Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
903/11.7TBFND.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA PROVA
FACTOS COMPLEMENTARES OU CONCRETIZADORES DA CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
DOAÇÃO
REESTRUTURAÇÃO FINANCEIRA.
AVAL
PATRIMÓNIO
FACTOS INSTRUMENTAIS
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - INCIDENTES DAS INSTÂNCIA / INTERVENÇÃO DE TERCEIROS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, 512.º, 518.º, 610.º, ALS. A) E B), 611.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 5.º, N.º1 E N.º 2 AL. B), 317.º, 573.º, 574.º, 590.º, N.º6.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 22 DE JANEIRO DE 2004, PROC. Nº 03B3854, WWW.DGSI.PT ;
-DE 9 DE OUTUBRO DE 2006, PROC. Nº 06A2368, WWW.DGSI.PT ;
-DE 14 DE DEZEMBRO DE 2006, PROC. Nº 06B3881, E JURISPRUDÊNCIA NELE CITADA, WWW.DGSI.PT ;
-DE 29 DE NOVEMBRO DE 2011, PROC. Nº 7288/07.4TBVNG.P1.S1, WWW.DGSI.PT ;
-DE 12 DE MARÇO DE 2015, PROC. Nº 4023/11.6/TCLRS.L1.S, WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A impugnação pauliana é um meio de conservação da garantia patrimonial com que o credor contava contra actos do devedor que a afectam negativamente, exigindo-se, nos termos da primeira parte da al. a) do art. 610.º do CC, que o crédito seja anterior ao acto. Tal pressuposto deve, sob pena de se inutilizar a protecção conferida por esta acção, considerar-se preenchido se os créditos invocados pela autora provêm de mútuos por esta concedidos para reestruturar dívidas anteriores e de avais prestados pelos réus.

II - A procedência da impugnação pauliana exige que do acto que dela é objecto possa resultar a impossibilidade de o credor obter, de facto, a satisfação integral do seu crédito ou, pelo menos, o agravamento dessa impossibilidade (não se exigindo, porém, que se demonstre a insolvência do devedor), impendendo sobre o devedor o ónus de demonstrar que o seu património é composto por bens suficientes para garantir essa satisfação (art. 611.º do CC), o que se justifica pela maior facilidade que aquele tem em efectuar essa prova.

III - Do confronto entre o n.º 3 do art. 264.º do CPC e a al. b) do n.º 2 do art. 5.º do NCPC(2013) resulta que se deixou de fazer referência a uma manifestação da vontade para que o tribunal possa considerar factos complementares ou concretizadores da causa de pedir ou da excepção que não foram oportunamente alegados pela parte a quem aproveitam.

IV - De acordo com o princípio dispositivo (n.º 1 do art. 5.º do NCPC), cabia aos réus alegarem, na contestação, os factos integradores da excepção da suficiência do património – o que, necessariamente, passaria pela identificação dos bens integrantes do património dos devedores que tivessem um valor suficiente para satisfazer o crédito da autora –, pelo que, não o tendo feito, é inviável considerar oficiosamente os mesmos; por seu turno o princípio da concentração da defesa (art. 573.º do NCPC) obvia ao convite a uma hipotética concretização e à alegação posterior desses factos.

V - Para determinar a insuficiência patrimonial dos devedores é irrelevante que o património dos demais obrigados solidários tenha um valor superior ao crédito da autora (apenas interessa, na verdade, determinar a suficiência do património de onde saiu o bem doado), pois a solidariedade passiva não permite ao devedor opor ao credor o benefício da divisão ou escudar-se a cumprir por inteiro (arts. 512.º e 518.º, do CC), ainda que chame outros co-devedores à lide em que tal lhe é exigido, o que apenas lhe assegurará o reconhecimento judicial do direito de regresso sobre aqueles (art. 317.º do NCPC).

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Região do … e … propôs uma acção contra AA e mulher, BB, e CC, impugnando a doação feita em 4 de Janeiro de 2007 pelos primeiros dois réus a seu filho, o terceiro, de um prédio misto, composto de terrenos hortícolas e casa de habitação

Em síntese, a autora sustentou que os primeiros dois réus são devedores da quantia de € 931.402,46, vencida e não paga, em resultado de empréstimos feitos aos próprios e de avales que prestaram a livranças que titulam empréstimos feitos às sociedades Construções DD, Ldª e EE - Fábricas de Móveis e Carpintaria, Lda; que os créditos devem ser considerados anteriores à doação, porque foram efectuados para pagar outros empréstimos, todos eles anteriores a 2006; que se trata do bem de maior valor de que os primeiros réus eram proprietários, através do qual se poderiam fazer pagar; que a doação foi realizada com o objectivo de deixarem de ter no seu património bens suficientes para o efeito; que, “por causa da doação aqui em causa a autora está impossibilitada de satisfazer integralmente o seu crédito”.

Pede que seja declarada a ineficácia da doação e que seja ordenado ao terceiro réu “a restituição do referido bem, de modo que a autora se possa pagar à custa desses prédios”.

Os réus contestaram em conjunto, negando a verificação dos pressupostos da impugnação pauliana e afirmando que o prédio doado é um prédio rústico de “valor patrimonial manifestamente irrelevante, para os efeitos pretendidos pela autora”.

A autora replicou.

A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 787. Para assim decidir, a sentença deu como assente a anterioridade dos créditos, em relação à doação, mas como não verificado a requisito de que resulte do acto impugnado “a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação plena do seu crédito”, nestes termos:

«No caso dos autos, e considerando que a impossibilidade de satisfação do crédito deve ser aferida à data da celebração do acto, não pode concluir-se pela verificação deste pressuposto.

