Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26767/18.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
DECLARAÇÃO INEXATA
RISCO
OMISSÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ANULABILIDADE
RECURSO SUBORDINADO
AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - Cabe no direito de o recorrido ampliar o âmbito do recurso, a invocação de nulidade(s) de que a sentença padeça que, embora se tenha(m) revelado indiferente(s) para a parte vencedora, pode(m) vir a influir no resultado da acção em consequência da interposição de recurso (artigo 636.º, n.º2, do CPC). Todavia, estando em causa matéria com influência no resultado da acção (no caso, o quantum da condenação da Ré no pedido de juros e outras prestações), sendo a Autora parte vencida quanto à mesma, só através da interposição de recurso (subordinado) poderia ser objecto de conhecimento por este tribunal.

II - A importância da declaração inicial do risco no âmbito do contrato de seguro assume sentido atento o seu desígnio (que é o de transferir determinado sinistro para a seguradora mediante uma contrapartida) e consubstancia a relevância do princípio da boa-fé na fase pré-contratual, que impõe ao tomador do seguro ou ao segurado a obrigação de declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, e à entidade seguradora, o dever de conduzir todo o processo negocial com lisura procedimental, em nome da tutela da confiança da contraparte (reflectida, quer na elaboração e teor do questionário, quer no esclarecimento do tomador ou segurado acerca da relevância do dever de informação exacta que sobre o mesmo impende).

III - As declarações inexactas ou omissões passíveis de determinar a anulabilidade do contrato, nos termos do artigo 25.º, do RJCS, terão de ser essenciais na contratação do seguro, ou seja, determinantes da vontade (viciada) de contratar o respectivo negócio, essencialidade que deverá ser alegada e demonstrada pela seguradora.

IV – Consequentemente, embora se encontre provado que o Segurado prestou informações inexactas com vista à celebração do contrato de seguro (ainda que referentes a circunstâncias que razoavelmente devia ter por significativas para a apreciação do risco, uma vez que constavam de questionário fornecido pela Ré seguradora quando da adesão), as mesmas não afectam a validade do contrato celebrado para efeitos de aplicação do regime previsto no artigo 25.º, do RJCS, uma vez que a Ré não alegou nem demonstrou que se tivesse conhecimento dos factos omitidos não teria celebrado o contrato de seguro, ou tê-lo-ia celebrado noutras condições.

Decisão Texto Integral:



Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório
1. AA instaurou acção declarativa com processo comum contra COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar ao Banco BPI o valor correspondente ao capital em dívida, à data do óbito do seu falecido pai e o remanescente desse capital, à aqui Autora, com acréscimo dos juros, taxas bancárias e comissões de processamento e de incumprimento em que a Autora incorra, desde a data em que comunicou o óbito até trânsito em julgado da decisão.
Invocando o incumprimento por parte da Ré do contrato de seguro celebrado, alegou para o efeito e essencialmente:
- ter sido celebrado por seu pai, BB, na sequência de um empréstimo hipotecário contraído junto do Banco BPI, em 29-10-2008, contrato de seguro com a Ré, do ramo vida, para cobertura dos riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, cujo beneficiário seria o Banco mutuante até ao limite do capital em dívida;
- não ter sido entregue ao seu pai as condições gerais, especiais e particulares da apólice do referido seguro;
- ter BB falecido em .../.../2017, tendo-lhe sucedido como única e universal herdeira, e nessa qualidade contactou o BPI para efeitos de accionamento do referido seguro, entregando documentos, sem que lhe tenha sido dada qualquer resposta;
- ter-lhe sido instaurada pelo BPI acção executiva reclamando o pagamento da quantia de € 86.013,49.

2. A Ré contestou excepcionando a inexigibilidade da obrigação por falta de entrega de documentação médica (por o óbito de BB não ter sido participado nos termos previstos no contrato e com a documentação necessária, tendo-a impossibilitado de “abrir o sinistro” e de tomar posição sobre o mesmo). Invocou ainda que do certificado do óbito (de que apenas teve conhecimento após a citação para a acção) decorre que a causa da morte se encontra relacionada com alcoolismo (pancreatite etanólica necrotizante), desconhecendo em que datas tais doenças tiveram o seu início, tendo, porém, o segurado respondido negativamente a todas as perguntas do questionário de saúde do boletim de adesão ao seguro.

3. A Autora respondeu à contestação alegando que nenhuma documentação lhe foi pedida pela Ré e que seu pai havia dado autorização para, em caso de sinistro, poderem ser solicitadas pela Ré as informações clínicas a que não pode, por si, aceder.
Invoca, ainda, a nulidade da cláusula 13.ª, por a mesma não ter sido dada a conhecer e/ou explicada ao segurado.

4. Em audiência prévia, após ter sido notificada da junção aos autos dos dados clínicos do falecido segurado, a Ré apresentou articulado superveniente pugnando pela anulação do contrato, por não lhe ter sido dado conhecimento de factos que a teriam impedido de celebrar o contrato de seguro nos termos levados a cabo (em 2007, quando da celebração do contrato de seguro, o segurado apresentava história de consumo alcoólico excessivo e sofria de pancreatite alcoólica e já tinha estado internado).

5. A Autora respondeu ao articulado superveniente defendendo que da documentação clínica junta aos autos não resulta que o seu falecido pai sofresse, quer em 2007, quer em 2017, de pancreatite alcoólica ou crónica, e que o questionário médico que então foi preenchido pelo segurado não continha qualquer pergunta sobre hábitos alcoólicos (não podendo o segurado omitir factos que não lhe foram perguntados).

6. Admitido articulado superveniente (proferido na 2.ª sessão da audiência prévia) foi elaborado saneador, identificado o objecto do processo e enunciados os temas da prova.

7. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

8. A Autora interpôs recurso impugnando a matéria de facto.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão que julgou parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença e condenando a Ré “a pagar ao Beneficiário, o Banco, a quantia em divida relativamente ao contrato de mútuo celebrado entre BB e o Banco, à data do óbito do segurado, em 29 de Junho de 2017 e o remanescente à Recorrente, acrescido de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

8. Inconformada a Ré interpôs recurso de revista deduzindo as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O seguro de vida celebrado entre tomador BPI, o segurado, entretanto falecido e a seguradora ora Recorrente, configura-se como contrato a favor de um banco terceiro, credor do segurado e beneficiário exclusivo seguradora da proposta de seguro com questionário e concluída com a emissão da apólice, documento escrito obrigatório para a perfeição negocial.
2. A Recorrente e ré seguradora invocou a excepção peremptória de anulabilidade do contrato de seguro de vida celebrado com o tomador e com o falecido segurado, por este ter prestado declarações falsas e omitido outras relevantes sobre o seu estadode saúde anterior e na data da apresentação do questionário clínico que subscreveu com a proposta contratual apresentada e logrou provar os factos relevantes para tal.
3. O primado da boa fé e o princípio da confiança dos contraentes, na medida em que se impõe que ajam e acreditem na actuação séria do outro e na mútua cooperação para a realização dos fins contratuais impunham que o falecido BB tivesse declarado, aquando da celebração do seguro de vida que apresentava história de consumo alcoólico excessivo, que esteve internado entre 02.11.2006 a 13.11.2006 por pancreatite aguda litiásica (fls. 378 a 394) e ainda esteve internadoaoscuidadosda especialidade de Cirurgia Máxilo-Facial, de 15.02.2007 a 19.02.2007, por deformação nasal adquirida, tendo sido sujeito a rinoseptoplastia e enxerto de cartilagem do pavilhão auricular esquerdo (fls. 240 a 252, 427 a 483).
4. Com este princípio o juiz contemporâneo tem em conta valorações que não estão legalmente contempladas, ultrapassando uma visão estrita e formal do Direito, procurando que a virtude da Justiça, no sentido de distribuir a cada um o que lhe pertence, atinja o fim social e económico do Direito
5. As seguradoras, exercendo uma actividade a que são inerentes factores aleatórios, têm informação específica sobre os riscos dos diversos contratos, que são avaliados em função da probabilidade estatística da sua ocorrência e da sua gravidade, em face dos dados que lhes são comunicados ou de que tenham acesso.
6. Cabe, contudo, aos segurados prestar informações verídicas sobre os factores de risco susceptíveis de influir na outorga ou no conteúdo do contrato e o dever de informação encontrava-se também inscnto na proposta de seguro que o pai da A. subscreveu.
7. O Segurado não declarou com exactidão as circunstâncias que conhecia e que se mostravam significativas para a apreciação do risco pretendia garantir (pontos 30 a 32 dos factos apurados;
8. O falecido pai da A. ao seguro em apreço, tinha absoluto conhecimento de que já tinha estado internado, pelo menos, duas vezes por pancreatite aguda litiásica e outras doenças e tinha sido submetido a uma intervenção cirúrgica, factos pessoais que não poderia nem deveriam ter sido ocultados, dada a relevância para efeitos de ponderação do risco.
9. O Questionário médico ao requerente da adesão ao seguro, terá de entender-se que tais perguntas são relevantes e essenciais para a seguradora para a celebração do contrato, pois que através dessas perguntas a seguradora indica ao aderente quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato
10. Na medida em que, noquestionárioem causa, asinformaçõessobre as doenças e internamentos hospitalares e intervenções cirúrgicas foram, expressa e especificamente, solicitadas ao pai da A., terá de ter-se que essas informações eram essenciais para a decisão da R. de contratar ou não o seguro com o pai da A. ou de o contratar em diversas condições e que o mesmo optou por omiti-las, ciente que estava da sua relevância para a R., o que demonstra o carácter doloso/intencional da omissão.
11. As omissões dolosas determinantes da celebração do contrato de seguro de vida conferem à seguradora o direito de opor a anulabilidade do contrato: nº 1 do artigo 25º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, tratando-se, no fundo, de uma particularização do regime da anulabilidade do erro causado por dolo, previsto em geral no artigo 254º do Código Civil.
12. O falecido pai da A. optou por omitir informações essenciais sobre a sua saúde, o que demonstra o carácter doloso e intencional da omissão;
13. Pelo exposto, havendo omissão de factos expressamente perguntados no boletim de adesão, andou bem o tribunal de 1ª Instância, quando interpretou tais omissões como relevantes para a apreciação do risco que o segurado pretendia garantir.
14. A essencialidade dos factos cuja declaração é expressamente pedida no questionário tem de ter-se por presumida, cf consta da Lei do contrato de Seguro anotada por Pedro Romano Martinez e outros, Almedina, 3ª Ed, 2016, pág 136 e seguintes ante o rigorismo e a relevância do regime fixado no n.- 3 artº 24º, não vemos como não concluir, em coerência, pelo abatimento da necessidade de prova especifica da essencialidade cuja declaração é requerida em questionário, sem prejuízo, naturalmente de prova em contrário (n.- 2 do art. 350º do CC).do n.- 3 do art. 24º - terá portanto entendido que, tudo ponderado, a protecção equilibradamente dada ao tomador do seguro e ao segurado valia bem um tal abatimento pró-segurador. “ Sublinhado nosso)
16. Verifica-se a essencialidade do erro num contrato de seguro, ramo vida, quando o declaratário teve intenção em omitir ou prestar declarações inexactas aquando da declaração inicial do risco prestada, bem sabendo que a omissão ou declaração inexacta é relevante para apreciação do risco, a par de que a seguradora, caso tivesse conhecimento da omissão ou declarações inexactas, pode anular o contrato mesmo sem recorrer a tribunal.
17. Constituem requisitos essenciais do erro sobre o objecto, não só a essencialidade para o declarante do elemento sobre que recaiu o erro, mas também, o conhecimento ou dever de nãoignorar essa essencialidade por parte do declaratário, sendo que a essencialidade do erro é um conceito de direito que deve ser deduzido dos factos provados e das circunstâncias que os rodeiam.
18. Dos n.ºs 1 a 3 do artigo 25º- resulta uma cominação de anulabilidade do contrato, a qual constitui uma sanção jurídica pelo incumprimento doloso de um dever legal, decorrente do desvalor da conduta do proponente
19. Ora, o regime de anulabilidade previsto na LCS apresenta três diferenças significativas face ao regime geral da anulabilidade estabelecido no Código Civil. Em primeiro lugar, a anulação produz-se por declaraçãoescritadirigidaaotomador, enãomedianteinvocaçãojudicial, por outro lado, a mesma está sujeita a um prazo de caducidade de três meses, e não um ano e finalmente, o efeito retroativo da anulabilidade na LCS é mitigado, já que não é devida a indemnização por eventual sinistro sem prejuízo de o segurador conservar o direito aos prémios vencidos, ao que o douto acórdão recorrido não atendeu, nem sequer apreciou.
20. O acórdão recorrido , ao assim não entender, violou o disposto nos artºs 24º e 25º da Dec Lei 72/2008 de 16/4 LCS, bem como os art.ºs 254.º do Código Civil - no contexto do erro sobre o objecto do negócio – e art.º 251º do Código Civil, resultando desequilíbrio fundamental nas posições relativas a favor do segurado em prejuízo da seguradora.

