Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
121/10.1TBPTL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: ATROPELAMENTO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO MORTE
Data do Acordão: 09/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Brandão Proença, José Carlos, em “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, Coimbra, Almedina, 2007 (Reimpressão), pág. 811-823; in “Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e a conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”?”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 7, Julho/Setembro 2004, págs. 25 e segs..
- Calvão e Silva, in “Acidentes de Viação: concorrência do risco com a culpa do lesado (art. 505.º); limites máximos da responsabilidade objectiva (art. 508.º) e montantes mínimos obrigatórios do seguro; indemnização e juros de mora (arts. 566.º, n.º 2 e 805.º, n.º 3)” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134.º, p. 112 e segs..
- Fernando Reglero Campos, in Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo I, Capitulo II, “Los sistemas de Responsabilidad Civil”, págs. a 247 a 300.
- Sinde Monteiro, in “Reparação dos Danos em acidentes de Trânsito (um estudo de direito comparado sobre a substituição da responsabilidade civil por um novo seguro de acidentes de trânsito)”, Coimbra, 1974; “Estudos sobre a responsabilidade civil”, Coimbra, 1983; “Reparação dos danos pessoais em Portugal – a lei e o futuro – (considerações de lege ferenda a propósito da alternativa-sueca)”, CJ, Ano XI, tomo 4, 1986, págs. 7 e segs..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 503.º, 505.º, 570.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 4-10-07, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT, E COMENTADO NA REVISTA DE LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA, ANO 137.º, PÁGS. 35 E SEGS..
-DE 17-5-12, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Malgrado as alterações que vêm sendo introduzidas na legislação sobre o direito segurador, mormente pelo direito comunitário, o sistema português continua a manter o paradigma assente no primado da responsabilidade civil fundada na culpa do agente – art. 483.º do CC.

II - Admite, no entanto, a responsabilização do detentor/beneficiário de um veículo de circulação pelos riscos inerentes a esta mesma circulação – art. 503.º do CC.

III - Se, da dinâmica do acidente, se apurar a culpa exclusiva do lesado, o art. 505.º do CC exclui, de forma taxativa, a possibilidade de concorrência entre risco e culpa.

IV - Há concorrência de culpas, na proporção de 50%, se, por um lado, o lesado, peão, procedeu à travessia da via, de modo inadvertido – sem olhar para o lado esquerdo e sem se certificar da inexistência de circulação na mesma – e, por outro lado, a condutora do veículo agiu com imperícia e falta de destreza ao efectuar a manobra de desvio do obstáculo para a esquerda e não para a direita, conforme teve oportunidade, assim não logrando evitar o embate.

V - Considerando que (i) à data do acidente, a vítima tinha 86 anos de idade; (ii) em consequência do mesmo, sofreu dores; (iii) veio a falecer; (iv) era dedicado à autora, aos filhos e aos netos; (v) gozava de boa saúde, sendo estimado e respeitado pelos familiares, vizinhos e amigos; e que (vi) a sua morte causou desgosto e angústia à mulher e aos seus filhos, que por ele nutriam o afecto próprio dos laços que os uniam, considera-se adequado fixar em € 20 000, a compensação pelas dores sofridas entre o momento do embate e o decesso da vítima; em € 10 000, a indemnização pelo sofrimento, de cada um dos filhos, pela morte do pai, e em € 50 000, pelo dano morte.
Decisão Texto Integral:

I.- Relatório

AA, residente em ..., ..., ..., BB, morador na rua ..., …, ….º dto., ..., ..., CC, residente no lugar da ... daquela freguesia da ..., DD, residente na rua da ..., ..., casa 2, 1.º, ..., EE e FF, ambas moradoras na freguesia da ..., aquela no lugar de ... e esta no lugar de ..., vieram propor contra ”GG – Companhia de Seguros, S.A.”, com sede na ..., …, Lisboa, a presente acção ordinária, pedindo a condenação da Ré no pagamento, a título de indemnização por acidente de viação, da quantia de € 205000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do acidente até integral pagamento.

Foi admitida a intervenção do “Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões” que peticiona a condenação da Ré a pagar-lhe o subsídio por morte de HH e a pensão liquidada à 1.ª Autora.

A ré contestou, alegou a ilegitimidade da autora bem como impugnou a matéria alegada na petição.

A autora replicou e requereu a intervenção principal dos seus filhos e da vítima o que foi Admitido por despacho de fls. 79 e 80.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar: “(…) a acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolve-se a Ré ”GG – Companhia de Seguros, S.A.” dos pedidos formulados pelos Autores AA; BB; CC; DD; EE; e FF e pelo interveniente “Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões”

Desquiciados com o julgado, apelaram os demandantes, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão prolatada a 17 de Dezembro de 2013 - cfr. fls. , desatendido a pretensão recursiva, por confirmação (unânime) do julgado em primeira instância.

Constituída uma dupla conformidade, pediram os demandantes revista excepcional, escorando a sua pretensão nas alíneas a), b) e c) do artigo 672.º, n.º 1 do Código Processo Civil, tendo a comissão e apreciação prévia, por decisão de 27 de Maio de 2014 – cfr. fls. 623 a 629 – desatendido a excepcionalidade com fundamento nas alíneas a) e b) e estimando ocorrer contradição/oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão esgrimido como fundamento da oposição de julgados deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007 – cfr. fls. 598 a 621. [[1]]

Para a pretensão que alentam, alinham os recorrentes o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.

I. – Quadro Conclusivo.

1. Nos presentes autos o tribunal a quo deu por não provados os quesitos 1.º, 3.º,4.º (no que concerne ao tardio accionamento do sistema de travagem por parte da condutora), 5.º (concluindo que a condutora podia avistar o peão apenas a cerca de 30 metros), 6.º;

2. Ao invés, no sentido da imputabilidade do acidente ao peão sinistrado, deu por provados os quesitos 32.º e 33.º, 34.º (considerando que, antes de travar, o VU seguia a uma velocidade que oscilava entre os 55 e os 60 km/h) e 35.º;

3. A convicção do tribunal assentou, nos dizeres da M.a Juiz, " na análise crítica de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência comum:a qual, na explanação dos motivos da resposta dada à matéria controvertida, sustentou que "relativamente à forma como ocorreu o acidente, a única pessoa que mostrou conhecimento directo foi a condutora do veículo, II,

4. O tribunal de recurso manteve inalterada a matéria de facto definida pelo tribunal a quo, considerando que a primeira instância efectuou uma apreciação crítica da prova produzida, designadamente dos depoimentos sindicados em sede recursória, sustentando que " nenhuma outra testemunha - para além da condutora do VU - presenciou o acidente'.

