Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
580/15.6POLSB.L1.S1.
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Data do Acordão: 06/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / MOTIVAÇÃO DO RECURSO E CONCLUSÕES.
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / FORÇA JURÍDICA.
Doutrina:
- Anabela Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, p. 371;
- Cristina Líbano Monteiro, Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.07.05, Processo n.º 2521/05-5ª, in RPCC, Ano 16, Nº 1, p. 162 e ss.;
- Eduardo Correia, Estudos sobe a reforma do Direito Penal de pois de 1974, in, RLJ, ano 119º, p. 6;
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 291 e 292;
- Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad., Bosch, 1986, p. 34;
- Jorge Miranda, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 148- 163.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 412.º, N.º 1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 77.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 18.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13.09.2006, PROCESSO N.º 06P2167;
- DE 09.01.2008, PROCESSO N.º 3177/07;
- DE 06.01.2010, PROCESSO N.º 99/08.1SVLSB.L1.S1;
- DE 13.10.2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1;
- DE 21.06.2012, PROCESSO N.º 525/11.2PBFAR.S1;
- DE 27.01.2016, PROCESSO N.º 178/12.0PAPBLS.S2, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Olhando para o conjunto dos factos provados, dele ressaltam, de imediato, características de grande insensibilidade da personalidade do arguido e dum certo embotamento afectivo: a actuação do arguido ocorreu num quadro de violência doméstica, que vinha marcado a relação conjugal com H; o aproveitamento de que a mesma se encontrar de costas para lhe ter desferido, com uma faca, um golpe no pescoço, do lado esquerdo; a adopção para com o seu filho P, de uma postura de frieza e de ausência de afecto, tendo desferido contra este, com uma faca, um golpe perfurante no pescoço. II - A globalidade dos factos evidencia também ser o arguido portador de uma personalidade conturbada. As exigências de prevenção geral são especialmente intensas. Em sede de exigências de prevenção especial, avulta a personalidade do arguido, caracterizada pelo reduzido ou nulo valor que revelou atribuir à pessoa humana. Pelo que, tudo ponderado, se entende que a pena unitária aplicada de 9 anos de prisão peca por defeito, sendo de dar provimento ao recurso interposto pelo MP, considerando-se antes mais adequada a pena de 12 anos de prisão, a aplicar pela prática pelo arguido de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada e de um crime de violência doméstica.
Decisão Texto Integral:
 RECURSO PENAL[1]

                                          

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, nº 580/15.6POLSB.L1,  foi proferido  acórdão  que decidiu, condenar o arguido, AA, como autor, pela prática, em concurso real,

a) de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos art.ºs 131.º n.º 1, 132.º n.º 2, alínea b), e 23.º, todos do Código Penal, agravado pelo art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, na pessoa da ofendida BB, na pena parcelar de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão;

b) de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos art.ºs 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, alínea a), e 23.º, todos do Código Penal, agravado pelo art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, na pessoa do ofendido CC, na pena parcelar de 4 (quatro)  anos e 6 (seis) meses de prisão; e

c) de um crime de violência doméstica previsto e punido pelos art.º 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, na pena parcelar de 3 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão.

E, operando o cúmulo jurídico destas penas parcelares,  nos termos art.º 77.º do Código Penal, condenar  o arguido, na  pena única de 9 (nove) anos de prisão.

Foi o mesmo arguido condenado  ainda a pagar os montantes indemnizatórios descritos no acórdão condenatório, deduzidos pelos assistentes/demandantes BB e CC, e pelo demandante “Centro Hospitalar de ..., E.P.E.”.

2. Inconformados, o Ministério Público e o arguido, interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão proferido em 26.10.2016, afastou a agravação dos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada pelo art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006  e decidiu, em tudo o mais, negar  provimento aos recurso interpostos, pelo arguido AA e pelo Ministério Público, mantendo «a parte decisória do acórdão condenatório recorrido na sua íntegra».

3. Inconformado, de novo, com este acórdão o Ministério Público dele interpôs recurso para este Supremo Tribunal, terminando as motivações com as seguintes conclusões:

« 1º. Por douto acórdão proferido a 26.10.2016 por este Tribunal da Relação, foi o arguido AA condenado pela prática: a) de um crime de homicídio qualificado na forma tentada  na pessoa da ofendida BB, cônjuge do arguido, na pena de 7 anos e 10 meses de prisão; b) de um crime de homicídio qualificado na forma tentada  na pessoa do ofendido CC filho do arguido, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão; c) de um crime de violência doméstica na pena de 4 anos e 2 meses de prisão.

2º. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 9 anos de prisão.

3º. Na fixação das penas parcelares e da pena única aplicadas, o acórdão recorrido considerou a elevada ilicitude dos factos, o modo de execução das tentativas de homicídio, a actuação com dolo directo e as necessidades de prevenção geral e especial atenta a personalidade do arguido, a ausência de confissão e de arrependimento mas sem antecedentes criminais.

4. Efectivamente o arguido tentou matar a mulher e filho de forma selvática e perfeitamente gratuita, sem a menor provocação da parte destes.

5. Na ofendida aproximou-se pelas costas e desferiu-lhe um golpe na região lateral esquerda do pescoço e outra na região infra-clavicular esquerda do tórax, lesões de que resultou perigo concreto para a vida, com necessidade de uma cirurgia de emergência para laqueação de laceração da veia jugular anterior esquerda do pescoço e  que obrigaram ao seu internamento de 27 de Maio a 24 de Junho de 2015.

6. No ofendido CC utilizando uma faca de cozinha, desferiu-lhe  um golpe perfurante na zona da tiróide e um golpe na zona das costas.

7. Em consequência das agressões resultaram para os ofendidos lesões físicas e psíquicas gravíssimas, as últimas das quais ainda perduram e irão manter-se por tempo impossível de determinar.

8. Perante a gravidade da actuação do arguido, o modus operandi utilizado, o resultado dos seus actos, a insensibilidade demonstrada, a ausência de confissão e arrependimento, a pena única a aplicar ao arguido mostra-se demasiado benevolente pelo que deveria situar-se em medida não inferior a 12 anos de prisão.

9º. Tendo em consideração as fortes exigências de prevenção, a gravidade dos factos, que não podemos esquecer, consistiram em atentados contra o valor supremo, a vida humana, só não concretizados por motivos alheios à vontade do arguido, são (e devem ser) fortemente reprovados pela comunidade.

10º. A pena única deveria situar-se em medida não inferior a 12 anos de prisão, só assim traduzindo a medida da culpa e as finalidades visadas pela punição, com respeito aos critérios previstos nos artigos 40º nº 1 e 71º nº 1 e 2 alíneas a) e f) do Código Penal, o que se requer com a revogação do acórdão recorrido».


3. Os assistentes BB e CC, responderam, concluindo nos seguintes termos:

« I - Por Acórdão proferido em 14-06-2016, e confirmado pela Relação de Lisboa em 26 de Outubro de 2016, o Arguido AA foi condenado pela prática de:

1. Um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131 n.º 1, 132 n.º 2 al. b) e 23 do Código Penal, cometido contra a sua esposa, na pena de 7 anos e 10 meses de prisão;
2. Um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131 n.º 1, 132 n.º 2 al a) e 23 do Código Penal, agravado pelo artigo 86, n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro e cometido contra seu filho, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
3. Um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152 n.º 1, al, a) e 2 do Código Penal, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão.

II -  O Ministério Público, em Recurso interposto da decisão do Venerando Tribunal da Relação, pugnou pelo agravamento das penas parcelares, individualmente consideradas, e ainda pugnou pelo aumento da pena única conjunta, ou seja, do cúmulo jurídico.

III – Por Acórdão proferido em 26 de Outubro de 2016 o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu “Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em negar o provimento a ambos os recurso interpostos, pelo arguido AA e pelo Ministério Público, embora tenha sido procedente um dos fundamentos do recurso deste último e julgados improcedentes os demais, mantendo-se a parte decisória do acórdão condenatório recorrido na sua íntegra.”

IV - Os Assistentes responderam às Alegações de Recurso indicando expressamente que o mesmo visa unicamente a resposta à matéria penal, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 2 do artigo 403 do CPP, delimitado pelas conclusões apresentadas de 1-10. Acompanham a posição propugnada pela Digníssima Procuradora do Ministério Público, no que concerne ao Recurso por ela apresentado.

V – A moldura penal abstacta para cada crime (e foram cometidos dois da mesma forma), de homicídio qualificado na forma tentada, de que o Arguido vem condenado, indica claramente como pena aplicável, o mínimo de 2 anos e 4 meses e como máximo 16 anos e 8 meses, ora verifica-se que as penas em concreto aplicadas ficarem aquém da moldura média abstracta, em claro e em inexplicável favor do Arguido. Verifique-se que quanto à Assistente BB o Arguido foi condenado na prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131 n.º 1, 132 n.º 2 al. b) e 23 do Código Penal, cometido contra a sua esposa, na pena de 7 anos e 10 meses de prisão. Já no que se refere ao Assistente CC o Arguido foi condenado por um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131 n.º 1, 132 n.º 2 al a) e 23 do Código Penal e cometido contra seu filho, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e no âmbito do crime de violência doméstica, artigo 152 do CP, 3 anos e 6 meses de prisão, sendo o máximo de 5 anos. Assim, facilmente se verifica que qualquer uma das penas parcelares aplicadas fica bastante abaixo da moldura média abstractamente aplicável, o que face ao dolo intenso, com que os crimes foram praticados, às agravantes, prevenção geral e especial elevadas, com destaque para a personalidade do Arguido, que recomendam, face ao seu relatório social, uma elevada prevenção especial negativa, com a finalidade, de no futuro, o mesmo não cometa crimes, a ausência de arrependimento, pois na sequência da audiência de julgamento, ficou manifestamente provado e patente que nunca existiu a alegada relação de incesto, entre os Assistentes, de que o Arguido se teria convencido existir. Nem assim, pois o Arguido é uma pessoa capaz de se autodeterminar, face à evidência da prova, deveria ter manifestado o seu arrependimento, o que não fez, o que só pode permitir concluir ao Tribunal que a conduta do Arguido foi devidamente premeditada, ponderada, decidida e executada e que deverá ser merecedora de uma acção penal na devida proporção. Não esquecendo o período em que a Assistente dormiu no sótão com medo de agressões físicas e psicológicas, havendo documentação junta aos autos desse período, facto não negado pelo Arguido, numa casa com quartos vagos, tal não pode passar despercebido quer às razões de prevenção geral, quer às razões de prevenção especial e que demonstram a culpa muito elevado do Arguido.

