Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4268/20.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
FORMALIDADES AD PROBATIONEM
DOCUMENTO ESCRITO
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 01/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Determina-se no n.º 2 do artigo 1069.º do CC, tal como alterado pela Lei n.º 13/2019, de 12.02, que, não sendo a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento imputável ao arrendatário, este possa provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.

II. Sendo certo que (resulta agora claramente da lei) a redução a escrito é mero requisito ad probationem, pode o documento escrito ser substituído, para efeito de prova, ao abrigo do artigo 364.º do CC, por confissão expressa.

III. A confissão expressa é susceptível de ser obtida por depoimento de parte, o que o juiz pode determinar em qualquer estado do processo, nos termos do artigo 452.º, n.º 1, do CPC.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA




I. RELATÓRIO


Recorrente:      AA

Recorrido:       BB



l. O autor, BB, residente na Rua..., ..., na cidade do ... instaurou a presente acção declarativa, na forma comum, contra o réu, AA, residente na Rua..., ..., na cidade do ....

Alegou, em suma, que é proprietário de uma fracção ..., ..., sita na Rua..., ..., ... e que o réu a ocupa abusivamente, pedindo, pois, a condenação deste a entregar-lhe o imóvel.

O réu contestou dizendo que tem título para ocupar o imóvel, um contrato de arrendamento celebrado em 1.03.2013, e a entender-se que o contrato é formalmente nulo, pediu a condenação do Autor a restituir-lhe o valor de € 18.000,00.


2. Por sentença de 4.07.2020, decidiu-se:

Em face do exposto,

A) julga-se procedente a acção e, em consequência, declara-se o autor proprietário da fracção autónoma identificada no ponto 1. do elenco dos factos provados e condena-se o réu a restituir ao autor o aludido imóvel.

Custas a cargo do réu, nos termos do disposto no art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC

B) julga-se improcedente o pedido reconvencional e absolve-se o autor do pedido”.


3. O réu recorreu para o Tribunal da Relação ... e este, por Acórdão de 11.01.2021, sem voto de vencido, decidiu julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença.


4. O réu interpôs, então, o presente recurso de revista.

Começando por arguir a nulidade do acórdão, pede, em síntese, a revogação do acórdão porque a sentença, ao entender que recaía sobre o réu o ónus de alegar e provar a falta de redução a escrito, violou os artigos 342.º, 350.º e 1069.º, todos do CC, na redacção da Lei n.º 13/2019 de 12/2.

São as seguintes as conclusões das suas alegações:

1a - Apesar de o Acórdão recorrido invocar a aplicação do regime jurídico introduzido pela Lei 13/2019 de 12/02, ao contrário da decisão proferida em Ia instância, todavia não interpretou correctamente aquele regime;

2a - Com a invocação que era o R. que teria de alegar e provar que a falta de redução a escrito do contrato não lhe era imputável;

3a - Acontece que o A. alegou como lhe competia os factos melhor identificados nos artigos 6o a 18° da contestação/reconvenção;

4a - Nos termos da Lei 13/2019, de 12/02, o arrendatário apenas tem de invocar e demonstrar a utilização do locado, sem oposição do senhorio, e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de 6 meses;

5a - Seria um absurdo obrigar o arrendatário a alegar tal falta de imputabilidade, já que é o senhorio que tem obrigação de reduzir a escrito o contrato;

6a - O artigo 342° do Código Civil impõe que cabe àquele que invocar um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado;

7a- Cabendo à contraparte a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela outra parte;

8a- No caso destes autos competia ao R. a alegação e prova de utilização do locado e o pagamento da renda em causa pelo período de 6 meses;

9a- E ao A. competia, por isso, invocar que a falta de redução a escrito do contrato era imputável ao arrendatário;

10a- Não era, assim, o R. que teria de alegar em provar um facto negativo, ou seja, que a falta de redução a escrito não lhe era imputável;

11a- Acresce ainda invocar a presunção de culpa por patê do senhorio na falta de redução a escrito do contrato, já que sobre ele recai o dever de o formalizar e comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira;

12a- Beneficiando, por isso, o R. da presunção de imputabilidade do A. senhorio, nos termos do artigo 350° do Código Civil;

13a- Ao entender que era sobre o Recorrente que recaía o ónus de alegar e provar que a falta de redução a escrito não lhe era imputável, foi violado o artigo 1069° do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02 e artigos 342° e 350° do Código Civil”.


5. Em 10.05.2021, proferiu o Tribunal da Relação ... um Acórdão em Conferência em que se indeferiu o pedido de reforma, determinando, na mesma data, o Senhor Desembargador Relator a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.


6. Em 2.07.2021, o Exmo. Senhor Conselheiro a quem o processo foi inicialmente distribuído proferiu um despacho em que dizia:

O recurso de revista não é admissível. Com efeito, verifica-se a dupla conforme, pois a fundamentação é essencialmente a mesma (falta de título válido, nulidade formal do arrendamento, e inexistência de uma situação de abuso de direito) sendo que não se trata de um dos casos em que é sempre admissível o recurso (art.671 n° 3 CPC).

Por outro lado, ainda que o 674.°, n.° 1, alínea c), do CPC, estabeleça que a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do art. 615.° do CPC, impõe a sua conjugação com o n°4 do art.615 CPC, nos termos do qual taís nulidades só são arguíveis por via recursória quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, ou seja, como fundamento acessório desse recurso.