Com efeito, não resultou provado que: o imóvel objecto da doação fosse o bem mais valioso do património dos RR., que o acto tenha sido realizado com o propósito de tornar impossível a satisfação do crédito da A., pelo contrário, visava compensar um dos filhos de doação anteriormente feita à outra filha.

Não se deve ignorar que se a A. optou por não executar o património dos RR., antes continuando a conceder-lhe empréstimos, fosse qual fosse o destino destes, e por maioria de razão, tratando-se de operações bancárias essencialmente para fazer face a anteriores mútuos, aceitando garantias reais e pessoais, é porque mesmo esta instituição bancária certamente não as considerava operações de risco.

Acresce que a crise fez baixar o valor dos imóveis património dos RR. e das empresas de que eram sócios, e alterações legislativas modificaram o regime dos privilégios creditórios, (no caso na graduação dos créditos no processo de insolvência) factos independentes da vontade dos devedores e imprevisíveis à data da celebração da doação, e que foram determinantes para que a dívida à A. não fosse paga integralmente.

Cumpre pois concluir no sentido do não preenchimento dos pressupostos legais para a verificação do instituto da impugnação pauliana, como pretendido pela A.».


A autora recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, pelo acórdão de fls. 842, revogou a sentença e declarou “a ineficácia em relação à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Região do … e …, c.r.l. da doação titulada pela escritura outorgada no dia 4 de Janeiro de 2007 no Cartório Notarial do Fundão a cargo do Notário Dr. FF, tendo por objecto o prédio nela identificado, reconhecendo-lhe o direito a executar o identificado bem no património do 2.º R adquirente.”

 Diferentemente da 1ª Instância, a Relação considerou que a anterioridade do crédito dispensava, quer o dolo do devedor, quer a “ausência de má fé” dos intervenientes na doação; e que, «no que respeita à exigência legal que do acto resulte a impossibilidade do credor obter a integral satisfação do seu crédito ou o mero agravamento dessa impossibilidade, é certo não ter a autora logrado fazer prova de que o bem doado era o mais valioso dos que integravam à data o património dos RR devedores. No entanto (…), a prova desse facto não corresponde a um ónus que sobre aquela recaísse e assim tivesse resultado incumprido, arcando com as consequências do incumprimento. Com efeito, tendo a apelante feito prova do montante do seu crédito, incluindo obviamente a dívida da sociedade declarada insolvente EE, Lda. pela qual os 1.ºs RR respondem solidariamente, atenta a sua qualidade de avalistas e, bem assim, da anterioridade da constituição do mesmo, tendo por referência o acto de disposição do bem – acto gratuito, relembra-se – aos RR devedores e terceiro beneficiado incumbia provar que, depois do acto, os primeiros dispunham ainda no seu património de bens penhoráveis suficientes para solver aquele crédito, consoante resulta do supra citado art.º 611.º. Ónus da prova de que se não desincumbiram, para além do mais, porque tais factos nem sequer alegados foram. Por outro lado, a suficiência do património que releva para o assinalado efeito (aqui funcionando como excepção) é a que respeita ao devedor, irrelevando que outros devedores solidários tenham no seu património bens bastantes para assegurarem o pagamento da dívida.»

2. Os réus recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça.


Nas alegações que apresentaram, formularam as seguintes conclusões:

a) Tendo com base de partida, o sumário do Acórdão recorrido, entendem os ora recorrentes, que cumpre apreciar, outras questões de direito;

b) Os recorrentes, no que concerne ao direito aplicável aos autos em apreço, entendem que foram, incorrectamente apreciadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

c) O primeiro erro de Direito, está relacionado o preenchimento da previsão da alínea a) do artigo 610° do C.C..

d) Ficou demonstrado nos autos de forma clara e inequívoca, que aos 1 ° RR, foram concedidos, única e exclusivamente, dois empréstimos pessoais, em datas posteriores à data do acto que se pretende impugnar.

e) Todos os empréstimos concedidos à empresa Construções DD Lda., anteriores à data do acto que a A. quer impugnar, encontravam-se integralmente pagos.

f) Os empréstimos em divida à A., por parte da empresa Construções DD Lda, foram celebrados em data posterior, à data da doação, pelo que também eles ficam fora do âmbito da previsão do preceito legal citado.

g) O Tribunal da Relação, errou, na opinião dos ora recorrentes, ao interpretar e aplicar de forma incorrecta o artigo 5° do NCPC.

h) Acresce, que os 1 RR, quer na sua contestação (vidé artigo 57° e 58°), alegaram a suficiência do seu património, quer ainda no decurso da audiência, lograram efectuar prova da suficiência do mesmo, tendo sido convidados pela M.a Juiz de 1ª instância, a juntar prova documental aos autos, através de documentos autênticos.

i) A actual lei processual refere [que] podem na decisão, para além dos factos essenciais, que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, alegados pela partes, ser considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

j) A grande diferença em relação ao anterior Código de Processo Civil é que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende já de requerimento da parte interessada, isto é, a sua consideração pode ser oficiosa.

k) É claro que, essa consideração oficiosa, não pode ser feita sem que as partes se pronunciem sobre ela, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração tais factos, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles.

I) Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações.

m) Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjecturas ou possibilidades abstractas.

n) Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objecto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.°, n.º 1, 552.°, n.º 1, alínea d), 581.° e 615.°, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.°, 264.°, 265.°).

o) A grande diferença em relação ao anterior Código de Processo Civil é que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende já de requerimento da parte interessada nesse aproveitamento para que ele aconteça, como exigia o artigo 264.°, n. 3, daquele diploma. Presentemente, o juiz pode considerá-los mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que a parte tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos.

p) Face ao exposto, conclui-se que o Tribunal da Relação, apreciou e decidiu de forma, absolutamente contraria à previsão do artigo 5° do NCPC.

q) Refira-se ainda, que o Julgamento dos presentes autos se iniciou em (20.01.2014) já, após da entrada em vigor da nova Lei.

r) Existe ainda uma contradição insanável, no Acórdão proferido pelo Tribunal recorrido e que traduz a errada interpretação dos factos ao aplicá-los ao direito.

s) Na verdade, existiu uma clara e inequívoca violação, da previsão do artigo 611 ° do C.C., por parte daquele Tribunal.

t) A contradição, surge, no momento em que aquele Tribunal superior aceita, que a prova dos autos, nomeadamente, no que se refere ao prédio Quinta do Brejo, propriedade dos 1 RR e avaliada em € 1 800 000,00, era efectivamente o bem mais valiosos do património dos RR.

u) Na resposta ao artigo 16° da Base instrutória, referindo, antes pelo contrário, que o bem objecto da impugnação, não era o bem mais valioso do património dos RR.

v) Para seguidamente, referir que os RR, não lograram provar que tinham no seu património bens suficientes para assegurar o montante em divida.

w) O que traduz um erro, assinalável, basta atentar à prova abundante, a que se refere a M.a Juiz de 1a instância, na motivação da sentença, nomeadamente, aos documentos autênticos, cadernetas prediais, certidões, jutas aos autos.

x) Ainda dentro da previsão do artigo 611°, cabia à A provar o montante em divida pelos RR., o que na opinião dos RR. ainda que notificada no decurso do julgamento, o não logrou fazer.

y) Por outro lado, e só por mera hipótese se concede, que o montante fosse o constante do relatório do acórdão a fls 2, no valor de € 931 402,46, bastava apenas, um bem do património dos RR, a aludida Quinta do Brejo (€ 1 800 000,00 descontadas os valores as hipotecas no montante de € 8 000 000), mais do que suficiente do que o montante em divida que não se aceita.

z) O artigo 611 ° do C.C. foi ainda, violado pelo teor do acórdão recorrido, no que respeita, á suficiência do património da empresa Construções DD Lda, perante o montante das dívidas à A.

aa) Como já foi possível referir, anteriormente, entendeu o Tribunal da Relação que "A suficiência do património que releva para o assinalado efeito é a que respeita ao devedor, irrelevando que os outros devedores solidários tenham no seu património bens bastantes para assegurarem o pagamento da divida".

bb) Reafirmam os recorrentes, que os empréstimos concedidos à Construções DD Lda e que determinaram as dividas à A foram celebrados comprovadamente, (contratos de mútuo juntos pela A) após a data do acto que pretendem impugnar.

cc) Acresce a esse facto, o seguinte, se para efeitos de prova do artigo 611°, releva segundo o acórdão do Tribunal da Relação, o património do devedor originário, atente-se ao contrato de mútuo, o devedor originário é a empresa construções DD Lda, sendo a fiança e o aval prestado, divida solidária, pelos 1 RR.

dd) Tendo em conta aquele raciocínio jurídico, efectuado pelo Tribunal da Relação, a irrelevância dos devedores solidários, tivessem esses no seu património bens bastantes para assegurar o pagamento da divida, não teriam os 1 RR de fazer a necessária prova.

ee) O que sucedeu efectivamente, e chama-se à atenção para a alteração efectuada pelo Tribunal da Relação, do artigo 17° da base instrutória, com nova redacção no acórdão como artigo 20°, que comprovadamente, a empresa construções opinião, possuía, à data da escritura de doação, património avaliado em mais de € 8 000 000,00.

ff) Em suma, prova a que alude o artigo 611º do C.C., acerca da suficiência dos bens perante o montante das dívidas, foi efectuada quer pelos 1 RR, quer pela empresa construções opinião Ida, de forma clara e inequívoca.

gg) Veja-se a esse propósito, a 18º conclusão do recurso de apelação, no qual a A. admite a suficiência do património dos RR.

hh) Foram violadas as normas constantes dos artigos precedentes.».


Não houve contra-alegações. O recurso foi admitido como revista, com efeito devolutivo.


3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1. A A. é uma instituição de crédito, dedicando-se à prática de todos os actos típicos da actividade bancária (al. A).

2. Os primeiros Réus, na qualidade de sócios-gerentes das sociedades comerciais com as firmas Construções DD Lda. e EE – Fábricas de Móveis e Carpintaria Lda. avalizaram livranças que titulam os seguintes mútuos:

a) celebrados com a sociedade Construções DD Lda.

- €40.300,00 (quarenta mil e trezentos euros), concedido em 30-06-2009, identificado nos serviços internos da Autora com o nº. 59062834723.

- €314.000,00 (trezentos e catorze mil euros), concedido em 23 de Abril de 2009, identificado nos serviços internos da Autora com o nº. 58018768227.

b) celebrado com a sociedade EE – Fábricas de Móveis e Carpintaria Lda.

- €354.000,00 (trezentos e cinquenta e quatro mil euros), concedido em 23 de Abril de 2009, identificado nos serviços internos da Autora com o nº. 58018766639 (al. B).

3. Os mútuos referidos em 2. encontram-se vencidos desde 30 de Junho de 2010, 23 de Abril de 2010 e 23 de Abril de 2010, respectivamente (al. C).

4. No âmbito da sua actividade e mediante proposta dos primeiros Réus, a Autora concedeu-lhes, em 20.03.2008, o mútuo no valor de €38.500,00 identificado nos serviços internos da Autora com o n.º 56041805025 (resposta ao art.º 1.º da base instrutória).

5. O qual serviu, essencial e maioritariamente, para pagar outro, previamente concedido aos dois primeiros RR em 26.09.2007, no montante de €23.000,00 que, por sua vez, serviu para pagar parcialmente uma prestação no valor de €37.662,93 do mútuo identificado nos serviços internos da Autora com o n.º 56034691502, que àqueles havia igualmente sido concedido em 10.02.2006 (resposta ao art.º 2.º da BI).