VI – Quanto ao crime de violência doméstica, igualmente o mesmo crime foi alvo de uma brandura sem precedentes, pois no processo foi dada a conhecer matéria que impunha decisão diversa, bem como foram provados, identificados os momentos que o Acórdão diz não terem sido precisados, bem como existem elementos junto aos autos, não impugnados pelo Arguido, que impunham condenação maior pelos factos descritos na Acusação, vide escritos particulares ou memorandos da Assistente juntos aos autos, escritos no início da década de 90 do século passado, para se perceber a violência quotidiana e diária, passe-se o pleonasmo, de que a Assistente era vítima. O tipo objectivo de ilícito, no caso em apreço, preenche-se com a acção de infligir “Maus-tratos físicos” (que se traduzem em ofensas à integridade física, incluindo simples) ou “Maus-tratos psíquicos” (que podem consistir, como diz Taipa de Carvalho, em “humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça”) ao ex-cônjuge ou cônjuge, à altura dos factos por parte do agente. Por sua vez, o tipo subjectivo de ilícito exige o dolo (nesta particular situação, trata-se de crime de mera actividade - está em causa o infligir de “maus-tratos psíquicos” - bastando o dolo de perigo de afectação da saúde, aqui o bem estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo).


VII – Ora face aos factos dados como provados e assentes, que não podem ser alvo de recurso, podemos afirmar com um grau máximo de certeza que o Arguido agiu com frieza de ânimo, pois ao actuar contra a esposa e filho, do modo que actuou, este mostrou uma desconformidade de valores, pelo dolo intenso e altíssimo e ilicitude também gritantes, note-se que nenhum dos crimes foi cometido com um nível médio, antes um elevadíssimo grau, a que deverá corresponder uma pena consideravelmente superior.

VIII - Ora, na situação vertente tal censurabilidade e perversidade afigura-se manifesta: só uma personalidade acentuadamente deformada, insensível ao valor supremo da vida de outrem decide matar e atentar contra as vítimas indefesas, surpreendendo-as de forma traiçoeira.

IX -  A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção. À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

X - Circunstância agravada que merece censura por parte do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, pois o relatório social “também as  dificuldades  evidenciadas  na  resolução  de  problemas  e  antecipação  das suas  consequências,  o  que  não  lhe  permite  controlar  as  situações  pessoais  menos  gratificantes  e geradoras  de  impulsos  agressivos.” Tal facto significa que o Arguido não está preparado para viver em sociedade tão cedo, só este medo de não saber lidar com os seus problemas e o facto de ser determinado na execução dos factos que determina deve fazer pensar o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, que o Arguido é merecedor de uma pena proporcional, à gravidade dos factos, à falta de arrependimento dos mesmos, e à ausência de confissão ou colaboração com a justiça, assim sendo não deve beneficiar de nenhuma atenuante, o que servirá para agravar a pena, nos termos conjugados do artigo 40, 71 n.º 1 e 2  al.) a e f) do CP.

XI – Ora, o arguido atentou contra a vida dos ofendidos, quando nada o fazia crer, apanhou as vitimas desprevenidas, depois de durante a noite ter tentado armar discussão, mas os ofendidos recursaram essa discussão, aliás a Assistente BB preparava-se para sair de casa, precisamente para não ouvir o Arguido que tentava por tudo arranjar um motivo que pudesse, em abstrato justificar o seu acto vil e cruel, quando esta a calçar-se, na despensa, de costas e baixa, por se estar a calçar, o Arguido apanha a vítima e defere facadas, emboscando a vítima, o mesmo se diga quanto ao Assistente CC, que ao chegar à cozinha, e ao ver a situação incrédulo pergunta o pai o que estava a fazer e ele responde “Estou a matar a tua mãe”, num impulso imediato, o Arguido dirige-se ao filho, e desfere-lhe, golpes com uma faca, apanhando este desprevenido.

XII - Nos termos do artigo 1878º do CC, compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens. Por sua vez, os filhos devem obediência aos pais, devendo, contudo, estes, de acordo com a maturidade dos filhos, ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida. Cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos, artigo 1885º do CC.

XIII - Ora o Arguido desrespeitou os mais elementares deveres de protecção do seu filho, ao desferir-lhe golpes com a clara e manifesta intenção de lhe provocar a morte, nos termos do artigo 132 n.º 2 al. a). Não é por acaso que este elenco de agravação o iter criminis se inicia com os descendentes ou ascendentes, ora no caso em apreço a vitima é descendente do Arguido, o agente da prática do crime. Este facto de per si revela um desrespeito por deveres do Arguido, direitos do Assistente, pois os laços familiares básicos devem, por si só, constituir para o Arguido ou deveriam, melhor dito, um impedimento ou ser inibitório de praticar uma conduta desta natureza, daí que haja uma especial censurabilidade, daqui deve derivar uma censura penal agravada.

XIV – O Arguido, nos momentos que antecederam a prática dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, teve, pois, tempo de reflectir sobre o que pretendia fazer, quer no filme que visionou, nessa tarde como havia dito em declarações na Audiência de Discussão e Julgamento. Vídeo que não continha nenhum conteúdo que pudesse sequer fazer duvidar, por um segundo que fosse, o Arguido. Mais grave, o Arguido comprou várias câmaras de filmar que espalhou pela casa, diga-se, dissimuladas, sem os conhecimentos dos Assistentes, sabendo tudo o que se passaria na sua parca ausência. Das inúmeras câmaras de filmar espalhadas pela casa e das filmagens por elas colhidas e juntas aos autos, não resulta qualquer relação menos própria entre Assistentes, mas tão só a de uma família normal. Nas diversas imagens, pode ver-se e ouvir-se, lides domésticas, serões em família, conversas de mãe e filho, que diga-se o pai, Arguido, nunca ficou à margem, e participava nas conversas. Não há nenhuma filmagem que pudesse denotar qualquer anormalidade que o Arguido diz ter-se convencido que existira.

XV - O Arguido se tivesse agido sem consciência ou num ímpeto após os factos teria dito “o que eu fui fazer” e não foi isso que sucedeu, antes pelo contrário, nos autos há reportes de diversas testemunhas, o Sr. DD, o Sr. EE, o Sr. FF, testemunhas directas que presenciaram o afinco pela morte de ambos, reflectido, e agravado, quando na rua o Arguido se dirige ao filho com um afiador de facas, não bastaram as duas facas que usou, como ainda, reflectiu e foi buscar um afiador de facas para desferir esses golpes já na rua.

XVI - Por outro lado, o Arguido revelou uma vontade muito determinada de matar os Assistentes, atenta a parte do corpo escolhida para os atingir. Estas circunstâncias configuram dolo intenso.

XVII - O grau de ilicitude do facto, considerando o seu modo de execução e as consequências que dele resultaram para os Assistentes, com especial gravidade, para ambos os Assistentes, embora mais intenso no que concerne à Assistente BB, qualifica-nos em ambos os casos de dolo muito intenso e elevado. Isso mesmo refere o Acórdão da Relação, parafraseando o Acórdão da Primeira Instância, “O dolo do arguido nos delitos cometidos foi intenso, denunciado por uma forte e persistente energia criminosa.” Estes fatores conformam culpa em medida que em muito, excede a mediania, em todos os crimes, sejam os homicídios qualificados na forma tentada, seja a violência doméstica, permitindo que a pena se fixe muito acima do ponto intermédio da moldura penal, ora tendo ficado aquém de metade da medida da pena, ou seja, a pena parcelar aplicada pelo homicídio qualificado na forma tentada à Assistente BB foi apenas de 7 anos e 10 meses de prisão, o crime de homicídio qualificado tentado ao Assistente CC, 4 anos e 6 meses de prisão e quanto à violência doméstica 3 anos e 2 meses. Nesta moldura penal a pena máxima são 15 anos e 6 meses, e tendo sido aplicada a pena única de 9 anos, foi o Arguido beneficiado, uma vez que são elevadíssimas as razões de prevenção geral e especial, e ainda elevadíssima a sua culpa e o dolo intendo como agiu.

XVIII - O arguido, ao actuar do modo violento, intenso, decidido e persistente descrito neste quadro, revelou qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis e uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação normal com os valores, apresentando um comportamento que revela um egoísmo abominável, merecedor de grande reprovação, o que só pode levar ao enquadramento na figura do crime de homicídio qualificado, com dolo intenso. Aliás o Acórdão e os factos provados mostram que o Arguido agiu de forma leviana.

XIX - A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes, tendo em conta o seu relatório social, este revela-nos que são especiais as exigências de prevenção.

XX - O Código Penal acolheu a doutrina nos artigos 70º e 71º do Código Penal.

XXI - Ora, como vimos anteriormente, o dolo foi direto e muito intenso, pois o arguido, para praticar o crime, escolheu um recanto da casa, quando a Assistente BB se calçava, em estado baixo, de cócoras a calçar-se, a vítima jamais pensaria que poderia ser agredida e, portanto, o gesto do Arguido foi completamente surpreendente e deixou a vítima indefesa. Por outro lado, o arguido com uma intensa energia criminosa golpeou várias vezes a Assistente BB, sem possibilidade de falhar e apontou para as partes vitais do corpo da vítima, só não pode concretizar o seu plano porque intervieram os vizinhos, e testemunhas EE e DD.

XXII - O mesmo se diga quanto ao homicídio qualificado tentado que o Arguido perpetrou contra o seu filho. Tentou durante o jantar e após o jantar desencadear um conflito a propósito de o filho andar de boxers em casa, de resto provou-se no decurso da audiência que era normal o filho e o pai andarem de boxers, em casa, ora o que pretendia o Arguido era criar um conflito que facilmente explicasse aquilo que o Arguido queria, ou seja, terminar com a vida do seu filho. Quando este ouve barulho em casa levanta-se e era já noite e dormente depara-se com o Arguido a tentar matar a mulher e volta-se para o filho e com uma faca desfere-lhe vários golpes, em zonas vitais do corpo, pescoço, onde se alojam artérias e veias importantes, e para o tórax e costas, onde se encontram órgãos vitais alojados, como pulmões, coração, fígado, rins, intestinos, entre outros, pois qualquer homem médio sabe que afetar esses órgãos vitais é o primeiro impulso de quem quer matar, acompanhado das palavras, “vou-te matar”, “andavas a foder a tua mãe” e mais tarde, já na rua, o Arguido dirige-se ao Assistente CC com um afia facas empunhado “vou-te matar”, bem como já após a detenção o Arguido dizia aos agentes que queria matar ambos os Assistentes, mulher e filho.

XXIII - Ambos os Assistentes tiveram necessidade de internamento hospitalar, com as sequelas descritas, nos relatórios do Instituto Nacional de Medicina Legal, nos relatórios dados a conhecer, ao processo e ambos, ainda hoje, necessitam de ajuda espacializada do foro psiquiátrico e psicológico, com acompanhamento de médico de especialidade de psiquiatria, e de psicologia através da APAV em consultas regulares e o uso de medicação prescrita pelo psiquiatra. No caso da Assistente BB que é mais grave, tal implica ainda, sessões de fisioterapia, terapia da fala, consultas em diversas especialidades médicas, incluindo psiquiatria. Também as consequências do crime de homicídio qualificado tentado foram de máxima gravidade, pois a vítima como consequência direta e necessária das lesões descritas e provadas. Assim, a ilicitude, dentro da moldura penal apurada, é muito elevada, como são também muito elevadas as exigências de prevenção geral.