Não tendo o recorrente interposto a revista a título excepcional, mas apenas recurso de revista, nos termos gerais, com fundamento nas nulidades do acórdão, a revista não é admissível (cf. Ac STJ de 20/12/2017 (proc. n° 22388/12), Ac STJ de 12/1/2021 (proc. n° 492/13), disponíveis em www dgsi.pt).

Porque o despacho de recebimento não é vinculativo, a dupla conforme obsta ao conhecimento do objecto do recurso, impondo-se a audição das partes (arts. 655 e 679 CPC).

E, a terminar, determinava-se naquele despacho a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem no prazo de dez dias.

7. As partes nada alegaram.

8. Redistribuído o processo à ora Relatora, proferiu esta, em 27.10.2021, um despacho em que, na parte relevante, pode ler-se:

Dispõe-se no artigo 671.º, n.º 3, do CPC:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

Ora, no presente caso, verifica-se que o Acórdão confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância. Além disso, nada indica que esteja em causa – nem tal foi alegado – alguma das hipóteses em que o recurso é sempre admissível.

Em síntese, o presente recurso depara-se com o obstáculo da dupla conforme, que só poderia ser superado se a revista tivesse sido interposta por via excepcional (bem-entendido, se a revista tivesse sido interposta por via excepcional e, depois, se apurasse que estavam preenchidos os respectivos pressupostos).

Tal não foi o caso.

A terminar, pode ainda sublinhar-se que a arguição de nulidades foi já apreciada pelos Exmos. Desembargadores do Tribunal da Relação ... e só poderia ser (re)apreciada por este Supremo Tribunal se o recurso fosse admissível.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 4, do CPC:

“As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.

Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o presente recurso de revista”.

9. Inconformado, o recorrente vem reclamar para a Conferência, nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do CPC.

A reclamação apresentada tem o seguinte teor:

Vem a presente impugnação interposta da decisão proferida que não admitiu e julgou inadmissível o recurso de Revista.

Para denegar a pretensão do Recorrente foi invocado na decisão singular proferida o designado "obstáculo da dupla conforme".

Além disso, invocou-se também na decisão singular que o Acórdão da Relação ... tinha confirmado, sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pelo Tribunal de lã instância.

Ora, salvo o devido respeito o Recorrente não comunga deste entendimento, que se afigura fazer errada interpretação dos fundamentos em causa.

Na verdade, examinando atentamente a decisão proferida em l.ª instância, nela não encontramos qualquer referência ao novo regime legal introduzido pela Lei n.º 13/2019 de 12/02, ou seja, o regime que veio trazer revolucionárias alterações ao artigo 1069.º do Código Civil, afirmando que "na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses".

Sucedendo ainda que no artigo 14º nº 2 daquela Lei nº 12/2019 de 12/02, se estabelece que o disposto no nº 2 do artigo 1069º do Código Civil na redacção desta Lei "aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data da entrada em vigor da mesma".

Sendo certo que esta Lei entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, em 13 de Fevereiro de 2019.

Acontece, assim, que a partir de 13 de Fevereiro de 2019, face às alterações verificadas no regime legal do arrendamento urbano, o R. possui título legítimo para se manter na ocupação do imóvel.

Já que desde Março de 2013, ininterruptamente e até ao presente, é o R. que vem ocupando aquele espaço de estabelecimento comercial de café e snack-bar.

Confeccionando pequenas refeições e servindo-as aos clientes, servindo também cafés, chás e outras bebidas.

E exercendo todas as tarefas e actos deste tipo de exploração.

Bem como pagando religiosamente ao A. a renda mensal de 250,00 € com ânimo de arrendatário e na convicção de estar a exercer uma actividade licita e uma ocupação lícita do locado.

Ou seja, desde 1 de Março de 2013 e até à data da apresentação da contestação nos presentes autos o A. já recebeu do R. nada mais nada menos de 18.000,00 €.

Pelo que, só numa atitude a todos os títulos condenável o A. se apresentou nestes autos a tentar obter a desocupação do imóvel, em nítido abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil.

Em face de todo o exposto, e, contrariamente ao decidido na douta sentença, o Recorrente possui título legítimo para se manter na ocupação do imóvel.

Não só porque a ausência de redução a escrito do contrato de arrendamento deixou de constituir a nulidade do contrato verbal em causa e referido nos autos, mas também porque, a atitude condenável do A. assim obriga, em manifesto abuso de direito, como alegado foi em sede de contestação.

Por conseguinte, a sentença proferida em 1ª instância é completamente omissa quer na sua fundamentação, quer na sua decisão, em fazer referência à nova Lei que surgiu na pendência dos autos.

Para o Mmo Juiz que proferiu aquela sentença é como se tal Lei não existisse.

O Sr. Juiz limitou-se a exarar na sentença o velho regime do artigo 1069º do Código Civil, declarando nulo o eventual contrato alegado pelo Recorrente, desprezando por completo o novo regime instituído pela nova Lei.

Para o julgador daqueles autos em 1ª instância, é como se a nova Lei não existisse, não tivesse sido publicada, não estivesse em vigor.