6. E ainda um outro, concedido aos mesmos RR em 20.10.2007, no montante de €22.000,00, o qual, por sua vez, serviu para pagar uma prestação de €23.931,05 do mútuo identificado nos serviços internos da Autora com o nº. 59006705040, concedido igualmente aos primeiros Réus em 24.10.1997 (resposta ao art.º 3.º da BI).

7. De igual forma, no âmbito da sua actividade e mediante proposta dos primeiros Réus, a Autora concedeu-lhes em 23.04.2009 o mútuo no valor de €71.000,00, identificado nos serviços internos da Autora com o nº. 58018765523 (resposta ao art.º 4.º da BI).

8. O qual serviu, essencial e maioritariamente, para pagar o mútuo nº. 56040163590, concedido aos dois primeiros RR em 4.10.2007, no montante de €65.000,00, o qual, por sua vez, serviu para pagar uma prestação no valor de €3 362,37 do mútuo nº. 56039240577, concedido aos primeiros Réus em 29.06.2007, a prestação de um mútuo concedido em 29.03.2006 à sociedade Construções DD Lda., no valor de €4.688,83, empréstimo garantido por aval dos primeiros Réus, e ainda quatro letras descontadas à EE Lda., todas depois de Janeiro de 2007, no valor global de €43.920,01, as quais se encontravam avalizadas pelos primeiros RR (resposta ao art.º 5.º).

9. E ainda para pagar o empréstimo nº. 56033217102, no montante de €17.431,85, concedido aos primeiros Réus em 2.09.2005 (resposta ao art.º 6.º).

10. O primeiro dos mútuos referenciados em 2. serviu essencial e maioritariamente para pagamento de várias letras descontadas a pedido da sociedade comercial com a firma Construções DD Lda., todas depois de Janeiro de 2007, no montante global de €40.334,41, as quais se encontravam avalizadas pelos primeiros RR (resposta ao art.º 7.º).

11. O segundo dos mútuos referenciados em 2. serviu essencial e maioritariamente para pagar os seguintes mútuos:

-n.º 59061280588, no valor de €19.887,92, concedido em 16.12.2008 e garantido por aval dos primeiros Réus; que por sua vez serviu para pagar uma prestação do mútuo nº. 59059621094 no valor de €20.830,76, concedido em 30.05.2008 e também avalizado pelos primeiros Réus o qual, por seu turno, servira para pagar parcialmente dois mútuos com os nºs. 56040072470 e 56040970031, no valor global de €28.721,24, concedidos em 26.09.2007 e 31.12.2007, respectivamente; o primeiro destes, por sua vez, foi concedido para pagamento do mútuo nº. 56035592583, no montante global de €89.254,18, também concedido à sociedade Construções DD Lda. em 19.05.2006 e também garantido por aval dos primeiros Réus;

-n.º 56040970031, no valor de €197.348,83, concedido em 31.12.2007 e igualmente avalizado pelos primeiros Réus; que por sua vez serviu para liquidar o mútuo n.º 56035131103, no montante de €219.485,58, concedido em 29.03.2006 e igualmente avalizado pelos primeiros Réus;

-n.º 56040072470, no valor de €54.267,27, concedido em 26.09.2007, também avalizado pelos primeiros Réus, que serviu para pagar um mútuo no montante de €89.254,18, concedido em 19.05.2006 e igualmente avalizado pelos primeiros Réus;

-n.º 56042616971, no valor de €33.460,97, concedido em 5.06.2008, igualmente garantido por aval dos primeiros Réus (resposta ao art.º 8.º).

12. O terceiro dos mútuos referenciados em 2. serviu essencial e maioritariamente para pagar os seguintes mútuos:

-n.º 59061281210, no valor de €13.004,54, concedido em 16.12.2008 e avalizado pelos primeiros Réus, o qual, por sua vez, servira para pagar o mútuo n.º 59059615911, no valor de €13.593,08, concedido em 30.05.2008 e igualmente avalizado pelos primeiros Réus, que servira para pagar uma prestação de cada um dos mútuos nºs. 56037126127 e 56040953335, no valor global de €19.743,93, o primeiro concedido em 15.11.2006 e o segundo em 28.12.2007, ambos garantidos por aval dos primeiros Réus; sendo que este último serviu para pagar o mútuo nº. 56035132788, no valor de €254.043,93, concedido em 29.03.2006 e também garantido por aval dos primeiros Réus;

-n.º 56041445331, no montante de €88.392,25, concedido em 20.02.2008 e garantido pelo aval dos primeiros Réus, que serviu para pagar o mútuo n.º 56039664029, concedido em 09.08.2007, no valor de €88.891,93, garantido por aval dos primeiros Réus o qual, por sua vez, serviu para pagar o mútuo nº. 56034557462, no montante de €90.919,69, concedido em 27.01.2006 e garantido por aval dos primeiros Réus;

-n.º 56040953335, concedido em 28.12.2007, no valor de €241.437,37, também avalizado pelos primeiros Réus, o qual serviu também para pagar o mútuo nº. 56035132788, no valor de €254.043,93, concedido em 29.03.2006 e igualmente garantido por aval dos primeiros Réus;

-n.º 56037126127, no valor de €24.141,31, concedido em 15.11.2006 e garantido por aval dos primeiros (resposta ao art.º 9.º).

13. Em resultado de qualquer um destes empréstimos, os mutuários em causa ficaram com as quantias à sua disposição, após o respectivo crédito em conta (resposta ao art.º 10.º).

14. Os dois primeiros mútuos referidos em 2. apresentam como saldo em dívida a quantia de €410.489,03 (resposta ao art.º 14.º).

