Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09B0368
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: DEFEITO DA COISA OBJECTO DO CONTRATO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
FRACÇÃO AUTÓNOMA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
PARTE COMUM
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DANO NÃO PATRIMONIAL
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
Nº do Documento: SJ200909240003687
Data do Acordão: 09/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 374º, 376º, 905º E SEGS., 910º, 911º, 913º, 914º, 1420º, 1421º, 1424º, 1432º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE:
3 DE ABRIL DE 2003, PROC. Nº 03B809;
19 DE JUNHO DE 2008, PROC. Nº 08B1078;
12 DE MARÇO DE 2009 (PROC. 08A4071);
19 DE MARÇO DE 2009 , PROC. Nº 07B3697;
28 DE ABRIL DE 2009, PROC. Nº 08B078
Sumário :
1. A circunstância de a coisa vendida ser uma fracção autónoma de um prédio urbano – e não a cobertura do prédio, ou parte dela – não isenta o vendedor de responder, perante o comprador, pelos vícios que a desvalorizam ou que impedem a sua utilização normal.

2. Não podem ser invocadas pelo vendedor de uma fracção autónoma quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afectem partes comuns, ou à execução de obras nas mesmas, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida.

3. Os documentos particulares escritos cuja autoria tenha sido reconhecida têm força probatória plena quanto à emissão das declarações que deles constam e quanto aos factos desfavoráveis a que estas se referem.

4. É admissível a indemnização por danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Em 28 de Junho de 2002, AA e BB instauraram uma acção contra CC na qual, alegando terem-lhe comprado em Abril de 1999 a fracção autónoma designada pela letra D do prédio urbano situado em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 276 e descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, com o nº 252, pediram a sua condenação no pagamento de € 12.805,65 que vão ter que gastar com a reparação da respectiva cobertura e de € 1.496,39 com o arranjo provisório, por sofrer infiltrações e deixar passar águas pluviais, e de € 4.988, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Alegaram ainda que as infiltrações começaram em Agosto de 1999 e que por diversas vezes contactaram a vendedora que se disponibilizou para proceder às reparações necessárias, sem todavia as ter realizado, tendo chegado a proceder à sua notificação judicial em Março de 2000.
A ré contestou e requereu a intervenção acessória de C... e Filhos, Lda, empresa que realizou as obras de reparação da referida fracção, sustentando ser a responsável pelos prejuízos que eventualmente venha a ter de indemnizar.
Na réplica, os autores opuseram-se à intervenção requerida, mas que foi admitida por despacho de fls. 117.
A chamada contestou e requereu a intervenção acessória de P... – Sociedade de Construções, Fibras e Madeiras, Lda e de N. C...& R..., Lda.
Os autores responderam, nomeadamente opondo-se às intervenções, que todavia foram admitidas, por despacho de fls. 143.
P... requereu a intervenção acessória de N...& F..., Lda, que não foi admitida (despacho de fls. 215).
As intervenientes contestaram, e os autores responderam.
A fls. 580, os autores vieram requerer a ampliação do pedido para € 14.443,64, “quantia que os AA. já despenderam” com obras que tiveram que realizar e despesas com a legalização de obras feitas pela ré. A ré opôs-se, mas a ampliação foi admitida por despacho de fls.611.
Por sentença de fls. 831, a acção foi julgada parcialmente procedente. A ré foi condenada “a pagar aos Autores as seguintes quantias:
- € 1.496,39, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 7% até 30/04/2003 e à taxa anual de 4% desde 01/05/2003, devidos desde 19/09/2002 até integral pagamento;
- € 2.399,62, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4%, devidos desde 30/04/2007 até integral pagamento;
- € 10.890,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4%, devidos desde 30/04/2007 até integral pagamento;
- € 934,39, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4%, devidos desde 30/04/2007 até integral pagamento;
- € 219,63, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4%, devidos desde 30/04/2007 até integral pagamento;”, por despesas realizadas e, como indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos,
-“ € 4.000,00, acrescido de juros de mora vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a data de prolação desta sentença até integral pagamento.”
Esta condenação veio a ser confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls.928.