5. Do que se conclui que o julgamento da culpa na eclosão do acidente assentou exclusivamente no depoimento da condutora do VU, interveniente no acidente, do qual resultou a morte do peão sinistrado, inexistindo qualquer outra testemunha presencial do acidente.

6. Embora não se pretenda colocar à análise deste Supremo Tribunal a reapreciação do depoimento desta testemunha - pois que se conhecem as suas limitações legais em sede de apreciação da prova - certo é que tal depoimento deveria ser valorado pelo julgador com especial cuidado e critério, em virtude de a testemunha ter figurado como arguida no processo-crime que correu paralelamente à presente acção cível.

7. Com o devido e merecido respeito, afigura-se deveras imprudente, insensata, mesmo ofensiva do senso comum, a fundamentação veiculada pela M.a Juiz da primeira instância ao considerar que o facto dc II já não poder sofrer consequências penais pelo acidente (face à decisão dc não pronúncia dc fls. 232 a 242) contribui para reforçar a credibilidade do seu depoimento, além dc que, não sendo parte no presente processo, é-lhe indiferente o seu desfecho.

8. Pois, como facilmente se compreende, ao homem comum é difícil aceitar que o depoimento desta testemunha não se encontre eivado dos resquícios daquela que é (ou foi) a sua argumentação e defesa no processo-crime.

9. Aos olhos do homem médio afigura-se natural que qualquer arguido em processo criminal adopte uma postura defensiva perante os factos de que é acusado, no uso das prerrogativas que o processo penal lhe confere, de forma a precludir, mitigar ou atenuar as consequências penais dos factos que lhe são imputados. Trata-se, com efeito, de um comportamento instintivo do ser humano, que o homem médio não ignora e que a lei processual penal acolhe, com eco, entre outros, na alínea d) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 3, ambos do artigo 61.º do CPP.

10. O que não se afigura natural, causando espécie ao homem médio, abalando a sua confiança na justiça, é o entendimento veiculado na fundamentação à decisão sobre a matéria de facto segundo o qual o depoimento da testemunha assume reforçada credibilidade em virtude de esta já não poder sofrer consequências penais pelo acidente. Isto porque, tendo a testemunha assumido e exteriorizado uma versão do acidente enquanto arguida no processo-crime, não é minimamente razoável que venha posteriormente deixar cair em tribunal a sua versão anterior a respeito do mesmo acidente.

11. Além do mais, mostra-se desprovida de rigor a argumentação de que o desfecho do processo era de todo indiferente para a testemunha, pois que, em função desse desfecho, poderia verificar-se uma eventual penalização ou agravamento do prémio do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel da condutora.

12. No modesto entendimento dos autores constitui uma afronta aos valores socioculturais dominantes, minando a confiança na justiça, decidir da culpabilidade na eclosão de um acidente como o relatado nos autos - um atropelamento mortal não presenciado por mais ninguém que não o condutor do veículo atropelante - acatando religiosamente o depoimento deste condutor, que por todos os motivos supra apontados, se encontra manifestamente comprometido com a causa.

13. Esta afronta aos valores socioculturais dominantes atinge o seu pico quando se sobrevaloriza de tal forma o depoimento dessa testemunha, ao ponto de se alterar, numa perspectiva paternalista, a tese da própria ré - foi isso que aconteceu na resposta dada ao quesito 34.º, pois, não obstante a ré alegar no artigo 24.º da douta contestação que o VU seguia a uma velocidade que "oscilava entre os 60 e os 70km/h, a Mma. Juiz decidiu acolher religiosamente a versão da condutora, mais conservadora que a da própria ré, dando por provado que "o VU seguia a cerca de 55 a 60 km/h”

14. Por outro lado, o peão sinistrado acabou por falecer no fatídico acidente, ficando, por isso, impedido de oferecer a sua versão dos factos em tribunal, ao contrário da ré que dispôs de uma testemunha privilegiada, claramente comprometida com a causa - a condutora do veículo atropelante.

15. Por via disso, deve entender-se que as partes não pleitearam em perfeita paridade de condições nem gozando de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes era devida, em clara violação do princípio da igualdade das partes.

16. Por tudo quanto se expôs, salvo mais douta opinião, deverá considerar-se que os interesses que os autores visam acautelar revestem particular relevância social, cabendo na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do C.P. C.

17. E, em conformidade com o predito, o processo deverá ser mandado baixar à Relação, para, com base na análise crítica e rigorosa do depoimento da referida condutora, serem reformuladas as respostas dadas à matéria de facto, quanto à matéria da culpa, e decidir-se pela procedência da acção.

18. Aqui chegados - e sem prescindir - é modesto entendimento dos autores que a questão supra analisada encerra uma matéria cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se afigura necessária para uma melhor aplicação do direito.

19. Nos presentes autos o julgamento da culpa na eclosão do acidente teve por base exclusivamente o depoimento da condutora do veículo de matrícula -VU, única pessoa que presenciou o acidente, do qual resultou a morte do peão sinistrado.

Nenhuma outra testemunha presenciou o acidente.

20. Pelos motivos supra elencados, designadamente pelo comprometimento da testemunha com a causa, o depoimento dessa condutora, prestado neste processo em que foi demandada a respectiva seguradora, deveria ser valorado como se de um depoimento de parte se tratasse, nos moldes consagrados no artigos 452.º e seguintes do CPC aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho,

21. Tal significa que só deveria ser aproveitado relativamente aos factos desfavoráveis à seguradora, pois só assim ficaria estabelecido um correto equilíbrio da posição das partes e dos interesses em jogo.

22. Com efeito, ao valorar como depoimento testemunhal o depoimento da condutora do veículo interveniente no acidente, do qual resultou a morte do peão sinistrado, sem a indicada limitação, o douto tribunal violou o princípio da igualdade das partes resultante dos atuais artigos 4.º e 496.º do C.P.C.

23. A alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do Dec. lei 291/2007, consagra, sob a epígrafe de legitimidade das partes, que as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.

24. Por sua vez, o artigo 27.º do citado diploma legal consagra uma série de situações em que, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor.

25. Resultando do supra referido quadro normativo que o condutor do veículo interveniente em acidente, no qual é demandada a respectiva seguradora tem, em última instância, interesse no desfecho do processo, quanto mais não seja para acautelar um sempre possível direito de regresso dessa seguradora, provadas que fiquem as circunstâncias elencadas nas alíneas a) a i) do artigo 27.0 do Dec. lei 291/2007, de 21 de Agosto.