9. A Autora contra-alegou e requereu a ampliação do objecto do recurso, concluindo (transcrição das conclusões):
1) A toda a alegação deverá corresponder uma prova e a Recorrente falha, nesta matéria, em toda a linha.
2) A Recorrente, tomou posição sobre a matéria que levou à sua absolvição, em dois momentos distintos, o primeiro, na sua Contestação, na qual alega só ter tido acesso ao certificado de óbito do falecido com a presente acção e o segundo momento quando, já na posse da documentação clínica junta aos Autos (que mencionava a existência de uma pancreatite de origem alcoólica anterior à data de celebração do contrato), em sede de Audiência Prévia, elaborou um articulado superveniente.
3) A Recorrente, nunca colocou em crise um qualquer internamento, mesmo após a informação clínica junta aos Autos e que mencionava internamentos a que o falecido se havia sujeitado, um por pancreatite aguda litiásica e outro para se sujeitar a uma rinoseptoplastia, já que o cavalo de batalha da Recorrente sempre foi a omissão, por banda do falecido, da informação que este deveria ter prestado e não prestou, sobre o seu internamento devido a uma pancreatite alcoólica.
4) A Recorrente, sem margem para dúvidas, balizou a sua posição nos Autos conforme espelha o artº 22º da sua Contestação: “E, se vier a ser apurado que o falecido pai da A. já padecia de pancreatite alcoólica ou outra patologia relacionada com a causa da morte no momento da adesão, a Ré não abdica de alegar atempadamente tais factos, para efeitos de invocação de nulidade ou anulabilidade da Apólice invocada pela A., por aplicação do artº 5 das condições gerais da Apólice - doc. ... e arts 24, 25 e 26 do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro, e 429º do C. Comercial, o que a ocorrer, também constitui excepção peremptória inominada que, procedendo, leva à absolvição da Ré do pedido, nos termos do artº 576 do C.P.C..”
5) Num verdadeiro volte-face vem agora a Recorrente alegar que “Está provado que o falecido BB:
30. esteve internado entre 29.05.2017 a .../.../2017, por pancreatite aguda etanólica ou induzida por álcool, com comportamento necrotizante (fls. 149 a 155, 159 a 207, 253 a 377)
31. esteve internado entre 02.11.2006 a 13.11.2006 por pancreatite aguda litiásica (fls. 378 a 394);
32. esteve internado aos cuidados da especialidade de Cirurgia Máxilo-Facial, de 15.02.2007 a 19.02.2007, por deformação nasal adquirida, tendo sido sujeito a rinoseptoplastia e enxerto de cartilagem do pavilhão auricular esquerdo (fls. 240 a 252, 427 a 483).. Por isso, impunha a lei e a boa fé que o falecido informasse a seguradora ora recorrida dessas patologias, aquando da subscrição do boletim de adesão ao seguro, tanto mais que, tratando-se, como se tratava, de um seguro de vida, ele não poderia ignorar a suarelevância para a aferição do risco do seguro por aquela recorrida. Só que, ao subscrever a aludida declaração, como também se prova, o falecido BB omitiu de forma intencional que padecia de esteve internado entre 02.11.2006 a 13.11.2006 por pancreatite aguda litiásica (fls. 378 a 394); e que esteve internado aos cuidados da especialidade de Cirurgia Máxilo-Facial, de 15.02.2007 a 19.02.2007, por deformação nasal adquirida, tendo sido sujeito a rinoseptoplastia e enxerto de cartilagem do pavilhão auricular esquerdo (fls. 240 a 252, 427 a 483).
Doenças de que veio a falecer alguns anos depois.” (bold nosso)
6) Nada mais errado, já que em lugar algum se deu como provado que a causa da morte foi uma qualquer desta patologias…
7) A morte de BB não se deveu a qualquer uma daquelas citadas patologias ou intervenções médico-cirúrgicas.
8) Como se demonstrou (resulta dos Autos) a posição da Recorrente sempre se reconduziu à teoria de que o falecido, quando da contratação, sofria de pancreatite alcoólica.
9) Mesmo na posse da demais documentação junta aos Autos, continuou a Recorrente a bater-se por esta posição.
10) Mas ainda assim, nem mesmo conseguiu provar (e a si o competia) que, se tivesse conhecimento, no momento da adesão, que o segurado sofria da pancreatite alcoólica e que já teria um histórico de consumo excessivo de álcool, não teria contratado o seguro – conforme alínea m) dos factos não provados.
11) Sucede que nada disso resultou provado, antes pelo contrário.