Acontece, porém, que nas alegações do recurso de Apelação vem invocado pelo Apelante este novo regime instituído pela nova Lei e que veio evitar a produção da nulidade dos contratos verbais celebrados.

E aqui sim, os Senhores Juízes Desembargadores que julgaram a Apelação fazem referência ao novo regime instituído pela Lei nº13/2019 de 12/02, e dão nova fundamentação à decisão proferida.

E, na verdade os Senhores Juízes Desembargadores começam por referir no douto Acórdão a questão que lhes foi suscitada pelo Recorrente Apelante, ou seja, "saber se a acção devia prosseguir para se apurar se o R. tem, ou não, título legítimo que lhe permite a ocupação do imóvel objecto de reivindicação ou, não o tendo, se se verifica uma situação de abuso de direito por banda do A. ao pedir a restituição do imóvel.

Acrescenta-se ainda naquela Acórdão proferido que ao R. Recorrente até lhe era permitido, face ao disposto no nº 2 do artigo 1069º do Código Civil, fazer a prova da existência do alegado contrato de arrendamento, por qualquer forma admitida em direito.

Todavia, para também denegar a pretensão do Recorrente invoca-se naquele Acórdão que o R. tinha de alegar e provar que a falta de redução a escrito não lhe era imputável.

Ou seja, a questão já não é idêntica ao decidido em 1ª instância, pois agora já estamos no domínio da aplicabilidade da nova Lei, aceitando-se o novo regime, mas julgando procedente a acção por outros requisitos, quais sejam a imputabilidade da sua não formalização.

E finalmente, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., também apreciou outra questão que não tinha sido apreciada em 1ª instância, ou seja, a questão do abuso do direito.

Pelo exposto, a fundamentação constante do Acórdão da Relação ... é substancialmente diferente da fundamentação da decisão proferida em 1ª instância.

Daí que, nos termos do disposto no artigo 671º nº 3 do CPC, o presente recurso de Revista é possível, pois irá julgar matéria que foi decidida na Relação ... essencialmente diferente da matéria decidida em lã instância.

As matérias em causa não foram apreciadas em sede de sentença proferida em 1ª instância e, por isso, sobre elas não existe, como é óbvio, dupla conforme.

Termos em que deve a decisão de não admissão do recurso ser revogada, decidindo-se pela procedência da presente reclamação e, consequentemente, apreciando-se o mérito do recurso interposto, fazendo-se assim a boa aplicação do Direito e a tão esperada JUSTIÇA”.


*

Atendendo a que o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), Se o presente recurso for admitido, cabe apreciar a questão de saber se o Tribunal recorrido podia e devia ter decidido no sentido da nulidade por vício de forma do contrato de arrendamento.

Não se ignora que, nas alegações de revista – mas não nas respectivas conclusões –, o recorrente arguiu a nulidade e pediu a reforma do Acórdão recorrido, tendo, inclusivamente, a sua pretensão sido apreciada pelo Tribunal a quo. Sucede que, como se disse, o objecto do recurso é delimitado – delimitado exclusivamente – pelas conclusões, pelo que, sendo a revista admissível, aquela é a única questão que cabe decidir.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos relevantes para a presente decisão são, além dos apresentados no Relatório que antecede e que se dão aqui por reproduzidos, os que o Tribunal recorrido deu por provados, ou seja, os seguintes:

1. Encontra-se registada a favor do autor a aquisição da propriedade, pela inscrição AP. ... de 2012.03.14, da fracção autónoma, designada pela letra ... sita no ..., destinada comércio, do prédio urbano sito na Travessa... e Rua..., ..., na freguesia de ..., do concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número ...16 da dita freguesia, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...40, conforme certidão do registo predial junta a fls. 10 a 11 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2. Em 12.08.1975, a aludida fracção autónoma foi dada em arrendamento à sociedade Silva, Couto & Correia, Lda.

3. O réu AA era sócio gerente da referida sociedade, conforme certidão de fls. 25 a 26 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. A sociedade Silva, Couto & Correia, Lda., foi objecto de procedimento oficioso de dissolução e liquidação, encontrando-se registado o cancelamento da respectiva matrícula na Conservatória do Registo Comercial pela Ap. ... de 3.12.2008, conforme certidão de fls. 25 a 26 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. Por carta de 26.11.2012, dirigida à aludida sociedade, o autor comunicou a actualização da renda para o valor mensal de € 740,00.

6. Em resposta, o réu, na qualidade de sócio gerente da sociedade Silva, Couto & Correia, Lda., comunicou ao autor a rescisão do contrato por incapacidade financeira de suportar a aludida renda.

7. Desde Março de 2013, o réu vem ocupando a aludida fracção autónoma mediante o pagamento da contrapartida mensal de € 250,00.


O DIREITO

Do mérito da reclamação

Antes de passar à apreciação do objecto do recurso, existe uma questão prévia que cumpre decidir e da qual depende, na verdade, aquela apreciação – é ela a questão da admissibilidade do presente recurso de revista.

O reclamante contesta a decisão singular que foi proferida no sentido da inadmissibilidade da revista, argumentando que, ao contrário do que acontece no Acórdão, na sentença não se faz referência ao novo regime legal introduzido pela Lei n.º 13/2019 de 12.02, pelo que – assim entende ele – a fundamentação das duas decisões seria essencialmente diferente e isso prejudicaria a dupla conforme.

