Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1735/06.0TBFLG-B.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
CRÉDITO AO CONSUMO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
ANULAÇÃO
ERRO
RESOLUÇÃO
RENÚNCIA
Data do Acordão: 09/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO DO CONSUMO - CRÉDITO AO CONSUMO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 287º E SEGS..
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 678.º, 680.º, 685.º, 732.º-A, 732.º-B.
DECRETO-LEI Nº 359/91, DE 21 DE SETEMBRO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 20 DE DEZEMBRO DE 2004, PROC. Nº JTRP00037510.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 24 DE ABRIL DE 2007, PROC. Nº 07A685;
- DE 13 DE NOVEMBRO DE 2008, PROC. Nº 07B2724;
- DE 20 DE OUTUBRO DE 2009, PROC. Nº 1202/07.4TBBVCD.S1;
- DE 7 DE JANEIRO DE 2010, PROC Nº 3798/08;
- DE 20 DE MARÇO DE 2012, PROC. Nº 1557/05.5TBPTL.L1.S1.
Sumário :
1. Não pode valer como renúncia ao exercício do direito de revogação de um contrato de crédito ao consumo a declaração emitida pelo consumidor antes da entrega do bem adquirido (nºs 1 e 5 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 359/91).
2. Nos termos e nas condições do nº1 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91, a invalidade do mútuo implica a invalidade do contrato de compra e venda a que está associado; mas a inversa não é verdadeira.
3. Para que o consumidor possa opor ao financiador o incumprimento do vendedor é necessária a existência de um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor e que o crédito em concreto tenha sido obtido pelo consumidor no âmbito desse acordo (nº e do mesmo artigo 12º).
4. Não é possível considerar cumprido defeituosamente um contrato de compra e venda que foi anulado por erro, para o efeito de aplicar o nº 2 do mesmo artigo 12º.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, executado, deduziu oposição à execução contra ele (e contra BB, avalista) movida por CC – Instituição Financeira de Crédito, SA, exequente e mutuante, com base numa livrança que subscreveu no âmbito de um contrato de mútuo, celebrado com a finalidade exclusiva de aquisição de um automóvel ao Stand DD, Comércio e Reparação de Automóveis, Unipessoal, Lda., nas instalações do vendedor, que actuou como “intermediário de crédito”, por força “de um acordo de cooperação entre o Stand e a exequente”.

Para o efeito, e em síntese, alegou ter-lhe sido entregue pelo vendedor um automóvel de 1989, ano constante da matrícula “no momento da entrega”, apesar de ter celebrado “o contrato de compra e venda convencido de que o veículo era do ano de 1996”, ano que figurava na matrícula “aquando da negociação”; que, consequentemente, houve cumprimento defeituoso da compra e venda, por “desconformidade do bem com o contrato”, razão pela qual o resolveu, por declaração enviada ao Stand, e resolveu também o mútuo, por declaração dirigida ao exequente; que o nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, lhe confere tal direito, por se verificarem os respectivos pressupostos.

Diz ainda, por entre o mais, que a carta de resolução foi enviada “dentro do período de reflexão que lhe assiste e garante o artº 8º, nº 1, daquele mesmo diploma”; que, quando a enviou, ainda não lhe tinha sido entregue cópia do contrato, “onde constavam as condições para fazê-lo cessar”; que a exequente respondeu ser alheia à compra e venda e que ele, comprador, tinha renunciado ao direito de revogação e, portanto, ao período de reflexão; que só assinou “papéis em branco sem que nada lhe fosse lido ou explicado”; que requereu a consignação em depósito do automóvel “ a favor do exequente ou do stand vendedor”, por não o conseguir entregar; que a exequente não aceitou a resolução, apesar de ter operado automaticamente; que a exequente litiga de má fé, devendo ser condenada em multa e indemnização.