12) Conforme resulta do douto Acórdão recorrido “Quanto ao que consta dos pontos 31 e 32 da matéria considerada provada, a Seguradora não alegou nem provou que se tivesse conhecimento desses factos, de que o Segurado não lhe deu conhecimento, quando celebrou o contrato de seguro, não teria celebrado o contrato de seguro ou que o teria celebrado noutras condições.”
13) Os pontos 31 e 32 da matéria considerada provada correspondem à seguinte matéria:
“31. BB esteve internado entre 02.11.2006 a 13.11.2006 por pancreatite aguda litiásica (fls. 378 a 394);
32. BB esteve internado aos cuidados da especialidade de Cirurgia Máxilo-Facial, de 15.02.2007 a 19.02.2007, por deformação nasal adquirida, tendo sido sujeito a rinoseptoplastia e enxerto de cartilagem do pavilhão auticular esquerdo (fls. 240 a 252, 427 a 483).”
14) De acordo com a Recorrente, estes dois internamentos (que nenhuma relação tiveram com a causa da morte) foram omitidos, de forma intencional pelo falecido, aquando da contratação do seguro.
15) Sucede que, em lugar algum consta como provado que tal omissão foi provocada dolosamente ou de forma intencional, pelo falecido.
16) E o dolo, a actuação dolosa, não se presume, antes terá que ser alegado e, posteriormente, provado.
17) De qualquer forma, e nem a Recorrente na jurisprudência e doutrina que cita consegue a isso fugir, teria que ser semprea Recorrente a demonstrar eaprovar que, conhecidooerro ou facto omitidonoquestionário, tal facto ouerro comprometeria a celebração docontrato (não contratação ou contratação emmodo diverso).
18) A Recorrente nem sequer alegou que se tivesse conhecimento dos citados internamentos do falecido, que ocorreram em data anterior à contratualização, não celebraria o contrato ou fá-lo-ia em modo diferente.
19) Mesmo após a junção aos Autos, em 18 de outubro de 2019 e em 28 de novembro de 2019, da documentação clínica que informava quanto aos internamentos a que o falecido se havia sujeitado em 2006 e 2007 no Hospital ..., a Recorrente manteve a mesma posição nos Autos…
20) E fê-lo numa atitude diferente daquela que teve quando deduziu articulado superveniente, tendo por referência a documentação junta aos Autos e que mencionava pancreatite alcoólica em 2007 (factos que acabaram por resultar não provados).
21) A essencialidade ou não das informações prestadas ter-se-á que basear nos factos oportunamente alegados pela parte que deles se aproveita, no caso a Recorrente.
22) Conforme é jurisprudência pacífica, não basta às Seguradoras alegarem, sem mais, qualquer omissão ou falsa declaração, já que se exige um mínimo de correspondência entre esta omissão e o facto que dá lugar ao acionamento do seguro ou, pelo menos, compete à Seguradora o ónus de alegar e demonstrar que, caso conhecesse o facto omitido, não contrataria, ou contrataria em moldes diferentes.
23) Tudo conforme Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/2017, 19/06/2019 e 17/10/2019, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de abril de 2012 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de setembro de 2018.
24) Não se pode presumir a essencialidade dos factos cuja declaração seja expressamente pedida no questionário, cabendo a respectiva prova, a quem dela beneficia,
25) Competia pois à Ré a alegação e prova de que, o conhecimento dos internamentos a que o falecido se sujeitou e que este teria, alegadamente, omitido, quando da proposta de seguro, eram essenciais à contratação.
26) Ora, não só a Ré não provou tal essencialidade como, nem sequer a alegou!
27) A Recorrida em sede própria, reclamou igualmente a condenação da Seguradora no pagamento do “…valor que se vier a apurar, em sede de liquidação de Sentença referente aos juros, taxas bancárias e comissões de processamento e de incumprimento desde a data em que comunicou o óbito até trânsito em julgado da presente Sentença.” – artº 28º da p.i..
28) E, o douto Acórdão recorrido, é omisso nessa matéria, pelo que se entende justificar a ampliação do Recurso para que esse Venerando Tribunal Superior possa, sobre a questão, se pronunciar.
29) Não fora o incumprimento da Recorrente e a questão nem se colocava, porque a divida bancária estaria saldada.
30) Mas ao não cumprir atempadamente com a sua obrigação contratual, a Recorrente conduziu a que o Banco BPI acionasse a Recorrida e dela reclamasse mais do que o capital em divida.
31) Dai que a condenação da Recorrente deva igualmente contemplar toda e qualquer quantia que se venha a apurar e que seja devida a juros, taxas bancárias e comissões de processamento e de incumprimento desde a data em que comunicou o óbito até trânsito em julgado da presente Sentença.
32) Discorda-se ainda da posição assumida no douto Acórdão recorrido quanto ao ónus de informar o teor das cláusulas contratuais, já que se entende que esta questão, mais do que factual, é uma questão jurídica e como tal subsumível à apreciação desse Venerando Tribunal.
33) Saber sobre quem impende o ónus de alegar e de provar tal matéria é uma questão de direito.
34) O tema da prova 4 era dirigido à Recorrente - “Do cumprimento pela R. dos deveres de comunicação e informação das cláusulas contratuais do contrato de seguro referido no objecto do processo.”
35) Veja-se sobre a matéria os doutos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de novembro de
2016, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de setembro de 2018, ambos disponíveis em www.dgsi.pt”   

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do CPC) mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
ð Da admissibilidade da ampliação do âmbito do recurso (questão prévia)
ð Da anulabilidade do contrato de seguro

1. Os factos

1.1 provados

1. BB faleceu no dia .../.../2017, conforme certificado de óbito de fls. 20 e 21, que se dá por reproduzido;

2. Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada no dia 30.01.2009, no Cartório Notarial ..., de fls. 133 a 135 do Livro n.º ...7..., BB declarou, nomeadamente, ter solicitado ao Banco BPI, S.A., um empréstimo de €105.000,00, de que se confessou devedor, e que lhe foi concedido pelo prazo de 420 meses, e que em caução e garantia do referido empréstimo, juros, sobretaxa e despesas constitui a favor do referido banco hipoteca sobre o imóvel aí identificado, tendo o Banco BPI, S.A., declarado aceitar a confissão de dívida e hipoteca, tudo conforme certidão de fls. 15 a 19 e 70 a 83, que se dá por reproduzida;
3. No dia 29.10.2009, BB subscreveu o “Boletim de Adesão” ao Seguro de Vida – Crédito Hipotecário BPI, cuja cópia consta de fls. 13 e 14, 42 a 44 e 418 a 420, que se dá por reproduzido, com as coberturas de morte ou invalidez absoluta e definitiva, com início na data da escritura e com o capital seguro de €105.000,00, através do qual solicitou «a sua inclusão na qualidade de Pessoa Segura, no âmbito da apólice indicada e que respeita a um Seguro de Grupo Contributivo em que é Seguradora a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., e o Tomador de Seguro o Banco BPI, S.A.», titulado pela apólice n.º ...67 – nuc ...02;

4. O referido boletim foi assinado por BB no balcão de ... do Banco BPI, S.A.;

5. Por escritura pública de habilitação outorgada no dia 13.07.2017, no Cartório Notarial ..., de fls. 26 a 27 do Livro n.º ...63, AA, ora A., encontra-se habilitada como única herdeira de BB, conforme certidão de fls. 22 a 26, que se dá por reproduzida;

6. No dia 20.07.2017, a A. dirigiu-se à referida agência bancária do Banco BPI para participar o óbito do seu pai e dar início ao processo de sinistro relativo ao seguro de vida, tendo assinado o documento cuja cópia consta de fls. 400, denominado “carta de instruções”, cujo teor se dá por reproduzido;

7. Na referida agência foi solicitado à A., directamente por uma funcionária do Banco BPI, o certificado de óbito do seu pai;

8. Em data não apurada, a A. entregou na referida agência do BPI o certificado de óbito, cuja cópia consta de fls. 20 e 21 e se dá por reproduzido, do qual consta como causa de morte: «Parte I a) Sepsis com falência múltipla de órgãos; b) Síndrome compartimentar abdominal; c) Pancreatite etanólica necrotizante. Parte II Hipertrigliceridémia, Etanolismo»;
9. Após essa entrega, a A. recebeu um e-mail, enviado directamente por CC, funcionária do Banco BPI, com o seguinte teor «Em seguimento da informação já dada por telefone, no dia 12/09 à Sra. DD, alertamos que se contra em falta a seguinte documentação, a fim de dar seguimento ao processo de óbito do Cliente BB (…). – relatório do médico assistente o de família (Segurança Social) ou medicina no trabalho referindo o início ((muito importante o inicio dos sintomas) evolução e duração da causa da morte», conforme documento de fls. 27, que se dá por reproduzido;

