Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
724/09.7TBAMT.P2.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
REQUISITOS
VONTADE DOS CONTRAENTES
ÓNUS DA PROVA
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRANSMISSÃO DA POSSE
TRADIÇÃO DA COISA
PREÇO
PAGAMENTO ANTECIPADO
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 02/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / VÍCIOS DA VONTADE / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, 832 e seguintes.
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª ed., 276.
- Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3.ª ed., 473 e ss..
- Gravato de Morais, Contrato Promessa em geral - Contratos promessa em especial, 245 e ss..
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1983, 169.
- Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3.ª ed., 76 e 77; Tratado de Direito Civil Português, I, tomo IV, 130, 131, 283.
- Menezes Leitão, Direitos Reais, 4.ª ed., 123.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, 357, 358.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 658.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. I, 1967, 155; “Código Civil” Anotado, III, 2.ª ed., anotação ao 1251.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º1, AL. A), 240.º, 241.º, 342.º, N.º1, 350.º, N.ºS 1 E 2, 1251.º, 1252.º, N.º 2, 1253.º, 1260.º, N.º 1, 1263.º, AL. B), 1287.º, 1288.º, 1296.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 19 DE NOVEMBRO DE 2002 (PROCESSO Nº 8205/2002-7, RELATOR ABRANTES GERALDES, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT).

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 20.3.2001, COL. JUR., 2001, TOMO II, 190.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 5 DE MAIO DE 1994 (PROCESSO N.º 084616, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT);
-DE 24 DE JANEIRO DE 2002 (COL JUR - AC DO STJ, 2002, TOMO I, P. 53 E 54);
-DE 11 DE DEZEMBRO DE 2008 (PROCESSO N.º 08B3743, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT);
- DE 1 DE MARÇO DE 2012 (PROCESSO N.º 158/2000.L1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT);
-DE 12 DE JULHO DE 2011 (PROCESSO N.º 899/04.1TBSTB.E1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT);
-DE 12 DE MARÇO DE 2015 (PROCESSO Nº 3566/06.8TBVFX.L1.S2, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT).

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ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 14 DE MAIO DE 1996 (B.M.J. N.º 457, 55 E SEGUINTES), EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I. Embora se mostre a existência de um acordo simulatório, não pode ser declarada a nulidade do negócio celebrado por simulação se não se provar o intuito de enganar o terceiro, seja para o prejudicar seja para o iludir.

II. O abuso de direito no figurino do venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes.

III. O contrato promessa não é suscetível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se, através de um acordo (que se resolve num contrato atípico ou inominado, diferenciado em si mesmo do contrato promessa e constitutivo de um direito pessoal de gozo) paralelo à promessa, o promitente-comprador obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus mas não adquire o animus possidendi, ficando pois na situação de mero detentor ou possuidor precário.

IV. Porém, o promitente-comprador pode assumir em certos casos, excecionais, a qualidade de verdadeiro possuidor, conforme revelado pela ponderação casuística das circunstâncias de facto inerentes à relação negocial estabelecida (termos e conteúdo do negócio, circunstâncias que o rodearam e vicissitudes que se seguiram à sua celebração).

V. Mostrando-se que o promitente-vendedor se desinteressa em benefício do promitente-comprador dos poderes inerentes à sua qualidade de proprietário, passando o promitente-comprador, que pagou quase todo o preço da venda, a praticar atos sobre a coisa que se esperam normalmente apenas de um proprietário, então estamos perante um desses casos excecionais.

VI. Pela própria natureza das coisas, não pode falar-se em má-fé na aquisição da posse, mas sim em boa-fé, quando é o próprio proprietário e possuidor legítimo que, traditando a coisa ao promitente-comprador, confere a posse a este.

VII. A usucapião é uma forma originária de adquirir, e esta abstrai de anteriores vicissitudes ou incidências físicas ou jurídicas, incluindo as registrais, sobre o prédio usucapido.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 724/09.7TBAMT.P1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação do Porto

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e BB demandaram, pelo então Tribunal da Comarca de ... e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, CC e mulher DD, EE e mulher FF, e BANCO GG, S.A., peticionando que:

a) Seja declarado que a compra e venda que especificam, e em que foram partes os 1ºs e 2ºs Réus, foi um negócio simulado no que respeita ao prédio rústico transacionado e que identificam;

b) Seja declarada a nulidade desse negócio;

c) Sejam cancelados todos os atos de registo predial celebrados com base na escritura pública que formalizou tal compra e venda, bem como os atos de registo predial praticados com base nela, como é o caso da hipoteca constituída a favor da 3ª Ré como garantia do mútuo concomitante celebrado entre esta e os 2ºs Réus;

d) Seja declarado que os Autores são comproprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos e respetivas dependências agrícolas – edifícios -, identificados nos art.s. 40º a 48º da petição inicial, com exceção da oficina de reparação de velocípedes com motor ali existente, por os terem adquirido por usucapião;

e) Sejam os réus condenados a reconhecer os direitos de compropriedade e posse dos autores sobre o prédio identificado na al. b) do art. 40º da petição inicial e respetivas dependências agrícolas - edifícios nele incorporados, identificados no art. 45º, 46 e 47 daquela peça processual - com exceção da oficina de reparação de velocípedes com motor;

f) Sejam os 1ºs. Réus condenados a reconhecer os direitos de compropriedade e posse dos autores sobre o prédio identificado na al. b) do art. 40º da petição inicial;

g) Sejam os réus condenados a absterem-se da prática de atos que impeçam ou diminuam o exercício dos direitos de posse e compropriedade dos autores sob os prédios a que aludem as als. d), e) e f);

h) Seja determinada a feitura do registo de aquisição dos prédios identificados nas als. d), e) e f) em nome dos Autores, em compropriedade, por usucapião.

Alegaram para o efeito, em síntese, que, mediante a competente escritura pública, os 1ºs. Réus declaram vender aos 2ºs. Réus os dois prédios, um rústico (artigo matricial 46) e outro urbano, que identificam, e que foram, concomitantemente, dados de hipoteca pelos compradores à 3ª Ré para garantia de empréstimo contraído junto desta. Porém, apenas é verdadeiro o negócio respeitante à compra e venda do prédio urbano, sendo que relativamente ao prédio rústico nem os 1ºs Réus o quiseram vender nem os 2ºs Réus o quiseram comprar. Tratou-se assim de um negócio simulado nesta parte, visando a correspetiva declaração de compra e venda unicamente, através do engano da 3ª Ré, lograr obter crédito bancário para a aquisição do prédio urbano mediante o fortalecimento da hipoteca. Deste modo, é nulo o negócio da compra e venda, devendo ser cancelados todos os atos de registo predial celebrados na suposição da real existência da dita compra e venda. Acresce que, em decorrência de um contrato promessa de compra e venda celebrado com o 1º Réu, estão os Autores na posse do dito prédio rústico e ainda de um outro prédio rústico (artigo matricial 50) e das respetivas dependências há mais de 15 anos, como se fossem deles donos, tendo por isso adquirido tais prédios por usucapião.

Contestou apenas a Ré BANCO GG, S.A., concluindo pela improcedência da ação.

Seguindo o processo seus termos, veio a final a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente.

Inconformados com o assim decidido, apelaram os Autores.

Impugnaram parte da matéria de facto e concluíram pela procedência dos seus pedidos.

Mais invocaram, ex novo, o abuso do direito por parte dos 1ºs e 2ºs Réus.

A Relação do … modificou parte da matéria de facto sob impugnação e, pronunciando-se sobre o mérito da causa, recusou a existência do invocado abuso do direito e confirmou a sentença recorrida.

De novo inconformados, recorrem os Autores para este Supremo Tribunal de Justiça, suscitando quer a revista normal quer a revista excecional.

A formação de juízes a que se refere o nº 3 do art. 672º do CPCivil, perante quem começou por ser distribuído o processo, decidiu que não se registava uma situação de dupla conformidade decisória das instâncias, razão pela qual não se pronunciou sobre o fundamento invocado para a revista excecional, determinando a distribuição do recurso como revista normal.

Operada essa distribuição, o relator, no exame preliminar, considerou que nada contendia com a admissibilidade da revista normal.

                                                           +

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes as seguintes conclusões:

1. Da admissibilidade do Recurso:

1.1

Dispõe o número 3 do artigo 671.° do Código Processo Civil que:

“Sem prejuízo dos casos em que é o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamento essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.a instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

1.2

A decisão da 1ª instancia não valorou a prova documental, nomeadamente os recibos de quitação.

Assim como não se pronunciou sobre o direito de posse a aquisição do direito de propriedade do artigo 50, rústico, de ..., por parte dos Recorrentes.

1.3

No que tange à simulação do negócio, a 1ª Instância refere que:

“... estando provada uma divergência parcial entre a vontade declarada real e a vontade real …, o certo é que os autores não lograram provar que aquelas pessoas o fizeram com o intuito de enganar terceiros, designadamente a BANCO GG”.

1.4

Quanto à aquisição por usucapião dos imóveis, a decisão da 1ª Instância após análise e fundamentação de direito do prazo da usucapião e dos carateres da posse, com referência expressa aos artigos 1297°, 1296°, 1251°,1260.°, 1261°, 1262°, 1263°, todos do Código Civil, conclui que:

“ ... perante a matéria de facto provada e não provada, forçoso é de concluir que os autores, por referência à sua apurada atuação sobre a parte e suas componentes do prédio misto referido em 8º dos factos provados, não passam de meros detentores, não adquiriram a posse, nem houve qualquer inversão nesse sentido, ao que acresce não se ter provado o animus corresponde ao exercício correspondente ao exercício de um direito de propriedade/com propriedade, mas apenas compatível com os direitos que lhes advém do contrato promessa que celebraram com os primeiros réus”.