15. O terceiro mútuo aí referido apresenta como saldo em dívida a quantia de €418.382,42 (resposta ao art.º 15.º).

16. No dia 4 de Janeiro de 2007, Cartório Notarial do Fundão a cargo do Notário Dr. FF, os primeiros Réus declararam doar ao seu filho, aqui segundo Réu, por conta da quota disponível deles doadores, o prédio rústico sito em Cabeço do Seixo, Tapado do Castanho e Quinta Nova, composto de pomar de pessegueiros e pomar de cerejas, com a área de 5 mil metros quadrados, inscrito na matriz sob o artigo 295º e descrito na CRP do Fundão sob o n.º …, doação que o segundo declarou aceitar (al. D).

17. O prédio referido em 16. é também composto por casa de habitação de cave, rés-do-chão e 1.º andar (resposta ao art.º 11.º).

18. O prédio identificado em 16. era aquele onde os 1.ºs RR. tinham e ainda têm instalada a casa de morada de família e onde ambos, após a escritura, continuam a habitar (resposta ao art.º 13.º).

19. A doação referida em 16. foi efectuada com o propósito de compensar o filho dos RR. de anterior doação feita à outra filha destes (resposta ao art.º 18.º).

20. À data da escritura de doação, a sociedade Construções DD, Ldª. era titular do rendimento de diversos imóveis, cujo valor patrimonial global ascendia a cerca de € 8 000 000,00, tendo sido constituída em data posterior pelo menos uma hipoteca a favor da autora para garantia de um crédito no montante máximo de €157 500,00 incidindo sobre um dos mencionados prédios (resposta ao art.º 17.º).

Este último ponto (20) resultou da alteração introduzida pela Relação no recurso de apelação. O que a 1ª Instância tinha julgado provado era o seguinte: “17º provado apenas e com esclarecimento : Os 1.ºs RR. e a firma Construções DD, na data da celebração da escritura de doação supra referida possuíam património imobiliário, onerado com garantias, incluindo à A., para assegurar o pagamento das suas responsabilidades”

4. Estão em causa neste recurso as seguintes questões:

– anterioridade dos créditos (al. a) do artigo 610º do Código Civil);

– alegação e prova, pelos réus, da suficiência do seu património para a satisfação dos créditos da autora (al. b) do artigo 610º do Código Civil);

– relevância da suficiência do património de devedores solidários.

5. Os recorrentes sustentam, nas alegações, que “No caso em apreço nos presentes autos, a A, confessadamente, concedeu apenas 2 empréstimos pessoais aos 1ºs RR, nas datas de 20.3.2008 e em 23.04.2009, datas posteriores à escritura de doação, 04.01.2007”.

Daqui pretendem retirar “que a previsão da alínea a) do artigo 610º, não pode ser preenchida”; referem-se ao requisito da anterioridade do crédito (desconsidera-se a parte final da citada al. a), que não está em causa).

No entanto, a prova feita no processo não suporta esta afirmação dos recorrentes, como se pode conferir pelos pontos 4 a 9; e os recorrentes desconsideram os demais mútuos anteriores à doação que vêm provados, não obstante implicarem as correspondentes obrigações para os recorrentes – cfr. em especial os pontos 2,11 e 12.

Neste aspecto, confirmam-se inteiramente as considerações de ambas as instâncias, aliás fundamentalmente dirigidas ao plano dos factos, apenas cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça avaliar do acerto de considerar como créditos anteriores à doação impugnada mútuos concedidos para reestruturar dívidas anteriores.

 Escreveu-se no acórdão recorrido: “no que respeita ao pressuposto da anterioridade do crédito, resulta da factualidade apurada que os mútuos identificados nos pontos 2. e 4., a despeito das datas em que foram celebrados, se destinaram essencialmente a liquidar créditos anteriormente constituídos e há muito vencidos, traduzindo-se numa reestruturação da dívida global que os devedores aqui 1.ºs RR mantinham para com a apelante, quer por via de empréstimos contraídos em seu nome pessoal, quer por força dos avales prestados às sociedades das quais eram sócios e gerentes[1]. As excepções são constituídas pelo mútuo no valor de €40 300,00 celebrado em 30/6/2009 a que se refere o ponto 10., mútuo n.º 56042616971, no valor de €33.460,97, concedido em 5.06.2008, referenciado no último parágrafo do ponto 11., e o montante de € 43 920,01 proveniente do desconto de quatro letras sacadas pela EE Lda., todas em data posterior a Janeiro de 2007, as quais se encontravam avalizadas pelos primeiros RR, dívida para cuja liquidação (ou parte dela) foi por estes contraído em 23.04.2009 o mútuo no valor de €71.000,00 identificado nos serviços internos da Autora com o nº. 58018765523 (cf. pontos 7. e 8. da matéria de facto).”

E a Relação salienta ainda, em nota, que “conforme resulta claro do disposto nos art.ºs 857.º e 859.º do CC, a vontade de contrair uma nova obrigação em substituição da antiga terá de ser expressamente manifestada.”; refere-se, como sabemos, ao instituto da novação. Ora, nada na prova permite sequer ponderar a hipótese de ter havido novação das obrigações contraídas.

Como se sabe, a impugnação pauliana é um meio de conservação da garantia patrimonial, protegendo o credor, que contava com determinado património do seu devedor quando se constituiu o crédito, contra actos do devedor que a afectam negativamente, diminuindo o activo (como é o caso presente, pois se trata de uma doação) ou aumentando o passivo. Porque o objectivo deste meio é essa conservação, exige-se que o crédito seja anterior ao acto, pois que, se for posterior, não poderá dizer-se que se alterou a garantia patrimonial com que o credor contava, quando o crédito se constituiu. Ressalva-se a hipótese do acto anterior ao crédito, mas dolosamente praticado com a finalidade de “impedir a satisfação do direito do futuro credor” (parte final da al.a) do artigo 610º do Código Civil), pois, como se disse já, nada na prova permite conjecturar tal eventualidade.