10. Nessa sequência, a A. remeteu ao senhor coordenador do Centro de Saúde ..., a carta cuja cópia consta de fls. 28, cujo teor se dá por reproduzido, solicitando relatório clínico para efeitos de seguro de vida, por morte do seu pai, utente daquele Centro com o número ...20;

11. O senhor coordenador do Centro de Saúde ... remeteu à A. a carta cuja cópia consta de fls. 29 e se dá por reproduzida, datada de 20.09.2017, com o seguinte teor: «A informação que se encontra em processo clinico é uma informação protegida por sigilo médico. Esse sigilo não cessa com a morte do utente e o dever de sigilo por parte dos médicos permanece sem data limite definida. Em situação alguma, esse sigilo poderá ser violado a pedido de terceiros. Apenas o próprio poderá requisitar informação clinica e relatórios. Como tal, neste caso particular, apenas poderá ser emitida informação clinica referente ao Sr. EE se o próprio tiver, em vida, deixado uma declaração por escrito sobre a sua intenção de que a respectiva seguradora obtivesse informação sigilosa. Se a seguradora não tiver na sua posse e não anexar a cópia respectiva dessa declaração ao pedido endereçado a esta unidade de saúde, não poderá ser emitida qualquer informação clínica»;

12. No dia 26.09.2017, a A. entregou cópia da carta referida no número anterior na agência do Banco BPI do ...;

13. Desde essa data, a A. não obteve qualquer contacto por parte da R., seja directamente, seja através do Banco BPI;

14. Em 15.06.2018, o Banco BPI instaurou contra a ora A., junto do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Execução ... – J..., uma acção executiva sumária, para pagamento de quantia certa, registada com o n.º 11833/18...., com o valor de € 86.013,49, por incumprimento do contrato referido no n.º 2, sendo que, em 10.10.2017, o capital em dívida ascendia a € 83.508,90, a que acrescia juros remuneratórios e moratórios e imposto de selo, conforme documento de fls. 67 a 142, que se dá por reproduzido;

15. No dia 29.10.2009, BB subscreveu, ainda, o “Boletim de Adesão” ao Seguro de Multi Riscos Habitação, Obras e Montagens, cuja cópia consta de fls. 45 e 46 e 421 e 422, que se dá por reproduzido, com as coberturas base e complementar, com início na data da escritura;

16. O seguro referido no n.º 3 estava sujeito às Condições Gerais cuja cópia consta de fls. 47 a 49 e que aqui se dão por reproduzidas;

17. O ponto 1 da cláusula 13.ª dessas Condições Gerais dispõe que: «a) Qualquer sinistro, cujo risco se insira no âmbito da presente Apólice deve ser participado ao Tomador de Seguro, por escrito, nos quinze dias imediatos à sua ocorrência, indicando o local, dia, hora, causas e consequências (…)»;

18. O ponto 2 dessa cláusula 13.ª dispõe que: «13.2.1 O pagamento de qualquer indemnização relativa a esta Apólice só será exigível depois do envio à Allianz Portugal do pedido do beneficiário e dos documentos justificativos exigidos, que são: a) em caso de morte: - Certificado de Óbito emitido por entidade oficial competente; Cópia do Bilhete de identidade; Se a morte tiver ocorrido por doença, relatório do médico assistente ou de família (Segurança Social) ou medicina do trabalho referindo início (muito importante o início dos sintomas), evolução e duração da causa de morte. Para um melhor esclarecimento da patologia associada à causa de morte, a Allianz poderá solicitar o relatório de autopsia, se assim o entender»;

19. No dia 20.07.2017, através do Balcão do BPI do ..., a R. recebeu o documento referido no n.º 6, acompanhado do assento de óbito, cópia do passaporte da A. e cópia da habilitação de herdeiros;

20. Nessa sequência, em data não apurada, a R. solicitou ao BPI que a participação de óbito feita pela A. fosse acompanhada do certificado de óbito da pessoa segura e do relatório do médico assistente, para que se abrisse o processo de sinistro;

21. No dia 03.10.2017, o departamento DO Seguros e Cauções do BPI contactou a R. por e-mail, através do qual solicitou cópia do Boletim de Adesão onde o cliente autoriza o acesso aos seus dados clínicos;

22. A R. remeteu tal documento ao referido departamento no dia 09.10.2017;

23. O BPI nunca remeteu à R. o relatório médico referido no n.º 20;

24. No “questionário de saúde”, que consta no boletim de adesão referido no n.º 3, BB respondeu negativamente às seguintes perguntas: «1. Sofreu alguma intervenção cirúrgica? 2. Está sob observação médica ou tratamento regular? 3. Já esteve internado em algum estabelecimento hospitalar? 4. Tem alguma deficiência física ou funcional? 5. Esteve de baixa mais de 15 dias consecutivos, nos últimos 5 anos? 6. Foi objecto de recusa ou agravamento de prémio aquando da subscrição de um Seguro de vida? 7. Fuma? 8. Existe algum facto relacionado com a sua saúde que não tenha sido referido e que tenha deixado sequelas às quais foi recomendado algum tipo de despistagem, de diagnóstico, exame médico ou tratamento médico que não tenha realizado?»;

25. Por a R. não ter recepcionado o relatório médico referido no n.º 20, não foi emitido parecer clínico nem foi tomada posição de recusa ou aceitação no processo de sinistro relativo à morte de BB;

26. No boletim de adesão referido no n.º 3 consta o seguinte: «autorizo os médicos ou qualquer entidade que me tenha tratado ou examinado a fornecer à Allianz Portugal sempre que esta solicitar todas as informações relacionadas com o meu pedido de adesão ou com um eventual sinistro»;

27. A R. nunca solicitou directamente à A. qualquer documentação;

28. O documento referido no n.º 11 foi dado a conhecer à R.;

29. Em 2017 BB apresentava história de consumo alcoólico excessivo;

30. BB esteve internado entre 29.05.2017 a .../.../2017, por pancreatite aguda etanólica ou induzida por álcool, com comportamento necrotizante (fls. 149 a 155, 159 a 207, 253 a 377);

