Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23119/16.1T8LSB.C2.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 11/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

A prova pericial, incluindo a resultante de junta médica, encontra-se sujeita ao princípio da livre apreciação da prova pelo Tribunal.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 23119/16.1T8LSB.C2.S2

Acordam, na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do Código do Processo Civil, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Generali Seguros S.A., Ré na ação em que é Autor AA, veio interpor recurso de revista excecional do Acórdão proferido nestes autos pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 12 de julho de 2022, com fundamento nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código do Processo Civil.

No seu recurso, afirma, designadamente, o seguinte:

“Nos termos e para os efeitos da alínea a) do n° 2 do art.º 672.º do Código de Processo Civil, o autor indica as razões pelas quais entende que a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito:

A) No Processo de Trabalho, que é um processo especial relativamente ao Processo Civil (de natureza comum e subsidiária), e mais concretamente na Subsecção específica dos Acidente de Trabalho, a existência e grau das Incapacidades, de todas as Incapacidades, são determinadas em sede de Apenso com a realização de uma (ou mais) Junta Médica;
B) Os Senhores Peritos Médicos que intervêm nas Juntas Médicas são quem têm conhecimentos técnicos e científicos, muitas vezes específicos de cada especialidade, para se pronunciarem sobre as lesões e sequelas provenientes de acidente de trabalho;
C) O Senhor Colaborador do lEFP, além de não ser médico, não tem qualquer conhecimento direto sobre o estado do trabalhador sinistrado, nunca, aliás, o tendo observado;
D) O Senhor Colaborador do lEFP limita-se a dar um parecer com base em elementos documentais que lhe são remetidos;

E) Entendendo a recorrente que a opinião do Senhor Colaborador do lEFP não deve, nem pode, prevalecer sobre a opinião dos Senhores Peritos Médicos intervenientes na Junta Médica.

(…)

Nos termos e para os efeitos da alínea b) do n° 2 do art.º 672.º do Código de Processo Civil, o autor indica as razões pelas quais entende que os interesses são de particular relevância social:

A) Sendo o processo de acidente de trabalho "desdobrável" em duas partes, sendo uma delas específica para determinar as consequências médicas e clínicas (apenso para fixação de incapacidade), quem tem competência e conhecimentos técnicos e científicos são os Senhores Peritos Médicos que integram a Junta Médica;
B) Tem que haver, em termos de sociedade, a certeza e garantia de que essa decisão seja seguida e aplicada pelo Julgador;
C) Não pode o princípio da liberdade ou da livre apreciação de prova sobrepor-se a uma decisão colegial por quem, efetivamente, tem competência para esse efeito;

D) No fundo, tem que haver uma certeza e uma confiança de que o Julgador está vinculado a uma decisão colegial (por unanimidade ou por simples maioria), pois o Julgador não possui conhecimentos técnicos nem científicos que permitam preterir uma decisão de uma Junta Médica em detrimento de um qualquer outro meio de prova, seja ele qual for.”

Sintetizando a sua argumentação a Recorrente afirma que:

“Salvo sempre o devido respeito, e de uma formal muito clara e simples, a recorrente entende que o Tribunal de 1a Instância está, TEM QUE ESTAR, vinculado à decisão emitida pela Junta Médica quanto à ausência de IPATH” (Conclusão 7.ª)

Cumpre analisar.


Antes de mais sublinhe-se que é jurisprudência pacífica desta Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça que a prova pericial é de livre apreciação pelo Tribunal. Como se pode ler no Acórdão proferido a 08/06/2021 no processo n.º 3004/16.8T8FAR.E1.S1 (Leonor Rodrigues) “a prova pericial está sujeita à livre apreciação pelas instâncias, sendo fixada livremente pelo Tribunal, nos termos dos artigos 389.º do Código Civil e 489.º do Código de Processo Civil, não existindo impedimento legal a que o Tribunal atribua maior força probatória a outros meios de prova e a que, perante motivos de ordem técnica ou probatória que apontem para a rejeição ou modificação do resultado da perícia média realizada nos autos, fixe um entendimento divergente daquela.” No mesmo sentido, entre outros, cfr. os Acórdãos de 04/07/2018, proferido no processo n.º 1165/13.7TTBRG.G2.S1 (Chambel Mourisco), de 26/09/2018, proferido no processo n.º 25.552/16.0T8LSB.L1.S1 (Gonçalves Rocha), de 06/02/2019, proferido no processo n.º 639/13.4TTVFR.P1.S1 (Júlio Gomes), de 06/05/2020, proferido no processo n.º 1085/10.7TTPNF.5.P1.S1 (Leones Dantas).
O Tribunal da Relação terá, é certo, que fundamentar a sua divergência, o que fez, aliás, no caso dos autos.
Com efeito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação:

“(…) Trabalho habitual é, assim, o conjunto de funções exercidas habitualmente pelo trabalhador no âmbito do posto de trabalho que ocupa, no contexto do contrato de trabalho que celebrou.