O exequente contestou, reconhecendo que “à livrança dada à execução está subjacente o contrato de mútuo nº 156371”, “que se destinou a permitir a aquisição (…) da viatura Nissan Patrol com a matrícula ...-PS”, impugnando diversos factos e sustentando a improcedência da oposição. Em resumo, alegou ter contactado o vendedor para obter informações sobre os factos da oposição; sustentou que a pretensão do oponente não tinha apoio legal; alegou que o automóvel foi entregue ao oponente, que dele tomou posse, assinando uma declaração que o confirma e assim renunciando “ao direito de revogação da proposta de crédito”; que o mesmo oponente declarou “que o fornecedor lhe explicou na íntegra o teor do contrato” e que actua, agora, contra o “princípio geral da boa fé contratual”.

O oponente respondeu.

Pela sentença de fls. 369 foi julgada procedente a oposição e extinta a execução, sendo determinada “a devolução das quantias depositadas nos autos à ordem do solicitador de execução”.

Em resumo, o tribunal entendeu que os factos demonstravam a existência de erro essencial sobre o objecto do negócio; consequentemente, que devia “decretar-se a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre o Executado e o vendedor do veículo automóvel em causa”; que entre a compra e venda e o mútuo existia uma interdependência que os colocava sob a alçada do Decreto-Lei nº 359/91; e que, “Muito embora o nº 1 do art. 12.º se refira apenas à validade/eficácia do contrato de compra e venda face ao contrato de crédito, a realidade é que a inversa é também verdadeira, estando a validade/eficácia do contrato de crédito dependente da validade/eficácia do contrato de compra e venda. Tal decorre, aliás, das normas gerais que regulam os efeitos da anulação dos negócios, previstas nos arts. 287º e 289º do Código Civil (as quais não fazem depender a anulação de qualquer requisito, como vem referido no art.12.º, nº 1 do diploma citado), das quais decorre que, declarada a anulabilidade de um negócio, essa declaração opera retroactivamente (…). Face ao exposto, declarada a anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado entre o Executado e o vendedor do veículo automóvel, cessam também os efeitos do contrato de crédito ao consumo em apreciação, devendo ser restituído tudo o que foi prestado por conta deste, o que, no caso dos autos, significa a restituição do veículo automóvel (em relação ao qual houve já sentença a determinar a sua entrega ao vendedor) e a restituição dos montantes pagos no âmbito da acção executiva.”

Relativamente à executada BB, a sentença considerou que “assumiu uma obrigação acessória do crédito principal, pelo que a sua obrigação deverá declarar-se de igual forma extinta”.

A exequente recorreu; todavia, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de fls. 438 confirmou a sentença, mas por aplicação do nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91, interpretado no sentido de que, ainda que “não se verifique a exclusividade que se exige na al. a) respectiva, o consumidor pode demandar o mutuante em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do vendedor, “sempre que, no caso concreto, procedam as mesmas razões e interesses que estão na origem do consagrado na letra da lei”.

Ora, entendeu ainda a Relação, “Nos casos como os dos autos deve bastar-se prova de factualidade de onde possa concluir-se que na prática, e do ponto de vista do consumidor, funcionou em moldes semelhantes aos da exclusividade. O fornecedor disponibiliza o contrato de mútuo, o consumidor não tem qualquer contacto com a mutuária, o dinheiro é entregue directamente ao vendedor e o crédito destinou-se “exclusivamente” à aquisição de determinado ou determinados bens – o(s) do contrato. No presente caso a materialidade provada aponta neste sentido. Consequentemente é de manter a decisão.”

2. A exequente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando contradição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Dezembro de 2004 (www.dgsi.pt, proc. nº JTRP00037510) e com os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos nos processos 3798/08 e 07A685, e os termos do disposto no nº 4 do artigo 678º e nos artigos 680º, 685º, 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que resultou do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.

O recurso foi admitido como revista, pelo despacho de fls. 454.

No requerimento de fls. 458, o recorrido suscita a questão da inadmissibilidade do recurso, pelas seguintes razões:

            – “em primeiro lugar”, porque “não lhe assiste razão”, e “deve ser racionalizado o acesso ao STJ";

            – “Em segundo lugar, verifica-se a chamada «dupla conforme» (…)”;

            – “Acresce ainda os valores da Alçada que impedem o recurso”.