XXIV - Já as exigências de prevenção especial mostram-se também elevadas, face à persistência em levar a cabo tudo o que o Arguido determina, e mais grave é o não reconhecimento de que nada existiria se sexual entre a relação dos Assistentes, Mãe e filho. Se não reconhece a existência deve-lhe ser especialmente censurado, pois o Arguido coloca determinação em todas as tarefas que se empenha, e esta não está terminada, face ao não reconhecimento de tal erro. O facto de o arguido ser considerado pessoa pacífica, trabalhadora, apesar de desempregado à data dos factos, e não registar antecedentes criminais, não nos podemos esquecer que contra ele corre inquérito no DIAP, por crimes de enorme gravidade, pois no seu computador existia pornografia de menores. Vide relatório da Polícia Judiciária: “Ainda, em relação ao utilizador “AA”, foi possível identificar e extrair ficheiros, cujo conteúdo diz respeito a pornografia de menores. Estes ficheiros são, salvo melhor opinião, de conteúdo de abuso sexual de menores, onde se visualiza menores em actos sexuais (sexo oral, anal ou copula), menores em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais. Estas imagens não se encontram manipuladas e representam crianças reais.” Ora uma personalidade destas, desconforme ao direito, deve na prevenção negativa

XXV - A aplicação de penas e de medida de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art. 40.º, n.º 1, do CP –, sendo certo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).

XXVI - O art. 71.º do CP estabelece o critério da medida concreta da pena, dispondo que essa determinação, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção: o ponto de partida estará na tutela necessária dos bens jurídicos violados, isto é, ao restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal do arguido; o ponto de chegada estará nas exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura, de prevenção especial negativa, relevando nesse caso a advertência individual de segurança ou inocuização. Por outro lado, as exigências de socialização ínsitas à prevenção especial, face à motivação do arguido e circunstâncias da sua actuação, são prementes, com vista a dissuadir a reincidência.

XXVII - O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.

XXVIII - O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança. Ambas verificam-se no caso concreto, ou seja, no âmbito da prevenção especial positiva, as exigências são elevadas, e no âmbito da prevenção especial, também se mostra elevada, a par da elevadíssima prevenção geral e da culpa superlativa, têm de fixar necessariamente, uma pena muito superior àquela que foi aplicada.

XXIX - As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Pois no caso concreto não há arrependimento, nem tão pouco confissão, o que determina uma prevenção especial muito elevada, sendo que a pena tem de ser ajustada tendo em conta essa realidade. As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano. Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados. O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

XXX - Tudo ponderado, entende-se que a enorme gravidade do crime e, principalmente, das suas consequências justificam que, pelo homicídio qualificado na forma tentada, aumentando cada pena parcelar aplicada e individualmente considerada pois, só o aumento das penas parcelares e a pena do concurso aumentado é que melhor corresponde à necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto e às expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cf. art.º 77.º do C. Penal).

XXXI - No caso, há concurso de infrações entre os dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada e um de violência doméstica. O mínimo da pena única seria, nas penas aplicadas, sem considerar uma subida de cada uma delas, de 7 anos e 10 meses de prisão e o máximo, seria, 15 anos e 6 meses, ora o Arguido foi condenado a uma pena única conjunta de 9 anos de prisão, pouco acima do limite mínimo e muito distante, quer das razões de prevenção geral e especial acima descritos, bem como a culpa, devendo cada uma das penas concretas individuais serem agravadas, e a pena única conjunta a aplicar, deverá ser necessariamente mais elevada face à aplicada, respeitando sempre as apontadas exigências de prevenção e a culpa, sendo esta elevada e a medida da pena não deve ser superior à culpa e sendo esta elevadíssima, justifica-se o aumento da pena. Fazendo uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do recorrente, entende-se que se deve fixar a pena única muito superior à aplicada, em nível correspondente às exigências de prevenção, situa-se a medida das exigências de prevenção geral, considerando o grau de ilicitude do facto, já caracterizado, e a circunstância de este tipo de criminalidade apresentar actualmente níveis muito elevados na nossa sociedade. Daí que o mínimo de pena indispensável à satisfação das expectativas comunitárias se situe igualmente um muito acima do ponto intermédio da moldura penal. Em sede de prevenção especial, impressiona negativamente a facilidade com que o arguido decidiu matar duas pessoas, numa altura em que não havia discussão, os Assistentes evitaram ao máximo a discussão, a Assistente BB ia sair de casa, para que se acalmasse o Arguido, e o Assistente Pedro estava no quarto a dormir, o Arguido tentava criar um móbil, que seria a discussão, que não foi alimentada pelos Assistentes e a discussão que tentara já terminara há algum tempo, revelando as suas condutas uma personalidade agressiva e insensível ao valor da vida e à dor dos outros. Daí decorrem exigências de ressocialização impondo que a pena se fixe um pouco acima do mínimo pedido pela prevenção geral. Em consequência deve igualmente ser revista a pena única conjunta que lhe foi aplicada, recalculadas cada uma das penas parcelares aplicadas.

XXXII - Os limites da pena não se encontram bem calculados, nos termos e para os efeitos do artigo 23 n.º 2, e 73 n.º 1 al. a) do CP, pois o máximo aplicável, tendo em conta as penas parcelares aplicadas seria superior a 22 anos e não 17 anos e 4 meses como se refere a fls. 50 do Acórdão o que fará os Venerandos Conselheiros reflectirem sobre o cúmulo jurídico, que deverá ser fixado em grau superior.

XXXIII - A par desta subida será necessário ao Tribunal, ad quem, o que deverá agravar a moldura do concurso e fixada em cúmulo de 9 anos, devendo ser subida a pena única.


XXXIV – A vida dos Assistentes que sob o ponto de vista do equilibro e da estabilidade foram colocados em causa pelo acto perpetrado pelo Arguido na noite de 26 para 27 de Maio de 2015, bem como da violência exercida e sofrido ao longo de 35 anos de casamento pela Assistente sempre sofrido em silêncio e as sequelas deixadas em ambos os Assistentes, quer no físico, mas sobretudo a impressividade que fica guardada na sua memória e os danos causados até hoje e que não terão fim. Quer a Assistente BB, quer o Assistente CC, continuam com apoio médico e não se sabe se algum dia terá fim. Ambos os Assistentes têm dificuldade de recuperar as suas vidas e de as reconstruir.

Termos em que, com o mui douto suprimento de Vs. Excelências, deverá ser julgado procedente o Recurso interposto pela Digníssima Procuradora da República, alterando o Acórdão recorrido quanto à matéria de Direito, delimitada nas conclusões de 1-10, ajustando as penas de acordo com a correcta interpretação dos artigos 40 n.º 1 do CP e do Artigo 71 n.º 1 e 2, al. a) e f) do CP, de acordo com as conclusões apresentadas pelo Ministério Público».


4. O arguido respondeu,  concluindo nos seguintes termos:

« 1. Por douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu-se, em provimento dos recursos interpostos pelo Digna Magistrada do Ministério Público e pelo Arguido, pela inoperabilidade da agravação que havia sido efectuada pelo Tribunal de 1.ª instância por aplicação do n.º 3 do art.º 86º. Da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro, nessa medida procedendo à desqualificação dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada.

 

2. Após operar tal desqualificação, o Tribunal recorrido efectuou a ponderação sobre a quantificação das penas parcelares a aplicar ao recorrido – desta feita já não levando em conta a agravação prevista na Lei das Armas – terminando, necessariamente, com a ponderação e decisão sobre o respectivo cúmulo jurídico, decidindo, a final, manter as penas parciais aplicadas bem como a pena única de 9 anos de prisão.

3. A Digna Magistrada do Ministério Publico, ora recorrente, considerou que o Tribunal recorrido mal andou ao manter aquele quantum da pena única, que no seu entender, não reflecte a gravidade dos factos, no seu conjunto, nem a personalidade do arguido, como imposto pelo art.º 77.º, n.º 1, do Código Penal e que não foi feita uma correcta interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos artigos 23.º, n.º 2, 71.º, 73.º nº. 1, a) e 77.º, todos do Código Penal, pugnando pela fixação da mesma em medida não inferior a 12 anos.

4. Considera o Ministério Público que no doseamento da pena única fixada o Tribunal a quo não ponderou devidamente o conjunto dos factos, a culpa do Arguido, a falta de confissão dos factos, a ausência de motivo para os actos praticados e de arrependimento, as lesões físicas e psíquicas infligidas aos Assistentes, não tendo acautelado suficientemente as exigências de prevenção geral e especial que no caso se impunham.

5. Mas sem razão pois no que respeita à fatídica noite de 26 de Maio de 2015, o Arguido confessou os factos de que tinha memória, não lhe sendo exigível que confesse os factos de que não se lembra, os quais também não negou, aceitando-os como descritos.

6. Mesmo não se lembrando integralmente do sucedido naquela noite, o Recorrido por algumas vezes expressou o seu arrependimento ao Tribunal, por ter feito sofrer a sua família com o cometimento dos actos que lhe eram imputados na acusação relativamente àquela noite.

7. Mais, o Arguido esclareceu as circunstâncias em que pegou nas facas, explicou as razões do seu convencimento sobre a existência de uma relação incestuosa entre mãe e filho.

8. Tendo o Tribunal recorrido considerou que foi a convicção do arguido de que a mulher e o filho mantinham entre si um relacionamento de cariz sexual, que consistiria numa relação incestuosa, que o levou ao cometimento daqueles actos.

9. É de fácil entendimento e compreensão que a tomada de conhecimento ou convencimento por banda de um marido e pai de uma relação incestuosa entre a sua própria mulher e filho, é factor de enormíssimo sofrimento, susceptível de despoletar perturbação profunda e afectação da vontade e poder de resolução, do qual resultaria a mitigação da ilicitude criminal e da culpa.

10. O quadro em que se desenvolveram os acontecimentos de 26 de Maio de 2015, não permitem a qualificação dos crimes de homicídio, pois para que operasse tal qualificação seria essencial que dos factos resultasse uma especial censurabilidade que pudesse ser imputada ao Arguido a um título especial de culpa, uma culpa agravada.

11. O que não se verifica pois que, para além do mais, o Arguido estava absolutamente convencido da relação incestuosa entre os Assistentes, não se verificando assim a especial censurabilidade ou perversidade que determinou a qualificação do crime base. 