2. Inconformada, CC recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso foi admitido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
“1. A matéria de facto assente não revela qualquer venda de coisa defeituosa.
2. É que a cobertura do edifício, onde residem os problemas, é uma parte comum do mesmo, pelo que não constituiu, nem poderia ter constituído, objecto da compra e venda celebrada entre as partes.
3. O que a R. alienou aos AA. foi a fracção autónoma designada pela letra "D" e, por arrasto, o seu direito de compropriedade sobre as partes comuns, por força do princípio da incindibilidade, consagrado no art. 1420º/2 do C.C..
4. A reparação e impermeabilização da cobertura do edifício carece de aprovação da assembleia de condóminos, por maioria dos votos representativos do capital investido, e os respectivos encargos devem ser suportados por todos os condóminos em proporção do valor das suas fracções (arts. 1427°, 1430º/1, 1432º/3 e 1424º/1 do C.C.).
5. A R. não pode ser responsabilizada por anomalias detectadas numa das partes comuns do edifício, cuja reparação não lhe compete e, mais do que isso, está legalmente impedida de efectuar (o regime da venda de coisas defeituosas não tem, pois, aqui qualquer cabimento, sendo o art. 914° do C.C. de aplicação impossível, pois os AA. não podem exigir da R. a reparação ou substituição da cobertura do edifício, carecendo estas obras de deliberação da assembleia de condóminos).
6. Os AA. não lograram provar que a R. se obrigara, perante eles, a efectuar, previamente ao negócio, obras na cobertura do prédio ou que estas tenham sido determinantes na compra do andar (resposta ao quesito 2º). Assim, a R. não praticou qualquer ilícito contratual, susceptível de originar uma obrigação de indemnização (a fracção autónoma que vendeu aos AA. não apresentava quaisquer defeitos - a cobertura sim - e as obras que realizou no telhado não resultaram de qualquer obrigação que tivesse assumido perante eles).
7. Apenas o condomínio responde perante os AA. pela reparação ou substituição da cobertura do edifício e pelo ressarcimento de eventuais danos.
8. Se os AA. suportaram, com o arranjo provisório da cobertura e com os trabalhos de engenharia necessários à obra definitiva, as quantias de € 1.496,39 e € 10.890,00, respectivamente, suportaram-nas indevidamente, pois, de acordo com o regime jurídico da propriedade horizontal, as mesmas são da responsabilidade de todos os condóminos (arts. 1424° a 1426° do C.C.).
9. Ainda que a R. tivesse cumprido defeituosamente o contrato de compra e venda celebrado entre as partes, o que apenas se admite por mera hipótese académica, nunca poderia ser condenada a reembolsar os AA. de quantias que, nos termos da lei, não lhes cabia a eles suportar; se os AA. pagaram tais quantias, pagaram mal; trata-se de danos totalmente injustificados e que poderiam ter sido evitados, pelo que não merecem a tutela do direito.
10. Acresce que, no que respeita à obra na cobertura, os AA. limitaram-se a provar que despenderam a quantia de € 10.890,00, a título de honorários pelos trabalhos de engenharia necessários à sua realização, não tendo alegado nem provado se chegaram a realizar alguma obra na cobertura, em que é que consistiram esses trabalhos de engenharia e como é que foram calculados os correspondentes honorários. Assim, ignora-se, em absoluto, se esse valor é justo e adequado aos referidos trabalhos. No caso concreto, esta prova revelava-se especialmente importante, atendendo ao facto 7. Os AA. Tinham o ónus de provar a razão de ser de tão grande diferença entre o valor inicialmente orçamentado e o pago; não o tendo feito, é forçoso concluir que o prejuízo invocado não está suficientemente demonstrado.
11. Pelas razões expostas, a R. não tem qualquer obrigação de reembolsar os AA. de quaisquer quantias que estes tenham pago, nomeadamente das quantias de € 1.496,39 (arranjo provisório com tela impermeabilizante) e € 10.890,00 (honorários pelos trabalhos de engenharia necessários à obra definitiva).
12. Na responsabilidade contratual, que é aquela que está aqui em causa, não há lugar ao ressarcimento dos danos não patrimoniais, como resulta da localização sistemática do art. 496° do C.C.
13. Independentemente disso, os danos não patrimoniais alegados e provados pelos AA. não têm a especial gravidade de que depende a tutela jurídica conferida pelo referido artigo.; são simples transtornos, incómodos ou contrariedades, que não têm a dignidade ali exigida.
14. Os factos 17 (na parte em que diz "..., o que se reflectiu no convívio familiar'") e 18 têm natureza meramente conclusiva e não encontram tradução em quaisquer factos concretos, pelo que não podem ser considerados para efeitos de valoração dos danos não patrimoniais.
15. Ainda que os danos não patrimoniais fossem merecedores de tutela jurídica, o que apenas se admite por mera hipótese académica, a indemnização fixada, a este título, seria exagerada, impondo-se a sua rectificação.
16. O acórdão recorrido (ao não seguir a orientação vencida) aplicou incorrectamente o direito aos factos provados, desconsiderando o regime jurídico da propriedade horizontal, nomeadamente os arts. 1421º/1, 1424° a 1427°, 1430º/1 e 1432º/3 do C.C., bem como o art. 1408º/1 do mesmo código, e aplicando indevidamente o regime jurídico da venda de coisas defeituosas (arts. 913° e ss. do C.C.) e, ainda, o art. 496° do C.C.”