            Nas alegações a recorrente invoca a al. c) do artigo 721º-A do Código de Processo Civil, na redacção decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007 (revista excepcional).

           

3. Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

«A) Vem ainda o presente recurso interposto com fundamento no disposto no artigo 721-A nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil.

B) O acórdão proferido, aqui em crise, não só viola objectivamente o disposto no artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro, como está em contradição com diversos outros, nomeadamente o proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 20 de Dezembro de 2004, publicado em www.dgsi.pt, com o nº convencional JTRP00037510 e com os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 3798/08-7 e no processo com o nº convencional 07A685, podendo também este último ser consultado em www.dgsi.pt. (…)

G) O acórdão recorrido consagrou entendimento diferente. Entendimento que modestamente se entende violar de forma objectiva o artigo 12º, nº1e nº2, do DL nº 359/91 de 21 de Setembro, conferindo-lhe uma interpretação que, em muito, ultrapassa a vontade do legislador.

H) Vejamos, na sentença aqui recorrida é defendido que está “(…) a validade/eficácia do contrato de crédito dependente da validade/eficácia do contrato de venda” e que “declarada a anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado entre o Executado e o vendedor do veículo automóvel, cessam também os efeitos do contrato de crédito ao consumo”.

I) O tribunal a quo chegou a esta conclusão ao efectuar uma interpretação a contrario do estipulado no nº 1 do artigo 12º do D.L. 359/91 de 21/09 em que é referido que a validade/eficácia do contrato de compra e venda é afectada pela validade/eficácia do contrato de consumo ao crédito.

J) Ou seja, foi feita uma inversão do texto da lei à revelia da vontade do legislador.

K) Pois este intencionalmente apenas codificou a hipótese inversa pelo que não pretendeu configurar no texto da lei a possibilidade de se estender os vícios do contrato de compra e venda ao contrato de crédito pois estes são autónomos e juridicamente independentes.

L) Neste sentido ver acórdão de 20/12/2004, pelo Tribunal da Relação do Porto, publicado em www.dgsi.pt, com o nº convencional JTRP00037510: (…)

M) Até porque tal norma provém da transposição para a ordem interna de direitos comunitários, que o legislador certamente não desconhecia, e que estipulavam que “os Estados-membros assegurarão que a existência de um contrato de crédito não influenciará de maneira alguma os direitos do consumidor contra o fornecedor dos bens ou serviços adquiridos ao abrigo desse contrato, nos casos em que os bens ou serviços não sejam fornecidos ou de qualquer modo não estejam em conformidade com o contrato relativo ao seu fornecimento” (artigo 11º nº 1 da Directiva 87/102/CEE do Conselho de 22 de Dezembro de 1986)

N) Isto posto, não se pode deixar de considerar que o tribunal a quo fez uma interpretação que não só é demasiado extensiva na sua possível aplicação prática, como vai ao arrepio não só da letra da lei que é expressa na sua vontade, mas também da mens legislatoris.

O) Mesmo que fosse seguida a posição adoptada pelo tribunal a quo, não se poderia aceitar que o erro sobre o objecto do contrato de compra e venda seja comunicável ao contrato de crédito ao consumo.

P) Pois tal como já foi referido, estes são autónomos e independentes entre si, tanto na sua formação como na sua execução.

Q) Tal resulta do próprio texto do artigo 12º nº 2 do D.L. 359/91 de 21/09, (…).

R) Da análise do normativo legal torna-se evidente que a lei exige a verificação cumulativa de ambos os requisitos (exclusividade e acordo prévio) sem os quais não podem os consumidores ver resolvidos os contratos de mútuo.

S) Ora, dos factos com pertinência para o presente recurso não resulta provado que entre a Apelante e o ponto de venda existisse qualquer pacto de exclusividade, até porque os clientes do stand eram livres de optarem por outros modos de aquisição dos bens.

T) Assim, e como se observou no Acórdão de 20/04/2007 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado em www.dgsi.pt, com o nº 07A685 (…)

U) Pelo que não pode o tribunal a quo decidir à revelia da lei e ao contrário do espírito do Direito substantivo, pondo em causa a intenção do legislador e a tão desejada certeza jurídica.

