Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
515/17.1T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
IMPEDIMENTO
PRAZO
HOMOLOGAÇÃO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO – PLANO DE INSOLVÊNCIA / APROVAÇÃO E HOMOLOGAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO, PARTES DO TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIO E REFORMA DA SENTENÇA.
DIREITO CIVIL – LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / INTERPRETAÇÃO DA LEI.
Doutrina:
-Catarina Serra, O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, 2016, 107;
-Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, 2016, 367 e 371;
-Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, O Processo Especial de Revitalização, 168 e 169;
-Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 350, 359, 360 e 366.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 17.º-F, N.º 5, 17.º-G, N.ºS 4 E 6 E 215.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.º 3 E 615.º, N.º 1, ALÍNEA D).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 30-05-2017, PROCESSO N.º 6427/16.9T8FNC.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;


-*-

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 08-03-2016, PROCESSO N.º 4962/15.5T8FNC.L1-7, IN WWW.DGSI.PT;


-*-

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
- DE 27-01-2015, PROCESSO N.º 170/14.0TBCDR.C1, IN WWW.DGSI.PT;


-*-

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
- DE 17-08-2016, PROCESSO N.º 383/16.0T8OLH.E1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O disposto no nº 6 do art. 17º-G do CIRE (impedimento de recurso a novo PER pelo prazo de dois anos), aplicava-se também, em decorrência da interpretação extensiva que se impunha da lei, à hipótese de em anterior PER ter sido aprovado um plano de recuperação mas que não foi homologado.

II - Tal solução passou, entretanto (em face das modificações introduzidas ao regime do processo de revitalização pelo DL nº 79/2017, de 30 de Junho), a estar expressamente prevista na lei.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 515/17.1T8VIS-A.C1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Coimbra

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB (doravante, Devedores) requereram oportunamente (4 de Julho de 2016), perante a Comarca de … - Instância Central - Secção de Comércio, procedimento de revitalização, nos termos do art. 17º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Seguindo o procedimento seus termos, veio a ser aprovado plano de revitalização.

Conclusos os autos ao Mmo. Juiz, e verificando-se que os Devedores haviam requerido anterior procedimento de revitalização, foi despachado o seguinte (fls. 275):

“Antes de mais, atento o disposto no n.º 3 e n.º 6 do artigo 17.º-G do CIRE, solicite ao processo n.º 1690/14.2TJCBR, certidão da decisão que lhe pôs fim, com nota de trânsito em julgado”.

Na sequência, foi junta certidão (fls. 301 a 326,) da qual consta que:

- Em 09 de Dezembro de 2014, foi proferida sentença de homologação do plano de revitalização apresentado em tal processo;

- Interposto recurso desta decisão, por acórdão (19 de Maio de 2015) da Relação do …, foi revogada a sentença de homologação, recusando-se a homologação do plano;

- Os devedores, inconformados com tal decisão, interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que (por acórdão de 3 de Novembro de 2015) negou a revista, confirmando o acórdão recorrido.

- Os devedores arguiram a nulidade e solicitaram a reforma do acórdão proferido no Supremo, o que tudo foi julgado improcedente por decisão de 19 de Abril de 2016.

Foi depois proferido despacho (fls. 327) com o seguinte teor:

“Notifique aos devedores o teor da certidão a fls. 301 a 326.

Mais os notifique para, em face da data do trânsito em julgado da decisão que recusou a homologação do plano que apresentaram os mesmos no processo n.º 1690/14.2TJCBR-A, se pronunciarem relativamente à possibilidade de recusa de homologação do ora apresentado por força do disposto no artigo 17.º-G, n.º 6, do CIRE.”.

Pronunciaram-se os Devedores (fls. 330 a 336), concluindo que “o encerramento do processo de revitalização devido à não homologação judicial do plano de recuperação, não impedia que os mesmos instaurassem novo PER, sem a observância do limite temporal a que se reporta o n.º 6 do artigo 17.º-G, do CIRE”.

Na sequência, foi proferida a decisão de fls. 338 a 340, que é como segue:

«Nos presentes de processo especial de revitalização em que são devedores AA e BB, foi apresentado o plano de recuperação acompanhado do resultado da votação de tal plano.