12. Acresce que não obstante a gravidade das lesões físicas infligidas à Assistente, o que se reconhece, a recuperação tem sido efectiva e quanto às lesões psíquicas, os documentos e relatórios juntos aos autos apontam numa capacidade de recuperação da Assistente, já evidenciada à data do julgamento.

13. No que concerne às lesões físicas infligidas ao Assistente, resulta da factualidade provada, dos documentos clínicos juntos aos autos e do Relatório Pericial que não houve em concreto perigo para a vida, nem as mesmas não revestem a gravidade que se pretende seja reconhecida.

14. Já no que concerne às lesões psíquicas, aceita-se que se revelaram de intensidade superior àquelas, mas os relatórios juntos aos autos apontam para uma efectiva capacidade de recuperação do Assistente e já existente à data do julgamento.

15. Acresce que os motivos que determinaram a conduta do recorrido no dia 26 de Maio de 2015,  a confissão dos factos de que tinha memória, o arrependimento manifestado, as suas circunstâncias pessoais, nomeadamente a sua idade, ausência de antecedentes criminais, a sua longa vida de trabalho, as suas fragilidades e dificuldades ao nível da sua saúde psíquica (depressão) que se evidenciavam nos últimos anos, com necessidade de acompanhamento psiquiátrico e psicológico e medicamentoso continuado, mas também do ponto de vista físico, com intervenções cirúrgicas delicadas e igual necessidade de continuado acompanhamento médico e medicamentoso, a par de um vida pessoal caracterizada por intenso sofrimento na sua infância e adolescência, com início da vida profissional em idade precoce e mantida até ter sido vítima de um tiro que provocou a incapacidade para o trabalho durante um período de tempo considerável, com a sua consequente situação de desemprego são circunstâncias que apontam no sentido da pena única não ser agravada.

16. Nesse sentido aponta ainda o facto de os Assistentes não terem recorrido da decisão condenatória, antes se conformando com o decidido.

17. O Arguido também não recorreu da decisão condenatória na parte referente às indemnizações fixadas, revelando também por esta forma estar arrependido dos factos praticados e pretender reparar os danos que causou aos Assistentes com as condutas do dia 26 de Maio de 2015.

18. Nesse âmbito ainda, o recorrido acordou com os Assistentes que da sua quota parte na partilha dos bens comuns do casal serão pagas aos Assistentes as quantias indemnizatórias em que foi condenado.

19. Não assiste, pois, razão à Digna Magistrada do Ministério Público, ao querer ver aumentado o quantum da pena única fixada pelo Tribunal recorrido.

20. Face ao exposto, mantidas que foram as penas parcelares, o Tribunal recorrido ponderou e decidiu que a pena única a aplicar se deveria manter nos 9 (nove) anos de prisão, tendo em consideração os critérios do art.º 71.º e critério especial do art.º 77.º, n.º, 2.ª parte, ambos do Código Penal, considerando em conjunto a globalidade dos factos e a personalidade do agente.

21. Considerando a pena única de 9 anos de prisão “como justa, equitativa e equilibrada, tendo em conta a ponderação final de síntese (balanceamento dos vários factores agravantes e atenuantes em presença), devidamente enquadrada pelos factores relativos à execução dos factos (pensada em termos globais – artº. 71º./2, a), b) e c), do Código Penal), à personalidade do arguido (cfr. artº. 71º/2, alíneas d) e f), do Código Penal) e à conduta do mesmo arguido anterior e posterior aos factos (artº. 71º./2, e), do Código Penal).”.

22. A decisão proferida pelo Tribunal recorrido quanto à fixação da pena única está bem fundamentada, respeitando os princípios e normas que devem presidir à aplicação da pena única, designadamente o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, n.º 1, todos do Código Penal.

23. Assim, mantendo-se a factualidade dada como provada, bem como o enquadramento jurídico-penal efectuado, não há qualquer reparo a fazer no que respeita ao quantum da pena única alcançada pelo Tribunal recorrido, tendo sido feita uma correcta interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos artigos 40.º.n.º 1, 71.º, n.º 1 e 2 als. a) e b) e 77.º, n.º 1, do Código Penal».     

Termos em que requer seja negado provimento ao  recurso.

5.  Neste Supremo Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto  parecer, que se transcreve:

« I A única questão submetida a reexame é a medida da pena única, fixada em 9 anos de prisão, por cúmulo jurídico das parcelares de 7 anos e 10 meses (homicídio qualificado tentado de BB), 4 anos e 6 meses (homicídio qualificado tentado de CC) e 3 anos e 2 meses (violência doméstica).

 Visa o Ministério Público a agravação da pena única para medida não inferior a 12 anos de prisão, perante «a gravidade da actuação do arguido, o modus operandi utilizado, o resultado dos seus actos, a insensibilidade demonstrada, a ausência de confissão e arrependimento…», bem como «as fortes exigências de prevenção».

 Na sua resposta (2375-2442), os assistentes pugnam pela procedência do recurso, enquanto o arguido (2503-2517) a tal se opõe, considerando que, «mantendo-se a factualidade dada como provada, bem como o enquadramento jurídico-penal efectuado, não há qualquer reparo a fazer no que respeita ao quantum da pena única alcançado pelo Tribunal recorrido…»

II Fixadas definitivamente as penas parcelares e questões relacionadas com os correspondentes crimes, afigura-se-nos, igualmente, que, dentro da moldura do concurso, de 7 anos e 10 meses a 15 anos e 6 meses de prisão, a pena fixada está subdimensionada em relação ao ilícito global, personalidade do arguido e sua projecção nos crimes praticados.

 O autêntico terror de tirania doméstica descrito até ao n.º 36 da matéria de facto provada, dá nota de uma personalidade particularmente deformada, onde impera o desrespeito pela família, nomeadamente pela mulher e filho, no lar conjugal reina a violência física, psíquica e até sexual, por si imposta.

 Trata-se de mais um exemplo de egoísmo de dono, que não confessou os factos nem mostrou arrependimento, que trata aqueles para com deve ter particulares deveres e responsabilidades como coisas integrantes do seu acervo patrimonial.

 E nesta medida, acompanhando-se integralmente a fundamentação do recurso, à qual nada mais se nos oferece acrescentar, deverá a pena única ser agravada para a proximidade da medida proposta, que se adequa à culpa do arguido e exigências de prevenção.

Pelo exposto, entendemos que o recurso deve ter provimento».

6. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido respondeu,  pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

7. Notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, os assistentes também  responderam, pugnando pela procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, com a consequente alteração do acórdão recorrido quanto à matéria de direito e aumento da pena única conjunta aplicada.

8. Colhidos os vistos em simultâneo e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão, cumprindo apreciar e decidir.

***

II. FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. Fundamentação de facto.

A. Factos provados

«1. O arguido e BB casaram no dia ..., e têm três filhos em comum: GG, nascida a ..., HH, nascida no dia ... e II, nascido a ....

2.  Após o casamento, BB e o arguido passaram a viver numa casa situada na zona de ..., local onde também habitava JJ, irmão do arguido.

3.  Desde o início da relação, o arguido foi ciumento, possessivo e controlador, com BB e em ocasião e data não apuradas, dirigiu-lhe as seguintes expressões: “És uma puta! Andas metida com todos! Tu só tens amantes!“

4.  Em data não apurada do ano de 1981, na sequência de uma discussão motivada por ciúmes em relação ao seu irmão, o arguido desferiu várias chapadas na cara de BB.

5.  Em dia não determinado do ano de 1985, na decorrência de mais uma contenda relacionada com ciúmes do seu irmão, o arguido abriu a janela da residência e atirou para a rua diversos objectos e roupas.

6.  A partir do ano de 1988 e até ao dia 27 de Maio de 2015 residiram na habitação sita na ....

7.  No dia 12 de Maio de 1992 o arguido discutiu com BB pois passava muito tempo a trabalhar, tendo-lhe dito: “Tens de deixar de fazer parte do rancho folclórico até ao fim do mês, senão muita merda vai haver!”.

8.  Ao longo de todo o casamento, o arguido sempre exigiu que BB mantivesse consigo relações sexuais onde, como e sempre que assim lhe ordenasse, mesmo que contra a sua vontade.

9.  Por diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, o arguido filmou com o seu telemóvel e com uma câmara as relações sexuais que manteve com BB, facto que era do seu conhecimento, apesar de esta por várias vezes manifestar o seu desagrado.

10.            Durante a infância dos seus três filhos, e porque os menores iam com a mãe para a escola, o arguido, por vezes, perguntou-lhes se a mãe tinha estado com algum homem no caminho. 

11.  Em momento não concretamente apurado, o arguido dirigindo-se a BB disse-lhe: “vocês até podem sair cá de casa, mas eu vou-vos encontrar, nem que seja no fim do mundo!”

12.            Em data não determinada, BB saiu de casa, levando consigo os três filhos menores, e foram de autocarro até ....

13.            Contudo, poucas horas depois o arguido dirigiu-se ao mesmo local, com o seu veículo, tendo posteriormente todos regressado a Lisboa.

14.              Entre os anos de 2011 e 2013, por tempo não apurado, a assistente não suportando mais as discussões e com receio de agressões, clima que se havia intensificado com as perturbações que o arguido padeceu pelo tiro que lhe infligiram, a BB passou a dormir no sótão da habitação durante um período de tempo que não se apurou.

15.            Na noite de 26 de Maio de 2015, antes de se deitar, II despediu-se dos seus pais, que se encontravam na cozinha da habitação. 

16.            Nesse momento, o arguido disse a II: “Não te quero a andar de boxers cá em casa!”, ao que este respondeu que essa regra teria de se aplicar a todos e não apenas a ele, após o que foi para o seu quarto.

17.            Passado algum tempo o arguido ainda foi ao quarto do CC voltando a dizer que não o queria pela casa de boxers.

18.            A assistente BB apercebeu-se que o arguido estava a falar com o Assistente CC, e foi ver o que se passava, ficando no corredor, à porta do quarto, aí permanecendo em silêncio.

19.           A assistente veio para a cozinha atrás do arguido/Demandado, foi apanhando e tratando da roupa, continuando a ouvir o arguido sobre os mesmos assuntos.

20.            Depois de II se ter deitado, cerca da 1 hora, o arguido continuou a falar com BB, pois esta não se ia deitar de imediato.

21.            Uma vez que o arguido insistia em falar consigo,BB disse-lhe que ia sair um pouco de casa, pois precisava de apanhar ar.

22.            No momento em que se baixou para calçar as sandálias, junto à despensa da cozinha, o arguido aproximou-se de si, pelas costas, e desferiu-lhe com uma faca um golpe no pescoço, do lado esquerdo.

23.            A assistente tentou defender-se, pois sentia enormes dores, imobilização e viu sangue no chão.

24.            Como a assistente não conseguiu tirar o arguido de cima de si gritou, pedindo ajuda, na tentativa de que o Assistente CC ouvisse e a viesse socorrer.