Os autores contra-alegaram, sustentando a manutenção do decidido.

3. A matéria de facto que vem provada é a seguinte:

1. A fracção autónoma designada pela letra "D" correspondente ao 3.º andar do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Cruz da Carreira, n.º 76, está descrito na 5.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º 252-D, da freguesia da Pena e inscrito a favor dos Autores AA e BB, por aquisição à Ré CC em Abril de 1999 (alínea A) dos Factos Assentes).
2. Esta fracção autónoma constitui o último piso do prédio urbano sito na Rua Cruz da Carreira, n.º ... (alínea B) dos Factos Assentes).
3. A Ré antes de vender a fracção autónoma aos Autores mandou efectuar obras, designadamente, ao nível da cobertura – que é também a cobertura do prédio urbano, a qual é formada por uma estrutura em barrotes de madeira onde assentam as telhas, existindo por baixo destas um forro de tábuas corridas (alínea C) dos Factos Assentes).
4. A fracção autónoma foi remodelada pela Ré, tendo sido feita uma intervenção ao nível do telhado, bem como de outras divisões da habitação (alínea D) dos Factos Assentes).
5. Em Agosto de 1999, os Autores aperceberam-se da existência de infiltrações de águas pluviais que afectavam sobretudo o 2.º piso (alínea E) dos Factos Assentes).
6. Em Março de 2000, os Autores procederam à notificação avulsa da Ré dando-lhe conhecimento da situação das infiltrações e informando a falta de reparação (alínea F) dos Factos Assentes).
7. Em Junho de 2000, os Autores solicitaram um orçamento para realização das obras necessárias à impermeabilização do telhado, tendo as mesmas sido orçamentadas em 890.000$00; a Ré teve conhecimento deste orçamento e disponibilizou-se a comparticipar no custo das obras no montante de 400.000$00 (alínea G) dos Factos Assentes).
8. A Ré é arquitecta de profissão (alínea H) dos Factos Assentes).
9. A fracção autónoma designada pela letra "D" correspondente ao 3.º andar do prédio urbano sito na Rua Cruz da Carreira, n.º ..., está descrito na 5.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º 252-D é a casa de morada de família do agregado constituído pelos Autores e dois filhos menores (resposta ao quesito 1.º).
10. O prédio urbano sito na Rua Cruz da Carreira, n.º ..., é um imóvel com mais de 70 anos de construção (resposta ao quesito 2.º
11.A fracção autónoma é composta por dois pisos, o 1.º piso é composto por um vestíbulo, a sala de jantar, a cozinha e um quarto de dormir; o sótão é composto por duas divisões, um quarto de dormir e uma sala comum (resposta ao quesito 3.º).
12.A cobertura da fracção autónoma constitui o tecto do quarto de dormir dos Autores, da sala comum e da zona de trabalho (resposta ao quesito 4.º).
13.A água proveniente das chuvas entra e infiltra-se por diversos pontos da cobertura obrigando os Autores a afastar móveis e outros objectos e provocando manchas de humidade na estrutura de madeira do telhado, bem como, nas paredes das assoalhadas da fracção autónoma (resposta ao quesito 5.º).
14.Os Autores decidiram efectuar, por conta própria, um arranjo temporário com tela impermeabilizante em finais de 2001, tendo gasto a quantia de € 1.496,39 (resposta ao quesito 7.º).