E, logo após,

“ ... esta mera detenção, ainda que com o tempo e caraterísticas dadas como provadas, não é suscetível de conduzir a uma aquisição por usucapião”.

Decidindo:

“Pelo exposto, também os restantes pedidos terão que improceder”.

1.5

Outra é, porém, a fundamentação constante do Acórdão recorrido.

Desde logo, a alteração da matéria de facto assente, dá como provado o pagamento de grande parte do preço, bem como, conhece do pedido relativamente ao prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 50, da freguesia de ....

1.6

No que tange à posse e prazo para aquisição por usucapião, diferentemente da 1ª Instância, o Acórdão alude expressamente ao conteúdo do artigo 1252° do Código Civil, nomeadamente ao seu nº 2, no qual se estabelece “ ... uma presunção de causa, dizendo que “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce uma presunção de facto” .... (página 61)

1.7

O entendimento plasmado no Acórdão recorrido, aludindo pela primeira vez à inversão do ónus da prova, diverge substancialmente da sentença da 1ª Instância,

Considerando o elemento intelectual “animus” provado, ainda que por presunção.

1.8

O que, no entendimento dos Recorrentes constitui fundamentação essencialmente diferente da decisão da primeira Instância.

Caso assim se não entenda, sempre a revista deve ser admitida, ainda que como revista excecional, pois existe:

2. Conflito jurisprudencial:

Do conjunto dos factos provados, para o que aqui e agora interessa, está provado:

- A celebração de contrato promessa de compra e venda em 09/02/1994 entre os Recorrentes e os 1ºs Réus;

- O pagamento de grande parte do preço;

- A posse pública e pacífica dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 46.° e 50.°, da freguesia de ... - ... por parte dos Recorridos com referência à data do contrato promessa (09/02/1994);

- O facto de terem sido os 1ºs Réus, enquanto proprietários e promitentes vendedores a investir os Autores na posse dos imóveis prometidos vender;

- O facto dos 1ºs Réus colaborarem na posse dos Recorrentes, bem expresso no facto provado com o número 38.°;

- A posse dos Autores consubstanciar a posse de verdadeiros e únicos proprietários dos ditos prédios;

No Acórdão entendeu-se que “ ... ainda não haver decorrido o prazo necessário para a aquisição da propriedade por usucapião, no caso 20 anos, por se tratar de uma posse não registada, que se presume de má fé, posto que não fundada em modo abstratamente legítimo de adquirir o direito de propriedade ...”;

2.1

Este entendimento plasmado no Acórdão recorrido está em total e expressa contradição relativamente ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 11/12/2008, com referência ao processo 0883743, documento nº SJ20081211037437, disponível in www.dgsLpt. já transitado em julgado e que se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais em documento junto (documento n° 1, junto).

2.2

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, cujo relator foi o Sr. Conselheiro Salvador da Costa, pronunciou-se sobre essa questão jurídico-processual no citado Acórdão, tendo-se vinculado à posição de que:

1. Integram conceitos de facto as expressões entrega e ocupam, reportadas à passagem das parcelas de terreno para o domínio de facto do recorrido, o promitente-comprador, e ao exercício por eles desse domínio, designadamente a sua utilização.

2. O facto do pagamento do preço das coisas na sequência do contrato-promessa de compra e venda não é essencial na ação em que o autor faz valer o seu direito de propriedade sobre elas com base na usucapião, mas sim instrumental, por isso suscetível de ser considerado em resultado da instrução e discussão da causa.

3. A conclusão de que ao promitente-comprador foi conferida pelo promitente vendedor a posse em nome próprio sobre o objeto mediato do contrato prometido é suscetível de derivar, não só das circunstâncias envolventes da celebração do contrato-promessa e da entrega pelo último ao primeiro daquele objeto, como também da sua execução, revelada pelo comportamento deles em relação àquele objeto.

4. A presunção da posse de má fé por não ser titulada não tem razão de ser no caso de ser o próprio proprietário e possuidor dos terrenos que investiu o promitente-comprador na posse sobre eles.

5. O promitente-comprador adquire o direito de propriedade dos terrenos por usucapião se deles foi possuidor pública, pacificamente e de boa-fé durante quinze anos.

2.3

Considerando este entendimento, outra teria que ser a decisão no que respeita à aquisição da propriedade dos imóveis por usucapião por parte dos Recorrentes.

Pois, os Recorrentes com posse superior a 15 anos, de boa fé, é bastante para legitimar a sua aquisição da propriedade dos imoveis por usucapião.

2.4

No mesmo sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 8 de janeiro 2013, cuja cópia se junta como documento n.o 2, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Aí se refere que:

“Tendo os proprietários do terreno autorizado o promitente comprador/possuidor a utilizar o terreno como se proprietário fosse, essa posse é de considerar de boa fé”.

2.5

Invoca-se ainda o Assento do Supremo Tribunal de Justiça datado de 14 de Maio de 1996, publicado no Diário da republica nº 144, II série de 24 de junho de 1996, processo nº 85 204, cuja cópia se junta como documento número 3, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Este Assento, hoje Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, fixou que:

“Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

2.6

O Acórdão recorrido embora faça referência a este aresto, não faz aplicação prática do mesmo na resposta à matéria de facto.

De facto, era expetável que por força deste Assento, agora Acórdão uniformizador, no Acórdão recorrido fosse alterada a resposta à matéria de facto, por força da presunção do exercício do poder de facto dos Recorrentes sobre os dois imoveis, como está suficientemente provada nos autos.

2.7

Do exposto resulta que a decisão judicial de que se recorre está em contradição com as decisões judiciais sobre a mesma questão jurídica e no domínio da mesma legislação, proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal da Relação de Lisboa, nos sobreditos Acórdãos.

2.8

Na verdade, em ambos os Acórdãos fundamento, a posse de bens imóveis por tradição da coisa com base no contrato promessa é considerada posse de boa fé.

2.9

Pelo que, o prazo da usucapião para a aquisição dos imoveis é de 15 anos. Contrariamente ao Acórdão recorrido que considera a posse de má fé, com o consequente prazo da usucapião para aquisição de imóveis ser de 20 anos.

2.10

Não foi proferido acórdão uniformizador de jurisprudência sobre esta matéria.

2.11

Acresce, o Assente de 14 de Maio de 1996, hoje Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, fixou que:

“Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

O que não foi respeitado no Acórdão recorrido.

2.12

Nestes termos, os Recorrentes vêm invocar nesta sede, como um dos fundamentos da recorribilidade da decisão impugnada, o sobredito conflito jurisprudencial que pretende ver resolvido por V. Exas., Venerandos Conselheiros, concedendo a Revista, revogue a decisão, considerando que a posse de bens imóveis por tradição da coisa com base em contrato promessa é considerada de boa fé. Pelo que, o prazo da usucapião para aquisição dos imóveis é de quinze anos, com as legais consequências. Caso assim se não entenda, sempre deve considerar-se que o Acórdão recorrido violou o disposto no Assento de 14 de Maio de 1996, hoje Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que fixou a seguinte jurisprudência:

“Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

E decidir-se em conformidade.

3.

A conduta dos 1ºs e 2ºs Réus de fazerem constar na escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca o imóvel do artigo 46, rústico de ..., concelho de ..., teve o intuito de enganar a 3ª Ré, BANCO GG, fazendo crer à Instituição que o mesmo fora transacionado de verdade e que, por força da hipoteca, também garantia o pagamento do mútuo subscrito pelos 2ºs Réus;

3.1

A escritura pública é um documento autêntico (artigo 369.° do Código Civil), faz prova plena dos factos que nele são atestados (artigo 371.° do Código Civil).

3.2

Ao não traduzir a realidade do negócio, a fé pública que emana do documento é uma falsidade. O que também constitui fundamento para a simulação.

3.3

A figura de “prédio misto” para efeitos civis não existe.

3.4

Os imoveis dos artigos 46 e 50, rústicos, da freguesia de ..., concelho de ... são prédios autónomos, distintos e isolados entre si;

3.5

O ónus de não fracionamento, caducado em 12 de dezembro de 2006, não obsta à declaração de simulação da escritura de compra e venda celebrada em 09/01/2001, relativamente à transação do imóvel rústico do artigo 46.°, referido;

3.6

Mal andou por isso o Digníssimo Tribunal a quo, mesmo com os factos que originalmente entendeu dar como provados, na interpretação e aplicação a este caso concreto das regras relativas à interpretação da declaração e da vontade das partes e à simulação e suas consequências, violando assim o disposto nas normas dos artigos 236.° e seguintes do Código Civil, nomeadamente os números 1 e 2 do art. 240.° CC;

4.

Os Recorrentes assumiram a posse dos imóveis (artigos 46 e 50, rústicos de ...) com a outorga do contrato promessa de 09.02.1994 - cfr. facto provado 2.° - onde consta expressa e claramente que: “Os 2.os outorgantes entram, desde já, na posse dos prédios prometidos vender”;

4.1

Tendo os 1ºs Réus autorizado os Recorrentes a utilizar os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 46 e 50, rústicos de ..., ..., como se proprietários fossem, essa posse é de considerar de boa-fé.