31. BB esteve internado entre 02.11.2006 a 13.11.2006 por pancreatite aguda litiásica (fls. 378 a 394);

32. BB esteve internado aos cuidados da especialidade de Cirurgia Máxilo-Facial, de 15.02.2007 a 19.02.2007, por deformação nasal adquirida, tendo sido sujeito a rinoseptoplastia e enxerto de cartilagem do pavilhão auticular esquerdo (fls. 240 a 252, 427 a 483).
1.2 não provados:

Da petição inicial

a) que a A. desconheça e que nunca lhe tenha sido comunicado sequer pela R., qual o número da Apólice a que corresponde o contrato de seguro de vida contratado entre o seu pai e a R.;

b) que nunca tenham sido entregues ao pai da A. as condições gerais, especiais e particulares da apólice do referido contrato de seguro;

Da contestação:

c) que o que consta do n.º 20 tenha ocorrido no dia 21.07.2017 e que a R. tenha reencaminhado a participação de óbito feita pela A. e solicitado a formalização da participação;

d) que em 11.04.2018 e em 13.04.2018 a R. tivesse solicitado, novamente, a documentação ao balcão;

e) que o BPI não tenha enviado à A. o certificado de óbito referido no n.º 8;

f) que, só através da presente acção, a R. tenha tido acesso ao certificado de óbito referido no n.º 8;

g) que a A. não tenha remetido para o Centro de Saúde a autorização referida no n.º 26;

Da resposta

h) que nunca tenha sido dado a conhecer à A. o teor de qualquer cláusula contratual, nomeadamente, a cláusula 13.ª;

i) que a R. jamais tenha dado a conhecer ao falecido pai da A. o teor das cláusulas contratuais referentes ao contrato de seguro de vida, nomeadamente, a 13.ª;

j) que a R. nunca tenha explicado quais as coberturas desse seguro e quais e em que circunstâncias funcionariam as exclusões contratuais;

Do articulado superveniente

k) que, em 2007 ou à data da adesão ao seguro referida no n.º 3, BB apresentasse história de consumo alcoólico excessivo;
l) que, em 2007 ou à data da adesão ao seguro referida no n.º 3, BB sofresse de pancreatite alcoólica;
m) que, se a R. tivesse tido conhecimento, no momento da adesão, que o segurado sofria de pancreatite alcoólica e que já tinha história de consumo excessivo de álcool, não tinha celebrado o seguro de vida do pai da A..

Questão prévia: admissibilidade da ampliação do âmbito do recurso 
Nas contra-alegações (conclusões 27 a 34) a Autora vem requerer a ampliação do âmbito do recurso para que este tribunal se pronuncie quanto:
a) à condenação da seguradora no pagamento dos juros, taxas bancárias e comissões de processamento e de incumprimento, desde a data da comunicação do óbito até ao trânsito em julgado da sentença em face do incumprimento da Ré (alegado na petição – artigo 28.º, que o acórdão omitiu);
b) a quem impende o ónus de alegar e de provar a comunicação e informação do teor das cláusulas contratuais (por discordar da posição defendida no acórdão recorrido quando conheceu da matéria de facto impugnada).
De acordo com o artigo 636.º, nas situações de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação (n.º1). Nos termos do n.º2, do mesmo preceito, cabe ainda no direito de o recorrido ampliar o âmbito do recurso, a invocação de nulidade(s) de que a sentença padeça que, embora que se tenha(m) revelado indiferente(s) para a parte vencedora, pode(m) vir a influir no resultado da acção em consequência da interposição de recurso.
Assume também cabimento na figura da ampliação do âmbito do recurso a impugnação da matéria de facto (provada ou não provada) que se mostre relevante para a defesa dos interesses da parte recorrida na hipótese de ser acolhida a posição da parte recorrente.
Relativamente a esta possibilidade, a Autora pretende a ampliação quanto à matéria de facto que foi objecto de impugnação no recurso que interpôs da sentença (factualidade não provada constante das alíneas a), b), c) e i) reportada à comunicação e informação das cláusulas contratuais do seguro) que o tribunal a quo julgou improcedente (sendo que tal decaimento na apelação acabou por se revelar indiferente para o resultado da acção, uma vez que Autora viu aceite o seu posicionamento relativamente à validade do contrato de seguro).
Assim, uma vez que a referida matéria se pode mostrar pertinente para a defesa dos interesses da Autora, não deixará a mesma de ser objecto de apreciação por este tribunal em caso de procedência da revista.
Porém, no que respeita à alegada omissão de pronúncia por parte do acórdão quanto ao pedido de condenação da Ré no pagamento dos juros, taxas bancárias e comissões de processamento e de incumprimento, desde a data da comunicação do óbito até ao trânsito em julgado da sentença, porque se trata de matéria que assumiu influência no resultado da acção (relativamente ao quantum da condenação da Ré no pedido), a Autora é, quanto à mesma, parte vencida; como tal, só através da interposição de recurso (subordinado) poderia ser objecto de conhecimento por este tribunal, não, assumindo, por isso, cabimento na figura da ampliação do recurso.

2. O direito

Da validade do contrato de seguro

2.1 A presente acção encontra-se alicerçada na celebração de um contrato de seguro do ramo vida entre a Ré e o pai da Autora, na qualidade de pessoa segura.

Não oferece controvérsia nos autos o facto de o referido contrato se encontrar sujeito ao Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pela Lei n.º 72/2008, de 16-04[1] e, bem assim, de se integrar nos denominados contratos de seguros de grupo contributivos (cfr. artigos 76.º, 77.º, n.º 2, e 86.º e seguintes, do RJCS), em que é beneficiário, em caso de morte, no caso, o Banco BPI, SA (cfr. pontos n.ºs 2,  da matéria de facto), entidade mutuante.

A questão colocada na revista reporta-se à validade do contrato, uma vez que a Ré seguradora veio invocar a anulação do mesmo com fundamento em declarações inexactas e omissão nas respostas ao questionário por parte do Segurado.

As instâncias deram resposta divergente à questão.

A sentença, aplicando o artigo 25.º, do RJCS, deu procedência à anulação do contrato de seguro excepcionada pela Ré Seguradora balizada nas seguintes premissas argumentativas:

- a matéria de facto provada (factos que constam dos n.ºs 30, 31 e 32) evidencia que na data da adesão o Segurado omitiu realidades (ter estado internado por duas vezes e ter sido submetido a uma intervenção cirúrgica) relevantes para a ponderação do risco, que não podia deixar de conhecer;

- ao optar por omitir informações que lhe foram expressa e especificamente solicitadas pela Seguradora, o Segurado estava ciente da relevância das mesmas para a Ré, evidenciando o carácter doloso/intencional da respectiva omissão;

- é de presumir que as perguntas que constam do questionário médico apresentado ao requerente da adesão ao seguro foram relevantes e essenciais para a decisão da seguradora celebrar o contrato em determinadas condições.