15.Os Autores iniciaram o processo de regularização junto do "Município de Lisboa" das obras realizadas pela Ré que implicaram a demolição e construção de paredes interiores, demolição de parede interior no sótão, alargamento das janelas traseiras; tendo para tal contratado um arquitecto (resposta ao quesito 8.º).
16.Quando chovia os Autores tinham de proteger e afastar o mobiliário, electrodomésticos e outros objectos, bem como, colocar recipientes para evitar a inundação da fracção autónoma; frequentemente procediam à limpeza das zonas em que se acumulava a água a fim de evitar a deterioração dos soalhos e infiltrações na estrutura do prédio urbano (resposta ao quesito 9.º).
17.Os Autores viram-se privados do descanso e tranquilidade, passaram a estar cansados e enervados com a situação, o que se reflectiu no convívio familiar (resposta ao quesito 10.º).
18.Os Autores mostravam menos disponibilidade para com os filhos (resposta ao quesito 11.º).
19.Para a realização das obras de remodelação do prédio urbano sito na Rua Cruz da Carreira, n.º ..., a Ré contratou a "C... & Filhas, Lda.", a qual executou os trabalhos de demolição de paredes, de reboco, colocação de estuque e azulejo, levantamento da telha, limpeza e reassentamento da mesma, tendo fornecido, apenas, cimento e areia (resposta ao quesito 14.º).
20.Os trabalhos de madeiras foram executados pela "P...– Sociedade de Construções, Fibras e Madeiras, Lda." (resposta ao quesito 15.º).
21.A Ré nunca comunicou à Chamada "P...– Sociedade de Construções, Fibras e Madeiras, Lda." qualquer defeito da obra por esta realizada (resposta ao quesito 16.º).
22.A Chamada "P...– Sociedade de Construções, Fibras e Madeiras, Lda." realizou obra, por conta e direcção da Ré, tendo fornecido, apenas, alguns barrotes e vigas de madeira, bem como, ripas de telhado; aproveitou barrotes e vigas de madeira por ordem da Ré, a qual exigiu a colocação de uma das vigas deitadas para aproveitar o máximo o pé direito, ao invés de ficar ao cutelo que permitiria maior resistência à flexão do telhado (resposta ao quesito 17.º).
23.A Ré aproveitou a telha existente, tendo-a misturado com telha adquirida no ferro velho (resposta ao quesito 18.º).
24.A Chamada "N. C...& R..., Lda." limitou-se a indicar à Ré o seu fornecedor de telha, tendo efectuado a encomenda e pago a quantia de € 227,23, sendo posteriormente reembolsada pela Ré (resposta ao quesito 19.º).
25.Os Autores despenderam as seguintes quantias em consequência da legalização da fracção autónoma junto do "Município de Lisboa":
- € 2.399,62 em honorários a arquitectos devidos pelo projecto de licenciamento municipal e respectivo acompanhamento;
- € 10.890,00 em honorários pelos trabalhos de engenharia necessários à obra efectuada na cobertura;
- € 934,39 de emolumentos municipais pagos no âmbito do processo camarário de legalização das obras;
- € 219,63 pela regularização do traçado e fiscalização do sistema de fornecimento de água pagos à "EPAL – Empresa Pública de Águas Livres, S.A." (respostas aos quesitos 12.º, 13.º e 20.º).