O plano de recuperação teve quórum deliberativo de 99,52% e recolheu votos favoráveis de 79,72% dos credores, sendo que mais de 50% dos credores que votaram favoravelmente tem créditos não subordinados, conforme documento o resultado da votação remetido - artigo 212.º, n.º 1, e 17.º-F, n.ºs 3 e 4, do CIRE.

O plano encontra-se, por isso, aprovado.

Cumpre apreciar se é de homologar o mesmo.

Recuando, resulta de elementos evidentes e incontestados dos autos, mormente, além dos próprios atos neles praticados e da certidão a fls. 301 e ss., que

- Previamente a estes autos, os devedores intentaram, na IC de Comércio de …, o PER com os autos de processo n.º 1690/14.2TJCBR-A;

- Nesses autos, os devedores apresentaram, a final, plano de revitalização;

- Votaram credores a que corresponde o montante global de créditos de €13.963.771,94, num universo de créditos reclamados e reconhecidos de €14.048.094,98;

- Votaram a favor os credores Instituto da Segurança Social, IP (crédito de €18.102,28), CC (crédito de €1.000,00) e CC. (crédito de €11.111.400,00);

- Votaram contra credores com créditos no montante total de € 2.862.933,47;

- Em face da aprovação por 79,541% dos créditos relacionados na lista definitiva de credores, foi proferida, em 1.ª instância, sentença homologatória do plano;

- Tal decisão foi sujeita a recurso interposto por um dos credores que votaram contra a aprovação do plano, o qual sustentou, além do mais, que os devedores não se encontravam em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas sim em situação de insolvência;

- Tal apelação foi julgada procedente, em decorrência do que foi revogada a sentença recorrida e recusada a homologação do plano;

- Inconformados, os devedores pediram revista extraordinária do acórdão, que lhes foi negada, por acórdão do STJ de 03/11/2015;

- Em 04/07/2016, os devedores intentaram os presentes autos.

Do acima relatado (seguindo de perto o relatório do acórdão do STJ aí referido), resulta que os devedores, após terem visto ser negada a homologação do seu plano de revitalização e declarado, por sentença transitada em julgado, que se encontram em situação de insolvência, sendo essa situação, precisamente, o fundamento da recusa da homologação, intentaram novo PER, precisamente os presentes autos.

Analisado o seu requerimento inicial (que aqui se dá por integralmente reproduzido), verifica-se que, para além de este novo processo ter sido intentado em tribunal diferente do primeiro, por via de mudança do domicílio que indicaram, os devedores não fazem qualquer menção ao PER anterior e ao processo de insolvência que, por força do desfecho que o mesmo teve, já então corria em ….

Os presentes autos surgem, assim, como um elemento desrespeitador da decisão de não homologação do anterior PER, desrespeito que foi conseguido, ab initio, mediante a omissão pelos requerentes de elementos que era essencial ao Tribunal conhecer aquando do proferimento do despacho liminar proferido em 06/07/2016, como seja, a existência e destino do PER anterior.

Recorrendo de novo ao acórdão do STJ proferido naqueles autos, permitimo-nos parafrasear-lhe o sumário:

I. Pese embora o processo especial de revitalização se resolver num procedimento de feição marcadamente extrajudicial, tal não significa que a liberdade e a autonomia da vontade dos intervenientes no processo não sofram limitações e não possam ser contrariadas pelo tribunal.

II. Se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra numa situação de insolvência atual, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano que, ainda assim, foi aprovado.

III. Em tal situação estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o processo de revitalização) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo. IV. Acresce que o uso ilegal e abusivo do procedimento implica a nulidade do negócio jurídico subjacente e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito.

Em nosso modesto ver, atenta a existência de um PER anterior, cujo plano não foi homologado por decisão judicial que entendeu estarem os requerentes em situação de insolvência, o posterior recurso a novo PER, na pendência do processo de insolvência despoletado pelo primeiro, com omissão de qualquer referencia a tais autos, configura um “uso ilegal e abusivo do procedimento, implica a nulidade do negócio jurídico subjacente e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito”.