4.2

Ainda que não tivesse havido “traditio”, sem admitir, sempre os Recorrentes teriam adquirido a posse dos aludidos imóveis por inversão do título de posse, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 1263.° e ainda artigo 1316.° e alínea c) do artigo 1317.°, todos do Código Civil; ou, ainda, pela via do aposssamento, nos termos do disposto 1263.° alínea a) do Código Civil;

4.3

A natureza dos atos praticados pelos Recorrentes sobre os prédios em causa nos autos assumiu o carácter de uma verdadeira posse do direito de propriedade desses mesmos prédios, quer pela presença do corpus quer pela presença (ou presunção) do animus;

4.4

Atentos os factos provados sobre os atos dos Recorrentes praticados sobre os prédios em causa, dúvidas não há que os Recorrentes adquiriram o direito de propriedade dos imóveis inscritos na matriz rústica sob os artigos 46 e 50, da freguesia de ..., em ..., pela verificação da usucapião, por via da tradição, nos termos da alínea b) do art. 1263.°, art. 1316.° e alínea c) do art. 1317.°, todos do Código Civil;

4.4

Ao não decidir nesse sentido, violou a decisão recorrida as normas vindas de citar, pelo que se impõe a sua revogação e substituição por decisão conforme ao direito.

5.

Ao obstar ao reconhecimento da aquisição por usucapião pelos Recorrentes do bem em causa nos autos, os ora Recorridos, mais não fizeram do que exercer um direito excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito incorrendo, por isso, em abuso de direito, nos termos do art. 334.° CC.

5.1

Na verdade, no caso concreto, é manifesto que os 2.os e 3.os Recorridos não ignoravam a lei e sabiam que, entrando os Recorrentes na posse do bem em 09.02.1994 e dadas as características da posse em causa (titulada, pública, pacífica e de boa fé) ao fim de 15 anos aqueles adquiririam o direito de propriedade por usucapião, nos termos do art. 1296.° CC.

O Acórdão recorrido violou as seguintes disposições legais:

- artigos: 236.°, 240.°, 241.°, 243.°, 291.°, 334.°, 342.°, 1251.°, 1252.°, 1258.° a 1262.°, 1263.°, 1265.°, 1266.°, 1268.°, 1287.°, 1288.°, 1292.°, 1296.°,1316.°,1317, todos do Código Civil;

- artigo 6.° do decreto-lei 555/1999, de 16 de dezembro;

- artigos: 607.° nºs 2, 3, 4 e 5, 615.° nº 1 alíneas b), c) e d), 640.°, nº 2, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

Terminam dizendo o seguinte:

«Nestes termos, deve o presente recurso ser admitido:

A) Por o Acórdão recorrido invocar fundamentação essencialmente diferente da decisão da 1ª Instância; ou, caso assim se não entenda,

B) Por existir conflito jurisdicional, consubstanciado na diferente interpretação no que respeita à posse dos bens imoveis por tradição da coisa com base em contrato promessa considerada de boa fé, bem corpo no prazo superior a 15 anos para aquisição da propriedade por usucapião, e na inversão do ónus da prova, tudo com as legais consequências;

C) E, em consequência, ser revogado o Acórdão recorrido, substituindo-se por outro que julgue a ação procedente, condene os Réus, ora recorridos, no pedido, que aqui se invoca para todos os efeitos legais, tudo com as legais consequências.»

                                                           +

Os Réus EE e mulher contra alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- As discriminadas nos itens abaixo indicados sob a), b) e c).

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De Facto:

Estão provados e não provados (considerando a modificação da matéria de facto que o tribunal recorrido fez operar) os factos seguintes:

Factos provados

1º - Pelo escrito de fls. 80, intitulado declaração, datado de 5 de Janeiro de 1994, em que figuram como outorgantes os 1.ºs réus CC e mulher DD e onde consta que “CC e esposa, declaramos que vendemos a BB e AA, todos os artigos referentes à Quinta dos ..., incluindo a área urbana e rústica pelo valor de quinze milhões de escudos, o que recebemos como sinal e princípio de pagamento um cheque no valor de dois milhões de escudos, cheque n.º 0000001241 do BANCO HH. Esta venda exclui a vivenda e o seu respectivo logradouro. Declaramos também que a água existente será dividida em partes iguais (alínea A) dos factos assentes).

2º - Pelo escrito de fls. 78, intitulado contrato-promessa de compra e venda, datado de 09/02/1994 e devidamente assinado, em que figuram como primeiros outorgantes os primeiros réus CC e mulher DD e como segundos outorgantes os autores AA e BB, foi clausulado o seguinte:

- Declara o 1.º outorgante, que é dono, além de outros, dos prédios inscritos na matriz rústica de ..., concelho de ..., sob os arts. 46.º e 50.º.

- Mais declara o 1.º outorgante que promete vender aos 2.ºs outorgantes aqueles prédios correspondentes aos citados artigos 46.º e 50.º pelo preço global de 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos).

- Que o prédio do art. 46.º tem direito às sobras das águas que abastecem e regam o prédio urbano dos 1.ºs outorgantes adiante identificado, tal como já vem sucedendo.

- Mais se declara que no referido art. 46.º existem várias construções que fazem dele parte integrante.

- Porém, esta promessa não engloba o prédio correspondente ao art. 285.º urbano também de ..., prédio esse que tem a área de 250 m2 de superfície coberta e 9.750 m2 de área descoberta, áreas estas a descontar à área do prédio referido sob o art. 46.º, prédio este que continuará a pertencer ao 1.º outorgante.

- Que o citado preço de 15.000.000$00 é pago do seguinte modo:

a) No dia de hoje, a quantia de cinco milhões de escudos, quantia que o 1.º outorgante declara ter recebido dos 2.ºs outorgantes, pela qual lhes confere quitação;

b) O restante de dez milhões de escudos será pago mediante o pagamento de 3.333.333$00 cada, a vencerem-se respectivamente durante o mês de Janeiro de 1995 e durante o mês de Janeiro de 1996 e ainda de uma terceira prestação de 3.334.334$00 a vencer-se durante o mês de Janeiro de 1997.

- Que a escritura definitiva será celebrada durante o mês de Janeiro de 1997, sendo responsabilidade dos 2.ºs outorgantes a sua preparação e marcação.

- Na hipótese dos 2.ºs outorgantes pretenderem outorgar a escritura definitiva antes daquela data, poderão fazê-lo desde que, nesse acto, liquidem todas as importâncias em dívida e desde que avisem com um mês de antecedência essa pretensão.

- Declara o 1.º outorgante que os 2.ºs outorgantes entram, desde já, na posse dos prédios prometidos vender, à exceção do edifício onde funciona a oficina de reparação de automóveis e logradouro adjacente que continua, pelo período de um ano, a estar na sua posse.

- Declaram por sua vez os 2.ºs outorgantes que aceitam comprar os referidos prédios com todas as cláusulas e termos deste contrato.

- Declara a mulher do 1.º outorgante que autoriza este negócio.

- Declaram, por último, todos os outorgantes, que conferem às recíprocas promessas aqui feitas a eficácia prevista no art. 830 n.º 1 do CC (alínea B) dos factos assentes).

3º - Teor do documento de fls. 81, datado de 13 de Janeiro de 1995, onde figuram como outorgantes os primeiros réus e onde consta “Eu, CC e sua esposa DD, declaram, para os devidos e legais efeitos, que receberam do Sr. AA e BB, a quantia de 3.333.333$00 referente à 2.ª prestação por conta da venda de todos os artigos referentes à Quinta dos ..., incluindo a área urbana e rústica (alínea C) e E) dos factos assentes, repetição do seu teor).

4º - Teor do documento de fls. 82, datado de 27/01/996, onde figuram como outorgantes os primeiros réus e onde consta “Eu, CC e sua esposa DD, declaram, para os devidos e legais efeitos, que receberam do Sr. AA e BB, a quantia de 3.333.333$00 referente à 2.ª prestação por conta da venda de todos os artigos referentes à Quinta dos ..., incluindo a área urbana e rústica (alínea D) dos factos assentes).

5º - Teor do escrito de fls. 83, intitulado de contrato-promessa de arrendamento, datado de 18 de Novembro de 1997, pelo qual o autor BB e mulher II, como primeiros outorgantes prometem arrendar à sociedade “JJ, Limitada” um prédio urbano composto de pavilhão e logradouro sito no lugar de ..., pela renda mensal de 100.000$00 (alínea F) dos factos assentes).

6º - Teor do fax de fls. 54, datado de 23/01/2007, enviada pelo réu EE a KK e onde consta: “Ex.mª Sr.ª: Venho por este meio informar que fui contactado por um dos compradores da quinta, o Sr. BB, que me pediu para passar a quinta para o nome deles. Apercebi-me, da conversa, que eles têm intenção de ir para tribunal com esta história, contra mim e contra o Sr. CC. Ora, como o Sr. CC sabe, o meu compromisso com a quinta é no sentido de resolver as coisas da melhor maneira, ao mesmo tempo que seja resolvida a questão do pavilhão. Não tenho nenhum interesse em andar metido em tribunais com este tipo de problemas. Agradeço, por isso, que rapidamente me diga o que quer fazer, pois da minha parte, estou pronto para o que for necessário (alínea G) dos factos assentes).