Não são aplicáveis as alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.

4. Estão assim em causa neste recurso as seguintes questões:
– Saber se a natureza comum da cobertura do prédio impede a procedência do pedido dos autores;
– Saber se há fundamento de facto quanto à condenação no pagamento de € 10.890,00;
– Saber se, no âmbito da responsabilidade contratual, não há lugar a indemnização por danos não patrimoniais.

5. Relativamente à primeira questão, cumpre começar por observar que a recorrente, quando contestou a acção e provocou a intervenção de C... e Filhos, Lda, assumiu uma atitude diametralmente oposta à que agora manifesta nas suas alegações.
Com efeito:
– Reconheceu expressamente que mandou efectuar obras ao nível da cobertura do andar, que é também a cobertura do prédio, realizando uma intervenção ao nível do telhado (artigo 2º da contestação);
– Negou ser responsável pelas infiltrações, não porque respeitassem a uma parte comum do edifício – a sua contestação é totalmente omissa quanto a essa questão –, mas porque já tinham sido executadas as necessárias reparações, por sua iniciativa, aliás de acordo com o compromisso que assumira perante o autor (cfr. documento de fls. 49) – artigos 5º a 13º, 16º, sendo antes responsável a chamada – artigo 44º e segs., maxime 54º;
– Juntou com a contestação o referido documento de fls. 49, no qual expressamente declarou: “comprometo-me perante AA a mandar realizar a empreitada adiante discriminada nas seguintes condições:
A empreitada a efectuar destina-se a melhoramentos da cobertura do prédio sito na Rua Cruz da Carreira nº ... em Lisboa, afecta à fracção ‘D' a que corresponde o 3º andar.
Para tal serão levados a efeito os seguintes trabalhos:
(…)”.
O documento está também assinado pelo autor, que declarou “ter tomado conhecimento”;
– Juntou o documento de fls. 58, no qual, como reconheceu nos artigos 18º e 19º da contestação, já depois de ter sido vendida a fracção, e apesar dos trabalhos que tinha mandado executar, se dispôs a comparticipar nos custos das obras que “o proprietário da habitação considere necessárias, as quais constam do orçamento que em tempo [lhe] enviou”, em consequência de se terem verificado “algumas infiltrações na cobertura, quando choveu”.
Revelou naturalmente com esta atitude – concordante com os referidos documentos – que reconhecia que era da sua responsabilidade enquanto vendedora eliminar as infiltrações na cobertura da fracção vendida aos autores.

6. Não cabe realmente dúvida de que a entrada de “água proveniente das chuvas” pela cobertura, que “constitui o tecto do quarto de dormir dos autores, da sala comum e da zona de trabalho”, se não chegará a impedir, pelo menos desvaloriza significativamente a afectação normal de uma fracção autónoma de um prédio urbano, destinada a habitação; o que vale por dizer que, nos termos do artigo 913º do Código Civil, estão preenchidos os requisitos para se considerar como defeituosa a fracção vendida aos autores, conferindo-lhes os direitos que a lei prevê em tal eventualidade.
Entre os direitos em geral concedidos ao comprador de uma coisa defeituosa figuram o de anular o contrato (artigos 905º e segs. e 913º), de “exigir do vendedor a reparação da coisa” (artigo 914º) e, caso essa reparação não seja efectuada, o direito a ser indemnizado (artigos 913º e 910º do Código Civil), e ainda o direito à redução do preço (artigos 913º e 911º), em consonância com a finalidade de garantia do “princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1997, pág. 206).

7. Nas alegações apresentadas, a ré não contesta, nem a existência de “problemas ao nível da impermeabilização da cobertura do prédio”, nem que “a referida cobertura” corresponde, “simultaneamente, à cobertura da fracção”; e afirma expressamente que dos factos provados “resulta, por um lado, que a R. vendeu aos AA. a fracção autónoma designada pela letra ‘D', correspondente ao último andar do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal (…) e, por outro, que existem problemas de impermeabilização da cobertura desse prédio, que corresponde, também, à cobertura da fracção autónoma, os quais estão na origem das infiltrações de águas pluviais”.
O que põe é em causa a aplicabilidade do regime da venda de coisas defeituosas – afirmando mesmo que a ré não vendeu aos autores uma coisa defeituosa –, sustentando que, sendo parte comum do edifício, a cobertura “não constituiu, nem poderia ter constituído, objecto da compra e venda celebrada entre as partes”. Em seu entender, o que a ré vendeu foi uma fracção autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal “e, por arrasto, o seu direito de compropriedade sobre as partes comuns (…)”, incindivelmente ligado ao direito de propriedade sobre a fracção autónoma. Diz mesmo que “o que apresenta deficiências não é a fracção autónoma alienada, mas sim uma parte comum, que não foi objecto (nem podia ser) do negócio celebrado entre as partes (…)”.
Daqui retira que não é a responsabilidade contratual da ré, “que não existe”, mas “a responsabilidade extra-contratual dos demais condóminos”, que está em causa.
Para o efeito, recorda que, segundo o regime da propriedade horizontal, a responsabilidade pelos encargos de conservação das partes comuns (artigo 1424º, nº 1, do Código Civil) recai sobre os condóminos; que os condóminos estão impedidos de fazer obras nas parte comuns (artigo 1427º), cabendo tal tarefa aos órgãos administrativos; e que as obras em causa carecem de aprovação da assembleia de condóminos (1432º, nº 3): “parece claro que a R. não pode responder por defeitos cuja reparação não lhe compete e, mais do que isso, está legalmente impedida de efectuar”.
E diz ainda que nada impede a reconstituição natural dos prejuízos sofridos; deve é ser exigida do condomínio.

