Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P293
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
MODALIDADES AFINS
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
ÂMBITO DO RECURSO
ARGUIDO NÃO RECORRENTE
APROVEITAMENTO DO RECURSO AOS NÃO RECORRENTES
Nº do Documento: SJ20080227002933
Data do Acordão: 02/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I - O art. 115.º do DL 422/89, de 02-12, na redacção que lhe foi dada pelo DL 10/95, de 19-01, prevê uma infracção penal cujos elementos típicos vêm descritos como «fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expor ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogo de fortuna ou azar», sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos. Trata-se, pois, de uma infracção de mera actividade de relação com determinados bens, e de actividade relativamente proibida porque dependente da ausência de autorização da Administração.

II - Elemento central da descrição do tipo são os bens («material e utensílios») que, pela sua natureza e funcionalidade instrumental, se ligam à prática de jogos de fortuna ou azar.

III - Os jogos de fortuna ou azar constituem, pois, um elemento fundamental de conexão e de delimitação instrumental. A precisa definição, para efeitos da lei, da categoria de jogos de fortuna ou azar, na distinção de outras modalidades, apresenta-se como prius da integração logo ao nível da tipicidade descrita no mencionado art. 115.º.

IV - A necessidade da “devida regulamentação” e de “rigorosa fiscalização” para minimizar os efeitos da “prática descontrolada” dos jogos de fortuna ou azar tem sido objecto de extensa legislação desde 1927.

V - Esta necessidade de intervenção regulamentadora e, consequentemente, de fiscalização por órgãos que a Administração expressamente instituiu tem determinado a previsão de apertada disciplina da prática dos jogos de fortuna ou azar, com a definição e precisão das modalidades e espécies autorizadas, a delimitação e concessão das chamadas zonas de jogo e, como garantia de eficácia, a tipificação dos comportamentos proibidos neste domínio, com o estabelecimento das sanções que se consideram adequadas.

VI - No essencial e na perspectiva mais saliente, foi a proliferação de certo tipo de máquinas de jogo e as consequências negativas que foram produzidas junto das camadas mais jovens, destinatários preferenciais da oferta dos jogos específicos proporcionados por essas máquinas, que determinaram a intervenção legislativa, disciplinando e controlando a respectiva utilização (Decretos-Lei 21/84 e 22/85, ambos de 17-01).

VII - No âmbito desta regulamentação, a exploração de jogo ilegal (jogos classificados como de fortuna ou azar fora das zonas próprias) passou a abranger apenas as máquinas automáticas que desenvolvessem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar. Actualmente a disciplina dos jogos de fortuna ou azar consta do DL 422/89, de 02-12, com as alterações introduzidas pelo DL 10/95, de 19-01.

VIII - Na versão revista, o diploma regulou também a matéria respeitante às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, «por razões que se prendem com a conveniência de disciplinar unitariamente uma realidade próxima» da que já era regulada pelo diploma na sua versão original, e não tanto pela necessidade de alterar o regime [então] vigente, cujas soluções, no essencial, foram mantidas.

IX - Nas categorizações que a lei assume, e para as quais estabelece diferentes modalidades de regulamentação, destacam-se os jogos de fortuna ou azar, as modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, em que o resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da sorte, e os jogos de diversão, em que o resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da perícia do jogador.

X - A diferenciação entre as modalidades de jogos é essencial, porque as consequências da violação da respectiva disciplina são diversas: situadas também no plano criminal no que respeita à violação de algumas regras que enquadram a prática dos jogos de fortuna ou azar, e apenas no âmbito das contra-ordenações para a violação da disciplina dos jogos afins – arts.
108.º a 117.º do DL 422/89, de 02-12, que referem os ilícitos criminais relativos à prática de jogos de fortuna ou azar, e arts. 158.º a 163.º do mesmo diploma para os ilícitos relativos às modalidades afins.

XI - Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte (art. 1.º do DL 422/89, de 02-12), e estão tipificados, de modo exemplificativo, mas, no contexto, tendencialmente especificados, no art. 4.º, n.º 1, do mesmo diploma.

XII - No que releva para o caso, os jogos de fortuna ou azar são os jogos bancados previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 4.º do DL 422/89, de 02-12, os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte».

XIII - Fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados também dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte não constituem, na disciplina da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, com regulamentação e consequências próprias. «Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar» ou outras formas de jogo, são, nos termos do art. 159.º, n.º 1, do referido diploma, «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e na perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémio coisas com valor económico»; como exemplos do tipo de “modalidades afins” refere a lei, «nomeadamente», «rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos» – n.º 2 do mencionado preceito. As modalidades afins e outras formas de jogo não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, «nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos» – art. 161.º, n.º 3, do referido diploma.

XIV - No caso dos autos, a infracção penal por que o recorrente foi condenado – art. 115.º do DL 422/89, de 02-12 – exige, como elemento essencial, uma ligação instrumental directa, imediata e inequívoca («caracterizadamente») entre o «material e utensílios» e a prática de jogos de fortuna ou azar. Material e utensílios que não tenham relação directa e específica com este tipo de jogos, normativamente descritos e definidos, não integram a previsão da referida disposição penal.

XV - Dos factos provados relativamente ao recorrente, e nos quais se fundamenta a decisão recorrida na integração e qualificação que assumiu, resulta que:
- estão em causa – nos cartazes “Água B” e “Novara” – “cartões” e “cartazes” que contêm sequências de símbolos convencionais que correspondem a prémios em dinheiro. Nestes jogos, o jogador adquire uma tira de dez senhas ou uma senha individual, e o resultado pode ser negativo ou corresponder a uma combinação de símbolos que significam a atribuição do respectivo prémio em dinheiro;
- e no jogo a que se referem os cartazes ou quadros com o título “Piu”, “Novo ABC” e “Nova Era” os suportes (cartazes) contêm figuras ou números em vários rectângulos, que por convenção correspondem a determinados prémios em dinheiro. Aqui, o jogador adquire uma cápsula de plástico das que se encontram no interior de um expositor e, em resultado do número que se encontrar dentro da cápsula, ou não há direito a qualquer prémio ou o jogador adquire o direito a escolher e picotar um dos rectângulos existentes no quadro e a ganhar o correspondente prémio em dinheiro; o que permite concluir que os jogos a que se destinavam os materiais apreendidos (cartões e cartazes), embora com resultados dependentes da sorte e não da perícia do utilizador, não exploram temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagam directamente prémios em fichas ou moedas, ou seja, faltam as características essenciais que permitem qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos descritos e definidos no art. 4.º, n.º 1, do DL 422/89, de 02-12.

XVI - Tanto basta para considerar que o referido material não pode ser classificado como «material ou utensílios» «caracterizadamente» destinados à prática de jogos de fortuna ou azar, e que as características e os elementos dos jogos proporcionados revertem antes para as modalidades afins referidas no art. 159.º do referido diploma. No rigor, constituem uma espécie de sorteio por meio de senhas, ou mesmo directamente sorteio (cápsulas no interior de expositor), com o sentido e a natureza de modalidades afins de jogos de fortuna ou azar. E mesmo a circunstância de os prémios serem em dinheiro, não lhes retira a natureza de modalidade afim, uma vez que a atribuição de prémios em dinheiro, por si só, se não é permitida nos termos do art. 161.º, n.º 3, do DL 422/89, de 02-12, também não basta para integrar a específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar, de modo a transformar a proibição do art. 163.º, n.º 3, em infracção penal.

XVII - Também em outra perspectiva, de identificação dos valores protegidos com a incriminação dos jogos de fortuna ou azar fora das zonas de jogo, encontramos a prevenção de dependência dos jogadores que as características dos jogos podem provocar, com a pulsão de continuidade no jogo para inverter uma situação de perda, e de não parar em situação favorável para potenciar o ganho. Diversamente sucede nas modalidades de sorteio ou rifa, em que a expectativa é limitada ou predefinida, e em que por cada acto de nova aquisição se impõe a renovação da vontade.

XVIII - Restará, assim, a necessidade de decidir, pela autoridade competente, sobre a relevância dos factos no âmbito da responsabilidade por contra-ordenação.

XIX - O disposto no art. 402.º, n.º 1, do CPP, preceito respeitante ao âmbito dos recursos, mais do que disciplina processual, define e assume um princípio, e significa, na ratio que decorre das especificações do n.º 2, que as contingências processuais não podem afastar a realização necessária da coerência material interna das situações processuais, nos casos em que a identidade (ou, ao menos, a relevante similitude com projecção substancial) de actuação, finalisticamente incindível em relação ao facto total, ou a recomposição integrativa em diversa qualificação legal, não suportaria, no plano da substância e da realização da justiça, distorções ou divergências acentuadas entre sujeitos unicamente consequenciais da circunstância, ocasional, de uns terem recorrido e outros não.

XX - Se é evidente que em caso de comparticipação o co-autor (ou o cúmplice) não recorrente tem de aproveitar da decisão proferida em recurso do comparticipante que determine que o facto de realização comum não ficou provado ou não constitui crime, idêntica razão de ser deve valer também para as situações, materialmente idênticas, em que, apesar da prova do facto resultante de comparticipação plural, se não provaram factos executivos em relação a um co-arguido (recorrente) susceptíveis de integrar alguma forma de comparticipação, mas em que a posição processual de um co-arguido que não recorreu se apresenta em termos inteiramente idênticos.

XXI - A unidade e a coerência material e as exigências de justiça para além das formas não suportariam desvios ou contradições intraprocessuais de uma tal amplitude, valendo, por isso, o art. 402.º, n.º 2, al. a), do CPP, tal como valerá para as situações de reformulação qualificativa in mellius em relação a comparticipantes não recorrentes.
Decisão Texto Integral:



Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, identificado no processo, foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime p. e p. no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/98, de 2 de Dezembro, em concurso real com um crime de jogo fraudulento, p. e p. pelo artigo 113º, nº 1 do mesmo diploma, conjugado com a artigo 218º, nº 1 do Código Penal.
Efectuado o julgamento, a acusação foi julgada parcialmente procedente, com a condenação do arguido pela prática, como autor material, de um crime p. e p. no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº10/95, de 19 de Janeiro, na pena de três meses de prisão, substituída, nos termos do artigo 44º, nº 1, 1ª parte do Código Penal, por igual tempo de multa à taxa de 4 € (trezentos e sessenta €), e em sessenta dias de multa à taxa diária de 4 € (duzentos e quarenta €).
Nos termos do artigo 6º, nº 1 do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, o arguido foi condenado na pena única de cento e cinquenta dias de multa à taxa diária de 4 €, o que perfaz a quantia de seiscentos euros.
Foi também condenado pelo crime p. no referido artigo 115º do Decreto-Lei nº 42/89, de 2 de Dezembro o arguido BB.

2. Não se conformando com a decisão, o arguido AA recorre para o Supremo Tribunal, com os fundamentos constantes da motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
A. O enquadramento jurídico efectuado pelo Digníssimo Tribunal “a quo", no que ao material apreendido nos presentes autos se refere, não foi, no modesto entendimento do recorrente, o correcto, pois que, resulta do douto acórdão ora recorrido que esse mesmo Tribunal entende os jogos desenvolvidos pelo material apreendido nos autos como jogos de fortuna ou azar «já que dependem fundamentalmente da sorte do jogador» aliado ao facto de tal material se destinar à prática de jogos que atribuiriam como prémio quantias monetárias, sem que, no entanto, nada mais diga, ou refira, quanto à distinção entre uns e outros jogos, donde resulta, não haver fundamentado devidamente a sua opção.
B. Assim, e atendendo a toda uma série de Jurisprudência que vem entendendo material como o dos autos, como desenvolvendo jogos que assumem a natureza de modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, e já não dos próprios jogos de fortuna ou azar em si mesmos, é de referir que essencial para a boa decisão da causa, através de uma correcta qualificação jurídica de tal material, seria o Digníssimo Tribunal “a quo" ter aferido dos resultados visados com o exercício de tais jogos, e bem assim, ter apurado da hermenêutica dos artigos 1°, 4°, 159°, n.º 1, 2 e 3, e 161°, n.º 3, todos do D.L. n.º 422/89, de onde decorre, por um lado, que a lei distingue o jogo de fortuna ou azar das modalidades afins e, por outro lado, que prevê a existência de outros jogos não enquadráveis em qualquer daqueles dois tipos de jogos.
C. A distinção entre jogos de fortuna ou azar e modalidades afins desses jogos não poderá colher no factor ou critério da aleatoriedade do resultado, porquanto, tanto uns como as outras perfilham dessa mesma aleatoriedade, devendo, ao invés, atender-se aos critérios presentes na nossa Jurisprudencia, como seja, o entendimento expresso no acórdão [da] Relação [do Porto], de 26.04.2000, segundo o qual a linha de fronteira entre estas figuras jurídicas estaria demarcada pelo simples facto de, nas modalidades afins, as promotoras oferecerem os jogos ao público, enquanto que nos jogos de fortuna ou azar elas se limitam a colocá-los em estabelecimentos, aos quais o público se dirige para os praticar.
D. Ora, consagrou o Ac. da R.L. de 14.03.2000 que «fundamentalmente, o que caracteriza as operações oferecidas ao público são duas coisas incompatíveis com o jogo de fortuna ou azar: os prémios fixados previamente, como assim, a participação, à partida, de um número de pessoas indeterminado. Realmente, nos jogos de fortuna ou azar, os prémios não são fixados previamente, além de que só pode jogar um número determinado de pessoas, de cada vez».
E. De modo que o elemento balizador corporiza-se no facto de nas modalidades afins existirem um ou vários prémios previamente definidos, determinados ou "oferecidos", enquanto nos jogos de fortuna ou azar, em antinomia, não tem de haver, e em regra não há, um prémio fixado. (Cfr. Acórdão da Relação de Évora de 06/11/90, in CI., XV, T. V, pg. 277), pelo que, é de afirmar que, no caso sub judice não estamos perante um qualquer jogo de fortuna ou azar, mas sim perante uma modalidade afim desses jogos de fortuna ou azar, pois os prémios atribuídos estavam previamente fixados e o número de jogadores podia ser indeterminado,
F. Não relevando, de forma alguma, e ao contrário do vertido no acórdão recorrido, o facto de poderem ou não ser atribuídos prémios em dinheiro, desde logo porque a lei, em caso algum, se refere a tal critério para distinguir os jogos de fortuna ou azar e as modalidades afins, a que sempre acrescerá o facto de existirem alguns jogos especificadamente previstos na lei como sendo de fortuna ou azar (art. 4° do D.L. n.º 422/89, de 02 de Dezembro) em que os «prémios podem consistir, pelo menos imediatamente, em fichas e o resultado pode ser apresentado como pontuações», bem como sempre «constitui contra-ordenação, nos termos do n.º 3 do artigo 161º e do n.º 1 do artigo 163°, a substituição por dinheiro ou fichas dos prémios atribuídos pelas modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar» (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 26.10.2005).
G. Sendo certo que, a oferta ao público dos jogos dos autos sempre resultará explícita da colocação dos mesmos nos estabelecimentos comerciais, o que sempre exigirá uma qualquer actuação por parte do explorador de tal jogo, que não é passível de utilização sem o auxílio imediato do seu explorador, até porque todo e qualquer prémio a que se tivesse direito só seria pago/entregue pelo explorador de tal jogo.
H. Além do que os jogos dos autos sempre deverão ser considerados como "operação" no sentido que a essa expressão é atribuída na nossa Jurisprudência, pois que, teriam sempre uma vida útil limitada, uma vez que se encontraria limitada pelo número de apostas possíveis, limitada ao número de senhas existentes, bem como se encontra limitada pelo número de prémios a atribuir, que, como referido, se encontram previamente definidos, sendo certo que, estando os jogos associados a um cartaz específico sempre a sua vida útil se circunscreveria à vida útil de tal cartaz.
I. A que acresce o facto de os jogos serviriam para serem colocados em diversos estabelecimentos comerciais, ou seja, não seriam colocados num local onde o público se dirigia para a sua prática, mas sim num local onde o público se dirigia no intuito de consumir os produtos aí disponibilizados, sendo depois confrontado com a "oferta" dos ditos jogos.
J. Haverá, por isso, que se atender a toda uma série de Jurisprudência, onde se inserem os arestos [da] Relação do Porto, de 14.07.1999 e 28.03.2001, e da Relação de Lisboa de 08.10.1996, sendo de concluir que, "in casu", estaremos perante jogos com todas as características referidas no n.º 1 e n.º 2 do art. 159º do D.L. 422/89, com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. 10/95, de 19 de Janeiro, sendo que tais jogos sempre deveriam ser classificados como jogo de rifas.
K. Não sendo, naturalmente, de descurar a Jurisprudência mais recente, onde se inserem os arestos da Relação de Lisboa de 26-10-2005, e da Relação de Évora de 23.05.2006 e 11.07.2006, o que sempre permitirá afirmar estarmos claramente perante uma situação que não se poderá enquadrar na previsão do art. 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de Dezembro, pois que, ainda que a esperança de ganho resida única e exclusivamente na sorte, de forma alguma o material apreendido nestes autos desenvolve um qualquer tipo de jogo tipificado na lei como sendo de fortuna ou azar.
L. Assim, e uma vez que no caso concreto não estamos perante um qualquer jogo de fortuna ou azar, conforme descritos no art. 4º do diploma legal supra referido, até porque não se verifica em tais jogos uma qualquer potencialidade de viciação, que se entende ser o critério a considerar para a determinação do conceito de jogo de fortuna ou azar, visto que, pelas suas características, a sua utilização é sempre imediata e instantânea, esgotando-se a cada "jogada", não se propiciando de forma alguma a que o seu utilizador se sinta preso, com a ânsia de por novamente em jogo a sua sorte, pois, não é de forma alguma possível uma qualquer duplicação de apostas, ou mesmo fazer depender o prémio a receber do montante efectivamente gasto, será de concluir que nunca a conduta do Recorrente poderia ser criminalmente punível, pois que não estaríamos perante um qualquer crime de material de jogo, mas sim já perante uma mera contra-ordenação.
M. O Acórdão recorrido violou os artigos 1°, 4°, 115°, 159° e 163°, todos do D.L. n.º 422/89, de 02 de Dezembro, com a redacção dada pelo D.L. n.º 10/95 de 19 de Janeiro.
Termina pedindo o provimento do recurso e, por via disso, a revogação do acórdão recorrido, o com a substituição por outro que absolva o recorrente da prática do crime pelo qual foi condenado.
O magistrado do Ministério Público respondeu à motivação, considerando que o recurso não merece provimento.

3. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência com a produção de alegações, cumprindo decidir.

4. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:
1 No dia 19 de Agosto de 2002, cerca das 13.30 horas, na Rua Chaves de Oliveira, [na cidade do Porto], os arguidos BB e AA, que se encontravam junto às suas viaturas de matricula ...-...-...CD, de marca Ford, modelo Giesta, ligeiro de passageiros e de matrícula ...-...-JB, de marca BMW, modelo 523 I, respectivamente, foram detectados pela PSP quando procediam à transferência do apreendido material de jogo de uma daquelas viaturas em que era transportado para a outra viatura que assim o passa a transportar;
2. Na mesma ocasião o arguido BB estava a preencher um cheque no qual havia já aposto a sua assinatura, e preenchido no local do numerário o montante de 335 euros e no local da data 2000/09;
3. No interior do veículo automóvel de AA (de matrícula ...-...-JB) foram encontrados dois cheques no valor de 1960 euros e 1995 euros, a quantia monetária de 1190 euros, um pequeno cartão denominado" ABRIR BAR", com dez senhas de jogo; um cartaz denominado "Águia 8", um cartaz denominado "Novara"; dois cartazes denominados "Novo ABC"; dois cartazes denominados "Nova Era" e dezanove cartazes denominados "PIU" .
4. Na viatura de Jaime Moreno (de matricula ...-...-CD) foram encontrados quinze sacos em plástico de tamanho grande, de cor preta, contendo no seu interior, cerca de 1800 ovos de tamanho pequeno, que por sua vez contêm uma senha com números de série de um jogo; um saco em plástico de cor preta, de tamanho médio, contendo no seu interior 224 (duzentos e vinte e quatro) ovos, contendo cada, a respectiva senha; quinze cartazes referentes a um jogo denominado "ABC"; varias senhas de jogos; quarenta e cinco raspadinhas já utilizadas e onze fitas com sete raspadinhas cada, relativas a jogos;
5. Efectuado exame pericial ao material de jogo aprendido, cujo relatório consta de fls. 135 a 148 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, apurou-se o seguinte:
A) Os dois cartazes, um com o título "Agua 8" e outro com o título "NOVARA" são constituídos por um círculo oval (ao centro), contendo no seu interior 50 (cinquenta) rectângulos com combinações de símbolos, um quadro com 30 rectângulos, separados, identificados por números de quatro dígitos salteados e um plano de prémios, na zona inferior direita, em ambos os cartazes com a seguinte estrutura: "Água 8" 10 x 10000; 5 x 1000; 10 x 500; 15 x 300; 25 x 200 e 12 x 100- "Novara" 4 X 20000; 4 X 5000; 5 X 1000; 10 X 500; 15 X 300; 25 X 200 e 14 X 100. Tais planos correspondem, por convenção, a 10 prémios de 10 000$00 (50 euros), a quatro prémios de 20 000$00 (100 euros) e assim sucessivamente;
Na base dos cartazes encontra-se um quadro com três rectângulos destacáveis, cada rectângulo, depois de este ser destacado pelo picotado, corresponde por convenção a um prémio de 10000$00 (Figuras nºs 7 a 9 do Relatório).
O jogo desenvolve-se da seguinte forma:
O jogador adquire uma tira de dez senhas por 2,5 euros, ou uma senha individual por 0,25 euros (Figura n° 10).
Após a sua aquisição e abertas as senhas, uma de três situações acontece:
I - A senha cartão não contém nenhum número pertencente ao quadro com 30 rectângulos, separados, identificados por números de quatro dígitos salteados. A senha cartão não contém nenhuma combinação de símbolos pertencentes aos cinquenta rectângulos que se encontravam ao centro em ambos os cartazes - é o caso mais vulgar. Nesta situação apenas resta ao jogador tentar a sorte novamente, adquirindo outra senha/ cartão;
II -A senha/cartão contém um número pertencente ao quadro com 30 (trinta) rectângulos, separados, identificados por números de quatro dígitos salteados ou a senha/cartão contém uma combinação de símbolos pertencentes aos 50 (cinquenta) rectângulos que se encontram ao centro em ambos os cartazes. Se tal acontecer o jogador adquire o direito a destacar um dos trinta rectângulos existentes no quadro ou os cinquenta rectângulos, com combinação de símbolos, existentes ao centro em ambos os cartazes. Destacado o rectângulo pelo picotado fica à vista um número, variável, entre 10000 (50 Euros) e 100 (0,50 euros)- cartaz "Água 8"- e entre 2000 (100 euros) e 100 (0,50 euros)- cartaz "Novara 8". Tal número representa o prémio monetário ganho pelo jogador;
III - A senha/cartão tem escrito no seu interior "1 SUPER PREMIO".
Se tal acontecer o jogador adquire o direito a destacar um dos três rectângulos existentes na base de ambos os cartazes. Destacado o rectângulo pelo picotado fica à vista um numero, 1000. Tal número representa o prémio monetário ganho pelo jogador, que corresponde por convenção a um prémio de 10.000$00 (50) euros; figura n° 9).