Presente o que se deve considerar como IPATH, importa agora decidir se no caso dos autos se justifica a atribuição de tal incapacidade ao sinistrado.

Da análise das funções inerentes ao posto de trabalho do sinistrado temos como certo que este, para além das tarefas de gestão e administrativas, desempenha, designadamente, as seguintes tarefas: abre o estabelecimento, liga máquinas e equipamentos, atende clientes à mesa e ao balcão, opera máquinas tais como fogões máquinas de lavar loiça fritadeira grelhadores etc., limpa, descasca e corta em fatias géneros alimentícios, procede à reposição de produtos, desloca-se ao armazém, limpa e arruma o estabelecimento e esplanada, varre soalhos, limpa prateleiras, esvazia cestos do lixo, lava pavimentos paredes e vidros.,

Para executar estas tarefas, que de forma exemplificada se descreveram, o sinistrado necessita, na maior parte do tempo, estar de pé, tendo necessidade de adotar com frequência outras posturas tais com sejam as de agachado ou curvado. Tem ainda necessidade de executar outros movimentos, como sejam flexões frontais, torsões laterais do corpo, torsão, flexão e extensão do pescoço, devendo possuir destreza em ambas as pernas especialmente na subida e descida de escadas e escadotes

O perfil do posto de trabalho do sinistrado exige uma imprescindível e adequada capacidade de mobilidade, destreza e desembaraço físico.

Ora ficou provado que em consequência directa e necessária acidente o A. sofreu lesões traumáticas dos membros inferiores (à direita, fractura cominutiva do fémur, da tíbia e do peróneo, dos cubóides escafóides e cunhas do pé, e subluxação externa dos 4.º e 5.º metatársicos; à esquerda, fratura do fémur, do planalto tibial interno e da tíbia, com lesão do nervo ciático poplíteo externo e vascular da artéria poplítea, apresentando cicatrizes extensas distróficas em 9% da superfície corporal, e algumas com perda de sensibilidade no membro inferior esquerdo, pé pendente (em boa posição) à esquerda, com amiotrofia da perna com diferença superior a 2 cm, rigidez dos joelhos (com limitação das flexões a 80º à esquerda e 100º à direita e da extensão a -5º à esquerda), rigidez da tibiotársica direita com flexão dorsal limitada a 0º . Que apesar da alta clínica, o A. movimenta-se com o apoio de canadianas, tem dificuldade em deslocar-se em pisos inclinados e usar escadas, tendo ainda dificuldade em ficar de pé por períodos prolongados, não conseguindo permanecer ao balcão/caixa do restaurante, servir refeições aos clientes, ir às compras junto dos fornecedores, dirigir-se de forma autónoma a repartições públicas, bancos e outras entidades privadas, carregar material e limpar o restaurante.;

Desta materialidade conclui-se, tendo em conta o traçado perfil do posto de trabalho do sinistrado, que do acidente resultaram para este lesões que o impossibilitam, em absoluto, de executar o núcleo essencial das tarefas inerentes àquele posto, pelo que se entende encontrar-se o mesmo afetado de uma IPATH, tal como decidiu a 1ª instância.” (sublinhados no original)

Como se vê, e resulta com clareza da fundamentação, a determinação da incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual não pressupõe apenas juízos médicos, mas coenvolve uma dimensão jurídica e a resposta a questões sobre o posto de trabalho, quais as principais funções concretamente desempenhadas e se é exigível ao trabalhador, face às lesões sofridas, continuar a exercê-las.

E resulta claramente do artigo 389.º do Código Civil que “a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”.

Destarte, a presente revista excecional não pode ser admitida, já que, sendo a questão pacífica a nível jurisprudencial não se justifica uma intervenção excecional deste Tribunal e tão-pouco estão em causa interesses de particular relevância social já que não causa qualquer alarme social que a última palavra sobre questões que também são questões jurídicas caiba ao juiz e não ao médico.

Decisão: Acorda-se na inadmissibilidade da presente revista excecional.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 29 de novembro de 2022

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Mário Belo Morgado