Tendo em conta esse objectivo, não pode deixar-se de concluir que se encontra preenchido o requisito da anterioridade do crédito; interpretação contrária inutilizaria a protecção concedida pelo mecanismo da impugnação pauliana. E porque neste recurso estão também em causa avales prestados pelos primeiros réus, cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Março de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº 4023/11.6/TCLRS.L1.S: “O crédito, em relação ao avalista, constitui-se no momento em que presta a seu aval. A partir de então associa-se à situação cambiária daquele a favor do qual deu a sua garantia.”

Encontra-se portanto preenchido o requisito da anterioridade do crédito, previsto na primeira parte da al. a) do artigo 610º do Código Civil.

6. – alegação e prova, pelos réus, da suficiência do seu património para a satisfação dos créditos da autora

Os recorrentes sustentam ainda que, contrariamente ao que decidiu o acórdão recorrido, foi eficazmente alegado e provado, no processo, que o seu património, à data relevante (prática do acto impugnado), era suficiente para satisfação dos créditos da autora (al. b) do artigo 610º do Código Civil).

Para que possa proceder uma impugnação pauliana, é condição necessária que do acto impugnado possa resultar a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito (al. b) do mesmo artigo 610º do Código Civil). Não necessariamente a insolvência, como se sabe, bastando a impossibilidade de facto (ou o agravamento respectivo) – cfr., a título de exemplo, o que se recorda quanto à história do preceito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 201\1, www.dgsi.pt, proc. nº 7288/07.4TBVNG.P1.S1: “Deixou de ser necessária a insolvência do devedor, passando a entender-se que aquela impossibilidade prática ou o seu agravamento devem justificar a impugnação, com vista a prevenir as hipóteses em que o devedor continua solvente mas os outros bens se mostram praticamente inexecutáveis.”.

Em situação de dúvida sobre essa impossibilidade, coloca-se ao julgador a questão de saber contra quem decidir, ou seja, quem tem o ónus da prova correspondente. Ora, tendo seguramente em conta, por um lado, que é mais difícil provar factos negativos, e, por outro, que o devedor está com toda a probabilidade em situação de mais facilmente poder provar que o seu património tem bens suficientes para garantir o crédito, do que o credor, o legislador distribuiu o ónus da prova da seguinte forma: cabe “ao credor a prova do montante das dívidas e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou mais valor” (art. 611º do Código Civil). Desviou-se assim, neste segundo aspecto – prova da suficiência do património do devedor – do critério geral de repartição do ónus da prova, fixado no artigo 342º do Código Civil, como o Supremo Tribunal de Justiça já por diversas vezes teve a oportunidade de observar (cfr., por ex., o citado acórdão de  29 de Novembro de 2011, ou o acórdão de  9 de Outubro de 2006, www.dgsi.pt, proc. nº 06A2368).

Os recorrentes sustentam que “na sua contestação (vidé artigo 57° e 58°), alegaram a suficiência do seu património”; mas tais artigos da contestação não têm de forma alguma esse conteúdo:

Artigo 57º:

“Ainda que, só por hipótese, se admitisse, que os financiamentos concedidos aos primeiros réus em 11/03/2008, 23/04/2009 e às sociedades EE, Lda e Construções DD, Ldª., em 23/04/2009 e 30/06/2009, se tratasse de renovação de operações –o que não se concede como já foi dito – o certo é que a Autora, enquanto Instituição de Crédito que é, não terá deixado de se assegurar da situação patrimonial dos Réus, nas respectivas datas.”

Artigo 58º

“Ora, certamente dessa análise não resultou que a Autora tivesse considerado então insuficiente a situação patrimonial dos primeiros Réus”.


Nem tal questão foi levada à base instrutória, em cujo quesito 17º apenas se incluiu uma outra, semelhante, mas relativa à sociedade Construções DD, Ldª.; quesito que veio a ser alterado por acordo das partes – mas sempre referido, apenas, a esta sociedade – e respondido em 1ª Instância como acima se dá nota.

Julgando a impugnação da matéria de facto, a Relação alterou a resposta, com esta justificação:

«No art.º 27.º da contestação os RR haviam alegado que “(…) A sociedade Construções Opinião possuía e possui ainda, património imobiliário mais do que suficiente que assegura o pagamento das responsabilidades que esta tem para com a autora”.

Não obstante o assim alegado, face à apresentação posterior do requerimento de fls. 90 [em nota: “Curiosamente apresentado pela Construções DD, Ldª., arrogando-se a qualidade de ré (cf. fls. 90), o que se terá ficado a dever a lapso manifesto”.] e documentos que o acompanhavam, o art.º 17.º da base instrutória, que acolheu a alegação, foi formulado em termos algo diversos, aí se questionando se “A firma Construções DD possui ainda património imobiliário no valor de, pelo menos, €1 208 139,24 para assegurar o pagamento das suas responsabilidades” (…)

Já em sede de audiência de discussão e julgamento, no reconhecimento de que o momento relevante para se aquilatar do valor do património do devedor é o da prática do acto prejudicial ao credor foi, por acordo, alterada a redacção do artigo em causa, nele se perguntando, na sua formulação definitiva, se “A firma Construções DD possui e possuía na data da escritura de doação, património imobiliário no valor de, pelo menos €8 040 020,29 para assegurar o pagamento das suas responsabilidades”. E foi à pergunta assim formulada que a Mm.ª juiz deu a resposta ora impugnada, cujo teor aqui se relembra “Provado que os 1.ºs RR. e a sociedade Construções DD, Ldª., na data da celebração da escritura de doação supra referida possuíam património imobiliário, onerado com garantias, incluindo à A., para assegurar o pagamento das suas responsabilidades.”