7. Não tem qualquer fundamento esta alegação. A circunstância de a coisa vendida ser uma fracção autónoma de um prédio urbano – e não a cobertura do prédio, ou parte dela – não isenta o vendedor de responder, perante o comprador, pelos vícios que a desvalorizam ou que impedem a sua utilização normal.
Diferente seria se a fracção tivesse sido alienada como fracção carecida de reparação, por sofrer de infiltrações na cobertura, ou seja, como fracção por essa razão não apta a servir de habitação, em termos normais. Mas não foi este o caso, como resulta claramente dos termos da acção – da petição inicial e da contestação, ou dos citados documentos juntos a fls. 49 e 58, por exemplo. Note-se que se trata de documentos cuja autoria foi expressamente reconhecida pela ré e que, portanto, têm força probatória plena quanto à emissão das declarações que deles constam e aos factos desfavoráveis a que estas se referem (artigos 374º e 376º do Código Civil), estando no âmbito dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal a sua consideração. Está aliás provado que “A Ré antes de vender a fracção autónoma aos Autores mandou efectuar obras, designadamente, ao nível da cobertura – que é também a cobertura do prédio urbano, a qual é formada por uma estrutura em barrotes de madeira onde assentam as telhas, existindo por baixo destas um forro de tábuas corridas” e que “Em Junho de 2000, os Autores solicitaram um orçamento para realização das obras necessárias à impermeabilização do telhado, tendo as mesmas sido orçamentadas em 890.000$00; a Ré teve conhecimento deste orçamento e disponibilizou-se a comparticipar no custo das obras no montante de 400.000$00”.
Não procedem as considerações relativas à natureza dos direitos dos condóminos. Como por exemplo se escreveu já no acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Março de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 07B3697), não há dúvida de que “na propriedade horizontal coexistem num mesmo edifício (ou eventualmente num conjunto de edifícios que obedeça aos requisitos previstos no artigo 1438º-A do Código Civil, ao qual foi acrescentado pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro), formando um conjunto incindível, os direitos de propriedade exclusiva dos condóminos sobre as respectivas fracções autónomas e os direitos dos mesmos condóminos sobre as partes comuns, por princípio moldados segundo o regime da compropriedade (artigo 1420º do Código Civil).”
Nas palavras de M. Henrique Mesquita (A propriedade horizontal no Código Civil Português, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXIII – nºs 1-2-3-4, pág. 79 e segs., pág.84), “o que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária – o que, necessariamente, há-de criar especiais relações de interdependência entre os condóminos, quer pelo que respeita às partes comuns do edifício, quer mesmo pelo que respeita às fracções autónomas”.
Também não há dúvida de que o telhado de um prédio submetido ao regime da propriedade horizontal é parte comum (al. b) do nº 1 do artigo 1421º do Código Civil); e de que a lei prevê o regime aplicável à administração das partes comuns, às deliberações que as afectem e aos encargos correspondentes, porque, apesar de lhes ser por princípio aplicável o regime da compropriedade, a ligação funcional entre as partes comuns e as fracções autónomas exige adaptações e o estabelecimento de um mecanismo estável e organizado, por um lado sem paralelo com o regime difuso previsto para a compropriedade, mas, por outro, sem chegar à instituição de uma entidade juridicamente autónomo” (citado acórdão de 19 de Março de 2009).
Assim, e “salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício (…) são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções” (nº 1 do artigo 1424º) e a administração do prédio compete “à assembleia de condóminos e a um administrador” (artigo 1430º), embora “as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício” possam “ser levadas a efeito, na falta ou impedimento do administrador, por iniciativa de qualquer condómino” (artigo 1427º).
Sucede, todavia, que, não podem ser invocadas pelo vendedor de uma fracção autónoma quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afectem partes comuns, ou à execução de obras nas mesmas, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida.
A coisa vendida, em tal caso, é manifestamente constituída pelo todo incindível que foi alienado, não tendo cabimento a separação entre a fracção autónoma e a quota nas partes comuns. Neste contexto, coisa sem defeitos significa coisa apta a desempenhar a sua função; e é em função desse todo que a aptidão tem de ser aferida.
Ora resulta da prova feita, como se viu, que as infiltrações de que sofre a fracção comprada pelos autores a desvalorizam, do ponto de vista da sua utilização como habitação, impedindo o seu uso normal; não se questiona sequer que resultam de vícios já existentes quando foi vendida a fracção autónoma; o vendedor é responsável perante os compradores, no âmbito do contrato de compra e venda que celebraram.

8. Não tendo sequer sido pedida a condenação na reparação dos defeitos, não têm cabimento as considerações tecidas pela recorrente relativamente à impossibilidade de realizar obras numa parte comum do prédio; ou, em geral, sobre a incompatibilidade entre o regime da venda de bens defeituosos e “a situação de facto em causa”.
Como se viu já, a lei não se limita a conferir ao comprador o direito à “reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela”, trecho do artigo 914º que a recorrente invoca para sustentar que “perante a situação de facto em causa, o regime da venda de coisas defeituosas não faz qualquer sentido”. Antes lhe confere, como se viu já, o direito a ser indemnizado; que foi, aliás, o direito que os autores vieram exercer nesta acção.
E, a este ponto, resta acrescentar que resulta do que se disse já que não procedem as considerações tecidas pela recorrente quanto a que os autores “pagaram mal” as obras que realizaram (referindo-se às quantias de € 1.496,39 e € 10.890,00, em especial, mas ainda a “quaisquer quantias que” os autores “tenham pago”), porque se trataria de encargos “da responsabilidade de todos os condóminos”.
A responsabilidade da ré fundamenta-se nos defeitos de que a coisa vendida sofria; destina-se a repor o equilíbrio contratual da compra e venda que celebrou com os autores.

9. A recorrente questiona ainda a condenação no pagamento de € 10.890,00 “a título de honorários necessários à realização da” obra, considerando tratar-se de prejuízo “não suficientemente demonstrado”.
Sucede, todavia, que, tal como se observou no acórdão recorrido, está provado esse prejuízo (ponto 25 da matéria de facto provada), não existindo assim qualquer dúvida que imponha recorrer às regras do ónus da prova.