7º - Teor da comunicação de fls. 55, datada de 05/03/2007, emanada de CC, onde consta: “Fui recebedor de uma nota feita por si e dirigida à minha procuradora KK. Verifiquei que talvez devido à falta de comunicação entre nós, o assunto da Quinta, bem como, do pavilhão, ainda não estão resolvidos.

1- O assunto da Quinta só a si diz respeito pois quando se fez a escritura da casa, foi feita a escritura de todo o artigo visto que a casa não estava desanexada. O compromisso era logo que fosse feita a desanexação o Sr. EE faria a escritura às pessoas que possuíam um contrato-promessa de compra dessa parcela. Deste modo, se por acaso, a casa já estiver desanexada, penso que terá que escriturar o resto da parcela ao Sr. BB e ao Sr. AA.

2- O pavilhão, por aquilo que sei, o Sr. EE não efectuou qualquer pagamento ao banco, pelo que, através da minha procuradora, tivemos que assumir os respectivos encargos. Tem, deste modo, o Sr. EE, de proceder ao pagamento do montante em dívida ao banco, bem como, o restante do pagamento, conforme reza o contrato-promessa de compra. Conforme o recibo passado por si, deve-me a quantia de 13.000 euros, sem termos em conta o atraso (juros). ...Na minha opinião, devemos pôr as coisas claras e cumprir os compromissos por nós assumidos” (alínea H) dos factos assentes).

8º - Teor da escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, de cópia a fls. 41, celebrada em 9 de Janeiro de 2001, em que figuram como vendedores e primeiros outorgantes os primeiros réus CC e mulher DD e como compradores, mutuários hipotecantes e segundos outorgantes, os segundos réus EE e mulher FF, com as seguintes cláusulas:

O primeiro outorgante, com o consentimento da sua esposa, pelo preço global de vinte e um milhões de escudos (sendo vinte milhões de escudos pelo urbano e um milhão de escudos pelo rústico), já recebido vende ao segundo outorgante, EE, livre de quaisquer ónus hipotecários, o prédio misto, composto de prédio urbano destinado a habitação de casa de cave, rés-do-chão e andar, com a área coberta de 250 m2 e logradouro com a área de 9.750 m2 e prédio rústico denominado Propriedade dos …, com a área de 81.330 m2, sito no lugar dos …, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória sob o n.º 26, inscrito na matriz urbana sob o artigo 285 e na matriz rústica sob o artigo 46.

A terceira outorgante BANCO GG concede aos segundos outorgantes um empréstimo de vinte milhões de escudos, constituindo os segundos outorgantes hipoteca sobre o imóvel atrás identificado (alínea I) dos factos assentes).

9º - Encontra-se registado a favor dos 2.ºs réus EE e mulher FF por compra aos 1.ºs réus CC, pela Ap. 21 de 06/12/2000, o prédio misto sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., formado pelo prédio rústico denominado Propriedade de …, composto de cultura, pastagem, oliveiras, ramada, videiras em cordão, fruteiras, pinhal e mato, pastagem e dependências agrícolas, com a área de 81.330 m2, artigo 46 e casa de cave, rés-do-chão e andar, com a área coberta de 250 m2 e logradouro com 9.750 m2, artigo 285, descrito sob o n.º 26 (alínea J) dos factos assentes).

10º - Encontra-se registado a favor dos 1.ºs réus CC e mulher DD em G-3 a aquisição por compra do prédio rústico denominado “Tapada dos …”, composto por pinhal e mato, com a área de 13.500 m2, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito sob o n.º 198 (alínea K) dos factos assentes).

11º - A hipoteca a favor da ré BANCO GG foi registada no prédio descrito sob o n.º 26 pela AP. 22 de 06/12/2000 conforme certidão de fls. 71 (alínea L) dos factos assentes).

12º - Os 1.ºs réus não quiseram vender aos 2ºs. réus, nem estes quiseram comprar, o “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados (resposta aos factos vertidos nos pontos 1º e 2º da base instrutória).

13º - Os 2ºs. réus não pagaram aos 1.ºs réus a quantia de € 1.000.000$00, valor quem na escritura pública referida em 8º dos factos provados, atribuíram à parte rústica daquele prédio misto (resposta ao ponto 3º da base instrutória).

14º - Os 1.ºs e 2.ºs réus, ao celebrar a escritura pública referida em 8º dos factos provados, nunca quiseram que o “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados saísse da disponibilidade física dos 1.ºs réus (resposta ao ponto 6º da base instrutória).

15º - E planeavam transferir a propriedade para os autores, em cumprimento do contrato-promessa referido em 2º dos factos provados e, posteriormente, em cumprimento do contrato-promessa junto aos autos a fls. 479 a 481, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (resposta ao ponto 7º da base instrutória).

16º - Os 2.ºs réus nunca utilizaram nem ocuparam o “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados, nunca fizeram obras nem reparações, nem nunca semearam nem colheram frutos – tudo por referência à data da propositura da ação (resposta ao facto vertido no ponto 8º da base instrutória).

17º - Nem nunca se intitularam seus donos por referência à data da propositura da ação (resposta ao facto vertido no ponto 9º da base instrutória)

18º - Desde a data do contrato promessa de compra e venda referido em 2º dos factos provados – 09.02.1994 -, são os autores os utilizadores do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com artigo 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados e usam as suas dependências agrícolas, ocupando-o desde então, assim como o prédio rústico denominado “Tapada dos …”, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 50, cortando mato e árvores, especialmente pinheiros, limpando as bordas, fazendo a poda, sulfatando, colhendo as uvas e vendendo o vinho, semeando produtos e colhendo os frutos, sendo que, por duas vezes o autor BB ordenou o corte de pinheiros do segundo prédio, tendo-os vendido ao irmão LL – tudo por referência à data da propositura da ação.

19º - Entre “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados e o prédio rústico referido em 10º dos factos provados entrepõe-se uma estrada (resposta ao facto vertido no ponto 11º da base instrutória).

20º - As dependências agrícolas existentes no interior do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados são compostas de 3 edifícios destinados a habitação, adega, vacaria, vacaria esta que, posteriormente ao contrato promessa referido em 2º dos factos provados, foi transformada em armazém e JJ (resposta restritiva aos factos vertidos em 12º e 34º da base instrutória).

21º - Em 09/02/1994, os autores e os 1.ºs réus acordaram e assinaram o contrato-promessa referido em 2º dos factos provados com o objeto, termos, preço e demais condições nele referido (resposta aos factos vertidos nos pontos 13º, 14º, 15º e 17º da base instrutória).

22º - Logo após a outorga do contrato-promessa referido em 2º dos factos provados, o autor AA, acordou com um Sr. de nome CC dar-lhe de arrendamento, inicialmente dois campos e mais tarde três campos que faziam parte do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados e desde então que este CC os explora, semeando-os e colhendo os respetivos frutos, pagando ao autor AA inicialmente pelos dois campos € 300,00 anuais e, quando passou a ser três campos, € 400,00 por ano (resposta ao facto vertido no ponto 21º da base instrutória).

23º - Desde a outorga do contrato-promessa descrito em 2º dos factos provados que os autores procedem à limpeza e restauro de algumas dependências agrícolas do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados, limpando os logradouros, substituindo telhados, portas e janelas e mudando as fechaduras das portas (resposta ao facto vertido no ponto 22º da base instrutória).

24º - No edifício onde esteve instalada a vacaria e na outorga do contrato-promessa referido em 5º dos factos provados, celebrado e assinado em 18/11/1997 entre o autor BB e a “JJ, Lda.”, representada pelos seus sócios gerentes, MM e NN, aquele autor autorizou os sócios gerentes daquela sociedade a, em representação da mesma, fazer obras naquele edifício com vista à instalação de uma indústria de fabrico de urnas funerárias (resposta restritiva dada aos factos vertidos nos pontos 23º e 28º da base instrutória).

25º - Na sequência dessa autorização, no mencionado edifício procedeu-se ao aumento da superfície coberta do imóvel em cerca de 150 m, inutilizando a fossa existente, realizou-se a edificação de paredes laterais, armação e telhado e a colocação de uma placa em cimento no solo, bem como, vestiários e duas casas de banho (resposta restritiva dada aos factos vertidos nos pontos 24º e 25º da base instrutória).

26º - Na sequência daquela autorização, todo o espaço interior do mencionado edifício foi transformado e remodelado para armazém, com a execução de divisórias, colocação de energia elétrica, distribuição e colocação de pontos de água, arranjo do chão com a colocação de cimento, pintura das paredes e arranjo dos portões (resposta restritiva dada ao facto vertido no ponto 26º da base instrutória).

27º - Desde 18/11/1997 que a JJ ocupa o armazém ininterruptamente, sendo que, a partir de data em concreto não apurada, mas sempre depois daquela data, procedeu às referidas obras e depois passou a fabricar e a vender urnas e outros artigos funerários e pagando, a partir de data que em concreto não foi possível apurar, mas sempre depois de 18/11/1997, a respetiva “renda” ao autor BB (resposta restritiva dada ao facto vertido no ponto 29º da base instrutória).

28º - Em 9 de Dezembro de 1997, o autor BB requereu junto do Presidente da Câmara Municipal de ... a autorização para a localização da atividade industrial de fls. 88 (resposta ao ponto 30º da base instrutória).

29º - E, em 26/02/1998, pagou a certidão industrial de fls. 89 (resposta ao facto vertido no ponto 31º da base instrutória).

30º - Requereu a instalação de telefone e a mudança para seu nome do contador elétrico (resposta ao facto vertido no ponto 32º da base instrutória).

31º - E pagou, desde 18/11/1997 e até ao ano de 2000, a contribuição predial/IMI do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados (resposta ao facto vertido no ponto 33º da base instrutória).

32º - Após a celebração do contrato-promessa referido em 2º dos factos provados o autor AA executou algumas obras em dois dos edifícios de habitação referidos em 20º dos factos provados, ambos constituídos por cave, rés-do-chão e logradouro e omissos na matriz (resposta ao facto vertido no ponto 35º da base instrutória).

33º - Após a execução das obras, OO e PP, filhas do autor AA foram para lá morar, com a autorização do pai (resposta ao facto vertido no ponto 38º da base instrutória).

34º - A OO e o marido ali recebem amigos, confecionam e tomam as refeições, educam os filhos desde a data do seu casamento, 5 de Agosto de 1995 (resposta ao facto vertido em 39º da base instrutória).

35º - A PP e o marido ali recebem amigos, confecionam e tomam as refeições, educam os filhos no edifício que constituiu a sua habitação (resposta ao facto vertido em 40º da base instrutória).

36º - Há mais de 10 anos que o autor AA executou obras de beneficiação na adega referida em 20º dos factos provados, levantando paredes interiores, revestindo e pintando as paredes interiores e exteriores, colocando nova cobertura e portas, gastando quantia que em concreto não foi possível apurar (resposta ao facto vertido em 41º da base instrutória).

37º - No interior da adega existe um lagar que o autor AA chegou a utilizar na época das vindimas e onde guardava pipas, cubas, utensílios e ferramentas (resposta ao facto vertido em 42º da base instrutória).

38º - Em data não concretamente apurada, mas depois da outorga do contrato-promessa referido em 2º dos factos provados e ainda no decurso do ano da celebração do mesmo, os autores, em circunstâncias que em concreto não foi possível apurar, negociaram a venda do edifício destinado a oficina de reparação de velocípedes com motor com QQ, conhecido por …, pelo preço de 4.000.000$00, tendo o mencionado QQ pago 3.000.000$00 aos autores e pago 1.000.000$00 a réu CC, tendo sido este que outorgou a escritura juntamente com a sua mulher (resposta ao facto vertido no ponto 43º da base instrutória).

39º - Desde o contrato-promessa referido em 2º dos factos provados que os autores atuam da forma supra descrita, o que fazem sem pausa ou interrupção, com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de serem, pelo menos, promitentes-compradores do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com artigo 46, que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados, assim como o prédio rústico denominado “Tapada dos …”, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 50, e terem a legítima e forte expectativa de virem a celebrar a escritura definitiva respeitante ao contrato-promessa de compra e venda descrito em 2º dos factos provados e de ninguém prejudicar – tudo por referência à data da propositura da ação.

40º - Os Autores entregaram, pelo menos, aos 1ºs Réus a quantia de 13.666.666$00 para pagamento do preço referido no contrato-promessa descrito em 2º dos factos provados.

Factos não provados

1º - Os 1.ºs e 2.ºs réus fingiram a compra e venda do prédio rústico art. 46 referido em 8º dos factos provados para obterem crédito bancário junto da 3.ª ré BANCO GG, fazendo-lhe crer que a garantia do empréstimo era mais forte por abranger dois prédios (resposta aos pontos 4º e 5º da base instrutória).

2º - A vacaria referida em 20 dos factos provados tivesse sido transformada em oficina de reparação de velocípedes com motor (resposta ao segmento factual remanescente do ponto 12º da base instrutória).

3º - Eliminado

4º - Desde 9/02/1994, os autores ocupam o prédio descrito em 10º dos factos provados.

5º - O autor BB tivesse executado ou mandado executar as obras referidas em 24º, 25º e 26º dos factos provados.

6º - Na execução das obras referidas em 24º, 25º e 26º dos factos provados, o autor BB tivesse despendido cerca de € 50.000,00 (resposta ao ponto 27º da base instrutória).

7º - As referidas obras estivessem concluídas quando foi celebrado o contrato descrito em 5º dos factos provados.

8º - O BB emitisse e entregasse os respectivos recibos referentes à renda mencionada em 27º dos factos provados.

9º - O BB tivesse pago os alugueres respeitantes aos serviços que requereu descritos em 30º dos factos provados.

10º - O BB tivesse pago e continue a pagar a contribuição predial/IMI do prédio descrito em 10º dos factos provados.

11º - O BB tivesse pago a partir de 2001 e continue a pagar a contribuição predial/IMI do “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados.

12º - As obras executadas pelo autor AA e referidas em 32º dos factos provados tivessem consistido na execução de muros exteriores para consolidação de terras, colocação de placas, de tubos de água, substituição de fios eléctricos e coberturas e reboco e pintura das paredes e instalação de contadores elétricos.

13º - Com as obras executadas pelo autor AA e referidas em 32º dos factos provados o mesmo tivesse gasto € 50.000,00 (resposta negativa ao facto vertido em 37º da base instrutória).

14º - Com as obras referidas em 36º dos factos provados, o autor AA tivesse gasto a quantia de € 35.000,00.

15º - A apurada atuação dos autores sobre o “prédio rústico” descrito na matriz rústica com art. 46 e que integra o prédio misto referido em 8º dos factos provados tivesse sido levada a cabo pelos mesmos na convicção de serem os únicos donos do mesmo.

De Direito:

Das conclusões supra transcritas (expurgadas da matéria atinente à admissibilidade da revista excecional, questão esta já ultrapassada em face do decidido pela formação de juízes a que alude o nº 3 do art. 672º do CPCivil) resulta que os Recorrentes continuam a sustentar que:

a)- Se verifica a nulidade da compra e venda e mútuo formalizados através da escritura de 9 de janeiro de 2001, por isso que se tratou de um negócio simulado quanto ao prédio rústico aí referido;

b)- São donos dos dois prédios rústicos em causa, pois que os adquiriram por usucapião;

c)- Os 1ºs e 2ºs Réus agem de forma abusiva, no figurino do venire contra factum proprium, não se podendo por isso reconhecer-lhes o “direito” que invocam.

De permeio, mais aduzem que “a decisão da 1ª instância não valorou a prova documental, nomeadamente os recibos de quitação” e que “a conduta dos 1ºs e 2ºs Réus de fazerem constar na escritura (…) teve o intuito de enganar a 3ª Ré (…)”. Mas quanto a esta estrita temática importa observar que se trata de assunto atinente exclusivamente ao julgamento da matéria de facto, da competência das instâncias, e que o Supremo não pode sindicar (v. art.s 674º nº 3 e 682º nº 2 do CPCivil). Aliás, no que tange à valoração dos recibos de quitação não se compreende a chamada à colação da atividade da 1ª instância, pois que no presente recurso de revista apenas cabe escrutinar a atividade decisória do tribunal ora recorrido. E no que tange precisamente à atividade decisória deste último tribunal, é certo que ele não deixou de proceder à valoração do último recibo conhecido nos autos (o de €2.000,00), tendo, inclusivamente, feito operar correspetivamente a modificação da matéria de facto (o ponto 3º dos factos não provados foi eliminado, e foi aditado o ponto 40º).

Esclarecido e decidido que fica este particular, passemos ao conhecimento das demais questões colocadas o recurso.

a) Quanto à questão da simulação:

Prescreve a lei (nº 1 do art. 240º do Código Civil) que “se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real, o negócio diz-se simulado”.

Explicando o conceito de simulação, Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1983, p. 169), Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 1976, p. 357) e Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 1967, p. 155) ensinam-nos que é integrado por três elementos:

1º- Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, que se traduz “na consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real”;

2º- Acordo simulatório, isto é, “a divergência entre a vontade e a declaração deve proceder de acordo entre declarante e declaratário (pactum simulationis), e

3º- Intuito de enganar terceiros, quer seja para os prejudicar (animus nocendi) e diz-se “simulação fraudulenta”, quer seja apenas para os iludir, sem os prejudicar (animus decipiendi) e diz-se “simulação inocente”.

No art. 240º define-se a “simulação absoluta”, que é aquela em que “as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio jurídico” (v. Mota Pinto, ob. cit., p. 358). O art. 241º do mesmo diploma legal, por sua vez, define a “simulação relativa”, como a que se verifica “quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar”. (…)

No caso vertente estaria em questão uma hipótese de simulação absoluta.

Mas tal simulação nunca poderá ter-se por verificada, visto que as instâncias entenderam que não ficou provado (e essa prova pertencia aos Autores, conforme o estabelecido no art. 342º, nº 1 do CCivil) o intuito de enganar terceiros, neste caso a Ré BANCO GG. Quanto a isto o ponto 1º dos factos não provados é claro e concludente: não provado que os 1.ºs e 2.ºs réus fingiram a compra e venda do prédio rústico art. 46 referido em 8º dos factos provados para obterem crédito bancário junto da 3.ª ré BANCO GG, fazendo-lhe crer que a garantia do empréstimo era mais forte por abranger dois prédios (resposta aos pontos 4º e 5º da base instrutória).

Aliás, a razão pela qual o prédio rústico do artigo matricial 46 foi incluído na compra e venda firmada entre os 1ºs e 2ºs Réus será explicável simplesmente - isto tanto quanto se logra inferir da motivação exarada na sentença da 1ª instância a propósito do julgamento da matéria de facto - pela facto de aparecer registado um ónus de não fracionamento sobre o prédio misto em que se inseria o dito prédio rústico.