Resulta da transcrição vinda de fazer que entre o artigo da base instrutória em causa – que acabou por acolher, em essência, os termos da alegação – e a resposta que lhe foi dada, existe uma diferença substancial, por nesta ter sido incluída a menção aos 1.ºs RR, sendo certo que, conforme a apelante sublinha, nada tinha sido alegado na contestação quanto à existência de bens no património destes últimos capazes de assegurarem o pagamento da dívida. Ademais, faz-se notar, referindo-se a resposta dada à existência de bens no património dos 1.ºs RR e da sociedade Construções DD, Ldª., sem discriminação daqueles que integravam à data o património de uns e outros e respectivos valores, dela não poderia validamente extrair-se que o património dos primeiros fosse, por si, suficiente para assegurar o pagamento das dívidas à autora, credora impugnante.

De todo o modo, admitindo que tal facto – a existência de bens no património dos 1.ºs RR – possa ter emergido da prova produzida nos autos, cabe contudo indagar dos limites à sua consideração, atento o princípio do dispositivo – enquanto “liberdade das partes na decisão de propositura da acção e sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) (…)” [em nota: [1] Prof. Dr.ª Mariana França Gouveia, “O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual”, in “Estudos em Homenagem aos Profs. Palma Carlos e Castro Mendes”, acessível on-line.] –  que ainda vigora claramente na nossa lei processual civil (cf. o art.º 3.º e n.º 1 do art.º 5.º do NCPC).

O citado art.º 5.º, epigrafado de “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, continua a fazer recair sobre as partes o ónus da alegação dos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e [d]aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (vide n.º 1). Os factos essenciais que constituem a causa de pedir devem ser alegados pelo autor na petição inicial e, mantendo-se o princípio de que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, também o réu está obrigado a alegar nesta peça os factos essenciais que consubstanciam as excepções. Tal é o regime normativo que resulta do disposto nos art.ºs 552.º, 572.º, al. c) e 573.º, n.ºs 1 e 2 do NCPC e que, de resto, nenhuma alteração de relevo introduziu no regime cessante (cf. art.ºs 264.º, n.º 1 e 664.º, 2.ª parte do CPC cessante), posto que se mantém o efeito preclusivo quanto aos factos essenciais. Valendo assim plenamente o princípio da disponibilidade objectiva no que respeita a estes factos, vedada está ao tribunal a sua consideração quando não tenham sido alegados pelas partes[2].

No caso em apreço, sendo a presente acção de caracterizar como de impugnação pauliana, consoante resulta do disposto no art.º 611.º, este do Código Civil, recai sobre o devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova de que o obrigado possui, após a prática do mesmo, bens penhoráveis de valor igual ou superior ao montante da dívida. Tratando-se inequivocamente de facto de natureza exceptiva, essencial portanto à defesa dos demandados, sobre estes recaía o ónus da respectiva alegação (art.º 264.º, n.º 1 do CPC 1961 em vigor à data da apresentação da contestação e 5.º n.º 1 do NCPC). Deste modo, e em síntese, não tendo o facto sido alegado, vedada estava ao Tribunal a sua consideração, conforme com razão defende a apelante. Daí que se imponha a restrição do aludido ponto da matéria de facto, de modo a conformá-lo com os termos da respectiva alegação, eliminando-se a referência aos 1.ºs RR.

(…) Deste modo, e independentemente da relevância do facto, de que por ora se não curará, em conformidade com a prova constante dos autos e a que se fez referência, altera-se a resposta ao artigo em causa, que passará a ser a seguinte: “Provado apenas que à data da escritura de doação, a sociedade Construções DD, Ldª. era a titular do rendimento de diversos imóveis, cujo valor patrimonial global ascendia a cerca de € 8 000 000,00, tendo sido constituída em data posterior pelo menos uma hipoteca a favor da autora para garantia de um crédito no montante máximo de €157 500,00 incidindo sobre um dos mencionados prédios”.


Ora é exacto que o nº2, al. b), do artigo 5º do Código de Processo Civil de 2013, por confronto com o preceito equivalente do Código de Processo Civil anterior, o nº 3 do (então) artigo 264º, alterou as condições nas quais o tribunal pode considerar factos complementares ou concretizadores da causa de pedir ou da excepção, que não tenham sido oportunamente alegados pela parte a quem aproveitam. Com efeito, eliminou o que frequentemente se designava por alegação a posteriori, e que consistia na manifestação de vontade de que a parte se quisesse aproveitar do facto; o que não equivale a que se exigisse um requerimento da parte, como sustentam os recorrentes.

Não vem agora ao caso determinar se o novo regime consagra uma presunção de que a parte os quer aproveitar, ou se prescinde da respectiva vontade.

Mas vem certamente ao caso recordar que os recorrentes, réus na acção, não alegaram a excepção da suficiência do património, na contestação; o que nos dispensa de determinar se seria suficiente uma alegação genérica, impossível de impugnar eficazmente (cfr. artigo 574º do Código de Processo Civil). Não o tendo feito, e não se verificando nenhuma das excepções legalmente previstas, o princípio da concentração da defesa na contestação, que se mantém (artigo 573º do Código de Processo Civil) impede uma alegação posterior, impede o convite a uma hipotética concretização (nº 6 do artigo 590º do Código de Processo Civil) e impede naturalmente a sua consideração oficiosa (nº 1 do artigo 5º). O princípio dispositivo mantém-se, no que toca à alegação dos factos “em que se baseiam a excepções invocadas”.

Não merece assim qualquer censura o que a Relação afirmou, quanto à falta de alegação da excepção.