10. Finalmente, a recorrente impugna condenação no pagamento de € 4.000 por danos não patrimoniais, quer por não haver lugar ao ressarcimento de tais danos no âmbito da responsabilidade contratual, quer estarem em causa “simples transtornos, incómodos ou contrariedades”, sem a “dignidade” exigida pelo artigo 496º do Código Civil, quer por ter sido arbitrado um montante excessivo.
É certo que o Código Civil português, embora trate em conjunto da obrigação de indemnizar (artigos 562º e segs.), regula separadamente a responsabilidade extra-contratual (artigo 483º e segs.) e a responsabilidade contratual (artigo 798º e segs.); e inclui naquela o regime da indemnização por “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
É no entanto igualmente certo que não exclui do âmbito possível da responsabilidade contratual a responsabilidade por danos desta natureza; como se observa por exemplo no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Abril de 2003 (www.dgsi.pt, proc. nº 03B809), “as mencionadas normas dos artº798º, e segs., não o prevendo, também o não excluem”.
No caso presente sucede (cfr., no mesmo sentido, o acórdão acabado de citar) que, em resultado do defeito verificado, foram lesados relevantes direitos de natureza pessoal; tem assim plena justificação seguir a orientação deste Supremo Tribunal no sentido de se entender que, em tais situações, pode haver lugar a indemnização. Necessário será que o dano em si seja grave, nos termos do que é definido no citado artigo 496º do Código Civil.
Como se dá nota, por exemplo, no recente acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Junho de 2008 (www.dgsi.pt, proc. nº 08B1078), reafirmando o citado acórdão de 3 de Abril de 2003,“Apesar de ainda ser debatida a questão, cremos ser hoje jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal a da admissibilidade da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais em sede de responsabilidade contratual, desde que merecedores da tutela do direito e preenchidos que se encontrem os respectivos pressupostos – Acs do STJ de 21/3/95, Bol. 445, p. 487, de 25/11/97, CJ S. Ano V, T. 3, p. 140, de 17/11/98, Ano VI, T. 3, p. 124, de 8/2/2001, Sumários, 48º, de 19/5/2001, CJ Ano IX, T. 2, p. 71, de 4/4/2002 (Pº 02B644), de 14/12/2004 (Pº 05B1526), de 8/6/2006 (Pº 06A1450), de 12/9/2006 (Pº 06A2376) e de 22/1/2008 (Pº 07A4154), bem como Vaz Serra, in Reparação do Dano Não Patrimonial (Bol. 83, p. 104) e Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual (Bol. 85, pags 115 e ss) e A. Costa, ob. cit., pags 395 e ss.”.
No mesmo sentido, cfr. ainda, por exemplo, os acórdãos de 12 de Março de 2009 (proc. 08A4071).
Está provado, no caso presente, que desde Agosto de 1999, foram detectadas pelos autores as infiltrações no tecto da fracção, na qual os autores residem com dois filhos menores; que, em consequência dessas infiltrações e da entrada das águas provenientes das chuvas, que afectavam o quarto de dormir dos autores, a sala comum e a zona de trabalho (ponto 12), a vida familiar se viu significativamente perturbada (cfr. os pontos 13, 16, 17 e 18); e que essa situação se manteve, pelo menos, até ao arranjo temporário que fizeram em finais de 2001, apesar de muito antes terem dado conhecimento à autora (a notificação judicial avulsa data de Março de 2000).
Assim sendo, considera-se, não só, que os danos sofridos excedem “os meros incómodos ou as simples contrariedades sofridas pelo titular do direito, considerados ónus normalmente ligados a essa titularidade” (acórdão de 28 de Abril de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B078), que este Supremo Tribunal tem entendido não justificarem a imposição da obrigação de indemnizar, mas também ser adequado o montante encontrado pelas instâncias.

11. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Setembro de 2009

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Lopes do Rego