Antes de analisar a situação em concreto, convoquem-se as considerações tecidas por Lopes do Rego em tema de dupla conforme[1]:

No seu sentido natural ou normal, a dupla conformidade significará fundamentalmente que quatro juízes – o de 1ª instância, na sentença proferida, – e os três desembargadores que apreciaram a apelação, por unanimidade (isto é, sem voto de vencido) – dirimiram o litígio nos mesmos termos, segundo entendimento jurídico coincidente no que se refere ao segmento decisório que integra a sentença e o acórdão proferidos; era, aliás, esta unanimidade decisória que, no sistema instituído em 2007, legitimava a restrição substancial no livre acesso ao STJ, por tal coincidência decisória poder razoavelmente fazer presumir o acerto da decisão tomada, permitindo dispensar ou desconsiderar inclusivamente a identidade das respetivas fundamentações.

Numa primeira fase, a jurisprudência da Formação orientou-se no sentido de a dupla conforme pressupor a coincidência ou sobreposição total das decisões, implicando qualquer quebra ou dissidência da unanimidade dos juízes o afastamento da dita presunção de acerto e tendencial incontrovertibilidade do decidido, de modo a permitir, sem mais, a interposição da revista normal.

Cedo se tornou, porém, evidente a imprestabilidade deste critério como mecanismo efetivo de filtragem no acesso ao Supremo, já que qualquer mutação, alteração, reforço ou aditamento ao teor decisório da sentença, em comparação com a decisão contida no acórdão da Relação, afastava o obstáculo da dupla conforme”.

No que respeita, em particular ao tema da fundamentação para aferir da dupla conforme diz o mesmo Exmo. Juiz Conselheiro[2]:

Não é, assim, qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1.ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.

Deste modo, só pode considerar-se existe uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a decisão proferida em 1.ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero esforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.

Ou – como se decidiu no Ac. STJ de 29/6/2017, P. 398/12 –, para que o recurso de revista seja admissível, mesmo quando o acórdão da Relação confirma integralmente a sentença do tribunal de 1.ª instância, sem voto de vencido, é necessário que a fundamentação da sentença e do acórdão seja diversa e que tal diversidade tenha natureza essencial, desconsiderando-se, para este efeito, discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem efetivamente um percurso jurídico diverso e bem ainda a mera diferença de grau, no tocante à densidade fundamentadora, e divergências meramente formais ou de pormenor”.

Conclui-se que não é qualquer diferença de fundamentação que releva para “anular” a dupla conformidade das decisões para o efeito da (i)recorribilidade do Acórdão; é preciso que a diferença atinja os aspectos centrais da fundamentação, só assim se podendo dizer que as duas decisões assentam ou se apoiam em raciocínios materialmente diferentes de forma a reclamar a intervenção e o exercício de uma função esclarecedora por parte deste Supremo Tribunal.

Com o apoio destas orientações, é altura de indagar o que se passa no caso dos autos e, afinal, qual a relevância da referência (ou da falta dela) à Lei n.º 13/2019 de 12.02.

Esclareça-se, desde já, que não procede o argumento de que na Relação “a questão já não era idêntica ao decidido em 1ª instância”, estando em causa saber se “a acção devia prosseguir para se apurar se o R. tem, ou não, título legítimo que lhe permite a ocupação do imóvel objecto de reivindicação” ou se “o R. tinha de alegar e provar que a falta de redução a escrito não lhe era imputável”. A dupla conforme forma-se em função das decisões e não das questões enunciadas / apreciadas.

Tão-pouco procede a alegação de que “o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., também apreciou outra questão que não tinha sido apreciada em 1ª instância, ou seja, a questão do abuso do direito”. Na sentença, a questão do abuso do direito por parte do autor, suscitada pelo réu aquando da sua contestação, é formulada e integrada no grupo das três questões a decidir, dedicando-se, pelo menos, três páginas a fundamentar e a decidir a questão. Diga-se, já agora, que a decisão (no sentido da improcedência) foi confirmada pelo Tribunal da Relação.

Veja-se, então, o que se decidiu no Acórdão recorrido:

(…) nenhuma censura nos merece a decisão recorrida quando conclui pela nulidade por vício de forma do alegado contrato de arrendamento e que poderia obstar à entrega do imóvel reivindicado”.

E veja-se agora como se fundamentou a decisão:

Estatui o artigo 1069.º do CPCivil (na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02) sob a epígrafe “Forma” que:

1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.

2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

Não há dúvida de que por força do nº 2 do artigo 12.º do CCivil, as condições de validade substancial ou formal de um contrato se aferem pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado.

Ora, à data da celebração do suposto contrato (Março de 2013), para a validade ou eficácia do contrato, o artigo 1069.º, do CCivil, com a redacção introduzida pelo NRAU, exigia a forma escrita, aliás, desse inciso até a alteração introduzida pela Lei 13/2019, constava apenas o seu corpo (agora nº 1) cuja redacção inicial foi ainda alterada pela Lei 31/2012 de 14/08 que suprimiu a referência à duração do contrato.

Também é verdade que nos termos do artigo 14.º, nº 2 da lei 13/2019 (Norma transitória) o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, se aplica igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.