26. E esse interesse assume especial acuidade no caso de acidentes como o relatado nos autos, em que faleceu um dos intervenientes, correndo, pois, em paralelo, o respectivo processo crime no qual o condutor figura (ou figurou) como arguido.

27. Assim, reitera-se, ao valorar como depoimento testemunhal o depoimento do condutor do veículo interveniente no acidente, única pessoa que presenciou o acidente, do qual resultou a morte do peão sinistrado, está-se a potenciar a um inaceitável desequilíbrio da posição das partes e dos interesses em jogo, violando-se o princípio da igualdade das partes resultante dos atuais artigos 4.º e 496.º do C.P.C.

28. Urge, pois, no modesto entendimento dos autores, que o depoimento do condutor no âmbito de processo emergente de acidente de viação em que seja demandada a respectiva seguradora, seja valorado como se de um depoimento de parte se tratasse, nos termos dos artigos 452.º e seguintes do CPC aprovado em anexo à Lei n.º41/2013, de 26 de Junho, tal significando que só poderá ser aproveitado relativamente aos factos desfavoráveis à seguradora, assim se fomentando o correto equilíbrio da posição das partes e dos interesses em Jogo, colocando-as em perfeita paridade de condições e dotando-as de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida.

29. Por tudo quanto se expôs, salvo mais douta opinião, deverá considerar-se que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, cabendo na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do C.P.C.

30. Em conformidade com o predito o processo deverá ser mandado baixar à Relação, para, com base na valoração do depoimento da referida condutora como depoimento de parte, serem reformuladas as respostas dadas à matéria de facto, quanto à matéria da culpa, e decidir-se pela procedência da acção.

Sem prescindir,

31. O acórdão recorrido, ao concluir que "sem prejuízo das situações de co-culpabilidade ou co-responsabilidade, a responsabilidade civil baseada no risco é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505.º do Código Civil)" - incorre em contradição com o acórdão proferido em 04-10-2007, no processo 07B1710 e com o acórdão proferido em 05/06/2012, no processo 100/10.9YFLSB, ambos deste Supremo Tribunal, já transitados em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC).

32. A decisão recorrida atenta contra a interpretação progressista e ou actualista dos artigos 505.º e 570.º do Código Civil, as directivas comunitárias e a mais recente doutrina, cujo efeito útil impõe sempre a indemnização das vítimas causadas por veículos automóveis, excepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado.

Com efeito, emerge do primeiro dos acórdãos fundamento que:

33. De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artigo 505.º do CC - maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado - exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

34. Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do artigo 505.º, e tratando da mesma forma, situações as mais díspares - nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, etc. - e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.

35. Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no Cód. do Trabalho para a infortunística laboral.

36. O texto do artigo 505.º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

37. Ao concurso é aplicável o disposto no artigo 570.º do CC.

38. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505.º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.

39. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.

Por sua vez, emerge do segundo acórdão fundamento invocado que:

40. As novas concepções comunitárias têm vindo a pôr em causa a jurisprudência e doutrina tradicionais em matéria de acidentes de viação, para as quais a imputação causal do acidente ao lesado exclui, por si só, a responsabilidade objectiva.

41. Com efeito, o direito comunitário, apresentando-se como garante de uma maior protecção dos lesados (alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco), veio - em várias directivas - consagrar a protecção dos interesses dos sinistrados, vítimas de acidentes de viação, numa sociedade como a nossa em que, o excesso de veículos (estacionados ou em circulação) criou desequilíbrios ambientais, limitou o espaço pietonal e aumentou potencialmente a sinistralidade.

42. Embora a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos seja, em princípio, da competência dos Estados-membros, impõe-se uma interpretação actualista das regras relativas à responsabilidade pelo risco, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas.

43. As disposições das directivas comunitárias em matéria de responsabilidade civil e seguro automóvel obrigatório - nomeadamente da Directiva n.º 2005/14/CE de 11-05 devem estar presentes em sede de interpretação do direito nacional e nas soluções a dar na aplicação desse direito, razão pela qual não é compatível - com o direito comunitário - uma interpretação do artigo 505.º do CE da qual resulte que a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco, prevista no artigo 503.º do EC.

Donde se extrai o seguinte:

44. O acórdão recorrido, incorre em contradição com o acórdão proferido em 04-10-2007, no processo 07B1710 e com o acórdão proferido em 05/06/2012, no processo 100!10.9YFLSB, ambos deste Supremo Tribunal, já transitados em julgado, no domínio da mesma legislação - artigos 503.º, 505.º e 570.º do CC - e sobre a mesma questão fundamental de direito - concorrência de culpa e risco em processo emergente de acidente de viação -, cabendo, portanto, na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

45. Regressando ao caso concreto aqui em apreciação, importa, pois, em conformidade com os ensinamentos colhidos nos acórdãos citados, e realçando os respectivos laços de identidade, indagar se, para além da culpa do peão sinistrado, terá contribuído para a eclosão do sinistro o risco próprio do veículo automóvel.

46. Analisando a matéria de facto provada, parece-nos que se impõe responder afirmativamente a esta questão, não sendo possível concluir que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável ao peão sinistrado - é dizer, que a actuação deste foi, só por si, idónea para a ocorrência do acidente, e que o veículo automóvel foi para tal indiferente, sem que a sua típica aptidão para a criação de riscos tenha contribuído para o mesmo acidente.

47. Nem a tal conclusão obsta o que consta da resposta aos quesitos 32.º e 33.oda "matéria de facto", porquanto em causa está um acidente com intervenção de um peão com 86 anos de idade e um veículo auto ligeiro, cuja perigosidade, em abstrato, decorre da sua própria natureza - das suas dimensões, do seu peso, da velocidade que pode atingir, da maior ou menor dificuldade em o manobrar - de "máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento".

48. Veiculo esse que, na situação concreta, era timonado, numa via também aberta a veículos não motorizados, dentro de uma localidade, ladeada por moradias de habitação, estabelecimentos comerciais e entroncamentos, por uma condutora jovem, factos só por si potenciadores do risco próprio da viatura.

49. E deverá atentar-se em que o embate fatal ocorreu próximo do eixo da via, na hemi-faixa direita, atento o sentido do VU (resposta ao quesito 2.º) - é dizer, quando o peão já tinha cruzado quase toda a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito do VU - projectando-o sobre o capot e para brisas do veículo, para depois cair para a berma do lado direito.