7. Esta consideração seria, por si só, suficiente para que se concluísse não haver, nem alegação, nem prova da suficiência patrimonial dos réus, e para aplicar a regra que faz recair o encargo da respectiva prova sobre os réus (artigo 611º).

Mas cumpre reconhecer que não foi esta a única razão invocada pelo acórdão recorrido. Com efeito, nunca seria suficiente, para o efeito, a resposta que a 1ª Instância deu ao quesito 17º. Para além de não se saber se o património dos réus, por si só, era suficiente, o que haveria de constar da prova eram factos concretos, era a identificação dos bens que, encontrando-se no património dos réus, seriam de valor suficiente ao dos créditos da autora, porque, contrariamente ao que sustentam os recorrentes, é irrelevante que no património de outros devedores solidários (isto é, outros, que não o devedor de cujo património saiu o bem através da doação impugnada) existissem bens suficientes, à data da doação.

Se tivessem sido oportunamente alegados tais factos concretos, poder-se-ia anular o acórdão recorrido, para ampliação da matéria de facto; o que, no caso, não sucedeu.

A terminar esse ponto, sempre se diz que é indiferente, do ponto de vista dos pressupostos da impugnação pauliana, saber se o bem doado era ou não o bem mais valioso do património dos doadores. Mas que convém não esquecer que vem provado que no terreno doado existe uma vivenda com cave, rés-do-chão e 1º andar “que também o compõe” – pontos 16 a 18 –, não constando que se tenha constituído qualquer direito de superfície, dissociando a propriedade do solo da propriedade da casa. O que significa, por si só, que, diferentemente do que os recorrentes afirmam nas alegações, não estamos seguramente a considerar um “objecto da doação” cujo valor seja de € 2 122,64.

8. – relevância da suficiência do património de devedores solidários.

Finalmente, cumpre verificar que os recorrentes também não têm razão quando sustentam que, para efeitos de ter como preenchido o pressuposto da insuficiência patrimonial, devem ser considerados os patrimónios dos devedores solidários. Concretamente, que “o valor patrimonial da sociedade Construções DD Lda. é superior a € 8.000 000,00, muito superior ao valor do montante em dívida”.

Ora – e independentemente de saber se se trata ou não de créditos de que esta sociedade era, nas palavras dos recorrentes, o devedor originário, e sabe-se que vêm provadas dívidas pessoais dos réus e avales a outra sociedade, a verdade é que só releva a suficiência patrimonial do devedor de cujo património saiu o bem doado; no caso, o dos primeiros réus desta acção.

É aliás neste sentido que se deve entender o acórdão recorrido.

Antes de mais, cumpre recordar que se trata de uma questão que já por diversas vezes foi analisada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que concluiu no sentido de não poderem ser tidos em conta os patrimónios dos (outros) devedores solidários (cfr., por exemplo, os acórdãos de 22 de Janeiro de 2004, www.dgsi.pt, proc. nº 03B3854 – “Existindo uma pluralidade de devedores solidários, a garantia patrimonial não é constituída pela mera soma dos respectivos patrimónios, mas sim pela cumulação dos mesmos patrimónios, responsáveis, cada um de per si, pela totalidade do crédito. Por outras palavras, a garantia patrimonial global do crédito deriva da existência duma pluralidade delas, funcionando autonomamente. Tal garantia resulta, por isso, não apenas do montante dos patrimónios obrigados, mas também da sua articulação. Quando um destes patrimónios deixa de poder responder pela totalidade do crédito, o sistema de garantia patrimonial fica afectado, independentemente dos restantes patrimónios poderem ser suficientes para o cumprimento da obrigação. Desta forma, a impugnação pauliana tem como objecto unicamente o património do autor do acto impugnado, porque, como se disse, mesmo estando em causa apenas a solvabilidade de um só devedor, está diminuída a garantia geral do crédito.”, de 9 de Outubro de 2006, www.dgsi.pt, proc. nº 06A2368 – “No caso de existirem devedores solidários, apenas importa a situação em que ficou o património no qual se integrava o bem sobre o qual recai o acto impugnado, pois é característica da solidariedade a existência de várias garantias patrimoniais autónomas, respondendo cada um dos devedores pela prestação integral (artº 512º, nº 1 do CC), podendo o credor atacar com a impugnação pauliana os actos praticados sobre qualquer um dos patrimónios-garantes e que ponham em risco a possibilidade de obter a satisfação do seu crédito pelos bens desse património, independentemente da situação dos restantes.” ou de 14 de Dezembro de 2006, www.dgsi.pt, proc. nº 06B3881, e jurisprudência nele citada.

A solidariedade passiva não permite ao devedor, nem opor o benefício da divisão, nem escudar-se a cumprir por inteiro, quando o credor lhe exige que cumpra (artigos 512º e 518º do Código Civil), ainda que chame os outros devedores à acção, para ali tomarem a posição de réus, quando a dívida seja exigida judicialmente. A vantagem do devedor encontrar-se-á antes no reconhecimento judicial do seu direito de regresso – por outras palavras, na extensão do caso julgado aos demais devedores (cfr. artigo 317º do Código de Processo Civil).

Só releva, portanto, a suficiência ou insuficiência patrimonial dos primeiros réus, à data da doação impugnada. Não havendo prova, considera-se preenchido o pressuposto da impossibilidade, previsto na al. b) do artigo 610º do Código Civil.

9. Vindo provada a constituição dos créditos identificados na lista de factos provados, demonstrada a sua anterioridade em relação à data da doação impugnada e não havendo prova de que os doadores/devedores tinham no seu património, à data da doação, bens penhoráveis de maior valor, conclui-se necessariamente que estão preenchidos os pressupostos necessários para a procedência da impugnação, por se ter igualmente que dar como demonstrado que da doação resultou a impossibilidade de satisfação dos créditos da autora.

10. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.


Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 01 de Outubro de 2015


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego