Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2544/16.3T8BRG.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: SIMULAÇÃO
DOAÇÃO
NEGÓCIO FORMAL
ESCRITURA PÚBLICA
VALIDADE
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / DOACÇÃO.
Doutrina:
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, p. 192/193;
- Vaz Serra, Anotação ao Acórdão do STJ de 6 de Junho de 1967, RLJ 101, p. 1968.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 238.º, N.º 2, 241.º, N.ºS 1 E 2 E 947.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-05-2013, PROCESSO N.º 866/05.8TCGMR.G1.S1.
Sumário :

I – De acordo com o regime estabelecido no artigo 241.º, n.º1, do CC, a validade do negócio dissimulado não é prejudicada pela nulidade do negócio simulado, ficando aquele sempre sujeito a uma valoração jurídica autónoma.

II – Na interpretação da norma o aplicador do direito deverá privilegiar, no sentido da mesma, a procura de soluções razoáveis que melhor reflictam o equilíbrio de interesses por ela visado. Nessa medida, a interpretação do artigo 241.º, n.º2, do CC, reportado à validade do negócio dissimulado de natureza formal, terá de ser condicionada ao regime de interpretação do negócio jurídico perspectivada, por isso, sob os dois pilares ínsitos no artigo 238.º, n.º2, do CC: a tutela da vontade efectiva das partes e os fins inerentes à exigência de forma.

III – A exigência de forma especial para a doação de bens imóveis (artigo 947.º, n.º1, do CC) é motivada pela natureza do objecto transmitido (a existência de escritura pública assegura a necessária ponderação sobre as consequências do acto e estabelece a prova segura da transmissão do bem imóvel).

IV – Assim, tendo o negócio simulado (doação de imóvel constituindo simulação relativa reportada aos donatários) sido realizado por escritura pública, há que considerar válido o negócio dissimulado (doação do mesmo imóvel) porquanto se mostra observada a forma legalmente exigida para a doação efectivamente operada.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório
1. AA, BB e CC instauraram (Junho de 2016) acção declarativa de condenação, com processo comum contra DD, EE (1.ºs RR), FF, GG (2.ºs RR), HH (3.º R), II e JJ (4.ºs RR), deduzindo os seguintes pedidos:
- ser declarado nulo e de nenhum efeito o negócio de doação constante da escritura pública de 31 de Janeiro de 2011 na qual os 4.ºs RR procederam à doação dos prédios indicados nos artigos 18º, 19º e 20º da petição inicial com todas as devidas e legais consequências;
- ser decretado o cancelamento do respectivo registo de aquisição dos supra descritos prédios, a favor dos 2º e 3.ºs Réus, FF e HH, correspondente à apresentação n. º 1260 de 30/03/2011 das descrições n.ºs 962/..., 942/... e 943/... com todas as devidas e legais consequências;
                  - ser declarado válido e eficaz o negócio de doação dissimulado, que os 4ºs Réus quiseram fazer aos 1ºs Réus, através da referida escritura de doação constante do artigo 18º deste articulado, tendo por objecto os imóveis identificados nessa escritura com todas as devidas e legais consequências;  
                  - serem os Réus condenados no pagamento da quantia de € 153.821,00, acrescida de juros de mora vencidos até à interposição da acção, no valor de €35.383,04 e juros vincendos até integral pagamento.
                  Subsidiariamente:  
                  - ser declarado o direito dos Autores a obterem a satisfação integral do seu crédito à custa do prédio dos 2º e do 3º Réus, executando-o e praticando os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei sobre tal bem com todas as devidas e legais consequências.

            Alegaram para o efeito e essencialmente:

- ter a Autora e seu falecido marido prestado fiança num empréstimo concedido aos 1ºs Réus pela BANCO KK de ..., tendo, por incumprimento destes, procedido ao pagamento da quantia de 153.821,00€ àquela entidade bancária;

- não possuírem os referidos Réus, desde a data dos pagamentos efectuados pela Autora e seu falecido marido, qualquer bem registado em seu nome;

- ter tomado agora conhecimento que por escritura de 31/01/2011, os 4ºs Réus doaram aos 2ºs e 3º Réus, seus netos, em comum e em partes iguais, prédios, por conta da sua quota disponível;

- constituir a doação um negócio simulado por ter como único propósito comum prejudicar os Autores impedindo a satisfação do crédito da 1ª Autora e seu falecido marido sobre os 1ºs Réus (filha e genro dos 4ºs Réus e pais dos 2º e 3º Réus, que são quem efectivamente dispõem do gozo e fruição dos prédios).

2. Na contestação os Réus, II e JJ (4ºs RR) aceitando terem celebrado as referidas doações impugnaram a restante factualidade alegada pelos Autores sustentando que se encontram de relações cortadas há longos anos com os 1ºs Réus, desconhecerem quaisquer dívidas destes e terem apenas por finalidade com as doações beneficiar seus netos, filhos dos 1.ºs RR.

Invocaram a não verificação dos pressupostos legais da impugnação pauliana, concluindo pela improcedência da acção.

3. Os 1ºs e 3º Réus contestaram impugnando parte da matéria alegada pelos Autores, designadamente que as doações realizadas pelos 4ºs Réus aos netos não correspondam a verdadeiras doações. Alegaram ainda que a Autora, irmã do 1º Réu CC, quando da partilha realizada pelos pais (os 4ºs Réus), foi beneficiada para pagamento da dívida que este 1º Réu tinha para com aquela, ficando com a propriedade de um prédio com o valor de cerca de setenta mil euros.

Pugnando pela improcedência da acção pediram a condenação dos Autores como litigantes de má fé em quantia de 3.000,00€,

4. Os 2ºs Réus apresentaram contestação aderindo à contestação apresentada pelos 1ºs Réus.

5. Em resposta os Autores pediram a condenação dos 1.ºs RR como litigantes de má fé.

6. Os Autores reduziram o 1º pedido para o valor de 69.149,82€, acrescido de juros de mora vencidos até à interposição da acção, no valor de € 20.717,78.

7. Em audiência prévia os Autores desistiram do pedido subsidiário formulado, desistência que foi homologada conforme decisão de fls. 335.

8. Foi fixado o valor da acção (153,821,00€), proferido despacho saneador, delimitados o objecto do litígio e os temas da prova.

9. Após julgamento foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e consequentemente decidido:

- declarar nulo, por simulação, o negócio jurídico de doação constante da escritura pública referida no ponto 9º dos factos provados e ordenar a restituição dos imóveis objecto do mesmo ao património dos 4ºs Réus II e JJ;

- ordenar o cancelamento do registo de aquisição dos mesmos prédios, a favor do 2º e 3.ºs réus, FF e HH, correspondente à apresentação nº 1260 de 30/03/2011 das descrições nºs 962/..., 942/... e 943/..., com base na aludida escritura pública;

- declarar nulo o negócio jurídico de doação dissimulado subjacente ao negócio simulado referido supra em b), que os 4ºs réus quiseram fazer aos 1ºs réus;

- condenação dos 1ºs RR DD e EE a pagarem aos Autores a quantia de 89.867,60€, acrescida dos juros vincendos, sobre 69.149,82€, à taxa legal, desde a propositura da acção até integral pagamento;

- absolvição dos Réus do restante pedido.

10. Autores e Réus apelaram da sentença tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão (15-11-2018) que julgou improcedentes os recursos, confirmando a sentença.

11. Os Autores interpuseram recurso de revista excepcional ao abrigo do artigo 672.º, n.º2, alínea c), do CPC, concluindo nas suas alegações (transcrição):

            “A) O presente Acórdão da Relação de Guimarães está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de maio 2013, processo n.º 866/05.8TCGMR.G1.S1, 6ª Secção, votado por unanimidade, transitado em julgado, razão pela qual assiste o direito dos Recorrente a apresentar o presente recurso de revista excecional.

B) Ora, tal Acórdão encontra-se em oposição com o bem decidido no acórdão do STJ 28/05/2013, no processo n.º 866/05.8TCGMR.G1.S1, que considerou inteiramente válido o dissimulado negócio de doação, quando o mesmo foi formalizado por escritura pública, forma adotada para a celebração do simulado negócio.

C)O douto Acórdão do tribunal da Relação de Guimarães aplicou mal o Direito, ao não declarar a validade e eficácia do negócio dissimulado de doação que os 4ºs Réus, II e mulher JJ quiseram fazer aos 1ºs Réus, DD e mulher EE merecendo reparo por este Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer.

D) Fundamenta o Tribunal “a quo” a sua decisão na falta de formalização do negócio dissimulado de doação entre 2.º e 3.º Réus e os 1.ºs Réus, que daria concretização prática à doação real.

E) Não andou bem o referido Acórdão, pois caso se viesse a efetivar o negócio dissimulado, isto é a transmissão para os 1ºs Réus, não existiria qualquer interesse dos credores em intentar ação de anulação por simulação, pois tais prédios estariam na esfera jurídica dos devedores 1ºs Réus podendo desde logo ser executado tal património, esvaziando-se assim a aplicação do artigo 241º do Código Civil.

F) O tribunal “a quo” tinha todos os elementos fundamentais para declarar válido e eficaz o negócio dissimulado.

G) Quando sob o negócio simulado exista um outro, o dissimulado, o verdadeiramente querido, este negócio, o real, será objecto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação (cfr. artº.241º do Ccivil), exigindo-se, para os negócios formais, que para o negócio dissimulado tenha sido observada a forma para ele exigida por lei, o que sucedeu no presente caso, pois a doação ou negócio simulado foi realizado por escritura pública, o mesmo sucederia com o negócio dissimulado.

H) Ficando os Autores seriamente prejudicados pela nulidade do negócio dissimulado, não podendo assim executar os bens imoveis que conforme resultou da prova produzida nos autos, pertencem aos 1ºs Réus, voltando tais bens à esfera jurídica dos 4º Réus, que nada devem aos Autores.

I) Violou o tribunal “a quo” as normas previstas nos artigos 241º e 947º, do C. Civil.”

12. A Formação considerou ocorrer contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do STJ de 28-05-2013, proferido no Processo n.º 866/05.8TCGMTR.S1 (acórdão-fundamento) pelo que admitiu a revista excepcional.

13. Não foram apresentadas contra alegações.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
ð Da validade e eficácia do negócio dissimulado (doação dos 4.ºs RR aos 1.ºs RR)

1. Os factos

1.1 provados
1. A Autora AA é irmã do 1º Réu DD.
2. Os 2º e 3º Réus FF e HH são filhos dos 1ºs Réus DD e EE.
3. Os 4ºs Réus II e JJ são pais da 1ª Ré EE.
4. Por contrato que denominaram de “contrato de empréstimo garantido por fiança e hipoteca” celebrado em 31 de Agosto de 2001, a BANCO KK de ..., CRL concedeu aos 1ºs Réus, por empréstimo, a quantia de 95.000.000$00, da qual os mesmos se confessaram devedores, obrigando-se a restituir a referida importância nas datas e condições estipuladas.
5. A Autora AA e seu então marido LL constituíram-se fiadores nesse contrato, renunciando ao benefício da excussão prévia.
6. A BANCO KK de ..., CRL, intentou contra os 1ºs Réus e contra a Autora AA e seu então marido a Execução nº 952/2002, que correu termos pelo extinto 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., exigindo o pagamento da quantia de 84.671,18€.
7. No âmbito desse processo executivo, a Autora AA e seu então marido pagaram à aí exequente a quantia de 19.149,82€.
8. A BANCO KK de ..., CRL intentou contra a Autora AA e seu então marido a Acção Ordinária nº 969/2002, que correu termos pelo extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., no âmbito da qual foi celebrada transacção por força da qual pagaram àquela a quantia de 50.000,00€ por conta da quantia exequenda, que acresceu ao valor referido anteriormente.
9. Por escritura de 31 de Janeiro de 2011, outorgada no Cartório Notarial do Notário MM, na cidade de ..., exarada de folhas 7 a 9 verso do livro 53-A, os 4ºs Réus II e JJ declararam doar, em comum e partes iguais, aos 2º e 3º Réus FF e HH, por conta das suas quotas disponíveis, os seguintes prédios:
- rústico denominado de ..., com a área de 2.800 m2, a confrontar do norte com NN, sul com OO, nascente com PP e do poente com QQ, inscrito na matriz predial rustica de ... sob o artigo 917 e descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º 962/...;
- urbano, composto por casa de um pavimento, dependência e logradouro, inscrito na matriz predial urbana de ... sob o artigo 437, e inscrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º 942/...; e
- rústico denominado de horta, com a área de 69, 80 m2, no lugar de ..., inscrito na matriz predial rustica de ... sob o artigo 383, descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º 943/....
10. O 3º Réu HH, dado que à data era menor de idade, foi representado nessa escritura de doação pelos seus pais, aqui 1ºs Réus.
11. Os Réus FF e HH, procederam ao registo a seu favor dos prédios supra identificados, mediante a Ap. n. º 1260 de 30/03/2011, a qual foi registada no sistema com a mesma data.
12. Os 4ºs Réus pretenderam doar os mesmos prédios aos 1ºs Réus e não aos 2º e 3º Réus, que também não quiseram aceitar as doações.
13. Os 4ºs Réus apenas não declararam doar os aludidos prédios aos 1ºs Réus para os colocar fora do alcance dos respectivos credores, nomeadamente dos aqui Autores.
14. Os 4ºs Réus procederam na mesma data e em acto contínuo, à doação dos seus restantes bens, beneficiando todos os seus filhos à excepção da sua filha EE, aqui 1ª Ré.
15. Tendo doado oito prédios, um prédio ao filho RR, cinco prédios ao filho SS e dois prédios ao filho CC, sendo que estas doações foram feitas por conta da legítima dos donatários e no caso de exceder a mesma a serem imputadas na quota disponível dos doadores.
16. Todos os Réus sabiam, à data da outorga da escritura de doação, que os 1ºs RR. tinham várias dívidas, nomeadamente para com os Autores.
17. Os 2º e 3º Réus nunca fruíram dos prédios rústicos identificados em 9º, encontrando-se os mesmos a ser cultivados pelo 1ª. Ré EE.
1.2 não provados:
a) A Autora AA e seu então marido LL desconheciam o alcance da responsabilidade que assumiram ao constituírem-se fiadores no contrato referido em 1º.
b) Os 4ºs Réus e os 1ºs Réus encontram-se há longos anos de relações cortadas.
c) Os 4ºs Réus desconheciam que os 1ºs Réus tivessem quaisquer dívidas, designadamente aos Autores.
d) A Autora, por partilha dos seus pais, ficou com a propriedade de um prédio no valor de € 70.000,00, prédio este que seria, segundo vontade dos seus pais, destinado ao 1º Réu marido.
e) Face à dívida que tinha para com a irmã, o 1º Réu marido aceitou que esta ficasse beneficiada, com vista à amortização da dívida que este último tem para com a Autora.

2. O direito

          Insurgem-se os Autores quanto ao segmento do acórdão que declarou nulo o negócio dissimulado visado pelos 4.ºs Réus através da escritura de doação de imóveis (identificados no ponto 9 dos factos provados) outorgada em 31-01-2011 - doação aos 1.ºs Réus dos referidos prédios rústicos – pugnando pela validade do mesmo por cumprir a exigência legal de forma prevista no artigo 241.º, n.º2, do Código Civil (doravante CC), e por o tribunal dispor de todos os elementos necessários face à factualidade apurada:

- terem os 4.ºs Réus procedido à partilha dos seus bens, em vida, através de doação aos seus filhos (com excepção da sua filha aqui 1ª Ré);

- terem outorgado as doações por conta da legítima dos donatários e, em caso de exceder a mesma, imputar na quota disponível.

        Aduzem que não obstante constar da respectiva escritura que a doação dos imóveis aos 2.ºs e 3.º Réus (negócio simulado) foi por conta da legítima, trata-se de aspecto que não poderia ter sido de outra forma por estarem em causa donatários que não eram herdeiros legitimários; nessa medida, consideram que tal especificação terá de ser aproveitada em conformidade perante os donatários visados: os 1ºs Réus, sendo a Ré herdeira legitimária.

Fundamentam o seu posicionamento no acórdão do STJ de 28-05-2013, proferido no processo n.º 866/05.8TCGMR.G1.S1, que constituiu o acórdão-fundamento invocado para admissibilidade da revista excepcional ao abrigo do artigo 672.º, n.º1, alínea c), do CPC.

2.1 Mostra-se incontroverso nos autos que a doação de imóveis (pelos 4.ºs Réus aos 2.º e 3.º Réus, seus netos) realizada por escritura pública, em 31-01-2011, constituiu um negócio simulado por nele se encontrarem verificados os três elementos legais que integram o referido conceito:
- a vontade real das partes não foi a declarada na escritura, pois os 4.ºs Réus ao declararam doar, em comum e partes iguais, aos 2.ºs e 3.ºs Réus (por conta das suas quotas disponíveis, três imóveis identificados em 9 dos factos provados) visaram doar tais imóveis à 1ª Ré, sua filha, por conta da legítima e no caso de exceder a mesma ser imputada na quota disponível; por sua vez, os 2.ºs e 3.º Réus também não quiseram aceitar tal doação;
- as declarações de vontade formalizadas no negócio simulado visaram colocar os imóveis fora do alcance dos credores (designadamente os aqui Autores) dos 1.ºs Réus que à data da escritura tinham várias dívidas as quais eram do conhecimento das partes;
Assume também assentimento no processo estar-se perante uma simulação relativa (por detrás do negócio simulado há um negócio dissimulado, o realmente visado) reportada aos sujeitos do negócio (quanto aos donatários).
Com efeito, com o conluio de todos os Réus, o negócio formalizado, a doação, foi efectivamente o pretendido embora mediante interposição fictícia de pessoas (dos 2º e 3º Réus, que assumiram o papel de meros testas de ferro[1]) com vista a enganar os credores dos efectivos donatários (os 1.ºs Réus[2]), colocando os bens doados fora do alcance dos credores destes.
Relativamente aos efeitos desta simulação relativa mostra-se igualmente incontestado nos autos que a doação dos imóveis pelos 4.ºs Réus aos 2.ºs e 3ºs Réus, enquanto o negócio fictício ou simulado, se encontra ferida de nulidade (cfr. artigo 240.º, n.º 1, do CC, o negócio simulado é sempre nulo), nulidade cujos efeitos se encontram previstos no n.º1 do artigo 289.º do CC, ou seja, com a consequente destruição retroactiva do negócio, recolocando as partes intervenientes na situação em que se encontrariam se o negócio não tivesse sido celebrado.
A questão que se coloca neste âmbito reporta-se à (in)validade do negócio dissimulado.
A este respeito o acórdão recorrido confirmou a sentença que declarou nula a doação dissimulada entendendo que nos casos de simulação por interposição fictícia de pessoas “para que o negócio real, dissimulado, oculto ou latente seja válido, devem constar do negócio aparente (simulado) declarações atribuídas aos contraentes reais que integrem o núcleo essencial desse negócio real (seja ele compra e venda, seja doação), sob pena deste ser nulo, porquanto não é possível aproveitar a forma observada na celebração do negócio aparente que tiveram intervenção de sujeitos diversos daqueles que afetivamente celebraram o negócio oculto ou dissimulado, ou então terá de já ter sido celebrado o segundo negócio entre o interposto e o verdadeiro comprador ou donatário, mediante o qual o primeiro já tenha transmitido para o último o bem ou direito objeto do negócio aparente (simulado), dando concretização, efetiva e definitiva, ao negócio real ou dissimulado que os simuladores entre eles efetivamente celebraram ao outorgarem o negócio simulado ou aparente.”
Vejamos.

2.2.Conforme decorre do artigo 241.º, n.º1, do CC, o negócio real ou dissimulado será objecto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação[3]; nessa medida, a validade do negócio dissimulado não é prejudicada pela nulidade do negócio simulado ficando sempre sujeito a uma valoração jurídica autónoma[4].
Conforme se faz salientar no Acórdão do STJ de 09-10-2003, nas situações de simulação relativa o acto dissimulado vem à superfície e fica sujeito ao regime que lhe é próprio, como se tivesse sido celebrado às claras.[5]
No caso dos negócios formais, como o dos autos, a aplicabilidade do regime que lhe corresponderia se fosse realizado sem disfarce impõe a observância da forma exigida por lei[6], ou seja, a validade do negócio dissimulado depende de ter sido observada a forma exigida por lei (n.º2 do artigo 241.º do CC).
A interpretação deste preceito tem vindo a ser objecto de entendimentos dissonantes quanto ao efectivo alcance dos requisitos de forma exigidos por lei para o negócio dissimulado.
Fundamentalmente os entendimentos interpretativos dividem-se em dois parâmetros opostos: os que fazendo ênfase na forma da declaração (a denominada teoria da forma da declaração[7]) fazem prevalecer a validade (favor negoti) sobre a publicidade entendendo que a validade do negócio dissimulado impõe que as declarações de vontade característica do negócio respeitem a forma exigida; para outros, o que releva é apenas a identidade entre a forma empregue pelo negócio simulado e a forma exigida para o negócio dissimulado (teoria da forma do negócio) privilegiando, por isso, a publicidade.
A leitura do preceito legal varia, assim, em função da perspectiva dogmática por que se opte[8].
Para os que defendem que o preceito consagrou a doutrina do Professor Beleza dos Santos seguida pelo Assento de 23-07-1952[9], a validade dos actos dissimulados formais não se basta com a forma devida no acto aparente, sendo necessário que constem deste acto (simulado) os elementos essenciais do negócio dissimulado. Consequentemente, a forma do acto aparente apenas poderá ser suficiente para a validade do acto dissimulado “quando a simulação incidir apenas sobre um elemento acessório ou qualquer estipulação ou declaração que possa suprimir-se sem comprometer fundamentalmente a estrutura do acto verdadeiro, porque, eliminado o elemento ou a cláusula aparente, fica o bastante para que o acto se reconstitua.[10]
Da análise crítica a este entendimento tecida pelo Prof. Manuel de Andrade[11] foi desenvolvido um outro que faz assentar a validade do negócio dissimulado na verificação das razões justificativas do formalismo legal exigido (teoria da ratio), ou seja, será válido o negócio dissimulado sempre que as razões do formalismo do acto se achem satisfeitas com a observância das solenidades do negócio simulado.
Para os que se perspectivam sob este modelo o preceito é encarado partindo da realidade incontornável de que em face da essência da simulação (intuito de enganar terceiros, ocultando, através da criação de uma falsa aparência, algo de relevante no negócio efectivamente visado) a forma adoptada no negócio aparente nunca é passível de revelar a totalidade do negócio dissimulado[12]. Por conseguinte, consideram que o n.º2 do artigo 241.º do CC optou por fazer prevalecer a publicidade, permitindo que o negócio dissimulado beneficie da forma adoptada no negócio simulado, ou seja, consideram formalmente válido o negócio dissimulado desde que a forma que a lei exige para a sua validade tenha sido observada no negócio simulado. E, assim, os elementos do contrato dissimulado não cobertos pela forma o negócio simulado ficariam expressos e tornar-se-iam cognoscíveis na decisão judicial que declara a simulação “cuja forma é mais solene que a da escritura pública e cuja certidão serve de base ao registo do acto real (dissimulado). A forma soleníssima da sentença satisfaz a exigência de publicidade, a qual só fica prejudicada em relação ao tempo que medeia entre a ocorrência da simulação e a prolação da sentença e o seu registo.”[13]
Uma visão linear sustentada no elemento histórico parece apontar para esta interpretação.
A este propósito, realça Menezes Cordeiro[14] “(…) apesar do conjunto dos trabalhos preparatórios, abrangendo o anteprojecto de Rui Alarcão e as alterações que se seguiram, não serem conclusivos, os elementos de que dispomos apontam num claro sentido: (i) o autor material do anteprojecto defende a tese processada por Manuel de Andrade; (ii) o autor das revisões ministeriais sempre considerou que a intenção do legislador passou pela consagração dessa mesma teoria; e (iii) logo a pós a entrada em vigo do Código de 66, o mais alto tribunal da nação considerou também, alterando de forma radical a posição anteriormente defendida, ser essa a interpretação mais correta do preceito[15]
Tendo presente os princípios que a lei indica (artigo 9.º, do CC) para se alcançar o sentido decisivo das normas, o esforço interpretativo do preceito não pode deixar de ter em conta, para além do mais, a unidade do sistema jurídico e, nessa medida, a resposta a dar à questão (validade do negócio dissimulado) não pode alhear-se do próprio regime da interpretação da declaração negocial.
A este respeito mostram-se delineadas duas soluções: uma que aponta o caminho interpretativo definido pelo artigo 217.º, n.º2, do CC, quanto às declarações tácitas[16]; outra, aplicando (analogicamente) o regime do artigo 238.º, do CC[17]. Esta última, encarada inicialmente por Vaz Serra,[18] merece a adesão de Menezes Cordeiro que na sua análise crítica conclui que a resolução de toda a problemática está em saber das razões determinantes da forma legal exigida para o negócio, defendendo que a exigência de forma especial para a doação de bens imóveis não é motivada por qualquer animus, mas pela natureza do objeto transmitido: bem imóvel. [19].

2.3 Norteados pelo princípio de que o intérprete, na aplicação do direito, deverá privilegiar no sentido da norma a procura de soluções razoáveis que melhor reflictam o equilíbrio de interesses por ela visados, temos por mais adequado o posicionamento que, alicerçado nos ensinamentos de Manuel de Andrade (que faz assentar a validade do negócio dissimulado no preenchimento das razões justificativas da exigência legal de forma especial) condiciona o artigo 241.º, n.º2, do CC, ao regime da interpretação do negócio jurídico perspectivando-o, por isso, sob os dois pilares ínsitos no artigo 238.º, n.º2, do CC: a tutela da vontade efectiva das partes e os fins inerentes à exigência de forma.

Entender o referido preceito de outro modo redunda num esvaziar do seu campo de aplicação.

Revertendo tais considerações à situação dos autos, não podemos reiterar a solução encontrada pelo tribunal a quo.

Com efeito, em causa está determinar da validade do negócio efectivamente visado (negócio dissimulado) – a doação pelos 4.ºs Réus dos imóveis aos 1.ºs Réus – tendo presente que o negócio simulado (doação pelos 4.ºs Réus dos imóveis aos 2.ºs e 3.ºs Réus) foi celebrado por escritura pública, sendo que nela tiveram intervenção os 1.ºs Réus (efectivos donatários) embora na qualidade de representantes do seu filho menor, o 2.º Réu. 

O tribunal a quo considerou que o negócio dissimulado não podia ser considerado válido por nele não terem tido intervenção os efectivos donatários (os 1.ºs Réus), carecendo assim o negócio de um elemento essencial condicionante da sua validade: o mútuo consenso das partes. 

Seguindo a interpretação do artigo 241.º, n.º2, do CC, nos termos supra expostas e tendo presente a factualidade apurada sob os pontos 10, 12, 13, 14, 15 e 17[20], considerando ainda que a exigência de forma especial para a doação de bens imóveis (artigo 947.º, n.º1, do CC) é motivada pela natureza do objecto transmitido (bem imóvel)[21], há que considerar o negócio dissimulado válido uma vez que o negócio simulado foi realizado por escritura pública, mostrando-se, por isso, observada a forma legalmente exigida para a doação efectivamente operada.
        Procedem, assim as conclusões do recurso.

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente, pelo que revogam o acórdão recorrido quanto ao segmento decisório que confirmou a sentença na parte (alínea d)) que declarou nulo o negócio de doação dissimulado que os 4.ºs Réus quiseram fazer aos 1.ºs Réus. Consequentemente, declara-se válida e eficaz a doação dissimulada que os Réus II e JJ quiseram fazer aos Réus DD e EE através da escritura de 31 de Janeiro de 2011, outorgada no cartório Notarial de MM, ..., tendo por objecto os imóveis nela identificados.
Custas (do recurso e da acção) pelos Réus.


Lisboa, 17 de Dezembro de 2019

Graça Amaral - Relatora

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

SUMÁRIO

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[1] “(…) na simulação subjectiva surge como contraparte alguém com a finalidade de ocultar a identidade do verdadeiro interveniente no contrato, vulgarmente denominado testa de ferro ”– Acórdão do STJ de 14-03-2019, Revista n.º 8765/16.1T8LSB.L1.S2.
[2] Cfr. ponto 12 da matéria de facto provada.
[3] O negócio dissimulado poderá, pois, ser plenamente válido e eficaz ou não dependendo das consequências que teriam lugar, se tivesse sido abertamente concluído – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, p. 362.
[4] Como bem esclarece Menezes Cordeiro “(…) o legislador não nos diz que o negócio dissimulado é válido, mas que a validade deste negócio não é afetada pelo vício que inquina o negócio simulado.” – Tratado de Direito Civil, II Parte Geral, Almedina, 2017, p. 902.
[5] Processo n.º 2663/03, CJ Ano XI, Tomo III, p.93 e ss.
[6] A solução legal inicialmente proposta (sustentada por Rui Alarcão - BMJ, n.º 84 - autor do anteprojecto e defendida por Manuel de Andrade) apenas fazia depender a validade do negócio dissimulado da satisfação das razões subjacentes à sua exigência legal.
[7] Cfr. Menezes Cordeiro, obra citada, p. 903.
[8] A posição das instâncias alinha-se no posicionamento defendido pela teoria da forma da declaração. O tribunal a quo, no seguimento da sentença, considerou o negócio dissimulado nulo por vício de forma por nele faltar um dos elementos essenciais, a intervenção dos 1.ºs Réus.
[9] Firmando jurisprudência no sentido de que “anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos hipotecários, que dissimulavam doações, não podem estas considerar-se válidas”.
[10] Beleza dos Santos, Simulação em Direito Civil, nota 1, p. 358, citado no Acórdão do STJ de 17-06-2003, CJ Ano XI, Tomo II, p. 112 e ss.
[11] Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, pp. 192/193.
[12] Pelo que exigir-se que a forma adoptada no negócio simulado contemple a totalidade do negócio visado conduzirá, necessariamente, à nulidade do negócio dissimulado.
[13] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, p. 592.
[14] Obra citada, p. 905.
[15] Relativamente a este aspecto o Professor faz referência à tomada de posição ínsita no Acórdão do STJ de 18-04-1969 (RLJ 103, 1971, 356-359), em contraposição com o entendimento sufragado no Assento de 1952.
[16] Pais de Vasconcelos radicado no disposto no n.º2 do artigo 217.º do CC (nos termos do qual o caráter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.) e partindo do pressuposto de que a forma adoptada no negócio dissimulado nunca pode revelar a totalidade do negócio real, considera que a lei é menos exigente relativamente à validade formal dos negócios tácitos e, nessa medida, propende para a solução de considerar formalmente válido o negócio dissimulado desde que a forma que a lei exige para a sua validade tenha sido observada no negócio simulado – Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pp 590-593. Em crítica a este entendimento Menezes Cordeiro considera que o n.º2 do artigo 217.º do CC, não pode ser acolhido desinserido do respectivo n.º1 nos termos do qual a declaração é tácita quando se deduz dos factos que, com toda a probabilidade, a revelem e, nessa medida, aplicando o preceito à simulação relativa concluiu que “seria necessário deduzir da escritura pública da declaração de compra e venda a intenção de doar e apenas depois se poderia invocar o número 2 do artigo 217.º,” – obra citada, p. 906.     
[17] O n.º1 estatui que “Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.”. Este princípio, porém, de acordo com o n.º2 do mesmo preceito, cede nas situações em que, cumulativamente se verifique: se o sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto corresponder à vontade real das partes e se as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.   
[18] Anotação ao Acórdão do STJ de 6 de Junho de 1967, RLJ 101, 1968.
[19] Obra citada, p.907.
[20] O 3º Réu HH, dado que à data era menor de idade, foi representado nessa escritura de doação pelos seus pais, aqui 1ºs Réus.
Os 4ºs Réus pretenderam doar os mesmos prédios aos 1ºs Réus e não aos 2º e 3º Réus, que também não quiseram aceitar as doações.
Os 4ºs Réus apenas não declararam doar os aludidos prédios aos 1ºs Réus para os colocar fora do alcance dos respectivos credores, nomeadamente dos aqui Autores.
Os 4ºs Réus procederam na mesma data e em acto contínuo, à doação dos seus restantes bens, beneficiando todos os seus filhos à excepção da sua filha EE, aqui 1ª Ré.
Tendo doado oito prédios, um prédio ao filho RR, cinco prédios ao filho SS e dois prédios ao filho DD, sendo que estas doações foram feitas por conta da legítima dos donatários e no caso de exceder a mesma a serem imputadas na quota disponível dos doadores.
Todos os Réus sabiam, à data da outorga da escritura de doação, que os 1ºs RR. tinham várias dívidas, nomeadamente para com os Autores.
Os 2º e 3º Réus nunca fruíram dos prédios rústicos identificados em 9º, encontrando-se os mesmos a ser cultivados pelo 1ª. Ré EE.
[21] A existência de escritura pública assegura a necessária ponderação sobre as consequências do acto e estabelece a prova segura da transmissão dos bens.