Isto dito, não se põe em causa que o Réu recorrente podia, como lhe é permitido pelo nº 2 do artigo 1069.º[3] supra transcrito, fazer a prova da existência do contrato de arrendamento, por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses, e, portanto, para o preenchimento dessa facti species, mostrar-se-ia relevante a matéria articulada nos artigos 4º a 18º da contestação.

Repare-se, todavia, que o citado nº 2 do artigo 1069.º, faz depender a prova da existência do contrato por essa via, desde que a falta de redução a escrito não seja imputável ao arrendatário.

Daqui se retira que querendo o arrendatário fazer a prova da existência do contrato nos termos da citada norma tem de alegar e provar[4] duas coisas:

a) - que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não lhe é imputável[5];

b) - demonstrar a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses[6].

Acontece que, ainda que se possa admitir que o Réu recorrente, na respectiva contestação, alegue a utilização do locado sem oposição do Autor recorrido e o pagamento de uma renda desde 1 de Março de 2013 até ao presente, nenhuma referência factual faz a que a falta de redução a escrito do contrato não lhe é imputável, sendo que apenas em sede recursiva e em forma conclusiva a isso se refere[7].

1. Esta norma, ao admitir a prova do contrato de arrendamento por qualquer meio, revela que a forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem.

2. Porque factos constitutivos da excepção a opor à nulidade por falta de forma.

3. Alegando um continente factual do qual, uma vez provado, se retire tal conclusão.

4. Concretizando factualmente essa utilização e demonstrando o pagamento da renda há já mais de seis meses.

5. Porém, é consabido que a lei impõe às partes o ónus de alegação: ao autor, o de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (seja, a alegação dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta

Ora, sem essa alegação e prova, torna-se evidente, não poder o Réu recorrente fazer a prova da existência do contrato de arrendamento verbal pela via estatuída no artigo 1069.º, nº 2 do CCivil e que ao caso era aplicável, alegação que, aliás, o Réu não devia ter olvidado tanto mais que no artigo 34º da sua contestação faz alusão a um possível vício de forma do suposto contrato de arrendamento”.

Quer dizer: não obstante ter concluído também que não estão reunidas as condições legalmente exigidas para se reconhecer a existência de um contrato de arrendamento, a verdade é que o Tribunal recorrido partiu de uma versão distinta do artigo 1069.º do CC, apoiou a sua fundamentação numa norma com teor diverso daquela em que havia apoiado o Tribunal de 1.ª instância.

De facto, com o aditamento do n.º 2 ao artigo 1069.º do CC, esta norma transfigurou-se ou converteu-se numa norma substancialmente diferente da originária: em vez de dispor que o contrato de arrendamento seja reduzido a escrito, passou a prever, expressis verbis, a possibilidade de, no caso de a falta de redução a escrito não ser imputável ao arrendatário, este provar a existência do contrato de arrendamento por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

Tendo presente as orientações sobre a dupla conforme expostas atrás, esta diferença de fundamentação é susceptível de ser qualificada como uma alteração não insignificante do percurso lógico feito no Acórdão recorrido relativamente ao percurso feito na sentença, com aptidão para afastar a dupla conforme e determinar, consequentemente, a admissibilidade da revista por via normal.

Pelo exposto, defere-se a reclamação, admitindo-se o recurso de revista e, nos termos do n.º 4 do artigo 652.º do CPC, passa-se de seguida a conhecer do objeto do recurso.


Do objecto do recurso

Como se disse antes, no recurso é suscitada a questão de saber se o Tribunal recorrido podia e devia ter decidido no sentido da nulidade por vício de forma do contrato de arrendamento.

Os fundamentos da decisão, já reproduzidos atrás, podem sintetizar-se num: apoiando-se no artigo 1069.º do CC, considerou o Tribunal não estarem reunidas as condições legalmente exigidas para se reconhecer a existência de um contrato de arrendamento válido.

O artigo 1069.º do CC (com a epígrafe “Forma”), na versão que resultou da alteração levada a cabo pela Lei n.º 13/2019 de 12.02, estabelece:

1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.

2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses”.

Desta norma decorre, em primeiro lugar, a definição de uma regra: o contrato de arrendamento deve ser reduzido a escrito. E decorrer, em segundo lugar, a previsão de uma hipótese específica ou mesmo excepcional: quando não seja reduzido a escrito, o contrato de arrendamento pode ainda ser provado por outro(s) meio(s) de prova admitido(s) em direito.

Parece que pode dizer-se, com propriedade, que a faculdade de o arrendatário usar qualquer das formas admissíveis em direito para provar a existência de título fica subordinada a uma condição – a condição de a falta de forma escrita não lhe ser imputável.

A norma é ainda relativamente recente, pelo que não é possível, por enquanto, encontrar na doutrina ou na jurisprudência orientação consolidada ou sequer clara quanto à sua melhor interpretação e sendo uma das dúvidas que se suscita a de saber a quem incumbe o ónus da prova relativamente à (in)imputabilidade da falta de redução a escrito do contrato de arrendamento – se incumbe ao arrendatário a prova de que esta falta não lhe é imputável ou se incumbe ao senhorio a prova de que esta falta é imputável ao arrendatário.