25.            Nesse instante percebeu que já estava muito rouca e sentia-se a perder a fala, caía muito sangue pelo peito da Assistente/Demandante abaixo.

26.           O arguido apenas largou BB devido à intervenção de II, que o afastou para junto da janela da cozinha e lhe perguntou porque estava a bater na sua mãe.

27.            O arguido respondeu-lhe: “Eu não estou a bater na tua mãe! Eu acabei de a matar!”

28. Acto contínuo o arguido pegou numa cadeira e encaminhou-se na direcção de II, que também a agarrou, sendo que nesse momento BB conseguiu fugir e abrir a porta de casa, gritando por socorro. 

29.    O arguido largou então a cadeira, agarrou numa faca de cozinha, dirigiu-se a II, gritou: “Também te vou matar a ti!” e desferiu-lhe um golpe perfurante na zona da cartilagem da tiróide, na região anterior do pescoço, o que provocou uma abundante hemorragia, assim como um golpe na zona das costas, do lado esquerdo. 

30. Após o arguido gritou-lhe: “Andavas a foder a tua mãe e pensavas que eu não sabia! Tu andas a fodê-la desde 2009, desde a ... e agora andas triste por causa da tua namoradinha americana, mas não é por causa dela, é por causa de não poderes ter a tua mãe! Mas eu vou matá-la e assim não a podes ter mais! Vai-te despedir dela porque ela está a morrer! Vai lá agora! Puseste-me os cornos e vou acabar com a tua vida!”  ….

31.   De repente o arguido encaminhou-se na direcção de BB, que se encontrava junto à entrada da habitação, e tentou atingi-la no peito com a faca que empunhava, que apenas não a perfurou porque a lâmina estava partida, ao mesmo tempo que gritou: “Não te matei no ..., mas vou matar-te aqui! Vou acabar com isto agora! Isto tem de ser feito! Isto tem de acabar!”, tendo sido nesse momento agarrado por LL e MM, seus vizinhos que entretanto chegaram ao local.

32. A assistente BB pensou que morria quando estava deitada no chão do hall. No patamar da escada o Assistente CC chorava copiosamente e perguntava ao pai, arguido porque estava a fazer aquilo.

 

33.            BB e II conseguiram fugir para a rua, tendo sido perseguidos pelo arguido, que tentou atingir o seu filho na barriga com um afiador de facas que segurava, tendo sido impedido por FF.

34.  Entretanto começou a juntar-se gente, muita gente, e a assistente a desfalecer sentia-se a enfraquecer a cada momento que passava e viu com horror a sua vida e intimidade serem expostas a todo o bairro.

35.            Passado muito tempo chegou a ambulância dos bombeiros de ... e a assistente pediu ao bombeiro se podia acolher no interior da ambulância, pois estava aterrorizada com o arguido próximo dela e envergonhada com toda aquela gente à sua volta.

36.            Mais tarde chegou a ambulância do INEM e passaram a Assistente/Demandante para a mesma e começaram a tratar da Assistente/Demandante.

37.            A assistente tinha a angústia e o desespero, pensando não chegar com vida ao hospital.

38.            A angústia da assistente era ainda maior por não saber do estado do seu filho, o assistente CC que ia na ambulância dos bombeiros.

39. Devido às agressões descritas, BB teve necessidade de receber tratamento hospitalar tendo sido sujeita a exploração cirúrgica de emergência da ferida no pescoço e tendo ficado internada desde o dia 27 de Maio a 24 de Junho de 2015.

40.  Sofreu as seguintes lesões: duas feridas corto-perfurantes, uma na região lateral esquerda do pescoço e outra na região infra-clavicular esquerda do tórax, as quais provocaram laceração da veia jugular anterior esquerda, laceração do pólo superior esquerdo da glândula tiróide, enfisema do pescoço e tórax, colecção líquida com conteúdo gasoso em posição retrofaríngea e provável lesão do nervo laríngeo superior objectivada em alterações da fala.

41. De tais lesões resultou perigo concreto para a vida de BB, com necessidade da referida cirurgia de emergência para laqueação de laceração da veia jugular anterior esquerda no pescoço, encontrando-se a mesma desde o dia 27 de Maio de 2015 com incapacidade absoluta para o desempenho das suas actividades profissionais, até à presente data.

42.            Também, como consequência directa da conduta do arguido a assistente BB sofre de um quadro clínico de depressão associado a stress pós-traumático com tristeza marcada, angústia profunda, ansiedade intensa, desinteresse e desinvestimento geral, insónias, falta de apetite e afectação das funções cognitivas como a memória, atenção e concentração, assim afectando as suas capacidades executivas.

43.   Devido às agressões infligidas pelo arguido, II sofreu as seguintes lesões: três cicatrizes rosadas, irregulares, de maior eixo horizontal no crânio; cicatriz rosada, irregular sobre a cartilagem da tiróide, na região anterior do pescoço; cicatriz rosada, linear, horizontal no hemitórax esquerdo e duas cicatrizes, rosadas, lineares, verticais na face posterior do ombro esquerdo.

44.            Tais lesões determinaram quinze dias de doença, todos com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

45.            Devido aos factos acima descritos, e que marcaram parte da relação conjugal entre o arguido e BB, esta sentiu dores, medo e vergonha.

46.            O arguido agiu nas situações acima descritas com o propósito de controlar, perseguir, amedrontar, ofender a honra e a consideração e agredir física e psicologicamente BB, fazendo-a temer pela sua integridade física e vida, e de lhe causar, como efectivamente causou, dor, sofrimento e medo, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a causar tais resultados.

47. Actuou muitas das vezes no interior da habitação comum, afectando deste modo o bem-estar psíquico e humilhando BB, o que logrou.

48.            Ao desferir os golpes acima descritos na sua mulher e filho, atento o meio utilizado e as zonas do corpo atingidas, o arguido agiu com o propósito de lhes tirar a vida, o que só não aconteceu porque ambos conseguiram fugir e pedir ajuda, tendo sido prontamente socorridos.

49.  As lesões que o arguido provocou em BB eram adequadas e idóneas a produzir a sua morte, o que só não aconteceu devido a uma correcta e imediata intervenção médico-cirúrgica.

50. O arguido sabia que BB e CC tinham possibilidades diminuídas de se defender perante a faca e afiador de facas de que se muniu.

51.   Apesar de ser pai de II e casado com BB, e por essa razão ter o dever de os respeitar e apoiar, o arguido não se coibiu de actuar da forma descrita, invocando como motivo para tal um envolvimento sexual entre ambos, de que se convencera existir.

52.            Esse convencimento derivava do modo ligeiro e leviano em que como interpretou uma conversa que, algum tempo antes, o seu filho tivera consigo, considerando que este não chegou a contar o que pretendia; e também da audição, uns dias antes, de uma gravação que colocara na habitação, onde parecia existir uma respiração ofegante, que o arguido interpretou como sendo da sua mulher com o seu filho CC envolvidos em acto sexual, interpretação sua que derivava do seu feitio desconfiado e ciumento.

53.            Agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

54.            O arguido tinha duas câmaras de vídeo e áudio no hall e quarto do filho CC.

55.            O arguido depois de detido, enviou do estabelecimento prisional cartas em número não apurado à assistente BB e ao assistente CC.

56.            Tais contactos geravam pânico na assistente BB, criando ansiedade e medo de reviver os trágicos acontecimentos quer na assistente BB, quer no CC.

57.            A assistente BB nasceu em ... e à data dos factos tinha 57 anos de idade, sendo professora do primeiro ciclo.

58.            Desde o dia 27 de Maio de 2015 até à presente data a demandante, encontra-se de baixa médica, inactiva, não sabendo quando e se pode regressar ao trabalho.

59.            Encontrando-se até ao presente incapaz de leccionar.

60. Neste momento não se consegue prever se sobrevirá incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ou uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua actividade profissional habitual.

61.            Ao ser privada de leccionar, devido à extensão das lesões ao nível das cordas vocais e órgãos adjacentes, a demandante, sofre uma grande frustração, pois vê-se privada de exercer a profissão de que tanto gosta, ou seja, professora.

62.            As sequelas físicas e psíquicas não se encontram curadas e necessitam de tratamento, não sendo possível, neste momento, prever quando terminam.

63.            A assistente BB passou a noite do dia 27 de Maio em pânico, desorientada, não sabia onde estava, não se podia mexer, por se encontrar totalmente imobilizada, com dores, sem poder chamar por ninguém porque não tinha voz, motivo que a preocupava.

64.            A assistente tinha o sentimento de medo e vergonha do ocorrido.

65.            A demandante durante vários dias não conseguiu ingerir qualquer comida sólida, continuava sem poder engolir e sem voz e para comunicar fazia gestos com a mão ou tocava à campainha.

66.            Não registando a demandante melhorias, foi enviada de ambulância à urgência do H. de ... para que um Otorrinolaringologista pudesse colocar a sonda  nasogástrica, o que sucedeu.

67.            Passou a alimentar-me com sopa passada. Em virtude da impossibilidade de se alimentar convenientemente esta ficou debilitada e substituíram a sopa por uma alimentação entérica.

68.            Quando a demandante começou a ter consciência do que tinha acontecido sentia raiva e um profundo desgosto pelos actos do arguido, por ser quem amara, e ainda se encontrar casada, com quem teve 3 filhos.

69.            A demandante entrava em pânico com medo que o arguido pudesse irromper pela enfermaria do hospital e matar a demandante.

70.            Com esse pânico a demandante escondia tudo o que a pudesse identificar, incluindo a identificação da cama.

71.            A demandante pensava nos seus alunos que de um momento para o outro, ficaram privados da professora com quem tinham estado durante 4 anos e que estariam em fim de período e de avaliação final, vendo as avaliações prejudicadas.

72.            A demandante era uma professora muito admirada, dedicada ao seu trabalho e aos seus alunos, muito respeitada e acarinha por alunos, pais, colegas e pelos seus superiores hierárquicos.

73.            A demandante pensava muito nos seus filhos que dum momento para o outro viram a família que eles consideravam tão sólida e que durante tantos anos foi o seu porto de abrigo, completamente alterada.

74.            Estando a demandante ainda internada, passou a ser acompanhada por um psicólogo e um psiquiatra que a medicou.

75.            Enquanto esteve internada a assistente repetiu vários TACs ao pescoço e ao tórax.

76.            Foi assistida por uma terapeuta da fala para auxiliar, ensinar e treinar a demandante, no processo de deglutição.

77.              A partir daí a Assistente/Demandante tomava os medicamentos esmagados para os beber com uma palhinha. A dieta alimentar passou para sopa passada.    

78.            A demandante tinha acompanhamento da fisioterapeuta, na enfermaria, com exercícios respiratórios.

79.            Após 29 dias de internamento a equipa médica deu alta à demandante.

80.            A demandante, não conseguiu voltar à sua casa, passando um período em casa da sua filha GG para se apoiarem e ajudarem uns aos outros.

81.              Nessa fase, estando ainda internada a demandante contou aos filhos dos contrangimentos que o arguido a sujeitava no relacionamento sexual, sujeitando-a a comportamentos humilhantes, vexatórios, assim como dos ciúmes doentios do arguido.

82.           Durante o relacionamento matrimonial a demandante procurou sempre poupar os filhos de se aperceberem de zangas, aborrecimentos do casal, discussões e agressões cometidas pelo arguido.

83.            Depois da alta, quando a assistente tinha de deixar a casa da filha GG para se deslocar ao Hospital ... para fazer as sessões de fisioterapia e terapia da fala, consultas, análises e exames para fazer em deslocações a pé e de transportes públicos, tinha pavor de sair de casa sozinha estando sempre atenta a qualquer movimento estranho que pudesse acontecer.

84.            A demandante não tinha forças nem mobilidade do pescoço para conduzir o seu carro.

85.            A casa da Assistente/Demandante foi limpa por pessoa não concretamente apurada.

86.            A demandante e a filha HH voltaram a residir em sua casa, não tendo sido fácil para a Assistente/Demandante regressar à sua casa porque qualquer barulho, tanto de dia como de noite, a punha em sobressalto. Apesar de a porta estar sempre fechada à chave qualquer coisa que acontece na escada a perturba e leva a sentir-se ansiosa e insegura.

87.            A demandante na sequência de um processo de divórcio que instaurou logrou divorciar-se do arguido.

88.            O assistente CC está destroçado e nos momentos de maior revolta transfere a raiva e o ódio que sente pelo pai, arguido, para quem o rodeia, a assistente e as irmãs.

89.            Uma profunda tristeza e uma angústia imensa levaram a assistente a isolar-se dos seus filhos para poder chorar e expurgar as mágoas. Sentindo-se muitas vezes  desesperada.

90.            Paralelamente às muitas dificuldades físicas e psicológicas, a demandante tinha que dar acompanhamento aos processos em curso (de divórcio e crime). A demandante teve de comparecer nos interrogatórios na Polícia Judiciária, a tomada de declarações no Tribunal, as idas ao advogado e as consultas aos processos.

91.            O pavor de circular na rua e de ser atacada pelo arguido ou pelo irmão dele ou até por alguém que ele contrate é permanente.

92.            A demandante não consegue andar de noite sozinha. Quando vai às consultas de cirurgia geral ao Hospital ..., tem muito medo. Apanha os transportes  tomada pelo pânico que tem de andar na rua, principalmente de noite.

93.            Ao longo destes meses e com a ajuda da fisioterapia a colecção retrofaríngea foi diminuindo até desaparecer e com ela as dores do braço. No entanto a força muscular e a capacidade de elevar e segurar pesos ainda não foi recuperada.

94.            A demandante entretanto começou a conduzir em percursos pequenos porque ainda não pode fazer movimentos bruscos com o pescoço.

95.            A terapia da fala tem ajudado a recuperar a hipomobilidade da corda vocal esquerda mas a demandante não conseguindo elevar o tom de voz de modo a fazer-se ouvir pelos alunos, não consegue falar durante longos períodos de tempo, vendo-se assim privada de fazer aquilo que mais gosta: dar aulas.

96.            A demandante a par do sentimento de frustração referida no ponto 61 dos factos provados, está triste, angustiada, e sente solidão não poder fazer aquilo que gosta, que quer.

97.            A vida da demandante desde que se casou, pelos episódios de ciúme do arguido e intransigências, que vive ansiosa, mas agora não tem esperança de a ver melhorar.

98.            A demandante, tem sido seguida em diversas consultas de várias especialidades médicas, com tratamento médicos regulares concretamente de fisioterapia, terapia da fala, acompanhamento psicológico e psiquiátrico;

99.            O arguido mostrou desprezo pelo bem da vida, pela liberdade pessoal, autodeterminação sexual, desprezando a sua família.

100. A demandante continuará a suportar o custo de exames médicos, com futuras operações cirúrgicas, assim como o custo das ajudas medicamentosas com recurso a medicação analgésica e do foro psiquiátrico.

101. A demandante pagou o montante de 648.48€ a título de despesas médicas e medicamentosa.

102. A demandante enquanto professora do 1º ciclo a 27 de Maio de 2015 auferia um vencimento mensal de montante não concretamente apurado.

103. A demandante no período de baixa médica tem recebido um subsídio mensal de montante não apurado.

104. As roupa que vestia no dia 27 de Maio de 2015, ficando inutilizadas, à data tinham um valor não superior a 20€.

105. A demandante sofreu um défice funcional temporário total de 29 dias, acrescido baixa médica da capacidade para o trabalho e de locomoção, desde o dia 27 de Maio de 2015, não se vislumbrando quando cessará a baixa médica, e em sede de sequelas qual a incapacidade da actividade profissional, qual o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, embora continua afectada do seu braço, ainda não tendo recuperado a locomoção ao nível do braço e do pescoço.

106. A demandante foi submetida a cirurgia no Hospital ...

consultas médicas e realizou diversos exames médicos.

107. Em consequência da conduta do arguido a cura física do assistente CC verificou-se em 11-06-2015 (incapacidade de 15 para o trabalho), no entanto, psicologicamente continua afectado.

108. Desde o dia 27 de Maio de 2015 até à presente data o demandante Pedro sofreu com o que se passou, tendo padecido por um período de tempo que lhe foi difícil concentra-se no desenvolvimento dos seus projectos profissionais.

109. Pese embora o demandante C já tenha sofrido depressões anteriores a 26 de Maio de 2015, depois dessa data entrou num estado depressivo e actualmente ainda necessita de apoio médico, continuando o seu tratamento com ansiolíticos e antidepressivos do foro psiquiátrico.

110. O evento que aconteceu na noite de 26/27 de Maio de 2015 ficará na memória do demandante, tendo visto a sua mãe a esvair-se em sangue à sua frente e um sentimento de incapacidade para actuar de uma forma célere e eficaz sendo tal facto algo que se lembra todos os dias e que nunca esquecerá.

111. O assistente CC não teve conhecimento no passado de episódios violentos entre o seu pai e sua mãe.

112. O assistente CC tem um choque quando se apercebeu que a sua mãe foi agredida por seu pai, com um golpe profundo no pescoço com uma faca de cozinha. Esvaindo-se em sangue.

113. O assistente CC sentiu medo, angústia, descontrolo emocional ficando muito confuso.

114. O assistente Pedro sofreu um outro choque, quando o arguido o acusou, de se encontrar envolvido com a mãe sexualmente usando palavras: “Porque tu andas a foder a tua mãe!”.

115. O arguido de viva voz continuava a acusar os assistentes de relacionamento sexual, enquanto procurava espetar a faca nos assistentes, já com os vizinhos no interior da habitação para socorrer os Assistentes.

116. O assistente CC sempre teve uma ligação muito forte com a sua mãe (como em qualquer família normal existe).

117. A assistente BB sempre se preocupou com todos os seus filhos e com o bem-estar deles.

118. O assistente CC sentiu que durante os golpes que o arguido lhe desferiu, poderia morrer.

119. A assistente BB estava a perder muito sangue, deitada no chão do corredor da casa e o assistente Pedro queria ir vê-la, mas sempre que tentava, o arguido apontava a faca para matar e dizia “Vai lá vê-la agora, vai lá, que ela está a morrer”. Sentindo que não sairiam dali vivos, que iam morrer e que não conseguiam fazer com que o arguido desvanecesse a intenção de os matar.

120. O assistente CC foi conduzido ao hospital em estado de choque.

121.O assistente nessa noite, bem como nas seguintes, não dormiu e ainda hoje, para dormir por vezes, só o consegue fazer com recurso a medicamentos.

122. O assistente CC veio a ter conhecimento de episódios de violência física, psicológica e sexual que a assistente BB lhe contou. 

123. Durante alguns meses o assistente CC teve dificuldades em dormir, perdeu o apetite e a vontade de estar com outras pessoas. 

124. O assistente durante alguns meses sentiu-se em perigo, mesmo sabendo que o arguido se encontrava preso preventivamente, cujas tentativas de contacto aumentaram a ansiedade, ficando ansioso, e deprimido.

125. Ainda teme pela sua vida, pela da sua mãe e de suas irmãs. Tendo dificuldade em compreender toda esta situação e ultrapassar estes problemas.

126. O Assistente é realizador de cinema, ganhou o prémio ..., no valor de 30.000,00€, em 2010.

127. A ansiedade do arguido e os seus sintomas depressivos perturbam-no, deixando o assistente debilitado psicologicamente.

128.O assistente CC tinha a ideia de casar com uma namorada americana, tendo já vivido nos EUA.

129. O assistente visita a APAV, com regularidade onde é seguido em consultas por uma psicóloga e uma psiquiatra após estes eventos.

130. O assistente CC ainda não conseguiu trabalho.

131.O assistente CC teve muita dificuldade em voltar a entrar em casa de seus pais. Tendo regressado a casa mais tarde, sendo que agora se encontra a família reunida na mesma casa.

132.A atitude inesperada do arguido provocou no demandante um forte abalo psíquico, ficando perturbado e triste.

133. As despesas suportadas pelo lesado CC em consequência das lesões sofridas no acidente, despesas médicas e medicamentosas no valor de 200,00€.

134. 20,00€ de danos na roupa que vestia no dia 27 de Maio de 2015.

135. O assistente foi submetido a tratamento hospitalar e realizou, consultas médicas e diversos exames médicos.

136. O demandante vive com a sua mãe.

137. A assistente BB participava activamente nas reuniões da associação de ..., as quais ocorriam em período nocturno.

138. A assistente também participava em reuniões do rancho folclórico na qual integrava a direcção, deslocando-se no seu veículo.

139. Em 11 de Setembro de 2009 o arguido foi vítima de disparos de uma arma de fogo, desferidos por uns familiares.

140. Esse facto teve consequências na sua saúde física, com perturbações no humor do arguido, necessitando de acompanhamento psiquiátrico, vindo depois a ser acompanhado por um psicólogo, padecendo de perturbação pós-stress traumático e perturbação de adaptação com humor depressivo.

141. Nos anos de 2011 a 2013 o arguido e a assistente viajaram para vários locais juntos, em fins de semana e férias, e nesses momentos encontravam-se satisfeitos na companhia um do outro. 

142. O arguido teve uma infância sofrida, onde a sua mãe tinha atitudes agressivas para consigo.

143. No ano de 2012 foi sujeito a intervenção cirúrgica cardiovascular, tendo-lhe sido colocada uma prótese mecânica na válvula mitral para correcção da valvulopatia, tendo de fazer uma terapia permanente de anti-coagulante oral.

144. Na sequência dos ferimentos causados na BB, o “Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE” prestou-lhe assistência hospitalar nos respectivos episódios de urgências, e assistindo-a no internamento entre o dia 27 de Maio a 24/06/2015.