50. Dada a distância que o peão percorreu da berma até ao local em que foi colhido, no mínimo entre três e quatro metros, e dado estarmos a falar de uma pessoa de idade avançada, com uma estatura mediana (facto que pôde comprovar na autópsia médico-legal), que não caminharia, portanto, a uma média superior a um metro por segundo, o mesmo demoraria sempre cerca de três/quatro segundos a percorrer a distância desde o local onde começa a travessia até ao local onde foi colhido, tempo que num veículo a 50km/h equivale a uma distância percorrida de cerca de trinta metros, devendo concluir-se que a condutora tinha a obrigatoriedade de ver o peão, pelo menos, a essa distância, tanto que que a mesma podia avistar o peão a cerca de 30 metros (resposta ao quesito 5.º).

51. A estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo está assim, a nosso ver, inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente.

52. Por outro lado, o automóvel, enquanto máquina de funcionamento complexo, domina-se e controla-se tanto melhor - diminuindo o seu perigo potencial para os utentes das vias - quanto mais experimentado e hábil for o condutor. E a experiência ganha-se com a prática da condução, ao longo dos anos; e com esta vai-se também aguçando a habilidade, e vai-se ganhando uma capacidade de reacção quase instintiva a situações complexas do tráfego rodoviário que um condutor neófito não detém, sem que, porém, tal lhe possa ser censurado, no plano da culpa.

53. Dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o artigo 503.º do CC, cabem, "além dos acidentes provenientes da máquina de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)" e, no modesto entendimento dos autores, tal como nos caso relatado nos acórdão supra mencionado, surpreende-se, no caso concreto - enquanto factores que contribuíram para a verificação do acidente - a conjugação do perigo do próprio veículo com a inexperiência da sua condutora, potenciadora desse perigo.

54. Se a condutora circulasse a 50km/h, como devia, teria mais probabilidades de ter êxito na manobra evasiva que fez, sendo certo que um condutor mais diligente poderia ter evitado o acidente, emergindo tal conclusão de um raciocínio lógico e coerente, baseado no tempo que o peão levou a efectuar o atravessamento desde a berma até ao momento em que foi colhido.

55. Da matéria de facto provada fica ainda a ideia de que a condutora do VU podia ter atuado de forma diferente quer seja na mudança de trajectória para a via contrária quer seja para direita, porque tinha espaço para o fazer, não devendo olvidar-se, em caso algum que a mesma podia avistar o peão a cerca de 30 metros (resposta ao quesito 5.º).

56. Não se quer significar - não é demais reafirmá-lo, para que dúvidas não restem - que esta inexperiência se tenha projectado no domínio da culpa, em termos de a ligar a qualquer conduta negligente (por acção ou omissão) da condutora do VU; quer-se apenas dizer que essa falta de experiência, condicionando inelutavelmente o total e absoluto domínio das "artes" da condução, não deixou de se repercutir, em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão do evento lesivo.

57. Por isso, sem embargo de se reconhecer que o caso concreto não se reconduz às situações mais claras e nítidas que podem ocorrer no domínio da concorrência entre culpa e risco, deve, ainda assim, concluir-se que, para o acidente - e para os danos que dele resultaram para o peão sinistrado e concomitantemente para os aqui autores - contribuíram a conduta da condutora do VU, violadora das regras do direito estrada nomeadamente, o n.º 1 do artigo 24.º, as alíneas c), d) e f) do n.º 1 do artigo 25.º e o n.º 1 do artigo 27.º do Código da Estrada, porquanto circulava a velocidade superior à permitida para o local (vd. resposta dada ao quesito 34.), e os riscos próprios do veículo VU.

58. O que, de acordo com a interpretação do preceituado no artigo 505.º, acima operada no acórdão fundamento (proc. 07B 1700), reclamam os autores a subsunção desta situação concursal de causas do dano à norma de repartição do dano que é o artigo

59. Assim, em conformidade com o predito sempre deverá considerar-se e fixar-se, de modo justo e equitativo, a contribuição do risco do automóvel para a eclosão do sinistro, condenando-se a ré seguradora, na respectiva proporção, a suportar os "inegáveis" danos resultantes do acidente para os autores, cuja quantificação deverá ser feita com a habitual justeza e equidade, em função da prova produzida (vd. resposta aos quesitos 9.º a 15.º, 17.º a 21.º e 23.º a 30.º)

Contraminou a argumentação fundante do alor recursivo, a recorrida seguradora, tendo congraçado o epítome conclusivo que se extracta a seguir.

“1. O douto Acórdão proferido pelos Exmos. Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando, aliás, a douta Sentença proferida pela Mma. Juiz do Tribunal de Primeira Instância, não merece, no que concerne ao objecto do recurso interposto pelos Recorrentes, qualquer reparo, porquanto apreciou correctamente a prova produzida e interpretou a lei aplicável a essa matéria de forma inatacável.

2. Não vislumbra a Recorrida quais são, na realidade, os interesses de particular relevância social que se visam acautelar com o presente recurso.

3. Não se verificou qualquer violação do princípio da igualdade das partes, pois que, ao longo de todo o processo, às partes foram facultadas as mesmas possibilidades de exercerem os mesmos direitos.

4. No que respeita ao invocado comprometimento da testemunha, dir-se-á que os Recorrentes não o demonstram, baseando a sua invocação em conjecturas e possibilidades não confirmadas.

5. A Mma. Juiz do Tribunal "a quo" cumpriu irrepreensivelmente o dever de fundamentação da resposta à matéria de facto.

6. Se o depoimento da única testemunha presencial do acidente se mostra consentâneo com os elementos objectivos recolhidos no local, se não resultaram demonstrados quaisquer factos que permitam infirmar a versão apresentada pela referida testemunha, se não resulta demonstrado nos autos qualquer comprometimento da testemunha relativamente ao desfecho do processo, porque razão a MM.ª Juiz do Tribunal de Primeira Instância [num juízo reapreciado pelos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação] não poderia sustentar o julgamento da matéria de facto com base no depoimento dessa testemunha?

7. O depoimento da testemunha não foi o único elemento de prova ponderado pelo Tribunal para proferir a douta Sentença que proferiu, posteriormente confirmada no douto Acórdão recorrido.

8. Através da alegação dos interesses de particular relevância social os Recorrentes mais não visam do que procurar uma alteração da resposta à matéria de facto, possibilidade que a lei processual não admite.