Termos em que, pelo exposto, não homologo o plano de recuperação apresentado.

Custas a suportar pelos devedores (17.º-F, n.º 7, do CIRE).»

Inconformados com o assim decidido, apelaram os Devedores.

Fizeram-no sem êxito, pois que a Relação de … julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Ainda inconformados, pedem os Devedores revista.

Com vista a justificar, face ao disposto no art. 14º, nº 1 do CIRE, a admissibilidade do recurso, invocaram (e a par de um outro da Relação de …) o acórdão da Relação do Porto de 26 de Setembro de 2016 (Processo nº 5200/16.6T8OAZ.P1), de que foi feita juntar certidão comprovativa do trânsito em julgado, e onde se teria decidido, quanto à mesma questão fundamental de direito, de forma oposta à do acórdão recorrido.

Neste Supremo o relator entendeu, no seu exame preliminar, que a anunciada oposição de julgados se verificava efetivamente, razão pela qual considerou admissível a revista. Entendimento este cuja bondade aqui se reitera, por isso que o acórdão recorrido decidiu que a circunstância do plano de recuperação aprovado mas não homologado impedia o devedor de recorrer a novo processo especial de revitalização pelo prazo de dois anos, enquanto o acórdão fundamento decidiu precisamente o contrário.

                                                           +

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes as seguintes conclusões:

A) DA NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA

1. O Tribunal “a quo” ao determinar no acórdão em crise, que a questão a decidir era a de “saber se o encerramento de anterior PER, devido à não homologação judicial do plano de revitalização, não impede os devedores de instaurar novo PER, sem a observância do limite temporal estabelecido no artigo 17º-G, nº 6, do CIRE” e ao decidir tal questão nunca suscitada pela parte na motivação de Recurso, feriu o acórdão de nulidade nos termos do art art. 615º, nº 1, al. d) do CPC, por excesso de pronúncia.

2. Com é consabido, o Tribunal de Recurso está limitado nos seus poderes de cognição às questões da decisão recorrida e que tenham sido submetidas à sua apreciação, porém resulta quer da análise à sentença de 1ª instância, quer à Motivação e Conclusões apresentadas pelos Recorrentes à apreciação do Tribunal de recurso, que tal questão nunca foi abordado ou decidida, nem pelo Tribunal, nem pelos Recorrentes.

3. Assim, o presente acórdão, ao decidir de matéria que lhe estava vedada, consubstancia-se numa notória violação do princípio básico e elementar em matéria de recursos, que determina que a impugnação de decisão judicial visa a modificação da mesma, por via do reexame da matéria nela vertida e não a criação de decisão sobre matéria nova (art 635, n.º 4 e 639, n.º 1 ambos do NCPC).

4. Está vedado ao tribunal de recurso pronunciar-se sobre questões que, muito embora hajam sido abordadas no processo (como foram, por despacho com a ref: 78944460, datado de 19/12/2016 e requerimento do devedor com a referência Citius nº 2039872, datado de 29/12/2016, não tenham, apesar disso, sido objecto de conhecimento na decisão impugnada e nem na motivação de Recurso (e a questão do limite temporal previsto no art 17-F nº 6 não foi)

B) DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

5. Na verdade a única questão a decidir (e que o Tribunal de Recurso não apreciou) era sim, a invocada pelo Tribunal de 1ª instancia e levada à apreciação do Tribunal da Relação pelos Recorrentes, era a existência ou não, de um processo de insolvência contra os Recorrentes, aquando da interposição do Presente PER. (ver decisão e recurso)

6. Assim, O Tribunal da Relação ao não decidir da única questão suscitada no Recurso dos devedores, sendo que sobre ele recaía o dever de apreciar tal questão, dúvidas não restam que faz ainda enfermar o Acórdão, de Nulidade por omissão de Pronúncia, nos termos do supra citado artigo.

C) A CONTRADIÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO VERTIDA, COM A EXISTEÊNCIA DE OUTROS ACÓRDÃOS COM ENTENDIMENTO DIFERENTE

7. Sem prescindir e improcedendo a presente arguição de nulidades, sempre se dirá - com todo o respeito merecido - que não assiste razão ao Tribunal ao manter a decisão da 1ª instância, invocando que o encerramento de anterior PER dos devedores, devido à não homologação judicial do plano de revitalização, impede os mesmos de instaurar novo PER, sem a observância do limite temporal estabelecido no artigo 17.º-G, n.º 6, do CIRE.

8. Com efeito, fez assim o Tribunal uma interpretação extensiva do arts. 17º-G nº 6 do CIRE- o que não se pode admitir, por a lei ser bastante clara.

9. Em contradição a este entendimento, existem os acórdãos transitados em julgados, do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo 170/14.0TBCDR.C1, datado de 27/01/2015 e do Tribunal da Relação do Porto, no processo nº 5200/15.6T80AZ-A.PR, datado de 16/09/2016 e na senda dos mesmos, o Art. 17-G nº 6 do CIRE só tem aplicação para os casos em que o anterior plano tenha terminado sem a aprovação do plano e não para os casos em que o plano (apesar de aprovado) não tenha sido homologado.

10. Assim, os devedores só estariam impedidos de apresentar novo PER após decorridos dois anos do PER anterior, caso o processo negocial tivesse sido concluído sem a aprovação do plano de recuperação - o que não foi o caso, uma vez que o primeiro plano apresentado pelos devedores colheu a aprovação da maioria de credores.

11. Com efeito, não tendo o processo de revitalização anterior dos devedores decorrido de harmonia com os n.º 1 a 5 do art.º 17º-G do CIRE, não se verifica a aplicação do no n.º 6 do mesmo artigo e tendo decorrido sim, de acordo com o previsto nos n.ºs 1 a 7 do art.º 17º-F nada impede que os devedores, seja no prazo de dois anos, ou de dois meses, apresentem em juízo novo PER.

12. Termos em que se conclui, que o encerramento do processo de revitalização devido à não homologação judicial do plano de recuperação, não impede o devedor, que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas suscetível de recuperação, a que dê inicio a novo processo de revitalização, sem a observância do limite temporal a que se reporta o nº 6 do artº 17º-G, do CIRE.

Terminam dizendo que:

a) Deve ser julgada procedente a arguição das nulidades invocadas, de excesso de pronúncia e omissão de pronúncia, determinando-se a baixa do processo para que o tribunal se pronuncie pela única questão suscitada à sua apreciação pelos devedores.

b) Sem prescindir, e a conceber-se que a questão a decidir é a questão do limite temporal previsto no art 17-G nº 6 do CIRE, deve o presente acórdão ser revogado, concluindo-se pela inaplicabilidade desse artigo ao presente processo, e por conseguinte ordenando-se a homologação do plano em causa.

                                                           +

A Credora BANCO DD, S.A. contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- Nulidade do acórdão recorrido;

- Admissibilidade do PER e da homologação do plano de recuperação independentemente do decurso do prazo de dois anos sobre o anterior PER.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano Factual

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima expostas.

Plano Jurídico-conclusivo

Quanto à matéria das conclusões 1ª a 6ª:

Nestas conclusões argui-se, sob a invocação da alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPCivil, a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia e por omissão de pronúncia.

Segundo os Recorrentes, o que estava em causa na decisão da 1ª instância e no recurso de apelação que interpuseram era apenas a questão da relação entre uma suposta pendência de processo de insolvência dos Devedores em decorrência de anterior PER não homologado, e o presente PER (o novo PER). E não foi disto que, mais dizem, conheceu o acórdão recorrido, mas bem de outra coisa (limite temporal para requerer o novo PER).

Mas, quanto a nós, as apontadas nulidades não existem.