A norma esteve, em certa medida, no centro de uma decisão recente do Supremo Tribunal de Justiça – mais precisamente no Acórdão de 25.03.2021[8], em cujo sumário pode ler-se:

II - Aprovou a AR, na pendência da presente acção, a Lei n.º 13/2019, de 12-08, na qual, entre outras inovações, introduziu no CC a norma do n.º 2 do art. 1069.º que permite que a prova do contrato de arrendamento seja feita mediante qualquer meio de prova admitido em direito.

III - Atendendo à finalidade expressamente enunciada pelo legislador de, com o novo regime legal, se alcançar uma maior protecção dos interesses dos arrendatários, temos como certo que a determinação de aplicação desse novo regime aos arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor (art. 14.º, n.º 2, da Lei n.º 13/2019) abrange os casos apreciados em acções pendentes, como a presente, desde que verificados os respectivos requisitos.

IV - Exige o n.º 2 do art. 1069.º do CC que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não seja imputável ao arrendatário e ainda que se demonstre a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio, assim como o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

V - No que se refere a estes dois últimos requisitos, da factualidade dada como provada resulta que a ré e, antes dela o seu marido, utilizam a fracção autónoma em causa há mais de quatro décadas, sem oposição dos sucessivos proprietários, pagando mensalmente a respectiva renda”.

À primeira vista, poder-se-ia depreender que a tese ali sustentada é a de que, em geral, não é preciso o arrendatário provar aquela condição para se aproveitar da faculdade aí prevista. Mas não é assim. Atente-se na fundamentação do Acórdão:

Da sucessão de regimes legais em matéria de arrendamento urbano resulta ser decisivo confirmar se é ou não aplicável ao caso dos autos a norma do n.º 2 do art. 1069.º do Código Civil, aditada pela Lei n.º13/2019, de 12 de Fevereiro, na qual se dispõe o seguinte:

«Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.»

Com a indicação preambular de «Medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade», aprovou a Assembleia da República, na pendência da presente acção, a referida Lei n.º 13/2019, na qual, entre outras inovações, introduziu no Código Civil a referida norma que permite que a prova do contrato de arrendamento seja feita mediante qualquer meio de prova admitido em direito, incluindo portanto a prova testemunhal de que, juntamente com prova documental, o tribunal a quo lançou mão para dar como provada a existência da relação contratual de arrendamento.

Como assinala Maria Olinda Garcia (“Alterações em matéria de arrendamento urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, in Julgar (online), Março 2019, pág. 8):

«A forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem».

E sendo que, o n.º 2 do art. 14.º da mesma Lei n.º 13/2019, determina que:

«O disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.»

Nas palavras de David Magalhães (“Algumas alterações do regime jurídico do arrendamento urbano (Leis n.º 12/2019 e 13/2019, de 12 de Fevereiro) – O recrusdecer do vinculismo”, in BFDUC, Vol. XCV, Tomo I, pág. 565), tal:

«Significa que todos os contratos de arrendamento existentes, independentemente da época da sua celebração, passam a ser disciplinados pelo artigo 1069.º/2 CC, cujo regime prevalece sobre as normas anteriormente incompatíveis».

Ora, atendendo à finalidade expressamente enunciada pelo legislador de, com o novo regime legal, se alcançar uma maior protecção dos interesses dos arrendatários, temos como certo que a determinação legal de aplicação aos arrendamentos existentes à data da entrada em vigor desse mesmo regime abrange também as acções pendentes, como a presente, desde que verificados os respectivos requisitos.

Vejamos.

Exige o n.º 2 do art. 1069.º do CC que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não seja imputável ao arrendatário e ainda que se demonstre a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio, assim como o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.

No que se refere a estes dois últimos requisitos, da factualidade dada como provada, com a alteração introduzida pela Relação, resulta que a R. e, antes dela o seu marido, utilizam a fracção autónoma em causa há mais de quatro décadas, sem oposição dos sucessivos proprietários, pagando mensalmente a respectiva renda.

Quanto ao requisito de que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não seja imputável ao arrendatário, apurar a quem cabe o ónus da prova não pode ser realizado – como, até certo ponto, parece ter sido feito pelo tribunal a quo – sem ter em conta a sucessão de leis no tempo em matéria de forma do arrendamento para habitação.

Com efeito, na apreciação do caso sub judice, temos de ter em conta estar em causa uma situação de arrendamento iniciada pelo marido da R., em data anterior ao seu casamento com a R., que teve lugar em Dezembro de 1980.

Deste modo, e ainda que não se conheça a data precisa do início dessa situação fáctica, a que o legislador veio atribuir eficácia contratual, deve ter-se em conta, no que se refere ao regime da forma, relevante para o caso dos autos, que:

(i) O regime originário do Código Civil de 1966 não exigia forma escrita para o arrendamento para habitação (art. 1029.º, n.º 1, a contrario);

(ii) O regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 445/74, de 12 de Setembro apenas exigia tal forma para os contratos de habitação futuros (art.14.º);

(iii) O regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 188/76, de 12 de Março passou a aplicar a exigência de forma escrita (art. 1.º, n.º 1) aos contratos anteriores (cfr. os diversos números do art. 2.º), mas com a ressalva de que “A falta de contrato escrito presume-se imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário” (art. 1.º,n.º 2), regime este mantido pelo Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro (art. 1.º, n.os 1, 2 e 3).