B) Os dezanove cartazes com o título "PIU" contêm na parte superior do cartaz a figura de um pássaro e do lado direito um quadro com vinte desenhos iguais (figura nº 1), seguindo-se um plano de prémios, com a seguinte estrutura: 1 x 100; 1 x 75; 6 x 25; 10 x 5 e 52 x 2.5. Tal plano corresponde, por convenção, a 1 prémio de 100 euros; 1 prémio de 75 euros; 6 prémios de 25 euros; 10 prémios de 5 euros e 52 prémios de 2.5 euros (Figura nº 11), seguindo-se um quadro com cinquenta rectângulos, separados, identificados por números de quatro dígitos salteados (Figura n012).
Quanto aos dezassete cartazes com o título "NOVO ABC" contêm na parte superior do cartaz o título "ABC", seguindo-se um quadro com sessenta Rectângulos, separados, identificados por números seguidos de I a 60 (Figura nº 13), seguindo-se um plano de prémios, com a seguinte estrutura: 2 x 20.000; 1 x15 000; 1 x10 000; 1 x 7 500; 7x5 000; 11 x 1000 e 77 x 500. Tal plano corresponde, por convenção, a 2 prémios de 99,76 euros; 1 prémio de 29, 94 euros; 11 prémios de 4,99 euros e 77 prémios de 2,49 euros (Figura nº 14), bem como um quadro com quarenta rectângulos, separados, identificados por 4 dígitos salteados (Figura n º15).
Quanto aos cartazes com o título "Nova Era" contêm do lado direito o desenho de uma figura, seguindo-se um quadro com sessenta rectângulos, separados, identificados por números de quatro dígitos salteados, sendo que, do lado direito do quadro com números, consta um plano de prémios com a seguinte estrutura: 3 x 50; 2 x 37; 3 x 25; 4 x 10; 5 x 5; 43 x 2,5. Tal plano corresponde, por convenção, a três prémios de 50 euros; dois prémios de 37 euros; três prémios de 25 euros; quatro prémios de 10 euros; cinco prémios de 5 euros e 43 prémios de 2,50 euros (Figura nº 16).
O funcionamento do jogo processa-se da seguinte forma:
- o jogador adquire uma cápsula de plástico, igual às que se os sacos de plástico apreendidos que posteriormente são colocados no interior dum expositor [sic]. Após a sua aquisição e aberta a cápsula, no seu interior contem três senhas sacos de plástico contém um número indeterminado de cápsulas com três enumeradas [sic] e uma de duas situações acontece:
I- A senha não contém nenhum número pertencente ao quadro superior do cartaz ou ao quadro inferior do cartaz - é o caso mais vulgar. Nesta situação apenas resta ao jogador tentar a sorte novamente, adquirindo outra senha;
II- A senha apresenta-se com um número pertencente ao quadro superior ou inferior do cartaz. Se tal acontecer, o jogador adquire o direito a palpitar um dos rectângulos existentes nos respectivos quadros com destacar o picotado e fica à vista um número. Tal número representa o prémio monetário ganho pelo jogador.
Os sacos de plástico contêm um número indeterminado de cápsulas com três senhas cada, no seu interior.
Abertos os sacos de plástico, verificou-se que todos eles possuíam cápsulas com senhas à parte, fora do circuito normal do jogo, sendo que, por experiência, estas cápsulas contêm no seu interior as senhas com os prémios de maior valor e dentro de outro saco de plástico mais pequeno encontram-se cápsulas etiquetadas.
6. E consta ainda desse relatório que daqui se conclui a inequívoca intenção do explorador enganar os jogadores, porquanto alguns prémios pecuniários (os de maior valor), nunca poderiam ser atribuídos, uma vez que existem senhas separadas das restantes, fora do circuito normal do jogo, facto que impossibilitaria a saída, aos potenciais jogadores, dos correspondentes prémios;
7. Mais concluindo o mesmo relatório que o jogo examinado conduz a resultados que dependem única e exclusivamente da sorte e consiste na atribuição aleatória de prémios pecuniários a quem arrisca dinheiro na esperança de ganhar mais dinheiro;
8. Ao procederem ao transporte nos termos supra descritos, do material de jogo que lhes foi apreendido, sem para tal terem autorização legal respectiva, os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente;
9. Os arguidos bem sabiam que o transporte de material de jogo caracterizadamente destinado à prática de jogos de fortuna e azar, como o que lhes foi apreendido é proibido e punido por lei;
Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguidos.
10. Do Relatório Social do arguido AA que aqui de dá por reproduzido, destaca-se:
É originário de agregado familiar de fraca condição económica; abandonou a escola aos 15 anos após a conclusão do equivalente ao actual 6° ano da escolaridade;
A sua primeira experiência profissional, iniciada aos 15 anos de idade, ocorreu com o progenitor como vendedor no ramo da electricidade, actividade que desenvolveu até aos 32 anos. A partir de então passa a dedicar-se ao comércio de pequenos objectos que comprava e revendia a comerciantes e/ ou particulares, normalmente "porta a porta". Em 1999 terá aberto, em nome do ex-cônjuge, uma tipografia que terá registado sucesso financeiro;
Casou aos 25 anos, tendo-se divorciado há cerca de 5 anos;
Com a actual mulher teve uma filha há cerca de um ano;
Desempenha funções por conta própria, de vendedor de pequenos artigos, mormente guloseimas "porta a porta", perspectivando estabelecer-se com o cônjuge na abertura de armazém estabelecimento comercial;
No meio social não existem informações negativas quanto ao seu comportamento e inserção social.
[. . .]