9. Sustentar que o depoimento da referida condutora deverá ser valorado como um depoimento de parte e, como tal, apenas atendido se e na medida em que houver confissão de factos desfavoráveis à Seguradora consubstancia uma verdadeira alteração das "regras do jogo" e traduz-se numa flagrante violação do direito de defesa da Recorrida.

10. Á semelhança da alegação relativa aos interesses de particular relevância social, também a presente alegação mais não visa do que, contornando as regras do processo, procurar uma alteração da resposta à matéria de facto, possibilidade que a lei processual não admite.

11. A Recorrida não perfilha os argumentos utilizados pelos defensores da interpretação progressista ou actualista dos artigos 505.º e 570.º do Código Civil.

12. O instituto da responsabilidade civil baseia-·se no conceito de culpa, consignando expressamente a lei que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.

13. A interpretação progressista ou actualista dos artigos 505.º e 570.º do Código Civil contraria de forma gritante o disposto no artigo 9.º do Código Civil, assumindo-se como uma verdadeira interpretação contra legem.

14. Tal interpretação esvazia o conteúdo da própria norma contida no artigo 505.º do Código Civil, na medida em que, sustentando a concorrência do risco próprio do veículo com a culpa do lesado, permite que, mesmo quando o acidente é exclusivamente imputável ao lesado, se responsabilize com base no risco próprio do veículo.

15. Esse cenário representa solução intolerável no domínio da responsabilidade civil, especialmente quando o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

16. Não basta uma qualquer infracção para imputar a um dos intervenientes a responsabilidade no acidente, afigurando-se necessário estabelecer o nexo de causalidade [adequada] entre a prática da referida infracção e a verificação do acidente.

17. O comportamento do peão contribuiu decisivamente para o atropelamento, na medida em que bastar-lhe-ia ter olhado para o lado esquerdo antes de iniciar a travessia para ver a aproximação do veículo VU.

18. O facto de a condutora imprimir ao veículo VU uma velocidade entre os 55 e os 60km/h foi irrelevante no processo causal do acidente.

19. Foi o comportamento incauto e temerário do peão que o colocou na rota de colisão com o veículo, sendo aquele, por conseguinte, o único e exclusivo responsável pelo acidente dos autos.

20. À luz do disposto no artigo 505.º do Código Civil sendo o acidente exclusivamente imputável à vítima, a responsabilidade fundada nos riscos próprios do veículo encontra­-se excluída.”

I.B. – Questão a merecer apreciação.  

A revista foi admitida para perquirição da possibilidade de aplicação ao caso vertente da tese defendida no acórdão-fundamento, qual seja a de atribuição de uma indemnização ao lesado (peão), a quem tendo sido atribuída a culpa na produção de um sinistro viário, ainda assim pode, esse comportamento culposo e causante do evento danoso, concorrer com o risco próprio do veículo interveniente no acidente    

II. FUNDAMENTAÇÃO.

II. A. – DE FACTO.

Vem adquirida, depois da reapreciação da decisão de facto operada pelo Tribunal da Relação, a factualidade que a seguir queda extractada.

“A) - No dia 18 de Fevereiro do ano de 2009, pelas 09h00, na Estrada Nacional 201, km 43,450, ..., concelho e comarca de ..., ocorreu um acidente de viação.

B) - Foram intervenientes nesse acidente o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula -VU, conduzido pela sua proprietária II, e o peão de nome HH.

R) - A responsabilidade da circulação do veículo estava transferida para a Companhia de Seguros JJ, S.A., através do contrato de seguro titulado sob a apólice n.º ....

C) - O veículo -VU circulava na Estrada Nacional n.º…, no sentido Braga - ....

D) - O peão, HH, seguia pela berma lado direito da referida estrada, no mesmo sentido de marcha do veículo -VU.

E) - Pretendendo atravessar a referida estrada, iniciou a travessia da direita para a esquerda em relação ao sentido de marcha do veículo.

32.º,33.º - Quando iniciou a travessia, o peão não olhou para a sua esquerda, pelo que não atentou na aproximação do VU.

1 Opta-se por uma disposição dos factos tanto quanto possível cronológica, fazendo-se referência no início à alínea ou ordinal de onde aqueles provêm.

35.º - Perante a entrada do peão na hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido do VU, a condutora deste tentou evitar o atropelamento, travando e desviando-se para a esquerda.

4.º - A condutora do VU travou.

34.º - Antes de travar, o VU seguia a cerca de 55 a 60 km/h.

5.º - A condutora do VU podia avistar o peão a cerca de 30 m.

2.º - O atropelamento ocorreu próximo do eixo da via, na hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido do VU.

8.º - O local do acidente está situado dentro dos limites da freguesia da ..., assinalados com placa, havendo um entroncamento à esquerda, no sentido em que seguia o VU.

F) - O peão foi embatido lateralmente pelo guarda-lamas da frente lado direito do veículo.

G) - Após o choque o peão foi projectado sobre o capot e pára-brisas do veículo, para depois cair para a berma lado direito, imobilizando-se no solo.

K) - A estrada, no local do acidente, permite a circulação de trânsito em ambos os sentidos de marcha, separados por linha longitudinal descontínua.

L) - A faixa de rodagem descreve uma recta com a largura de 5,70 m, antecedida de curva à direita, atento o sentido Braga - ....

M) - A curva possui um morro do seu lado direito, atento o referido sentido, que retira a visibilidade aos condutores para lá da curva.

N) - Possui bermas de ambos os lados.

O) - O piso era asfaltado e à data do acidente encontrava-se em bom estado de conservação.

P) - Fazia bom tempo.

Q) - O veículo deixou marcados no pavimento rastos de travagem oblíquos, da direita para a esquerda, com a extensão de 22,70 m, no que concerne ao rodado esquerdo, e de 13,80 m, no que respeita ao rodado direito.

H) - Do acidente resultaram ferimentos graves no peão HH.

10.º - Enquanto permaneceu no local, HH chamou pela sua mulher, a Autora AA.

11.º - A viatura do INEM chegou ao local cerca de 20 minutos após o acidente.

12.º - HH foi assistido no local e depois transportado de ambulância para o Hospital de S. Marcos, em Braga.

13.º - Em consequência do atropelamento, HH Ribeiro sofreu dores em várias partes do corpo.

15.º - No período de hospitalização, HH apenas foi visto por uma das filhas.

I) - HH faleceu às … horas do dia … de Fevereiro de 20….