Assim, embora a factualidade provada indique que houve realmente um acordo simulatório entre os 1ºs e 2ºs Réus no respeitante ao prédio rústico integrante do prédio misto (v. a propósito os pontos 12º a 17º dos factos provados), por isso que não quiseram vender e comprar tal prédio, a verdade é que não se mostra que tal comportamento teve subjacente o intuito de enganar a Ré BANCO GG, S.A, fosse para a prejudicar fosse para a iludir.

O que significa que não existe fundamento para a declaração de nulidade, por simulação, da compra e venda e mútuo com hipoteca em questão.

Neste particular não podemos deixar de concordar inteiramente com o decidido no acórdão recorrido.

b) Quanto ao alegado abuso do direito no figurino do venire contra factum proprium:

Sem dúvida - e estamos a transcrever de Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., p. 658) – que «o direito deve ser exercido sem frustrar expetativas criadas pelo seu titular. No exercício do direito o seu titular deve respeitar a fé (fides servare), deve evitar frustrar a confiança que tenha suscitado em outrem. Se por qualquer razão o titular do direito tiver agido ativa ou passivamente de modo a criar em outrem uma confiança legítima relativamente ao exercício do direito, não poderá frustrar essa confiança que tenha criado ou contribuído para criar. A frustração de expetativas criadas corresponde ao tipo doutrinário da má fé tradicionalmente designado como venire contra factum proprium. Este tipo de má fé assenta na inadmissibilidade de comportamentos contraditórios. Quem, através de um comportamento ativo ou omissivo, cria em outrem uma confiança fundada em certo modo de exercício do direito - uma boa fé - não pode, depois, mudar bruscamente de comportamento e exercê-lo de um modo contraditório».

Convém ter presente, entretanto, e como observa Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, tomo IV, p. 283), que não há uma proibição genérica de contradição de atitudes por parte do titular do direito (até porque o comportamento anterior pode bem ter sido determinado por respeito, timidez, vergonha ou receio de causar mal, e não por aquiescência ou renúncia proposital a jamais exercer o direito), de sorte que apenas circunstâncias especiais podem levar à aplicação da figura do venire. Dentro deste registo, afirma-se, com razão, no acórdão da Relação do Porto de 20.3.2001 (Col Jur, 2001, tomo II, p. 190) que o abuso de direito só existe em casos verdadeiramente excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste uma vontade contrária à anterior, pois que é ainda necessário que a segunda atitude se apresente como um comportamento de todo em todo ofensivo do sentido ético-jurídico, clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes. A mesma linha de orientação se retira do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.1.2002 (Col Jur - Ac do STJ, 2002, tomo I, p. 53 e 54), aí onde se pondera que o exercício de um direito só poderá ser havido como ilegítimo quando houver manifesto abuso, isto é, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante. E acrescenta o mesmo acórdão que, e passamos a transcrever, «a utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não se já manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo. E não deve servir, ao cabo e ao resto, para dar cobertura a situações de facto ilícitas (…). Importa realçar que a proibição de comportamentos contraditórios não pode ser generalizada. Pelo contrário, essa proibição só é de aceitar quando o venire atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito (…). Com efeito, a relevância da chamada conduta contraditória exige, segundo o melhor entendimento, a “conjugação dos vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança”. Assim, a invocação do venire contra factum proprium pressupõe, necessariamente, “a situação objectiva de confiança, o investimento da confiança e a boa fé subjectiva de quem confiou”. A confiança só se mostra digna de protecção jurídica, desde logo, se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico».

Ora, da matéria de facto que vem provada não se pode retirar, dentro do que acaba de ser dito, que a conduta dos 1ºs e 2ºs Réus (no confronto dos Autores) é contraditória com conduta anterior, nem, de resto, se pode retirar que a conduta dos Autores se determinou ou foi minimamente influenciada a partir de uma confiança adquirida precisamente de atitudes anteriores dos Réus. Na realidade, e para sermos mais exatos, toda a discussão factual da presente causa passou ao lado da existência de qualquer contradição comportamental dos Réus relativamente a eventuais expetativas criadas pelos Autores. E muito menos foram alegados factos significantes de uma qualquer aberrante e chocante contradição com comportamentos anteriormente adotados.

Pela tese dos ora Recorrentes (que, aliás e estranhamente, só foi levantada no recurso de apelação que interpuseram), todo e qualquer o litígio emergente do não cumprimento de um qualquer acordo por banda de uma das partes, frustrando-se assim as expetativas negociais da outra parte, teria sempre subjacente um abuso de direito no figurino do venire. O que, convir-se-á, é um perfeito absurdo.

Também aqui bem andou o acórdão recorrido ao ter rejeitado o novel argumento do abuso do direito.

c) Quanto à questão da aquisição, por usucapião, dos dois prédios rústicos em causa:

Mostra-se que, conforme exarado no contrato promessa de compra e venda que os Autores celebraram na qualidade de promitentes-compradores, os promitentes-vendedores (os 1ºs Réus) traditaram para aqueles, nas condições indicadas nos pontos 18º e 39º dos factos provados, os prédios rústicos em causa (artigos matriciais 46 e 50).

Desde então que os Autores ocupam esses prédios, praticando sobre eles, pacifica, publica e continuadamente, os atos materiais e jurídicos que vêm descritos na factualidade provada.

Como tem sido amplamente entendido na jurisprudência e na doutrina, o contrato promessa não é suscetível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador. Trata-se de um contrato que reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, gerando uma prestação de facto (emissão de uma declaração negocial). Se, através de um acordo (que se resolve num contrato atípico ou inominado, diferenciado em si mesmo do contrato promessa e constitutivo de um direito pessoal de gozo), clausulado no próprio contrato promessa ou paralelo a ele, o promitente-comprador obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, sem dúvida que recebe o corpus, mas não adquire o animus possidendi, ficando pois na situação de mero detentor ou possuidor precário. Neste caso, possuirá normalmente em nome de outrem (v. alínea c) do art. 1253º do CCivil). Na realidade, e de acordo com a definição do art. 1251° do Código Civil, a posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, e não é esta a situação em que se encontra aquele que simplesmente se limita a obter a tradição da coisa e a fruí-la transitoriamente na simples expetativa da celebração do contrato prometido. Como decorre, a propósito, da fundamentação aduzida nos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2011 (processo nº 899/04.1TBSTB.E1.S1, relator Lopes do Rego) e de 12 de março de 2015 (processo nº 3566/06.8TBVFX.L1.S2, relator Lopes do Rego), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, podemos dizer que a tradição da coisa costuma assentar na pressuposição e expectativa do cumprimento do contrato prometido, equivalendo à atribuição ao promitente-comprador de um estado equiparável a um direito pessoal de gozo, de sorte que apenas desencadeará normalmente uma situação de mera detenção, enquadrável no art. 1253º do CC, sendo por isso a posse desse promitente exercida em nome do proprietário/promitente vendedor.

Embora alguma doutrina pareça fazer derivar a existência de uma posse verdadeira da simples tradição da coisa (assim, Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., pp. 473 e seguintes; Menezes Leitão, Direitos Reais, 4ª ed., p. 123), parece que o melhor entendimento jurídico é precisamente o que acaba de ser exposto.

Porém, como se tem apontado numa quase inabarcável produção jurisprudencial e doutrinária (v., por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., anotação ao art. 1251º; Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed., pp. 76 e 77; Durval Ferreira, ob. e loc. cit.; Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, pp. 832 e seguintes; Gravato de Morais, Contrato Promessa em geral - Contratos promessa em especial, pp. 245 e seguintes), o promitente-comprador pode assumir em certos casos, por certo excecionais, a qualidade de verdadeiro possuidor.

Tem-se observado, a propósito, que só a ponderação casuística das circunstâncias de facto inerentes à relação negocial estabelecida (termos e conteúdo do negócio, circunstâncias que o rodearam e vicissitudes que se seguiram à sua celebração) devem poder levar à qualificação da situação do promitente-comprador como de detenção ou como de posse efetiva. Menezes Cordeiro (v. ob. cit., p. 77) expende, a propósito, que “tudo depende da vontade das partes: haverá, pois, que interpretar o acordo relativo à traditio usando, para isso e se necessário, todos os demais elementos coadjuvantes”. Na mesma linha, pode ler-se do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11 de dezembro de 2008 (processo nº 08B3743, relator Salvador da Costa, disponível em www.dgsi.pt) que “a questão de saber se, na intenção das partes, a tradição da coisa envolve a transmissão da posse para ser exercida em nome de quem a transmite ou em nome próprio de quem exerce os concernentes poderes, tem que ser resolvida por via da interpretação da vontade das partes manifestada no texto do contrato-promessa ou nas declarações negociais envolventes de conexo e atinente acordo. (…) entre as referidas circunstâncias são susceptíveis de figurar, na intenção das partes, a antecipação da entrega da coisa na sequência do pagamento integral do preço, a contrapartida do reforço do sinal, a confiança na celebração próxima do contrato prometido, a compensação por serviço de mediação, ou até a mera gentileza no âmbito das relações contratuais. Assim, a referida intenção deve averiguar-se através das circunstâncias que envolveram o acto de tradição, quando ele ocorreu, mas não só, porque nada exclui que, na determinação dessa intenção e vontade se considere o comportamento das partes na execução ao longo do tempo do tempo do acordo que esteve na origem da situação, seja o do promitente-vendedor, seja o do promitente-comprador. (…) para a referida determinação da intenção e vontade das partes, face ao disposto na alínea b) do artigo 1263º do Código Civil, não relevam apenas as circunstâncias que acompanham a tradição da coisa, mas também os actos materiais que posteriormente a ela venham a ser praticados por uma e outra. A conclusão é, pois, no sentido de que a questão de saber se, por virtude da traditio da coisa objecto mediato do contrato prometido, a posição jurídica do promitente-comprador tradiciário é a de mero possuidor em nome do tradens ou de possuidor em nome próprio, deve ser averiguada pelas circunstâncias que envolveram o acto de tradição e a sua execução por ambas as partes.”