Diga-se, desde logo e em breve parêntesis, que embora o que se afirma nas conclusões 2ª e 4ª seja em geral exato, não contém, porém, toda a verdade. É que o tribunal de recurso não está impedido de se pronunciar de motu próprio sobre as questões de oficioso conhecimento que ainda não tenham sido objeto de decisão no processo. Ora, no limite, sempre seria assim que teria de ser visto o pronunciamento do acórdão recorrido sobre a questão do não decurso do interregno dos dois anos sobre o anterior PER (processo nº 1690/14), na certeza de que se tratava de matéria de conhecimento oficioso e que iniludivelmente era inserível à previsão do art. 215º do CIRE (ex vi do art. 17º-F, nº 5). É certo, entretanto, que uma tal atuação oficiosa estaria dependente de um prévio contraditório (art. 3º, nº 3 do CPCivil), que não se mostra ter sido atuado, mas que seria dispensável visto que, na sequência do despacho de fls. 327 (acima transcrito), já se haviam os Devedores pronunciado (fls. 330 a 336). De resto, também não é da omissão de qualquer contraditório que se queixam os ora Recorrentes.

Fechado este parêntesis, diremos que uma análise mais minuciosa e integrada da decisão da 1ª instância mostra (tudo aliás na sequência do despacho preliminar de fls. 327) que a razão que a levou a não homologar o plano de recuperação ora em causa, requerido em 4 de Julho de 2016, teve subjacente a circunstância de ter tido o seu fim a menos de um ano de vista do presente PER um outro PER requerido pelos Devedores, em cujo âmbito fora recusada a homologação do plano ali aprovado por decisão definitiva do acórdão deste Supremo de 3 de Novembro de 2015. A referência que a decisão faz à pendência de processo de insolvência tem que ser interpretada no sentido do anterior PER estar apoditicamente destinado a descambar em processo de insolvência, como claramente resulta de fls. 391 a 394 (pronunciamento da Administradora Judicial Provisória no PER nº 1690/14, no sentido de que os Devedores se encontravam em situação de insolvência, do mesmo passo que requeria “que a mesma seja decretada e observados os devidos trâmites para o efeito nos termos do nº 4 do artigo 17º-G do CIRE). Nesta base, julgamos que, à parte o elemento literal da decisão da 1ª instância, o sentido precípuo desta orienta-se para a inadmissibilidade do novo PER (o presente PER) em face do recente termo do anterior PER (o do processo nº 1640/14). E sendo assim, como se nos afigura que é, então o acórdão recorrido não deixa de estar correto quando afirma que “a questão sub judice não se prende com a existência ou inexistência de um processo de insolvência contra os ora recorrentes, aquando da interposição do presente PER mas com o limite temporal para poderem intentar novo PER, tal como deflui do disposto no artigo 17º-G, nº 6 do CIRE”.

Donde, o acórdão não apenas não conheceu para além do que podia conhecer (o que significa que não incorreu em excesso de pronunciamento), como conheceu do que tinha de conhecer (o que significa que não incorreu em omissão de pronunciamento).

Termos em que improcedem as conclusões em destaque, não padecendo o acórdão das apontadas nulidades.

Quanto à matéria das conclusões 7ª a 12ª:

Nestas conclusões os Recorrentes sustentam que, diferentemente do que foi decidido, não lhes estava legalmente defeso requerer o presente PER sem ter decorrido o período de dois anos sobre o termo do anterior PER que promoveram.

Entendem, para o efeito, que o nº 6 do art. 17º-G do CIRE só regeria para a hipótese de não ter sido aprovado qualquer plano de recuperação no âmbito do anterior PER.

Mas carecem de razão.

Preliminarmente, dir-se-á que é inequívoco (nem os Recorrentes defendem o contrário) que o presente PER foi efetivamente requerido antes de decorridos dois anos sobre o termo do anterior PER que os Devedores haviam requerido: o presente PER foi requerido em 4 de Julho de 2016 e o anterior PER, objeto do processo nº 1690/14.2TJCBR.C1.S1, teve o seu termo em 10 de Maio de 2016, data em que transitou em julgado o acórdão deste Supremo de 3 de Novembro de 2015, tudo conforme certificado a fls. 301v e seguintes dos presentes autos.

Isto posto:

A questão jurídica colocada nas conclusões em destaque já foi abordada no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2017 (processo nº 6427/16.9T8FNC.L1.S1, relatado pelo mesmo relator do presente acórdão, disponível em www.dgsi.pt). Dado que nada mais temos a acrescentar ou a modificar ao que foi dito nesse acórdão, limitamo-nos a transcrever e a subscrever aqui a sua fundamentação:

«Começa a Recorrente por defender que, diferentemente do decidido no acórdão recorrido e à semelhança do que foi decidido no acórdão fundamento, nada impedia a abertura do presente PER sem que tivesse decorrido o prazo inibitório de dois anos estabelecido no nº 6 do art. 17º-G do CIRE. Segundo a Recorrente, tal prazo apenas se aplicaria às estritas hipóteses expressamente previstas no dito art. 17º-G, e não àquelas hipóteses - como era o caso do anterior PER que havia suscitado (processo nº 926/13.1TBFUN) - previstas no art. 17º-F do mesmo CIRE, em que chegou a ser aprovado um plano de recuperação não homologado.

Será assim?

Estamos perante temática que não tem recebido tratamento uniforme na jurisprudência. Efetivamente, enquanto no acórdão fundamento (acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Janeiro de 2015, processo nº 170/14.0TBCDR.C1, relator Fonte Ramos, disponível em www.dgsi.pt) e no acórdão da Relação de Évora de 17 de Agosto de 2016 (processo nº 383/16.0T8OLH.E1, relator Francisco Matos, igualmente disponível em www.dgsi.pt) se entendeu que o encerramento do processo de revitalização devido à não homologação judicial do plano de recuperação não impedia o devedor de promover novo processo de revitalização independentemente da observância do limite temporal a que se reporta o nº 6 do artº 17º-G, do CIRE (só assim não seria nos casos em que a recusa de homologação se fundasse na inobservância das regras aplicáveis à votação e aprovação do plano de recuperação), já no acórdão da Relação de Lisboa de 8 de Março de 2016 (processo nº 4962/15.5T8FNC.L1-7, relatora Maria da Conceição Saavedra, também disponível em www.dgsi.pt) se defendeu o contrário: que se o plano de revitalização for aprovado pelos credores mas o tribunal recusar depois a sua homologação, é de aplicar extensivamente o disposto no nº 6 do art. 17-G do C.I.R.E., de sorte que o devedor fica impedido de recorrer ao PER pelo prazo de dois anos a contar do termo do anterior processo). Na doutrina é conhecida a posição de Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis (O Processo Especial de Revitalização, p. 169), para quem, aprovado um plano mas não homologado, o devedor não poderá dar início imediato a outro PER. Observam a propósito estes autores que “De outra forma os credores – designadamente os que votaram contra o plano – poderão ficar eternamente impedidos de exercer os seus direitos, bastando que uma maioria de credores insista em aprovar planos ilegais e que o administrador da insolvência não requeira a insolvência do devedor. Seria aliás estranho que a maioria que aprova um plano ilegal pudesse sujeitar a minoria discordante a mais um PER. Assim, o nº 6 do art. 17º-G terá de ser interpretado extensivamente, por forma a incluir o caso em que o plano de revitalização é aprovado, mas não homologado pelo tribunal”. É conhecida também a posição de Catarina Serra (O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, 2016, pág. 107) aí onde aduz que “Atendendo à letra da lei, parece, de facto, ser possível concluir que a disciplina do artº 17º-G está reservada aos casos em que se torna flagrante que o PER não é – não era ab initio – o instrumento adequado para resolver a situação do devedor. Será, portanto, legítimo presumir, em face da epígrafe e do teor do preceito, que ele se aplica apenas aos casos de não aprovação do plano de recuperação”.

Não há dúvidas que o elemento literal da interpretação da lei começa por sugerir aqui uma interpretação que se antolharia ser adversa à que foi adotada no acórdão recorrido. Referimo-nos obviamente à circunstância da letra do nº 6 do art. 17º-G circunscrever o dito prazo inibitório de dois anos às situações em que o termo do processo especial de revitalização é efetuado de harmonia com os números anteriores, e estes referem-se unicamente às situações de “desistência” (chamemos-lhe assim) do PER por parte do devedor, à conclusão antecipada de não ser possível alcançar um acordo e à ultrapassagem do prazo das negociações. E, por seu turno, a epígrafe da norma (“Conclusão do processo negocial sem a aprovação de plano de recuperação”) indicaria também que ficariam de fora as situações em que se logra a aprovação de um plano. Isto conduziria a uma interpretação que legitimaria a ideia de que a condicionante dos dois anos não se aplicaria às hipóteses do art. 17º-F. Pois que esta norma refere-se aos casos em que se obtém a aprovação de um plano de recuperação, e, concordantemente, a respetiva epígrafe é formada pelos seguintes dizeres: “Conclusão das negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor”. E como nos ensina Oliveira Ascensão (O Direito. Introdução e Teoria Geral, p. 350), aliás em concordância com o que dispõe o nº 2 do art. 9º do CCivil, “A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação”.

Mas a letra da lei não é tudo!

Pois que para além da letra, devemos considerar o sentido ou o espírito da lei, ou seja, atender ao chamado elemento lógico da interpretação, onde se incluem o elemento sistemático e o elemento teleológico (v. o nº 1 do art. 9º do CCivil). Como ainda nos elucida Oliveira Ascensão (ob. cit. pp. 359 e 360), o elemento sistemático apela a uma interpretação que leva em linha de conta a unidade do sistema jurídico (a interpretação de uma fonte não pode ser feita isoladamente), de sorte que, neste domínio, importa considerar a analogia (não confundir esta analogia de que se está a falar com a analogia que visa a integração de lacunas) ou lugares paralelos (por analogia ou por lugares paralelos, nesta aceção, entende-se as normas respeitantes a institutos ou hipóteses de qualquer modo relacionados com a fonte que se pretende interpretar, de forma que a semelhança da situação ou da apresentação faz supor que o regime jurídico também é semelhante). O elemento teleológico aponta para a justificação social da lei, para as finalidades ou objetivos visados na lei (o “para quê” da lei). Ainda de acordo com Oliveira Ascensão (ob. cit., p. 366), da conjugação dos diversos elementos que devem intervir na interpretação “resulta o sentido, espírito ou razão de ser da lei, que é o elemento decisivo para se fazer a interpretação. Tradicionalmente designa-se este sentido por ratio legis: o art. 9º do Código Civil fala em «pensamento legislativo», em acepção que será, ao menos no essencial, coincidente com esta. (…) Com base nesta ratio se determinará o tratamento a dar à letra. O princípio absoluto é o da preferência do espírito sobre a letra: aqui como noutras ciências vale a afirmação de que a letra mata, o espírito vivifica. (…) A ratio legis será pois o resultante de todos os elementos, mas iluminada por uma pretensão de máxima racionalidade, que permitirá escolher entre possibilidades divergentes de interpretação”. Também Miguel Teixeira de Sousa (Introdução ao Direito, 2016, pp. 367 e 371) aduz que «o elemento teleológico procura encontrar a finalidade que justifica a vigência da lei. O elemento teológico visa responder à pergunta “para que é que serve a lei?”. Este elemento impõe que o intérprete procure descobrir a ratio legis e utilizá-la na determinação do espírito da lei». (…) «[O elemento teleológico] é também o elemento da interpretação que menos provém do sistema e que mais apela ao intérprete, pois que lhe permite utilizar valores éticos, políticos ou económicos na procura da optimização do princípio que subjaz à lei que interpreta».

Ora, e como se aponta no acórdão recorrido (e o mesmo já sucedia na decisão da 1ª instância), a ratio do nº 6 do art. 17º-G do CIRE é impedir que os credores fiquem sucessivamente impossibilitados de exercer os seus direitos, atento o estabelecido nos nºs 1 e 6 do art. 17º-E. Sobre isto escrevem Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis (ob. cit., p. 168), e somos do mesmo parecer, que “O objectivo da norma é claro. Impedir que o PER e os efeitos a ele associados (nomeadamente ao nível da limitação e da compressão dos direitos dos credores sobre o devedor) sejam instrumentalizados e abusados. (…) Ora, se o recurso ao PER não fosse limitado, o devedor poderia, em conluio com um credor, apresentar sucessivos processos especiais de revitalização e dessa forma impedindo que os credores exercessem os seus direitos contra si”.