5. O recorrente invoca como fundamento principal do recurso a integração dos factos na categoria penal que determinou a condenação.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime p. no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro, no caso, por transportar «material ou utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática de jogos de fortuna ou azar».
O artigo 115º do referido diploma prevê uma infracção penal cujos elementos típicos vêm descritos como «fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expor ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogo de fortuna ou azar», sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos.
Trata-se, pois, de uma infracção de mera actividade de relação com determinados bens, e actividade relativamente proibida porque dependente da ausência de autorização da Administração.
Elemento central da descrição do tipo são os bens («material e utensílios»), que pela sua natureza e pela funcionalidade instrumental se ligam à prática de jogos de fortuna ou azar.
Os jogos de fortuna ou azar constituem, pois, um elemento fundamental de conexão e de delimitação instrumental; a precisa definição, para efeitos da lei, da categoria de jogos de fortuna ou azar, na distinção de outras modalidades, apresenta-se como prius da integração logo ao nível da tipicidade descrita no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.

6. A regulamentação dos jogos de fortuna ou azar, bem como de outras modalidades de jogo que se apresentam à disposição do público, potenciadas por novas possibilidades tecnológicas (o surgimento e aperfeiçoamento da “máquinas de jogos”) tem sido objecto de extensa legislação desde 1927, que, no essencial, mantém a mesma perspectiva de regulamentação no enquadramento da actividade.
"O jogo, sendo embora um fenómeno humano, carece de ser devidamente regulamentado e objecto de rigorosa fiscalização, com vista à minimização dos resultados que, da sua prática descontrolada, decorrem para a sociedade"
Esta afirmação do próprio legislador no preâmbulo do Decreto-Lei nº 22/85, de 17 de Janeiro, sem marcada referência ou conotação ética, aponta para o lugar onde deve ser encarado esse fenómeno, como actividade ou comportamento humano e, por isso ainda, ligada a um certo modo de realização da personalidade de cada um, no exercício da liberdade de ser, de actuar e de se comportar no espaço plural de uma sociedade aberta.
A sociedade e o Estado devem, por isso, considerar o jogo como actividade que constitui, ainda, a satisfação individual dentro de limites toleráveis de certo modo de ser e de viver.
Por isso, a necessidade da "devida regulamentação" e "rigorosa fiscalização" para minimizar os efeitos da "prática descontrolada".
Esta necessidade de intervenção regulamentadora e, consequentemente, de fiscalização pelos órgãos que a Administração expressamente instituiu, ou considere para tanto vocacionados, tem determinado a previsão de apertada disciplina da prática dos jogos de fortuna ou azar, com a definição e precisão das modalidades e espécies autorizadas, a delimitação e concessão das chamadas zonas de jogo e, como garantia de eficácia, a tipificação dos comportamentos proibidos neste domínio, com o estabelecimento das sanções que se consideram adequadas.
No essencial e na perspectiva mais saliente, foi a proliferação de certo tipo de máquinas de jogo e as consequências negativas que foram produzidas junto das camadas mais jovens, destinatários preferenciais da oferta dos jogos específicos proporcionados por essas máquinas que determinaram a intervenção legislativa, disciplinando e controlando a respectiva utilização (Decretos-Lei nºs 21/84 e 22/85,ambos de 17 de Janeiro).
A disponibilização de máquinas de jogos, a possibilidade de exposição e de utilização pela proliferação em diversos lugares, e as características de alguns tipos de máquinas que proporcionavam a prática de jogos de fortuna ou azar determinaram regulamentação apertada com a fixação de sanções para determinados comportamentos.
Mas, mesmo aqui, a exploração de jogo ilegal (jogos classificados como de fortuna ou azar fora das zonas próprias), passou a abranger apenas as máquinas automáticas que desenvolvessem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar.

7. Actualmente a disciplina dos jogos de fortuna ou azar consta do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro.
Na versão revista, o diploma regulou também a matéria relativa às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, «por razões que se prendem com a conveniência de disciplinar unitariamente uma realidade próxima» da que já era regulada pelo diploma na sua versão original, e não tanto com a necessidade de alterar o regime [então] vigente, cujas soluções, no essencial, foram mantidas.
Nas categorizações que a lei assume, e para as quais estabelece diferentes modalidades de regulamentação, destacam-se os jogos de fortuna ou azar, as modalidades afins de jogos de fortuna ou azar em que o resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da sorte e os jogos de diversão em que o resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da perícia do jogador.
A diferenciação entre as modalidades de jogos é essencial, porque as consequências da violação da respectiva disciplina são diversas: situadas também no plano criminal no que respeita à violação de algumas regras que enquadram a prática dos jogos de fortuna ou azar, e apenas no âmbito da contra-ordenações para a violação da disciplina dos jogos afins – artigos 108º a 117º do Decreto-Lei nº 422/89, que referem os ilícitos criminais relativos à prática de jogos de fortuna ou azar; artigos158º a 163º para os ilícitos relativos às modalidades afins.
A categoria de jogos de fortuna ou azar está definida na lei através de uma fórmula geral conjuntamente com os elementos que identificam e descrevem as diversas espécies, permitindo dar conteúdo normativo à noção, por si e na delimitação com as restantes modalidades que a lei prevê e às quais faz ligar diferentes consequências.
Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte (artigo 1º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro), e que estão tipificados, de modo exemplificativo, mas, no contexto, tendencialmente especificados, no artigo 4º, nº 1 do mesmo diploma.
No que releva para o caso, os jogos de fortuna ou azar são os jogos bancados previstos nas alíneas do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89, e ainda os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte».
Fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados também dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, na disciplina da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, com regulamentação e consequências próprias.
«Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar» ou outras formas de jogo, são, nos termos do artigo 159º, nº 1 do referido diploma, «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e na perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémio coisas com valor económico»; como exemplos do tipo de “modalidades afins” refere a lei, «nomeadamente», «rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos» - artigo 159º, nº 2.. As modalidades afins e outras formas de jogo não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, «nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos» - artigo 161º, nº 3 do referido diploma.