J) - HH contava com … anos de idade.

17.º - HH era dedicado à Autora AA e aos seus filhos e netos.

18.º - HH fazia trabalhos agrícolas, nomeadamente de poda da vinha.

21.º - HH era reformado.

23.º - À data do acidente, HH gozava de boa saúde.

24.º - HH era estimado e respeitado pelos familiares, vizinhos e amigos.

25.º,26.º - A morte de HH causou desgosto e angústia à sua mulher e aos seus filhos, que por ele nutriam o afecto próprio dos laços que os uniam.

36.º - O CNP pagou à viúva AA, a título de subsídio por morte, o valor total de € 628,83.

37.º - O CNP pagou pensões de sobrevivência a AA, entre Março de 2009 e Maio de 2011, no total de € 4 209,98.

- A Autora AA faleceu a … de Maio de 20…, com … anos (certidão de fls. 355).

- BB, CC, DD, EE e FF são filhos de HH (certidões de fls. 160 a 169).”

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Concorrência, na responsabilidade aquiliana, de um juízo de culpabilidade do lesado com o risco do veículo interveniente do acidente.

A controvérsia/dissensão suscitada acerca da “problemática das relações entre o risco dos veículos de circulação terrestre e a conduta imputável ao lesado”, tendo originado um debate entre aqueles que defendiam o primado da culpa “sem soluções ponderativas” e aqueloutros que “[mais] preocupados com a função reparadora da responsabilidade civil (…)”, rejeitavam “uma visão absorvente da culpa” [[2]], obteve acolhimento jurisprudencial, lhano e lidimo, no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4-10-07, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino, [[3]] e no qual se assumiu, que “[o] texto do art. 505.º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”. [[4]]

A responsabilidade civil extracontratual ou seja a obrigação de ressarcir ou reparar os danos (damni iniuriae) causados pela acção ou omissão (ilícita) de um terceiro na esfera pessoal de um indivíduo provocando-lhe uma alteração ou modificação do estado que se encontrava antes da injunção dessa acção ou omissão, radica desde o tempo da “Lex Aquilia” numa pauta culpabilística. O autor a quem fosse imputada uma acção ilícita e que tivesse agido com culpa, ficava obrigado a reparar os danos causados na esfera de outrem. [[5]] O princípio de nenhuma responsabilidade sem culpa satisfazia plenamente os interesses de uma economia baseada na autonomia do individuo e na responsabilização das pessoas pelas acções ou omissões praticadas no seu agir quotidiano e em qualquer actividade económica que fosse desenvolvida pelos sujeitos em sociedade. Assim não poderia se assacada a responsabilidade por danos causados a outrem desde que não se verificassem os seguintes requisitos: “a) não pode haver responsabilidade se não há culpa ou dolo do agente; b) o conceito de culpa identifica fundamentalmente o elemento subjectivo, caracterizado pela negligência, imprudência ou imperícia e tem uma implicação moral porquanto o acto culposo é considerado como um acto moralmente reprovável; c) as regras da responsabilidade civil que disciplinam o acto culposo, assume e função de «sanção» da culpa, e dispõem uma «ameaça» dirigida também a prevenir eventuais comportamentos danosos; d) tais regras patenteiam como só os actos que o sujeito cumpre podem resolver-se com uma sanção a seu cargo.” [[6]]    

A evolução de um Estado liberal para um Estado de bem-estar e a necessidade de por a cargo dos detentores e beneficiários de determinadas actividades a responsabilidade por danos causados no desempenho e desenvolvimento dessas actividades veio alterar, significativamente, o paradigma ou o cânone normativo da concepção da responsabilidade civil, induzindo a noção de uma responsabilidade que não tivesse como pauta definidora e aferidora a acção culposa do agente, mas antes o risco ou o perigo em que assenta e se desenvolve uma determinada actividade. [[7]]     

A evolução do regime da responsabilidade civil sofreu, no entanto, por virtude das transformações de uma sociedade industrializada, em permanente evolução tecnocrática, adaptações ao riscos que os avanços da tecnologia. Primeiramente, com o abandono da rígida formula nenhuma responsabilidade sem culpa do agente/lesante para um regime de presunção de culpa quando estão envolvidos, na eclosão do evento, meios mecânicos que envolvem um risco acrescido e mais recentemente com uma crescente socialização do risco em que o que prevalece é a busca de garantia de uma reparação do dano a cargo de quem possui meios económicos para os suportar.

O sistema português continua, malgrado as alterações que vêm sendo introduzidas na legislação sobre o direito segurador, mormente pelo direito comunitário, a manter o paradigma assente no primado da responsabilidade findada na culpa do agente – cfr. artigo 483.º do Código Civil – admitindo, no entanto, a responsabilização do detentor/beneficiário de um veículo de circulação pelos riscos inerentes à circulação do veículo – cfr. artigo 503.º do Código Civil.

A questão que vem a tela de juízo, como se enunciou supra, atina com a compatibilização ou não de concorrência do risco inerente à circulação do veículo com a culpa do lesado. [[8]]

Não vale recensear, aqui e agora, a cópia de arestos que num e noutro sentido vem sendo proferidos e as razões que vêm sendo esgrimidas a favor de uma e outra tese ou posição, sendo que, como se deixou exarado supra, a moderna doutrina se vem afastando da tese tradicional e conservadora de que é epígono o Professor Antunes Varela. [[9]]

Para os defensores da tese da concorrência entre o risco do veículo e o facto do lesado, “sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Equivale isto a admitir o concurso de culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o caso de o facto do lesado (como facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art.503.º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. (…)

A ressalva do art. 570.º feita na 1.ª parte do art. 505.º é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º; a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º é a responsabilidade objectiva; logo a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570.º) e o risco da utilização (art. 503.º) resulta do disposto no art. 505.º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável (leia-se unicamente devido, com ou sem culpa) ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (leia-se, exclusivamente) de causa de força maior.” [[10]]             

Os argumentos esgrimidos a favor da tese são ponderáveis e merecerão, em abstracto, consideração. No entanto, no momento actual nem a jurisprudência nem a doutrina se mostram favoráveis a um desenvolvimento positivo dessa tese, que, por isso, não deve merecer acolhimento.

Porém, no caso concreto, a tese em apreço não poderia ter aplicação.

Na verdade, mesmo a tese que alçaprema ou admite a concorrência entre risco do veículo e culpa ou facto (culposo) do lesado extirpa ou erradica, de forma taxante, a culpa exclusiva do lesado. Vale dizer se da dinâmica do acidente se apurar a culpa exclusiva do lesado o artigo 505.º do Código Civil exclui ou bane de forma taxativa a possibilidade de concorrência entre risco e facto do lesado. [[11]]

Conforme se alcança das decisões das instâncias, a conclusão lógico-cognitiva a que se alcandoraram foi a de que a culpa na eclosão do evento danoso cabia na totalidade ao peão/lesado.

Tendo sido esta a conclusão, a decisão sob escrutínio arredou a possibilidade de aplicação da tese permissiva ou actualista – concorrência entre risco e facto do lesado – por banimento estatuído no artigo 505.º do Código Civil.        

Não é essa, porém, a nossa percepção e compreensão da dinâmica do acidente.

Ainda que mantivéssemos o entendimento perfilhado na decisão recorrida quanto à impossibilidade de accionar aqui a aplicação do artigo 505.º do Código Civil, na perspectiva da concorrência entre risco e culpa do lesado, o facto é que, nosso juízo, os factos adquiridos, por provados, para as decisões, evidenciam uma situação que atina com uma concorrência de culpas entre a detentora/condutora do veículo e o facto do lesado. [[12]]   

Importa, para a resolução do caso, recensear a factualidade que foi adquirida para as decisões das instâncias.

O embate entre o veículo conduzido e o peão verificou-se no interior de uma povoação, sendo que a condutora do veículo poderia antever o peão a cerca de trinta (30) metros. O veículo era conduzido e uma velocidade entre 55 e 60 Klmts/hora e o embate verificou-se perto do meio da faixa de rodagem, que tinha uma largura de cerca de 5,70 metros. A condutora do veículo efectuou uma travagem, para tentar evitar o embate no peão, deixando assinalados “no pavimento rastos de travagem oblíquos, da direita para a esquerda, com a extensão de 22,70 m, no que concerne ao rodado esquerdo, e de 13,80 m, no que respeita ao rodado direito.” O peão foi embatido, lateralmente, pelo guarda-lamas da frente do lado direito do veículo, tendo, como embate sido projectado para o capot e daí para a berma do lado direito.

A estrada, no local onde o embate se verificou, desenvolve-se em sentido recto, “antecedida de curva à direita, atento o sentido Braga - ...” sendo esta curva sobrelevada, no seu lado direito por um morro “que retira a visibilidade aos condutores para lá da curva.”

O peão tinha oitenta e seis anos (86) de idade.

Com a provecta idade que ostentava a vítima – ainda que admitindo (por provado) a sua despreocupação e desatenção para o trânsito que circulava na via – decerto que se movimentaria com alguma dificuldade, pelo que terá demorado um certo lapso de tempo entre a tomada da faixa de rodagem (início da travessia da via) e o seu meio – local onde foi embatido, pelo lado esquerdo do veículo. A condutora do veículo poderia avistar o peão a cerca de trinta (30) metros – facto que se comprova, e se tem por ajustado, dadas as distâncias inscritas nos factos provados (22,70 metros de rasto de travagem a que haverá que adjungir alguns metros que corresponderão ao tempo que mediou entre o avistamento do peão e o início da operação de travagem.    

Sendo, decerto a marcha do peão lenta, a condutora do veículo teria, e atendendo ao local do embate (itera-se, meio da via com largura de 5,70), tido oportunidade de se desviar para a direita, em vez de o fazer para a esquerda – local para onde a marcha do peão se efectuava (tinha iniciado a travessia à direita da condutora e fazia a travessia em sentido oposto) – poderia, com atenção, clarividência, destreza e perícia ter orientado a manobra de afastamento do peão para a direita do mesmo, em vez de a ter orientado para a esquerda como o fez.

Poder-se-á repontar que quem circula numa via não tem que contar com imprevistos que lhe surgem, decorrentes de atitudes imponderadas dos demais utentes. Condescendemos. No entanto, no caso em apreço, a condutora terá avistado o peão a cerca de 30 metros, pelo que ainda de inadvertida e imponderada a atitude do peão, teria tido possibilidade de, se tivesse colocado na resolução do problema que se deparou alguma atenção e perícia, logrado tornear o peão e passado, ainda que poendo invadir a margem da estrada.

Acresce o facto de a condutora do veículo circular a uma velocidade superior ao legalmente permitido nos interiores das povoações – cfr. artigo  do Código da Estrada. A infracção de uma regra estradal constitui-se como uma presunção de culpa do infractor que só poderá ser afastada se se vier a demonstrar que não foi causal do acidente. No caso concreto, o excesso de velocidade poderá ter contribuído para a imperícia e falta de destreza que a manobra de desvio do obstáculo, com que se deparou, se veio a revelar.

Em nosso aviso, a factualidade provada evidencia uma concorrência de culpa que terá de ser distribuída de harmonia com o artigo 570.º do Código Civil.

Atendendo ao modo inadvertido como o peão entrou e incoou a travessia da via – sem olhar para o seu lado esquerdo, de modo a comprovar a inexistência de circulação na via – e a perícia e falta de atenção demonstrado pela condutora do veículo, entendemos que aas culpas deverão ser distribuídas em cinquenta por cento (50%) para cada um dois intervenientes.

Determinado o grau de culpa na produção do evento danoso, importa proceder ao cálculo da indemnização a cargo do lesante, que havia transferido a sua responsabilidade civil para a seguradora-ré.

Com relevância e atinência para a aferição do montante indemnizatório, está adquirido que: a) sofreu dores em consequência das lesões sofridas; b) era dedicado á autora, aos filhos e netos; c) realizava trabalhos agrícolas (poda da vinha); d) gozava de boa saúde era estimado e respeitado pelos familiares, vizinhos e amigos; e) a sua morte “(…)causou desgosto e angústia à sua mulher e aos seus filhos, que por ele nutriam o afecto próprio dos laços que os uniam”; f) à data do acidente o lesado/vítima tinha oitenta e seis (…) anos de idade.

Os pedidos, pela indemnização por danos não patrimoniais – afinal os únicos que resultaram provados, já que quanto aos danos patrimoniais apensa se provou que o lesado apenas efectuava a poda das vinhas – formulados pelos demandantes afiguram-se-nos demasiado elevados.   

O dano não patrimonial pelas dores sofridas pela vítima/lesado durante o período que decorreu entre o momento do embate e o decesso estimar-se-ão em vinte mil (€ 20.000,00) euros. Já quanto ao sofrimento pela morte do pai o valor a atribuir, por danos não patrimoniais próprios de cada um dos filhos deverá situar-se no montante de dez mil (€ 10.000,00).