O tribunal a quo, ao invés, concluiu que o contrato de seguro se mostrava válido e eficaz para produzir os efeitos nele previstos, sustentando:

- encontrar-se o segurado obrigado a não omitir quaisquer factos que sejam de considerar essenciais e decisivos para a apreciação, avaliação e decisão quanto ao risco (e em que condições) que a seguradora se propõe assumir;

- as respostas do segurado ao questionário apresentado pela seguradora assumem relevância enquanto circunstâncias que podem ter influência na avaliação do risco e nas condições do contrato a celebrar;

- constituir a declaração inexacta ou reticente facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, incumbindo à entidade seguradora fazer a prova da sua influência sobre a existência ou condições do contrato, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil;

- mostrar-se irrelevante para avaliação do risco assumido no contrato pela Seguradora a factualidade provada em 30[2], por estarem em causa factos ocorridos muito tempo depois de ter sido celebrado o contrato de seguro;  

- a relevância da factualidade provada em 31 e 32[3] na validade do contrato de seguro dependeria da alegação e prova, pela Seguradora, de que se tivesse conhecimento dessas ocorrências (de que o segurado não lhe deu conhecimento quando da celebração do contrato de seguro) não teria celebrado o contrato de seguro, ou tê-lo-ia celebrado noutras condições.

Insurge-se a Ré centrando a sua discordância quanto à forma como o acórdão recorrido perspectivou as consequências da falta de alegação e prova da essencialidade das omissões constantes do boletim de adesão, defendendo a aplicação, ao caso, do artigo 25.º, n.º1, do RJCS, por ocorrer essencialidade do erro e revelar-se intencional a omissão das declarações.

Vejamos.

1. Conforme se evidencia do teor das decisões proferidas, a dissidência entre as instâncias circunscreve-se, fundamentalmente, à questão da demonstração nos autos da essencialidade das declarações inexactas por parte do segurado relativamente à celebração do contrato de seguro em causa[4].

Com efeito, enquanto a sentença concluiu pela verificação de tal essencialidade, presumindo-a face ao teor das perguntas constantes do questionário que a seguradora apresentou ao segurado, o acórdão entendeu que tal requisito carecia de ser alegado e provado nos autos, impendendo sobre a Ré o respectivo ónus.

Entendemos que o tribunal a quo decidiu com acerto, conforme passaremos a justificar.

           

2. A importância da declaração inicial do risco no âmbito do contrato de seguro assume total sentido atento o seu desígnio, que é o de transferir determinado sinistro para a seguradora mediante uma contrapartida[5].

Trata-se, afinal, da relevância do princípio da boa-fé na fase pré-contratual, dever adstrito aos contraentes (a conformação da conduta de qualquer das partes envolvidas com os ditames de um correcto, honesto e leal proceder[6]), que se reconduz não só na obrigação do tomador do seguro ou do segurado declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (artigo 24.º, n.º1, do RJCS), como na imposição, à entidade seguradora, de conduzir todo o processo negocial com lisura procedimental, em nome da tutela da confiança da contraparte, reflectida quer na elaboração e teor do questionário[7], quer no esclarecimento do tomador ou segurado acerca da relevância do dever de informação exacta que sobre o mesmo impende (cfr. artigos 24.º, n.º 3 e 4, do RJCS)[8].

E se é certo que, no caso, se evidencia a ocorrência de dolo negocial (porquanto a resposta negativa do segurado às perguntas constantes do questionário - relativamente ao internamento hospitalar e à submissão a intervenção cirúrgica -, por constituir afirmação falsa, que o segurado não podia deixar de conhecer, revela incumprimento doloso do dever de declarar com exactidão as circunstâncias que, razoavelmente, deveria ter por significativas para a apreciação do risco), a aplicabilidade do regime do artigo 25.º, do RJCS, e, por consequência, a anulação do contrato de seguro[9], dependeria da verificação de dois requisitos, que não encontram demonstrados nos autos e cujo ónus impendia sobre a Ré[10]:

- a causalidade entre o dolo e o erro[11];

- a essencialidade do erro para a celebração do contrato[12].    

3. Atenta a finalidade subjacente ao dever de informar do segurado prescrito no artigo 24.º, do RJCS (evitar que a entidade seguradora tome a decisão de contratar viciada num erro)[13], não pode deixar de se concluir que as declarações inexactas ou omissões passíveis de determinar a anulabilidade do contrato no termos do artigo 25.º, do RJCS, terão de ser essenciais na contratação do seguro, ou seja, determinantes da vontade (viciada) de contratar o respectivo negócio[14].

A essencialidade do erro, porém, não se pode confundir, conforme parece ter feito a sentença, com o pressuposto do dever de informar que impende sobre o tomador ou o segurado aludido no artigo 24.º, do RJCS, reportado às circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, pois que naquele preceito “delimita-se o dever de informar em função daquilo que o tomador «razoavelmente» deva ter por significativo para a apreciação do risco pelo segurador. O requisito da essencialidade, subjacente ao art.25.º, exclui a anulabilidade quando o segurador, efectivamente, não tenha tido por significativo certo facto para a sua apreciação do risco, ou melhor, e em geral, quando o segurador, efectivamente, não tenha dado relevância ao aspecto sobre o qual estava em erro para a sua decisão de contratar como contratou.[15].

Assim sendo, não obstante, no caso, o Segurado ter prestado informações inexactas com vista à celebração do contrato de seguro (ainda que referentes a circunstâncias que razoavelmente devia ter por significativas para a apreciação do risco, uma vez que constavam de questionário fornecido pela Ré seguradora quando da adesão), as mesmas não afectam a validade do contrato celebrado, uma vez que a Ré não alegou nem demonstrou que se tivesse conhecimento dos factos omitidos não teria celebrado o contrato de seguro ou tê-lo-ia celebrado noutras condições.

Ao invés do pretendido pela Recorrente, não é de aplicar o regime do artigo 25.º, do RJCS.

Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões do recurso.

Atenta a improcedência da revista, mostra-se prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso requerida pela Autora.

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela Ré.

Lisboa, 30 de Novembro de 2022

Graça Amaral (Relatora)

Maria Olinda Garcia
 
Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

__________________________________________________

[1] Que entrou em vigor em 01-09-2009.
[2] BB esteve internado entre 29.05.2017 a .../.../2017, por pancreatite aguda etanólica ou induzida por álcool, com comportamento necrotizante.