Sucede que esta ratio tanto vale para as hipóteses previstas no art. 17º-G, como para as hipóteses em que se chegou à aprovação de um plano de recuperação mas que deixou de ser homologado pelo tribunal. Aliás, e para sermos até mais exatos, há até mais razão para impedir um novo recurso imediato ao PER naquelas situações em que o tribunal, fazendo incidir o seu criticismo apreciativo sobre o plano, conclui que este está eivado de ilegalidade, do que naquelas outras situações em que não chegou sequer a haver plano aprovado. Na realidade, não é a aprovação ou não aprovação de um plano que faz a diferença, e neste particular discordamos totalmente da Recorrente.

Assim sendo, como nos parece que é, então é de concluir que a letra da lei não está em harmonia com o seu espírito e finalidades. O legislador visou significar uma coisa, mas a forma como se exprimiu não o revela expressamente (o sentido ultrapassa o que resulta estritamente da letra). Esta falta de coincidência implica aqui uma interpretação extensiva do nº 6 do art. 17º-G, de modo a que este normativo deve ser havido como aplicável também às hipóteses (art. 17º-F) em que chegou a ser aprovado plano de recuperação.»

Permitimo-nos repetir a seguinte passagem do que fica transcrito, que se ajusta, e de que maneira, ao caso vertente: “Aliás, e para sermos até mais exatos, há até mais razão para impedir um novo recurso imediato ao PER naquelas situações em que o tribunal, fazendo incidir o seu criticismo apreciativo sobre o plano, conclui que este está eivado de ilegalidade, do que naquelas outras situações em que não chegou sequer a haver plano aprovado. Na realidade, não é a aprovação ou não aprovação de um plano que faz a diferença”. É que se antolha à evidência que o presente PER, praticamente idêntico ao que foi anteriormente requerido no âmbito do processo nº 1690/14.2TJCBR.C1.S1, não pode ter tido outro propósito senão reeditar aquilo que já havia sido denegado, e assim, provavelmente, impedir a imediata declaração de insolvência dos Devedores.

Do que fixa extratado, e que, repete-se, se subscreve inteiramente, decorre então que o acórdão ora recorrido não merece qualquer censura aí onde decidiu que o plano de recuperação aprovado no presente PER não podia ser homologado, por isso que a lei, devidamente interpretada, pura e simplesmente não permitia a sua existência.

Acresce dizer que já posteriormente à prolação do acórdão recorrido (23 de Maio de 2017) foi publicado (30 de Junho de 2017) e entrou em vigor (1 de Julho de 2017) o DL nº 79/2017, que alterou parcialmente o enquadramento jurídico do processo especial de revitalização. E assim, se antes desta alteração a impossibilidade temporária (dois anos) de recurso a novo PER só estava expressamente prevista para o caso de conclusão do processo negocial sem aprovação de plano de recuperação (art. 17º-G, nº 6 do CIRE), agora está também expressamente prevista essa impossibilidade em caso de conclusão das negociações com a aprovação de plano que o juiz não homologue (art. 17º-F, nº 8, por remissão para o nº 6 do art. 17º-G). O referido diploma é, no geral, imediatamente aplicável aos processos pendentes (tal como estabelecido no respetivo art. 6º, nº 1), e, em todo o caso, sempre a nova estatuição legal valeria no caso vertente como lei interpretativa do direito anterior. Tudo isto para significar que também por aqui resulta a falta de razão dos Recorrentes e o acerto do acórdão recorrido.

Improcedem pois as conclusões em destaque.

Apreciadas que ficam as questões colocadas no presente recurso, resta dizer que improcede a revista, sendo de confirmar o acórdão recorrido.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

Os Recorrentes são condenados nas custas da revista.

                                                           ++

Sumário:

                                                           ++

Lisboa, 7 de Novembro de 2017

José Rainho – Relator

Graça Amaral

Henrique Araújo