O dano pela morte do lesado/vítima estima-se dever situar-se no valor peticionado, ou seja o montante de cinquenta mil (€ 50.000,00).

Atendendo á proporção de culpas fixada supra a indemnização a atribuir será no valor global de sessenta mil (€ 60.000,00).

       

DECISÃO.

Em defluência do que fica exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

a) – conceder parcial provimento à revista, e na verificação de uma conculpabilidade entre a condutora do veículo e o peão lesado, condenar a demandada seguradora a pagar aos demandantes a quantia de sessenta mil (60.000,00) euros

b) condenar demandantes e demandada nas custas, na proporção de metade para cada um.

                                               Lisboa, 9 de Setembro de 2014.

Gabriel Catarino (Relator)

Maria Clara Sottomayor

Sebastião Coutinho Póvoas

____________________________
[1] Queda extractado o troço fundante da aceitação da revista (excepcional). “(…) perante a factualidade fixada, a Relação concluiu que “foi a conduta da vitima que deu causa ao acidente ao iniciar a travessia sem se assegurar que o podia fazer sem perigo”, e, por isso, fundando-se no disposto no artigo 505.º do C.C., decidiu que a responsabilidade civil baseada no risco é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de causa fortuita estranha ao funcionamento do veículo.
Parece assim claro, apesar de não ter tratado a questão com profundidade, não deixou de optar pela tese oposta à do acórdão-fundamento, que determinou, na perspectiva do acórdão recorrido, solução diversa da proposta pelo acórdão-fundamento, o que, salvo melhor opinião, é suficiente para se poder concluir que existe oposição de julgados entre os dois acórdãos em confronto.”          
[2] Cfr. Brandão Proença, José Carlos, em “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, Coimbra, Almedina, 2007 (Reimpressão), pág. 811-812.
[3] Disponível em www.dgsi.pt, e comentado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, págs. 35 e segs.. Na doutrina e numa posição avalizadora da concorrência entre culpa e risco do veículo veja-se Brandão Proença, José Carlos, em “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, Coimbra, Almedina, 2007 (Reimpressão), págs. 811 a 823; Calvão da Silva, João, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano134º, págs. 115 e segs.; Sinde Monteiro, in “Reparação dos Danos em acidentes de Trânsito (um estudo de direito comparado sobre a substituição da responsabilidade civil por um novo seguro de acidentes de trânsito)”, Coimbra, 1974; “Estudos sobre a responsabilidade civil”, Coimbra, 1983; “Reparação dos danos pessoais em Portugal – a lei e o futuro – (considerações de lege ferenda a propósito da alternativa-sueca)”, CJ, Ano XI, tomo 4, 1986, págs. 7 e segs.; Calvão e Silva, in “Acidentes de Viação: concorrência do risco com a culpa do lesado (art. 505.º); limites máximos da responsabilidade objectiva (art. 508.º) e montantes mínimos obrigatórios do seguro; indemnização e juros de mora (arts. 566.º, n.º 2 e 805.º, n.º 3)” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134.º, p. 112 e segs.; Brandão Proença, in “Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e a conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”?”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 7, Julho/Setembro 2004, págs. 25  e segs..        

[4] Para uma recensão mais detalhada e explicitada das posições em confronto, no plano jurisprudencial, veja-se o acórdão deste Supremo, de 17-5-12, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes.

[5]Na imputação por culpa permanecia todavia latente a ideia canónica de que a reparação do dano constituía a penitência que se ligava á conduta negligente e em que a função compensatória não desempenhava senão um papel meramente complementar” – cfr. Tratado de Responsabilidad Civil, Fernando Reglero Campos, Tomo I, pág. 251.  Para este autor, porém, “La tendencia actual en esta materia discurre por sendas bien distintas. Hoy no se trata tanto de indagar si el comportamiento del demandado fue negligente, cuanto de dilucidar si, una vez sufrido el daño, existe alguna razón para que sea la víctima la que haya de soportalo; o lo que es mismo, se trata de determinar qué patrimonio debe, en justicia «sufrir el daño. El moderno Derecho centra, pues, su atención no tanto en el reproche de la conducta del agente, cuanto en la búsqueda de soluciones jurídicas que garanticen a la víctima una efectiva satisfación cuando no existan razones que justifiquen que sea ella quien soporte el prejucio” – ut op. loc. cit.      
[6] Cfr. Fernando Reglero Campos, in op. loc. cit. Tomo I, pág. 253.
[7] Para maiores desenvolvimentos cfr. Fernando Reglero Campos, in Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo I, Capitulo II, “Los sistemas de Responsabilidad Civil”, págs. a 247 a 300.
[8] Preceitua o artigo 505.º do Código Civil que: “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º (co-responsabilização do lesado por contribuição para a produção do evento danoso), a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
[9] Cfr. a este propósito a recensão da doutrina efectuada no Acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Outubro de 2007, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino, in www.dgsi.pt
[10] Cfr. Calvão e Silva, Acidentes de Viação: concorrência do risco com a culpa do lesado (art. 505.º); limites máximos da responsabilidade objectiva (art. 508.º) e montantes mínimos obrigatórios do seguro; indemnização e juros de mora (arts. 566.º, n.º 2 e 805.º, n.º 3)” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134.º, p. 115.
[11] cfr. Calvão e Silva, no estudo supra citado.
[12] É nosso entendimento que os fundamentos que deram causa à admissibilidade da revista excepcional não constrangem o relator a confinar-se nos limites fundantes e estritos dos fundamentos que ditaram essa admissibilidade. Admitida a revista excepcional nada, em nosso aviso, impede, ou é obstativo, de, na apreciação do caso concreto, afinal de contas o objecto de cognoscibilidade do recurso, o tribunal enveredar pela apreciação do caso tal como ele está adquirido para resolução, tomando em consideração todos os elementos do processo, maxime o amplexo factológico em que se repercute a actividade probatória das instâncias. Assim, é que nada obsta, em nosso juízo, que, como é o caso, o recurso seja admitido, excepcionalmente, com fundamento num dos pressupostos contidos nas alíneas do actual artigo 672.º, n.º 1 do Código Processo Civil, e o tribunal advirta, em face de uma divertida apreciação e ponderação da percepção e compreensão do quadro factual adquirido, se oriente e predisponha a encontrar uma solução afastada da solução que havia sido conferida pelas instâncias.