[3] BB esteve internado entre 02.11.2006 a 13.11.2006 por pancreatite aguda litiásica; BB esteve internado aos cuidados da especialidade de Cirurgia Máxilo-Facial, de 15.02.2007 a 19.02.2007, por deformação nasal adquirida, tendo sido sujeito a rinoseptoplastia e enxerto de cartilagem do pavilhão auticular esquerdo
[4] No que se refere à existência de omissão ou declarações inexactas por parte do falecido segurado quer a sentença, quer a decisão recorrida são, e bem, naturalmente consentâneas atenta a matéria de facto provada sob os n.ºs 31 e 32 (não podendo deixar de se mostrar irrelevante a situação de internamento a que alude o ponto 30 da matéria de facto por ser muito posterior à celebração do contrato de seguro[4]), uma vez que decorre da mesma que às perguntas do questionário de saúde constante do boletim de adesão que foi apresentado ao segurado (facto provado n.º 24), este respondeu negativamente, nomeadamente quanto: Sofreu alguma intervenção cirúrgica? (…) 3. Já esteve internado em algum estabelecimento hospitalar.
[5] Conforme refere o acórdão do STJ de 08-03-2022, proferido no Processo n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1 (a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ), “Essa especial relevância explica-se, por um lado, por ser o tomador do seguro ou o segurado quem melhor conhece o risco de que se quer proteger; compreendem-se, assim, quer o significativo ónus de revelar completamente e com verdade o risco a segurar, quer as consequências de declarações falsas ou omissivas, determinantes para a celebração do contrato. Mas igualmente se explica, por outro lado, e agora na perspectiva da seguradora, pela necessidade de proteger a segurança na formação da decisão de contratar e de aceitação do âmbito e condições de cobertura, ou dos termos da contrapartida, para apenas referir alguns pontos ostensivamente dependentes da possibilidade de real avaliação do risco em jogo – ou seja, da probabilidade de o sinistro ocorrer durante a vigência do contrato”.
[6] Filipe Albuquerque de Matos, “Uma outra abordagem em torno das declarações inexactas e reticentes no âmbito do contrato de seguro, os artigos 24.º a 26.º do Dec-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra, 2010, p. 622.
[7] Salienta Filipe Albuquerque Matos que o questionário acaba por constituir uma técnica ou regra de selecção de riscos (obra citada, p. 623).    
[8] Prescreve o n.º3 que “O segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se:
a) Da omissão de resposta a pergunta do questionário;
b) De resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos;
c) De incoerência ou contradição evidentes nas respostas ao questionário;
d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexacto ou, tendo sido omitido, conheça;
e) De circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias.
Por sua vez estatui o n.º4 que “O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.”.
[9] Neste sentido cfr. sumário do acórdão do STJ de 19-06-2019; Processo n.º 4702/15.9T8MTS.P1.S1 (acessível através das Bases Documentais do ITIJ): “A sanção da anulabilidade do contrato de seguro, contemplada no art. 25.º n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) não é mais que a previsão de um caso de erro vício de vontade. V - Trata-se de uma particularização do regime da anulabilidade do erro causada por dolo, previsto em geral no art. 254.º do CC.”.
[10] Não só por estar em causa um elemento constitutivo do direito de anular o contrato de seguro, mas também por o requisito da essencialidade ser aferido em função do processo interno de decisão da entidade seguradora.  
[11] O dolo do tomador ou segurado tem de ser causa do erro do segurador. Não o sendo, é aplicável o regime do erro simples – Pedro Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina 2016, 2.ª edição, p. 156.
[12] A exigência deste requisito na aplicabilidade do regime do artigo 25.º, do RJCS, tem vindo a ser defendida neste tribunal, conforme acórdão de 08-03-2022 supra citado, proferido no Processo n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1, em cujo sumário se refere: “V - Vindo definitivamente provado ter havido omissões e declarações inexactas no preenchimento do questionário médico e que as omissões e as inexactidões foram intencionais e determinantes para que a seguradora pudesse avaliar o risco a segurar e celebrasse o contrato de seguro, é inevitável concluir pela anulabilidade do contrato (n.º 1 do art. 25.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro). VI - Uma omissão dolosa que tenha sido determinante para a celebração do contrato confere ao segurador o direito de opor a respectiva anulabilidade, sem necessidade de recorrer à via judicial”. No mesmo sentido, acórdão do STJ de 19-06-2019, Processo n.º 4702/15.9T8MTS.P1.S1, constando do respectivo sumário: “IV - A sanção da anulabilidade do contrato de seguro, contemplada no art. 25.º n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) não é mais que a previsão de um caso de erro vício de vontade. V - Trata-se de uma particularização do regime da anulabilidade do erro causada por dolo, previsto em geral no art. 254.º do CC. VI - Cabe à seguradora o ónus de provar o erro, a sua relevância e a existência do dolo (art. 342.º, n.º 2, do CC).”.

[13] Conforme consta do sumário do acórdão deste tribunal de 24-05-2002, “(…) II. Em complemento e válvula de segurança, o art. 24º, 4, do RJCS («O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.») prescreve um dever de informação a cargo do segurador como um mecanismo (ainda por cima sob cominação de responsabilidade civil por incumprimento) que se instrumentaliza, num contexto de boa fé colaborativa das partes, em favor do esclarecimento completo e exacto previsto no n.º 1 do art. 24º e, ademais, como um expediente ao serviço da superação de situações em que o risco percepcionado pelo segurador pode ser mesmo distinto do risco real. Não sendo cumprido, faz surgir um perigo de omissão e inexactidão na declaração inicial de risco (em particular perante um tomador de seguro ou segurado negligentes) que corre por conta do segurador. III. As circunstâncias (pelo menos) desconhecidas (e, por isso, omitidas ou “reticentes”) sem dolo ou negligência e as omissões e inexactidões irrelevantes ou indiferentes (na visão do segurador) para a determinação do risco (assistidos pelos nexos causais respectivos) não atingem a validade (art. 25º) nem o conteúdo e vigência do contrato de seguro (art. 26º).” – a que se poderá aceder através de https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/11/sum_acor_civel_maio.pdf
[14]o erro é essencial quando a vontade hipotética do errante, se não estivesse em erro teria sido a de não celebrar aquele negócio jurídico” – Pedro Romano Martinez, obra citada, p.156.
[15] Pedro Romano Martinez, Obra citada, p. 156.