E como se aponta no acórdão ainda deste Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2012 (processo nº 158/2000.L1.S1, relator Silva Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt), estaremos perante uma situação de posse «quando o promitente-comprador, uma vez posto a usufruir o imóvel age, não em nome do promitente-vendedor mas em nome próprio (uti dominus), com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real, mais precisamente quando a “res” é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e quando, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade».

Dentro da mesma linha, pondera-se no acórdão da Relação de Lisboa de 19 de novembro de 2002 (processo nº 8205/2002-7, relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt) que para que o promitente-comprador assuma a qualidade de possuidor «basta que este [promitente-vendedor] abdique dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário, em benefício do promitente-comprador que, a partir de então, passa a agir como verdadeiro titular. O pagamento da totalidade ou da maior parte do preço ou a verificação de circunstâncias que dificultam a concretização da escritura de compra e venda, apesar de esta ser desejada por ambas as partes, pode redundar precisamente na atribuição ao promitente-comprador da qualidade de possuidor, paulatinamente exteriorizada através da prática dos actos que, em tese, incumbiriam apenas ao proprietário».

Assumindo o promitente-comprador a qualidade de verdadeiro possuidor, poderá por isso vir a adquirir por usucapião o direito a cuja imagem possui (art.s 1287º e 1316º do CCivil), não se aplicando nesse caso, pois, o art. 1290º do CCivil. Como se sintetiza no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11 de setembro de 2012 (processo nº 4436/03.7TBALM.L1.S1, relator Nuno Cameira, disponível em www.dgsi.pt) «há muito que vem sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência que em determinadas hipóteses a posse exercida pelo promitente-comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, justamente por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa (neste sentido: Antunes Varela, RLJ Ano 124º, pág. 348; Vaz Serra, RLJ Ano 109º, pág. 314; Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11ª edição, pág. 231, nota 55, e acórdãos do STJ de 9/9/08 (Pº 08A1988), de 12/3/09 (Pº 09A0265) e 5/6/12 (Pº 4944/04.2TVPRT.P1.S1)».

Ora, passando ao caso vertente, vemos então que, mediante cláusula inserta no próprio contrato-promessa, foram desde logo traditados para os Autores os dois prédios rústicos em causa, sob a declaração de que os promitentes-compradores “entram desde já na posse” (pontos 2º e 21º). Se esta menção em si mesma não apresenta particular essencialidade ou caráter distintivo em termos de posse ou de simples detenção, deve, porém, ser aproximada da declaração de 5 de janeiro de 1994 (v. ponto 1º: “declaramos que vendemos…”) e com ela conjugada, o que tudo começa por sugerir um propósito de afetação definitiva dos prédios aos Autores. E a verdade é que logo após receberem os prédios, os Autores passaram a comportar-se em relação a eles de forma que muito se identifica com a condição de titulares do domínio, e pouco se identifica com a condição de simples ocupantes ou meros detentores agindo apenas em representação dos promitentes vendedores, ou em termos de simples poder de facto sem intenção de beneficiar do direito, ou ainda em termos de simples aproveitamento da tolerância dos mesmos promitentes vendedores (v. art. 1253º do CCivil).

Revelam a bondade desta conclusão certos factos dos pontos 18º (corte e venda de pinheiros), 20º (transformação da vacaria noutro equipamento), 22º (afetação onerosa de campos a terceiro), 23º (substituições de telhados, portas e janelas, e mudança das fechaduras das portas), 24º, 25º, 26º e 27º (afetação do espaço a terceiros e autorização para a realização de vastas obras com vista à instalação de uma outra indústria), 31º (pagamento da contribuição predial/IMI), 32º (realização de obras nos edifícios de habitação), 33º, 34º e 35º (afetação dos espaços habitacionais aos fins de residência permanente e estável de filhas), 36º (realização de novas obras) e 38º (negociação da venda a terceiro de um dos edifícios, com recebimento da maior parte do preço, e com a óbvia anuência e colaboração dos próprios promitentes-vendedores, por isso que foram eles quem outorgou na escritura).

De outro lado - e isto é deveras importante - mostra-se que foi pago pelos Autores praticamente todo o preço da prometida venda. Na realidade, do preço acordado para a venda dos prédios (15.000.000$00) foram pagos, pelo menos, 13.666.666$00 (ponto 40º). A estar ainda (eventualmente) por pagar a diferença entre estes dois quantitativos, convir-se-á que estamos perante um valor sem grande significado.

Ainda, da comunicação indicada no ponto 7º decorre claramente o desinteresse ou demissão dos promitentes vendedores relativamente à dominialidade dos prédios rústicos prometidos vender aos Autores (da mesma forma que, adiante-se em breve nota, também os adquirentes do prédio misto englobante do artigo 46º - os Réus EE e mulher - nenhum interesse pessoal jamais manifestaram em relação aos prédios, em termos de beliscar o domínio de facto exclusivo dos Autores: é o que resulta do teor do fax indicado no ponto 6º, da cláusula 10º do contrato-promessa que firmaram com os 1ºs Réus, e, sobretudo, dos factos dos pontos 12º, 13º, 14º, 15º, 16º e 17º).

Perante esta realidade factual, vista na sua globalidade, afigura-se ter sido propósito, tal como efetivamente sucedeu, que os Autores recebessem dos anteriores proprietários e promitentes vendedores o corpus possessório propriamente dito (o poder de facto sobre os prédios) e não apenas uma posse precária (a simples faculdade de deter temporária e provisoriamente os prédios).

É verdade, entretanto, que se tem entendido maioritariamente que o ordenamento jurídico português adota a conceção subjetivista da posse, sendo esta integrada, para além do corpus, por um outro elemento estrutural: o chamado animus possidendi.

E, quanto a isto, vem dado como provado (ponto 39º) simplesmente que os Autores agiram “na convicção de serem, pelo menos, promitentes-compradores”.

Não se duvida que estamos aqui perante uma realidade factual (facto psicológico) do exclusivo julgamento das instâncias. Todavia, importa observar que este pronunciamento factual restritivo provindo das instâncias acaba por não apresentar qualquer essencialidade jurídica. Isto é assim porque, nos termos do nº 2 do art. 1252º do CCivil, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, e o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de maio de 1996 (BMJ nº 457, pp. 55 e seguintes) definiu, a partir dessa norma, que o animus se presume legalmente (e quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, art. 350º, nº 1, do CCivil), de sorte que o animus se considera verificado ou existente na pessoa daquele que exerce o poder de facto (a menos que a presunção seja ilidida). E dado que nos movemos o âmbito de uma presunção legal, a ilisão demandaria a prova em contrário (nº 2 do mesmo normativo). Dentro da mesma linha, aponta Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, 4ª ed., p. 276) que “havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi. É este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus”.

Ora, sucede que tal prova do contrário não se mostra feita in casu, que nada sequer foi alegado factualmente com vista à referida ilisão. Assim, demonstrado que está que os Autores passaram a exercer desde sempre (entenda-se, desde a traditio) o poder de facto sobre os prédios e à imagem do direito de propriedade e da posse que lhe está associada (intenção de agir como titulares do direito correspondente aos atos realizados), segue-se que se presume legalmente o dito animus.

O que significa que, diferentemente do decidido no acórdão recorrido, estamos perante uma situação possessória, e esta é apta à aquisição do direito de propriedade por usucapião (art. 1287º do CCivil).

Diz o acórdão recorrido, porém, que o prazo da usucapião que interessaria ao caso seria o de 20 anos, por isso que se estaria presumidamente perante posse de má-fé. Prazo esse que não estaria transcorrido à data da propositura da ação.

É verdade que esse prazo de 20 anos não estaria transcorrido.

Simplesmente, o prazo a considerar no caso não é o de 20 anos, mas sim o de 15 anos.