145. O custo global desta assistência orçou em €3.196,72.

146. O arguido tem o curso geral de electricidade e o 9º ano de escolaridade.

147. Encontra-se desempregado desde 2014, recebendo 700€ do fundo de desemprego.

148. O arguido é primário.

***

2.2. Fundamentação de direito

Constitui jurisprudência assente que, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Penal e sem prejuízo para a apreciação das questões de oficioso conhecimento, o objecto do recurso define-se e delimita-se pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação.

Assim, a esta luz, a única  questão que cumpre  reexaminar é a medida da pena única, fixada em 9 anos de prisão, por cúmulo jurídico das parcelares de 7 anos e 10 meses, 4 anos e 6 meses e 3 anos e 2 meses, sendo irrelevantes  as considerações feitas pelos assistentes, na sua resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, sobre a  benevolência de cada uma destas penas parcelares, posto que  está fora do poder de apreciação deste Supremo Tribunal  sindicar estas penas parcelares.

*

2.2.1. Antes, porém, de entrarmos na apreciação da medida da pena única,  cumpre tecer algumas considerações sobre a determinação da medida concreta da pena conjunta resultante do concurso de crimes.

Nesta matéria, dispõe  o art. 77,  nº 1 do Código Penal, que « (…) na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.», estabelecendo o nº2 deste mesmo artigo que « A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão(…) e como limite  mínimo  a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Como refere  o Acórdão do STJ, de 13.09.2006[2] ( proc. 06P2167- 3ª Secção) « O sistema de punição do concurso de crimes consagrado no artº 77º do C. Penal,  (…), adoptando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente».

Significa isto, no dizer do citado Acórdão do STJ, de 13.09.2006, que « determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa».

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 09.01.2008[3] ( proc. 3177/07- 3ª Secção)  nesta segunda fase, ou seja, na determinação da dimensão da pena conjunta, torna-se fundamental a visão conjunta dos factos, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, devendo a pena  conjunta formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares.

Traçando a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes, refere  Figueiredo Dias[4] que, na determinação  desta pena,  devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos nos arts. 71.º e 40º  do CP – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial fornecido pelo citado art. 77º, n.º 1, 2ª parte - a apreciação, em conjunto, dos factos  e da personalidade do agente, sendo que  a existência deste último critério, no dizer deste mesmo autor, « obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação (…),  só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânico e portanto arbitrária.»

Sobre o modo de levar à prática os enunciados critérios,  ensina ainda Figueiredo Dias[5]  que «Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

E a jurisprudência dos nossos tribunais, acolheu as bases desta construção do sistema de punição do concurso, dando-lhe corpo.

Assim,  no que respeita  ao sentido de culpa, afirmou o já mencionado  Acórdão do STJ, de 13.09.2006[6]  que, ao « novo ilícito corresponderá uma nova culpa. Que continuará a ser culpa pelo facto. Mas agora culpa pelos factos em relação. Afinal, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o CP».

Em total consonância com este entendimento,  escreveu-se, no citado Acórdão do STJ, de 09.01.2008, que  « Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa em sentido global dos factos é o da determinação da intensidade da ofensa, e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que, em nosso entender, assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados á dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a actividade criminosa expresso pelo número de infracções; pela sua perduração no tempo; pela dependência de vida em relação àquela actividade. Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado. Recorrendo à prevenção importa verificar em termos de prevenção geral o significado do conjunto de actos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos.»

E, no mesmo sentido, o Acórdão do STJ, de 27.01.2016[7]( proc. 178/12.0PAPBLS.S2 – 3ª Secção), traça os critérios que devem presidir à determinação da dimensão da pena conjunta, ou seja, os factores que devem ser tomados em consideração na determinação da medida da pena conjunta, constituindo o pressuposto de uma adição ao limite mínimo do quantum necessário para se atingir as finalidades da mesma pena.

Assim, afirma este acórdão ser decisivo, antes do mais,  que se obtenha uma visão conjunta dos factos, ou seja, a relação dos diversos factos entre si, em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia, a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento.

Será, pois, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique e importando, para efeitos de operação de cálculo, considerar o tipo de criminalidade evidenciada, dada  a necessidade de impor um tratamento diferente para a criminalidade bagatelar, média e grave, de tal modo, que  a “representação” das penas parcelares que acrescem à pena mais grave se possa saldar por uma fracção cada vez mais alta, conforme a gravidade do tipo de criminalidade em julgamento apreciação

Deve, depois, valorar-se a personalidade do autor  em conjunto com  os delitos individuais, num plano de conexão e frequência, fazendo apelo a uma referência cronológica ( se se tratam de factos praticados na mesma ocasião ou em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes), a uma referência quantitativa ( número de crimes) e à sua perduração no tempo,  por forma a saber se os factos são expressão de uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se só constituem delitos ocasionais, sem relação entre si, ou seja, uma mera pluriocasionalidade, que não radica na personalidade do arguido, pois só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

Paralelamente à apreciação da personalidade do agente e na procura do sentido de culpa pelo conjunto dos factos em relação, salienta ainda o referido acórdão, que  importa, por um lado, determinar a intensidade da ofensa  bem como a dimensão dos bens jurídicos ofendidos, assumindo significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos fundamentais,  ligados à dimensão pessoal ( como é o caso da própria vida), em relação a bens patrimoniais.

 E, por outro lado, determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência.

No que concerne à prevenção, importa verificar, em sede de prevenção geral, o significado do conjunto de actos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos.

E, no domínio da prevenção especial, impõe-se verificar o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente, tendo em conta a sua personalidade,  para o que é essencial a consideração de factores, como a idade;  a integração ou desintegração familiar; o apoio que possa encontrar a esse nível; as condicionantes  económicas e sociais que tenha vivido e que se venham a fazer sentir no futuro; os seus antecedentes criminais e a existência de uma manifesta e repetida antipatia na convivência com as normas que regem a vida em sociedade, quando não de anomia, e que é a maior parte das vezes evidenciada pelo próprio passado criminal.
Tudo isto, no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional ( art. 18º, nº2 da CRP), de que  a pena de prisão  só é admissível quando se mostrar indispensável (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar o meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua cominação (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se mostrar quantitativamente justa, ou seja, não se situe nem aquém nem além do que importa para obtenção do resultado devido (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade)[8].
O princípio da necessidade da pena, decorrente do preceituado no artigo 18º, nº 2, da CRP, encontra-se, assim, umbilicalmente ligado ao princípio da proporcionalidade.
Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da liberdade, resultana expressão de  Jescheck[9], a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para «assegurar a convivência humana na comunidade».
E porque, como refere Jorge Miranda[10], a falta de necessidade ou de adequação traduz-se em arbítrio e a  falta de racionalidade traduz-se em excesso, facilmente se compreende a importância que, no âmbito da determinação da medida da pena,  assume o princípio da proibição de excesso, segundo o qual,  na expressão do  acórdão do STJ, de 13.10.2010 ( proc. 200/06.0JAAVR.C1.S1- 3ª Secção),  « importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autos».
Dito de outro modo e segundo Anabela Rodrigues[11], este princípio não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social  e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida, pois de outro modo, correr-se-ia o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.
No dizer de SAX, citado por Eduardo Correia[12], a necessidade da pena surge «como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos».
Daí realçar  o citado Acórdão do STJ, de 27.01.2016, não se  poder deixar de  equacionar a pena a aplicar em função do princípio da proporcionalidade, sendo o critério principal para valorar a proporção da intervenção penal o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.
As penas, quando sejam necessárias, têm que ser, assim, adequadas e proporcionadas à proteção do bem jurídico violado.


*

2.2.2. Feito este enquadramento teórico e expostos os entendimentos jurisprudenciais que se teve por interessantes para  resolução do caso concreto, chegou o momento de sindicar o acórdão  proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita ao exercício de unificação das  penas parcelares.

*

No caso  sub judice, o acórdão recorrido, não obstante ter eliminado a agravação  dos crimes de homicídio, na forma tentada, pelo art. 86º, nº3 da Lei nº 5/2006,   manteve a  condenação  do arguido, AA, pela prática de:

a) de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos art.ºs 131.º n.º 1, 132.º n.º 2, alínea b), e 23.º, todos do Código Penal, na pessoa da ofendida BB, na pena parcelar de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão;

b) de um crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos art.ºs 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, alínea a), e 23.º, todos do Código Penal, na pessoa do ofendido CC, na pena parcelar de 4 (quatro)  anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) de um crime de violência doméstica previsto e punido pelos art.º 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, na pena parcelar de 3 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão.

E, considerando que a moldura penal abstracta do concurso destes crimes, tem   como limite mínimo 7 anos  e 10 meses de prisão ( a medida da mais elevada das penas aplicadas por cada crime), e como limite máximo 15 anos e 6 meses de prisão ( correspondente à soma de todas as penas parcelares  a unificar), efectuou o cúmulo  jurídico destas penas parcelares,  nos termos art.º 77.º do Código Penal, mantendo também a condenação do  arguido na  pena única de 9 (nove) anos de prisão.

Do mesmo modo, aderiu à fundamentação expendida pelo tribunal de 1ª instância, que, na determinação destas penas, ponderou que «  agrava o grau de ilicitude (e por isso as exigências de prevenção), a arma empregue pelo arguido, o que incrementou o carácter letal da sua acção; o modo inesperado como inicia as agressões sobre a ofendida BB, retirando-lhe qualquer possibilidade de defesa, circunstância que agrava a censura do facto e por isso os limites da culpa; a violência da sua conduta e a persistência com que actuou denunciam a par de uma intensa energia criminosa, um grau de culpa superlativo; por outro lado, as lesões sofridas pelos ofendidos BB e CC agravam as exigências de prevenção geral, em particular as da assistente, onde se objectivou o perigo concreto para a sua vida, sofrendo lesões que até à data a incapacitaram totalmente para o trabalho, vendo a sua qualidade de vida profundamente diminuída, ficando neste tempo privada de leccionar. Embora à presente data se desconheça a dimensão de uma eventual incapacidade (fixada após a consolidação das lesões), a ofendida vê-se embaraçada com sequelas psicológicas marcantes, com tonalidades depressivas, marcada por forte ansiedade e medos que persistem, manifestando  importantes sequelas que perduram e que afectam a qualidade de vida diária da mesma, condicionantes que agravam as exigências de prevenção geral e os limites da culpa. A lesões do ofendido CC menos exuberantes, não deixaram de produzir uma impressiva marca psicológica nesta vítima, não só os choques que sofreu na noite de 26 para 27 de Maio, mas toda a incompreensão e sofrimento que padeceu, físico e psicológico.