8. A infracção penal por que o recorrente foi condenado – artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro – exige, como se referiu, como elemento essencial, uma ligação instrumental directa, imediata e inequívoca («caracterizadamente») entre o «material e utensílios» e a prática de jogos de fortuna ou azar.
Material e utensílios que não tenham relação directa e específica com este tipo de jogos, normativamente descritos e definidos, não integram a previsão da referida disposição penal.
Os factos provados relativamente ao recorrente, e nos quais se fundamenta a decisão recorrida na integração e qualificação que assumiu, estão referidos nos pontos 3 e5 da matéria de facto.
Tratava-se, em duas das espécies (cartazes “Água B” e “Novara”), de “cartões” e “cartazes” que continham sequências se símbolos convencionais que correspondiam a prémios em dinheiro.
Nestes jogos, o jogador adquiria uma tira de dez senhas ou uma senha individual, e o resultado poderia ser negativo ou corresponder a uma combinação de símbolos que significavam a atribuição do respectivo prémio em dinheiro.
No jogo a que se referiam os cartazes ou quadros com o título “Piu”, “Novo ABC” e “Nova Era”, os suportes (cartazes) contêm figuras ou números em vários rectângulos, que por convenção correspondem a determinados prémios em dinheiro, o jogador adquire uma cápsula de plástico das que se encontram no interior de um expositor; em resultado do número que se encontrar dentro da cápsula, ou não há direito a qualquer prémio ou o jogador adquire o direito a escolher e picotar uma dos rectângulos existentes no quadro e a ganhar o correspondente prémio em dinheiro.
Verifica-se, assim, que os jogos a que se destinavam os materiais apreendidos (cartões e cartazes), embora os resultados dependessem da sorte e não da perícia do utilizador, não exploravam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas.
Faltam, deste modo, as características essenciais que permitam qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos descritos e definidos no artigo 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 422/89 de 2 de Dezembro.
Tanto basta para que o referido material não possa ser considerado como «material ou utensílios» «caracterizadamente» destinados à prática de jogos de fortuna ou azar.
As características e os elementos dos jogos proporcionados revertem antes para as modalidades afins referidas no artigo 159º do referido diploma; no rigor, constituem uma espécie de sorteio por meio de senhas, ou mesmo directamente sorteio (cápsulas no interior de expositor) com o sentido e a natureza de modalidades afins de jogos de fortuna ou azar
Mesmo a circunstância de os prémios serem em dinheiro, não lhes retira a natureza de modalidade afim, uma vez que a atribuição de prémios em dinheiro, por si só, se não é permitida nos termos do artigo 161º, nº 3 do Decreto-Lei nº 422/89, também não basta para integrar a específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar, de modo a transformar a proibição do artigo 163º, nº 3 em infracção penal.
Também em perspectiva - relevante – de identificação dos valores protegidos com a incriminação dos jogos de fortuna ou azar fora das zonas de jogo está a prevenção de adicção dos jogadores que as características dos jogos podem provocar, com a pulsão de continuidade no jogo para inverter uma situação de perda, e de não parar em situação favorável para potenciar o ganho.
Diversamente, sucede nas modalidades de sorteio ou rifa, em que a expectativa é limitada ou predefinida, e em que por cada acto de nova aquisição se impõe a renovação da vontade.
Os factos provados não integram, pois, o crime p. no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.
O recurso merece, assim, provimento.

9. Restará a necessidade de decidir pela autoridade competente sobre a relevância dos factos no âmbito da responsabilidade por contra-ordenação.

10. O artigo 402º do Código de Processo Penal, sobre “âmbito do recurso”, dispõe que, sem prejuízo do disposto no artigo 403º, «o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão». (nº 1), e que (nº 2, alínea a)) o recurso interposto por um dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restante, salvo se fundando em motivos estritamente pessoais.
A norma do artigo 402º do CPP, que assume um modelo amplo sobre o âmbito do recurso, tem de ser compreendida na coerência do sistema processual dos recursos e na necessária coordenação com outras disposições, especialmente as que (artigo 412º do CPP) impõem aos recorrentes determinados ónus, como o de definir o objecto do recurso e a correspondente fixação do thema para a reapreciação a submeter ao tribunal ad quem.
O disposto no artigo 402º, nº 1 do CPP, mais do que disciplina processual, define e assume um princípio, e significa, na ratio que decorre das especificações do nº 2, que as contingências processuais não podem afastar a realização necessária da coerência material interna das situações processuais, nos casos em que a identidade (ou, ao menos, a relevante similitude com projecção substancial) de actuação, finalisticamente incindível em relação ao facto total, ou a recomposição integrativa em diversa qualificação legal, não suportaria, no plano da substância e da realização da justiça, distorções ou divergências acentuadas entre sujeitos unicamente consequenciais da circunstância, ocasional, de uns terem recorridos e outros não (cfr. sobre a interpretação do artigo 402º do CPP, v. g., os acórdãos deste Supremo, de 11/01/2002, proc. 2845/00, de 21/03/2001, proc. 3411/00 e proc. 1874/04).
Se é evidente que em caso de comparticipação o co-autor (ou o cúmplice) não recorrente tem de aproveitar da decisão proferida em recurso do comparticipante que decida que o facto de realização comum não ficou provado ou não constitui crime, idêntica razão de ser deve valer também para as situações, materialmente idênticas, em que apesar da prova do facto resultante de comparticipação plural, se não provaram factos executivos em relação a um co-arguido (recorrente) susceptíveis de integrar alguma forma de comparticipação, quando, m termos inteiramente idênticos, se apresenta a posição processual de um co-arguido que não recorreu.
A unidade e a coerência material e as exigências de justiça para além das formas, não suportariam desvios ou contradições intra-processuais de uma tal amplitude, valendo, por isso, o artigo 402º, º 2, alínea a), do CPP, tal como valerá para as situações de reformulação qualificativa in melius em relação a comparticipantes não recorrentes.
Há, por isso, por imposições de coerência material interna ao processo, que apreciar também a situação do arguido não recorrente, no ponto em que a sua posição possa ser tocada (que lhe aproveite) pela decisão proferida quanto ao recorrente.
Vistos os factos e os termos da condenação, a conclusão sobre a irrelevância criminal dos factos provados, que não integram o crime porque o arguido não recorrente foi condenado, não pode deixar de lhe aproveitar.

11. Nestes termos, na procedência do recurso, absolvem-se os arguidos (recorrente e não recorrente) do crime por que vinham condenados.

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Fevereiro de 2008

Henriques Gaspar (relator)
Santos Monteiro
Santos Cabral
Oliveira Mendes