autor, agora Recorrente.


20. Em diferentes palavras, ainda que insistindo em igual pensamento:


A procedência do pedido deduzido pelo Autora, agora Recorrente, depende de se alegar e de se fazer prova de que a fundação foi extinta e de que esta extinção, por ser ilegal, gera a ilicitude do comportamento das Rés, agora Recorridas — ainda que haja acordo das partes sobre a extinção, sempre se impõe a alegação e a prova das concretas causas da ilicitude apontada.


21. A sentença recorrida reconhece-o, implicitamente, ao sustentar que “a alegada ilicitude de que decorre o pretenso crédito ressarcitório do Autor é por ele mesmo sustentada em factos apenas susceptíveis de serem apreciados à luz do Direito Canónico e, por tal, por tribunal eclesiástico. Não cabe à ordem jurídica portuguesa a apreciação da validade de um acto de extinção de uma fundação religiosa e nem a apreciação do alegado incumprimento dos respectivos estatutos”.


22. Em termos semelhantes aos da referência pressuponente, dir-se-á que “[o] facto representado pela situação jurídica condicionante é encarado como um facto não autónomo, isto é, como facto que representa, não um facto-causa do problema ou questão jurídica principal, não um facto que esteja na origem do problema jurídico central a resolver, mas um simples ‘facto-pressuposto’ ou facto cuja relevância ou irrelevância para o efeito em causa depende inteiramente do modo como a lei da questão principal a regulamenta, do regime jurídico-material a que é submetida esta questão” [3].


23. Entendendo-se, como entendemos, que a relação entre as duas situações, condicionante e condicionada, resulta das disposições de direito civil, os tribunais civis deverão conhecer do pedido deduzido pelo Autor, agora Recorrente [4].


24. A questão da ilicitude, da ausência de causa ou da ausência de justificação do enriquecimento, diz respeito ao mérito da causa; ora, o objecto do presente recurso per saltum incide sobre a competência ou incompetência dos tribunais portugueses — e não há dúvida de que, para uma acção de indemnização, o tribunal comum é competente.





III. — DECISÃO


Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, nos termos seguintes:


I. — declara-se a competência internacional dos tribunais portugueses para decidir o litígio;


II. — determina-se a remessa dos autos ao tribunal a quo para que se pronuncie sobre o mérito da causa.


Custas a final.





Lisboa, 10 de Novembro de 2022





Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)


José Maria Ferreira Lopes


Manuel Pires Capelo


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[1] Sobre o tema, vide por todos João Baptista Machado, Lições de direito internacional privado, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1985, págs. 287-335.

[2] O problema estará então em que uma das condições, um dos pressupostos ou um dos requisitos da procedência da acção dependerá de uma decisão dos tribunais eclesiásticos, e de uma decisão dos tribunais eclesiásticos no sentido da ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia.

[3] Sobre o tema, vide por todos João Baptista Machado, Lições de direito internacional privado, cit., pág. 304.

[4] Em todo o caso sempre se esclarecerá que a competência dos tribunais civis para conhecer do pedido deduzido não exclui que a questão da ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia possa ser qualificada como questão prejudicial, para todos os efeitos processualmente relevantes, designadamente para efeito de suspensão da instância até que o tribunal eclesiástico se pronuncie sobre a ilicitude ou ilicitude da extinção da Fundação Lusitânia (cf. art. 272.º do Código de Processo Civil).