Tendo em conta que os diplomas subsequentes, que regularam o arrendamento para habitação, não se ocupam da aplicação das exigências de forma aos arrendamentos antigos, somos levados a concluir que, quanto à situação de arrendamento dos autos, se mantém válida a presunção de que a falta de redução da relação contratual a escrito é imputável ao locador e não ao arrendatário, não se vislumbrando na matéria de facto provada quaisquer indícios de que esta presunção tenha sido ilidida.

Assim, encontram-se reunidos todos os requisitos da norma do n.º 2 do art. 1069.º do CC, aditada pela Lei n.º 13/2019, aplicável ao caso dos autos, pelo que não merece censura o juízo do tribunal a quo ao dar como provado que a R. ocupa a fracção autónoma a título de arrendatária.

Juízo este que assenta nos factos essenciais dados como provados e, ainda, em factos instrumentais ou complementares que – no uso de presunções judiciais que não cabe a este Supremo Tribunal sindicar – a Relação deu como provados, ao afirmar:

«Não vá também sem se dizer que, ao longo do processo de negociações com vista a pôr fim à ocupação da casa pela R., a A. tratou-a como habitualmente se tratam os inquilinos. A testemunha DD foi clara: “contactou com todos os inquilinos, nomeadamente com a D.ª AA” e tentou saber se ela tinha interesse em se deslocar para outro sítio ou até receber alguma pequena compensação para poder pagar renda noutro lado.

Para além do mais, daqui se depreende que a R. foi tratada como uma inquilina e não como uma ocupante sem qualquer título. Verificamos, pois, que a circunstância de lhe ser admitido o pagamento das rendas por si, ou, precedentemente pelo seu marido, o facto de lhe terem sido entregues os recibos, e o facto de os proprietários saberem que a primitiva arrendatária havia muitos anos que não morava no locado, revelam suficientemente que os proprietários não ignoravam que era ela que ocupava a posição de arrendatária. Pensamos, pois, que com razoável segurança, a R. logrou a prova que sobre ela dependia, da existência de um contrato de arrendamento. A este circunstancialismo, embora desnecessário, poder-se-ia, ainda, acrescentar a forma comoa A. foi tratada no processo de negociações no âmbito do qual foi tratada como inquilina: foi-lhe oferecida a possibilidade de opção por uma compensação monetária ou até outro local para morar.»[negritos nossos]

A terminar, assinale-se que a situação dos autos se apresenta como paradigmática daquelas situações que o legislador pretendeu acautelar ao introduzir no Código Civil a nova regra do n.º 2 do art. 1069.º. Na verdade, estamos perante um caso em que a R., ainda que não dispondo– em seu nome ou no do seu marido – de contrato de arrendamento escrito e/ou de recibos de renda comprovativos, logrou provar, através de prova documental e testemunhal, que, há mais de quarenta anos, habitam (ela e, antes dela, o seu falecido marido) a fracção autónoma, pagando mensalmente a respectiva renda”.

É bem visível que, embora se convoque também o artigo 1069.º, n.º 2, do CC, a situação apreciada neste Acórdão é distinta da dos autos: tratava-se de um arrendamento para habitação (e não de um arrendamento para o exercício de comércio ou indústria) e de um arrendamento antigo, com início muito anterior ao dos presentes autos.

Assim, não se invocou em abstracto nem apenas a teleologia subjacente à alteração legislativa operada pela Lei n.º 13/2019 de 12.02.

Invocou-se, desde logo, esta teleologia no âmbito do arrendamento habitacional, que é onde a necessidade de um reforço de tutela dos interesses do arrendatário mais se faz sentir. Segundo o Acórdão, os contornos do caso tornavam-no, aliás, paradigmático quanto àquela necessidade.

Chamam-se, depois, à colação também elementos do direito positivo, ou seja, normas que, consagrando uma presunção de imputabilidade ao senhorio a falta de forma escrita, eram aplicáveis ao caso por força do regime de sucessão de leis no tempo (cfr. artigo 1.º do DL n.º 188/76, de 12.03, e artigo 1.º do DL n.º 13/86, de 23.01).

Ora, isto não se verifica nos presentes autos. Não pode, portanto, importar-se para aqui a solução daquele Acórdão nem – já agora – fazer valer, descontextualizada, a respectiva fundamentação.

Voltando à norma do artigo 1069.º do CC, e tendo em conta o teor do (novo) n.º 2, há, pelo menos, uma conclusão que é possível retirar: é agora inequívoco que, como vinha defendendo a doutrina há tempo, a redução do contrato de arrendamento a escrito é só um requisito ad probationem[9], o que significa que o arrendatário pode muito bem dispor de um contrato de arrendamento válido ainda que este não revista forma escrita.

É verdade que não há nada na factualidade provada que autorize a dizer que o réu (sequer) alegou a inimputabilidade da falta de redução a escrito do contrato de arrendamento. Isto teria, sem dúvida, facilitado a realização dos seus desígnios e propiciado um reconhecimento (mais) imediato da sua posição.

Mas também é verdade que a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância nos presentes autos foi proferida no âmbito de saneador-sentença. Quer dizer: não chegaram a criar-se as condições adequadas para que a situação se definisse por outros meios de prova, inclusivamente por confissão expressa do (pretenso) senhorio.