Certo que não estamos perante posse titulada (o contrato promessa não é meio legítimo de adquirir), mas bem perante posse não titulada. Certo também que a posse não titulada se presume (presunção juris tantum) de má-fé (art.s 1259º e 1260º do CCivil). Contudo, essa presunção de má-fé mostra-se claramente ilidida no caso vertente pela demonstração do contrário, isto é, pela demonstração da existência de boa-fé por parte dos Autores, pois que é óbvio que agiram necessariamente na ausência de conhecimento de estarem, ao adquirir a posse, a lesar o direito de outrem (v. nº 1 do art. 1260º do CCivil). Isto é assim porque, pela própria natureza das coisas, não pode falar-se em má-fé na aquisição da posse quando precisamente (como é o caso) é o próprio proprietário e possuidor legítimo que, traditando voluntariamente a coisa (v. a alínea b) do art. 1263º do CCivil), confere a posse ao novo possuidor. Por natureza, estamos neste caso perante uma posse de boa-fé, por isso que nunca se pode aqui colocar a hipótese de lesão do direito do terceiro. Vale aqui inteiramente, abstraindo da matéria de facto subjacente, o que se diz no seguinte inciso do supra citado acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de dezembro de 2008: “Como no caso vertente é não titulada a posse dos recorridos, ela é legalmente presumida de má fé - presunção juris tantum - apenas ilidível por via da produção de prova pelos recorridos em contrário (…). Importa, quanto a este ponto, ter em conta que a posse é legalmente considerada de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la lesar o direito de outrem. Tendo em conta o modo, a que acima se fez referência, por que foi ao recorrido conferida a posse pela recorrente, possuidora que era em termos correspondentes ao direito de propriedade sobre as parcelas de terreno em causa, pela própria natureza das coisas, não faz sentido configurar a lesão do direito de quem lha conferiu ou de outrem. Por isso, também no caso não faz sentido configurar a ciência ou a ignorância dos recorridos quanto à lesão, ao adquirirem a posição de possuidores, da lesão do direito da recorrente ou de outrem (…)”.

E assim, dado que estamos perante posse de boa-fé, segue-se então que o prazo a considerar é o de 15 anos (art. 1296º do CCivil). E não o de 20 anos, suposto no acórdão recorrido.

Prazo esse que se iniciou em fevereiro de 1994 (data do início da posse) e que estava transcorrido quando a presente ação foi proposta (abril de 2009).

Donde, adquiriram os Autores por usucapião o direito à imagem do qual possuíram, ou seja, o direito de propriedade sobre os dois prédios rústicos em questão.

Aquisição essa, acrescente-se, com efeitos retrotraídos à data do início da posse (art. 1288º do CCivil).

Diz ainda o acórdão recorrido que «também tem razão a sentença recorrida ao afirmar, relativamente ao artigo 46, que integra o prédio misto, que “ainda que assim não se entendesse (…), sempre assistiria razão à BANCO GG, quando refere que o êxito desta ação está impossibilitado por imperativo legal, pois que, ao contrário do afirmado pelos autores, a parte rústica em causa integra um único imóvel objecto da compra e venda celebrada entre os réus, trata-se de uma única unidade predial, pelo que o que os autores pretendem é obter uma operação de destaque que jamais pode ser obtida pela presente via judicial, mas antes pelas entidades administrativas competentes”», concluindo que “Não podem, por conseguinte, os Autores buscar tutela para os direitos que a seu favor se constituíram com a celebração do aludido contrato-promessa através dos mecanismos e vias processuais que entenderam escolher para o efeito”.

Mas este ponto de vista não pode, de forma alguma, ser subscrito.

O que os Autores buscam é simplesmente o reconhecimento do seu direito de propriedade, mediante a invocação da usucapião, sobre dois prédios rústicos, e para este estrito fim a via judicial que empregaram é a idónea. A circunstância de um desses prédios integrar (do ponto de vista fiscal e, quiçá, económico) um “prédio misto” ou uma “unidade predial”, ou a circunstância de desse prédio vir a ser “destacado” (sic) um dos prédios rústicos em questão (o do artigo matricial 46), tudo isso nada tem de relevante.

Desde logo porque não existe, em direito civil, como figura juridicamente autónoma e relevante, seja para que efeitos for, a figura do “prédio misto” ou da “unidade predial”. O que existe é a figura de prédio rústico e de prédio urbano (v. art. 204º, nº 1 alínea a) do CCivil), e é em função dessa dicotomia diferenciada e autónoma que nos podemos mover juridicamente. O que significa que, em abstrato e em geral, um prédio rústico e um outro urbano, “unificados” como “prédio misto” ou como tal qualificados, não estão só por isso afastados da possibilidade de separação em termos físicos e jurídicos.

Depois, porque nos movemos no âmbito da usucapião, forma originária de adquirir, e esta abstrai por completo de anteriores vicissitudes ou incidências físicas ou jurídicas, incluindo as registrais, sobre o prédio usucapido. Como nos diz Menezes Cordeiro (ob. cit., pp. 130 e 131), citando a propósito jurisprudência concordante, “A usucapião é uma forma originária de aquisição dos direitos. Assim, quando opere, cessam todos os encargos que antes oneravam a coisa (…). Desta natureza auto-suficiente da usucapião resultam consequências importantes. Assim, a usucapião sobrepõe-se ao registo (…), constituindo, por isso, a base do nosso ordenamento dominial. Admite-se a usucapião de uma gleba, separada dum baldio, assim como se admite a usucapião de áreas inferiores às de cultura ou de parcelas que legalmente não seriam separáveis.”

Dentro da mesma linha, pode ler-se do sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de maio de 1994 (processo nº 084616, disponível em www.dgsi.pt) que «É certo que a lei civil não considera o “prédio misto”, - artigo 204 do Código Civil - mas não proíbe a sua existência para certos efeitos, como se pode ver do Código de Contribuição Predial - artigo 5 e da Contribuição Autárquica - artigo 5 e 7 - onde se classifica de prédio misto o prédio composto de parte rústica e de parte urbana, não podendo cada uma delas ser declarada como principal. Assim não há obstáculo legal a que o proprietário de prédio composto de parte rústica e de parte urbana o considere como uma unidade e o faça descrever no Registo Predial como prédio misto, o que não pode significar que uma ou outra dessas partes possa ser subtraída ao regime legal que lhe é próprio. Deste modo não existe obstáculo a que a parte urbana somente, ou somente a parte rústica, venha a ser declarada como propriedade de outrem que não daquele que se arroga como único proprietário de ambas as partes. Assim não há obstáculo legal a que o proprietário de prédio composto de parte rústica e de parte urbana o considere como uma unidade e o faça descrever no Registo Predial como prédio misto, o que não pode significar que uma ou outra dessas partes possa ser subtraída ao regime legal que lhe é próprio.»

Afigura-se assim, e concluindo, que os ora Recorrentes têm razão quando pugnam pela procedência dos pedidos que indicam nas alíneas d) a h) do seu petitório.

Procede, pois, à luz do último fundamento analisado, o presente recurso.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido na parte em causa, julgam a ação parcialmente procedente, e, em consequência:

- Declaram que os Autores são comproprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos e respetivas dependências agrícolas - edifícios -, identificados nos artigos 40º a 48º da petição inicial, com exceção da oficina de reparação de velocípedes com motor ali existente, por os terem adquirido por usucapião;

- Condenam os Réus a reconhecer os direitos de compropriedade e posse dos Autores sobre o prédio identificado na alínea b) do artigo 40º da petição inicial e respetivas dependências agrícolas - edifícios nele incorporados, identificados nos artigos 45º, 46º e 47º daquela peça processual - com exceção da oficina de reparação de velocípedes com motor;

- Condenam os Réus a reconhecer os direitos de compropriedade e posse dos Autores sobre o prédio identificado na alínea a) do artigo 40º da petição inicial;

- Condenam os Réus a absterem-se da prática de atos que impeçam ou diminuam o exercício dos direitos de posse e compropriedade dos autores sobre os referidos prédios rústicos;

- Determinam a feitura do registo de aquisição dos mesmos prédios em nome dos Autores, em compropriedade, por usucapião.

Regime de custas:

Custas da revista, da apelação e da 1ª instância por Autores e Réus, na proporção de 1/3 para os primeiros e 2/3 para os segundos.

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Sumário:

I. Embora se mostre a existência de um acordo simulatório, não pode ser declarada a nulidade do negócio celebrado por simulação se não se provar o intuito de enganar o terceiro, seja para o prejudicar seja para o iludir.

II. O abuso de direito no figurino do venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes.

III. O contrato promessa não é suscetível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se, através de um acordo (que se resolve num contrato atípico ou inominado, diferenciado em si mesmo do contrato promessa e constitutivo de um direito pessoal de gozo) paralelo à promessa, o promitente-comprador obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus mas não adquire o animus possidendi, ficando pois na situação de mero detentor ou possuidor precário.

IV. Porém, o promitente-comprador pode assumir em certos casos, excecionais, a qualidade de verdadeiro possuidor, conforme revelado pela ponderação casuística das circunstâncias de facto inerentes à relação negocial estabelecida (termos e conteúdo do negócio, circunstâncias que o rodearam e vicissitudes que se seguiram à sua celebração).

V. Mostrando-se que o promitente-vendedor se desinteressa em benefício do promitente-comprador dos poderes inerentes à sua qualidade de proprietário, passando o promitente-comprador, que pagou quase todo o preço da venda, a praticar atos sobre a coisa que se esperam normalmente apenas de um proprietário, então estamos perante um desses casos excecionais.

VI. Pela própria natureza das coisas, não pode falar-se em má-fé na aquisição da posse, mas sim em boa-fé, quando é o próprio proprietário e possuidor legítimo que, traditando a coisa ao promitente-comprador, confere a posse a este.

VII. A usucapião é uma forma originária de adquirir, e esta abstrai de anteriores vicissitudes ou incidências físicas ou jurídicas, incluindo as registrais, sobre o prédio usucapido.

VIII. Deste modo, não está impossibilitada a aquisição por usucapião de prédio rústico que faz parte de um “prédio misto” ou de um “conjunto predial”, realidades estas que, de resto, são desconhecidas e carecem de autonomia jurídica em direito civil.

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Lisboa, 14 de fevereiro de 2017

José Rainho - Relator

Nuno Cameira

Salreta Pereira