 A par da culpa “típica” de especial censurabilidade, não deixam de pesar no conjunto da actuação do arguido, os anos de casamento que tinha com a ofendida e a consequente dimensão do seu dever de respeito que acabou por violar de forma exuberante.

 Agravam igualmente a culpa as imputações graves de incesto que o arguido dirigiu aos assistentes, incrementando a estupefacção destes, tudo na presença dos vizinhos com a inerente repercussão social, e que agravou o vexame sentido pelos ofendidos. 

No crime de violência doméstica é marcante a atitude ciumenta e possessiva do arguido, que denunciam traços da sua personalidade desconfiada e egocêntrica, vindo de lesar de forma plúrima a personalidade da vítima, ao longo de várias décadas, circunstância que agrava os limites da culpa (dado que nunca recuou ou se redimiu desses maus tratos, antes incrementou a sua violência até às tentativas de homicício), assim como as exigências de prevenção geral, já elevadas neste tipo de crime na nossa sociedade. 

O dolo do arguido nos delitos cometidos foi intenso, denunciado por uma forte e persistente energia criminosa.

O arguido para além de primário, por regra sempre trabalhou, embora à data dos factos estivesse desempregado desde 2014, são circunstâncias que no seu conjunto atenuam as exigências de prevenção especial.

Por outro lado, o espaço público onde os factos também ocorreram, onde acudiram várias pessoas, com marcada repercussão e publicidade, são factos que agravam as exigências de prevenção, pela forma como afectou e colocou em crise a validade das normas que tutelam os bens jurídicos da vida e da integridade física.

Pesando a elevada culpa e a considerável ilicitude, e sopesando todos os considerandos respeitantes ao arguido atenta a moldura da pena em questão, no cometimento do crime de homicídio qualificado na forma tentada (na amplitude de entre o limite mínimo de 3 anos 2 meses e 12 dias o limite máximo de 17 anos e 4 meses) deverá ser sujeito, quanto à ofendida BB na pena parcelar de 7 anos e 10 meses de prisão; e quanto ao ofendido CC na pena parcelar de 4 anos e 6 meses.

Quanto ao crime de violência doméstica cometido sobre a BB, o modo plurimo como mal tratou, torna adequada a pena parcelar de 3 anos e 2 meses.

 Nos termos do art.77º do Cód.Penal operando o cúmulo jurídico, ponderando os limites abstractos do cúmulo, o conjunto dos factos, deverá o arguido ser sujeito à pena única de 9  anos de prisão.

Assim, a pena a aplicar ao arguido deverá consciencializa-lo da gravidade e censurabilidade da sua conduta, motivando-o ao futuro cumprimento das normas socialmente vigentes».

E acrescentou a esta fundamentação, no que respeita à pena única resultante do cúmulo jurídico situada nos 9 anos de prisão,  que  « Munidos do conjunto de factos como ilícito global, além dos critérios gerais da medida da pena atrás aludidos - Art.º 71.º do CPenal -, utilizou-se o critério especial do Art.º 77.º/1, 2.ª parte, do CPenal, avaliando-se a conexão e o tipo de conexão que entre os crimes concorrentes se verificou. No seu conjunto os factos e a personalidade do agente não dizem coisas muito diferentes daquelas que já foram atrás apontadas. As exigências de prevenção - atenuando o efeito previsível da pena sobre o compor­tamento futuro do agente condenado e, agravando, os especiais imperativos da prevenção geral positiva - fazem colocar a pena concreta naquele coeficiente.

Pensamos que com isto não ficam em causa as mencionadas necessidades de prevenção geral, ao contrário do que defendem o Ministério Público no seu recurso e os assistentes nas suas respostas, estando os valores agora fixados em consenso com a prática jurisprudencial e com a consideração das exigências de prevenção especial e de reinserção social.

Estas penas parcelares e também o respectivo cúmulo jurídico respondem bem, no balanceamento com os factores atenuantes (e à desconsideração da agravação abstracta da lei das armas), às exigências referidas da gravidade da actuação do arguido, o modus operandi utilizado, o resultado dos seus actos, a insensibilidade demonstrada e a ausência de sinais expressivos de arrependimento. Não se retira da condenação do tribunal a quo qualquer consideração de indulgência para com o arguido nem esse parece ser uma adjectivação correcta para a modulação e quantificação das penas a aplicar (…)» .

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Persiste, porém, o Ministério Público na defesa da agravação da pena única de 9 anos de prisão  para medida não inferior a 12 anos de prisão, ante «a gravidade da actuação do arguido, o modus operandi utilizado, o resultado dos seus actos, a insensibilidade demonstrada, a ausência de confissão e arrependimento…» e «as fortes exigências de prevenção».

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Conforme já se deixou dito no ponto 2.2.1, fundamental na determinação concreta da pena conjunta unitária  é, segundo o art. 77º, nº1 do CPP,  a valoração, no seu conjunto e inter conexão, dos factos e personalidade do arguido.

Daí  que a  determinação da pena conjunta, não possa estar dissociada da questão da adequação da pena à culpa concreta global, num quadro reclamado pelas exigências de prevenção geral e especial, passando, tal como já se deixou dito,  pelo efetivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que devem também  presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se, por isso, fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

Ora, olhando para o conjunto dos factos provados, dele ressaltam, de imediato logo, características de grande insensibilidade da personalidade do arguido e dum certo embotamento efetivo: a actuação do arguido ocorreu num quadro de violência doméstica, que vinha marcando a relação conjugal com a BB ( cfr. factos provados sob os nºs 3 a 14, 46, 47 e 51); o aproveitamento  da circunstância da BB  se ter baixado para calçar as sandálias para se aproximar dela, pelas costas, para desferir-lhe, com uma faca, um golpe  no pescoço, do lado esquerdo ( cfr. factos provados sob o nº 22); adopção, para com o seu filho CC, de uma postura de frieza e de ausência de afeto, tendo desferido contra este, com uma faca,  um golpe perfurante na zona da cartilagem da tiróide, na região anterior do pescoço, bem como um golpe na zona das costa ( cfr. factos provados sob os nºs 29ºe 31); o modo cruel e sanguinário escolhido para causar a morte (  cfr. factos provados sob os nº 48 e 50); a ausência de sinais de arrependimento.

Mas, para além destas características,  a globalidade dos factos  provados  evidencia  também ser o arguido portador de uma personalidade  conturbada, marcada por uma  infância sofrida, motivada pelas atitudes agressivas que a sua mãe tinha para consigo, e  que se agravou com o facto de, no ano de 2009, ter sido  vítima de disparos de uma arma de fogo, o que lhe causou, para além de danos na sua saúde física,  perturbação pós-stress traumático e perturbação de adaptação com humor depressivo, com necessidade de acompanhamento psiquiátrico, vindo, depois, a ser acompanhado por um psicólogo.

E tudo isto teve  reflexos  na  relação conjugal que, desde o seu início foi dificultada pelo facto do arguido ser ciumento, possessivo e controlador e que, ao longo dos vários anos,  foi decorrendo num  quadro de crescente perturbação e desordem subjectiva do arguido, que o levou a convencer-se da existência de um envolvimento entre a mulher e o  filho do casal, CC, ao ponto de ter colocado duas câmaras de vídeo e áudio no hall e no quarto daquele seu filho  e de, dias antes, ter ouvido uma gravação e interpretado aquilo que lhe pareceu ser uma respiração ofegante como sendo da sua mulher com o filho CC  envolvidos num ato sexual ( cfr. factos provados sob os nºs, 16, 17, 30, 51, 54, 139, 140, 142 e 143).

Mas,  se é certo que,  em nosso entender, esta situação  não pode deixar de ter relevância para a determinação do quantum da pena, na medida em que é suscetível  de enfraquecer,  de algum modo, os mecanismos de auto-controlo, com o inerente reflexo atenuativo no grau de culpa, ainda que em termos não muito significativos, a verdade é que, tal como se afirma no Acórdão do STJ, de 21.06.2012 ( proc. 525/11.2PBFAR.S1- 5ª Secção), nos crimes de homicídio ocorridos no contexto de uma relação conjugal, ainda que se quedem pela fase da tentativa, as exigências  de prevenção geral positiva, já de si especialmente intensas,  por se tratar da  violação do bem jurídico mais fundamental - a vida -, são acrescidas, em virtude  da consciencialização comunitária  dos fenómenos  de violência de género, particularmente de violência doméstica, e da ressonância fortemente negativa que adquiriram, pelo que  « a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça».
Em sede de exigências  de prevenção especial, avulta a personalidade do arguido,  caracterizada pelo reduzido ou nulo valor que revelou atribuir à pessoa humana.

Daí que, na ponderação de todos estes factores e  das demais circunstâncias ocorrentes mencionadas no acórdão recorrido, à luz do falado princípio da proporcionalidade, se entenda  que a pena unitária aplicada de 9 anos de prisão  peca por defeito, considerando-se, antes, mais adequada a pena de 12 (doze) anos de prisão, por ser a pena mais consentânea com a culpa do arguido pelo conjunto dos factos e que assegura, nos limites da estrita necessidade, as finalidades de prevenção.

Procede, por isso, o recurso interposto pelo  Ministério Público.

***
 
III. DECISÃO

Termos em que acordam na 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em :

1. Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, revogando o acórdão recorrido na parte relativa ao  cúmulo jurídico das penas parcelares  de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão, de 4 (quatro)  anos e 6 (seis) meses de prisão e de 3 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, em que o arguido foi condenado pela prática,  respectivamente, de um  crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos art.ºs 131.º n.º 1, 132.º n.º 2, alínea b), e 23.º, de um  crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos art.ºs 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 2, alínea a), e 23.º e de um crime de violência doméstica previsto e punido pelos art.º 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2,  todos do Código Penal, condenar o arguido, AA, na pena única de  ( doze) anos de prisão.


2. Manter, em tudo o mais, a acórdão recorrido.



Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de junho de 2017

(Texto elaborado e revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).

Rosa Tching (relatora)
Oliveira Mendes

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[1] Relato nº 57
Rosa Tching
[2] Relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Fonte e publicado in www.dgs.pt.
[3] Relatado pelo Juiz Conselheiro Santos Cabral e publicado in www.dgs.pt.
[4] In, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 2005, págs. 291 e 292.
[5] In, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 2005, págs. 291 e 292.
[6]  citando Cristina Líbano Monteiro,  em Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.07.05, Pº nº 2521/05-5ª, na RPCC, Ano 16, Nº 1, 162 e segs.
[7] Relatado pelo Juiz Conselheiro Santos Cabral e publicado in www.dgs.pt.
[8] Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de  06.01.2010 ( proc. nº 99/08.1SVLSB.L1.S1).
[9] Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad., Bosch, 1986, p. 34.
[10] In, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, págs. 148- 163.
[11] In, 2 A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, pág. 371.
[12] In “Estudos sobe a reforma do Direito Penal de pois de 1974”, in, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119º, pág. 6.