Cabe lembrar o artigo 364.º do CC, onde se dispõe:

1. Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

2. Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório”.

Afirmam, em anotação ao artigo 364.º do CC, Pires de Lima e Antunes Varela o seguinte:

A regra é a de que os documentos escritos (…) são exigidos como formalidades ad substantiam. Daí o princípio da nulidade consagrado no artigo 220.º. Só quando a lei se refira, pois, claramente à prova do negócio, é que é aplicável o regime do n.º 2 deste artigo.

Entre os dois regimes há uma diferença considerável. No primeiro caso – formalidade ad substantiam – o negócio é nulo, salvo se constar de documento de força probatória superior; no segundo, - formalidade ad probationem – e o acto não é nulo, mas só pode provar-se por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, devendo neste último caso constar de documento de igual ou superior valor probatório[10].

Comentando igualmente o preceito, diz, entre outras coisas, Maria dos Prazeres Beleza:

Este preceito prevê as condições em que pode ser suprida a falta de um documento escrito, exigido por lei como forma (n.º 1), no âmbito em que a forma é exigida (artigo 221.º), ou apenas como prova (n.º 2) de uma declaração negocial.

(…)

Se o documento escrito dor exigido apenas para prova da declaração (…), e não de forma, caso em que falta não implica a respectiva nulidade , admite-se a sua substituição por confissão expressa, judicial ou extrajudicial. A restrição à confissão resulta de se tratar do meio de prova mais difícil de obter, por provir da parte prejudicada pelo reconhecimento que traduz (artigo 352.º). Não estando em causa a falta de um requisito de forma (não substituível por confissão, que não permite alcançar os objectivos de tal exigência, em particular a já assinalada segurança), a lei admite que, se o prejudicado confessa, é porque é altamente (suficientemente) provável que a declaração tenha sido emitida [11].

A confissão de que se fala no artigo 364.º do CC pode ser obtida através de depoimento de parte, o qual, por sua vez, é susceptível de ser determinado ex officio pelo juiz.

Dispõe-se no artigo 452.º, n.º 1, do CPC:

O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa”.

Em conclusão, acompanhando o recorrente, entende-se que a acção pode e deve prosseguir para apuramento dos factos, designadamente para que se apure se o réu dispõe ou não de um título válido para ocupar o imóvel que é objecto de reivindicação pelo autor.



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III. DECISÃO

Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido e determina-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do CPC.


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Custas pelo vencido a final.


Lisboa, 12 de Janeiro de 2022


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Cfr. Lopes do Rego, A dupla conforme – Cadernos do STJ – Secções Cíveis, 2021, pp. 19-20 (sublinhados do autor).
[2] Cfr. Lopes do Rego, A dupla conforme – Cadernos do STJ – Secções Cíveis, 2021, p. 38 (sublinhados do autor).
[3] Esta norma, ao admitir a prova do contrato de arrendamento por qualquer meio, revela que a forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem.
[4] Porque factos constitutivos da excepção a opor à nulidade por falta de forma.
[5] Alegando um continente factual do qual, uma vez provado, se retire tal conclusão.
[6] Concretizando factualmente essa utilização e demonstrando o pagamento da renda há já mais de seis meses.
[7] Porém, é consabido que a lei impõe às partes o ónus de alegação: ao autor, o de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (seja, a alegação dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas que definem o direito cuja tutela jurisdicional se pretende); ao réu, o de alegar os factos essenciais em que se baseiam as excepções invocadas.
Assim era no revogado Código de Processo Civil (cfr. artigos 264.º e 664.º) e assim continua a ser no novo CPC (artigo 5.º, n.º 1).
Na acção declarativa, sobre o réu impende o ónus de, na contestação, impugnar os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, sob cominação de tais factos serem considerados admitidos por acordo (artigo 490.º, n.ºs 1 e 2, do anterior CPC, artigo 574.º, n.ºs 1 e 2, do novo CPC) e de deduzir todas as excepções que não sejam de conhecimento oficioso, à data conhecidas (artigo 489.º do anterior CPC, artigo 573.º do novo CPC).
Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (princípio da concentração da defesa na contestação), exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado; depois da contestação, só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
[8] Cfr. Acórdão desta 2.ª Secção, proferido em 25.03.2021, no Processo 11189/18.2T8LSB.L1.S1, e subscrito pela presente Relatora como 2.ª Adjunta.
[9]No artigo 1069.º, foi acrescentado o n.º 2 (tendo o anterior corpo do artigo passado a ser o seu n.º 1). Esta norma, ao admitir a prova do contrato de arrendamento por qualquer meio, revela que a forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem. Os arrendatários que celebraram contratos verbais, mas que demonstrem (por exemplo, através de transferência bancária) que já pagam rendas há mais de seis meses (ainda que sem recibo de quitação) podem fazer valer o contrato (desde que a falta de redução a escrito não lhe seja imputável)” (cfr. Olinda Garcia, “Alterações em matéria de arrendamento urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º13/2019”, in: Julgar (online), Março 2019, p. 8):
[10] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pp. 322-323 (sublinhados dos autores).
[11] Cfr. Maria dos Prazeres Beleza, in: Comentário ao Código CivilParte Geral, Lisboa Universidade Católica Editora, 2014, p. 846 (sublinhados da autora).