V) A recorrente é totalmente alheia quer ao contrato de compra e venda celebrado entre os recorridos e o ponto de venda, quer a eventuais incumprimentos por parte deste, pelo que nunca tais factos poderão afectar a subsistência e a plena validade e eficácia do contrato de mútuo celebrado com a recorrente.

W) O contrato celebrado entre a recorrente e os consumidores, nos termos em que foi concluído é plenamente válido e eficaz, devendo assim ser pontualmente cumprido pelas partes, nos termos do artigo 406º do Código Civil.

X) O contrato de mútuo é independente e juridicamente autónomo do contrato de compra e venda.

Y) A ligação entre aqueles dois contratos resume-se apenas e só ao facto do crédito concedido pela aqui Apelante se destinar ao financiamento do veículo ao stand automóvel.

Z) O contrato de mútuo e o contrato de compra e venda, por serem, repita-se, autónomos e independentes, não se confundem nem se podem confundir.

AA) Neste sentido, ver Acórdão da Relação do Porto de 08/07/2004, (…)

BB) A recorrente agiu no âmbito da sua actividade estritamente comercial, cumprindo, como lhe competia, com todas as suas obrigações.

CC) Pelo que, a validade e eficácia do contrato de compra e venda não pode afectar a subsistência, a plena validade e eficácia do contrato de mútuo.

DD) E, sendo o contrato de mútuo independente e autónomo do contrato de compra e venda pelo qual o bem foi adquirido, como se alegou, os eventuais vícios de que este padeça não são comunicáveis às obrigações assumidas pelos consumidores no âmbito do contrato de mútuo.

EE) Portanto, ao contrário do proferido pela sentença e confirmado pelo acórdão ora recorrido, a eventual resolução ou nulidade do contrato de compra e venda não leva à inexigibilidade da quantia mutuada.

FF) Neste sentido foi proferido o acórdão de 20/12/2004, pelo Tribunal da Relação do Porto (…)

GG) Porque, não ficou provado o requisito essencial da exclusividade.

HH) Não se pode fazer a ineficácia ou invalidade do contrato de compra e venda repercutir automaticamente no contrato de crédito que lhe está associado.

II) Pois o Decreto-Lei 359/91 de 21 de Setembro não determina uma protecção ilimitada aos consumidores nem impões às financeiras o ónus de suportar todos os riscos inerentes a um contrato de concessão de crédito.

JJ) Para além de que alude inequivocamente a esse modelo de separação, referindo expressamente “contrato de crédito” e “contrato de compra e venda”.

KK) É certo que o nº 2 do artigo 12º dispõe sobre a influência a nível do cumprimento dos contratos mas exige a verificação dos pressupostos aí expressamente indicados, dos quais se realça a exclusividade.

LL) Pressuposto, que mais uma vez se reitera, é inexistente na questão dos autos.

MM) Assim sendo, o contrato de mútuo é válido e eficaz.

NN) A separação e independência dos contratos, são, por demais evidentes.

OO) Não se provando, como a lei exige, os referidos requisitos, não pode o tribunal, como fez o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, defender que “em face da dificuldade de prova para o consumidor da existência da relação de exclusividade, entendida naquele sentido mais gravoso para o consumidor, não choca que lhe seja exigida apenas a prova da aparência da exclusividade, competindo à ré, após a demonstração dessa aparência provar a inexistência do acordo de exclusividade.”

PP) O legislador não pretendeu conferir uma protecção ilimitada ao consumidor.

QQ) O legislador, neste particular, não determinou a inversão do ónus da prova.

RR) Não o fez, porque não pretendeu fazê-lo, não pretendeu – como se aconselha – a prova pela negativa.

SS) Não pretendeu que competisse à financeira, após a demonstração dessa aparência provar a inexistência do acordo de exclusividade.

TT) O conceito de exclusividade presente na alínea a) do nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei 359/91 de 21 de Setembro, não diz respeito à relação entre o crédito concedido e a afectação exclusiva do mesmo à aquisição do bem pretendido pelo consumidor, como é defendido no douto acórdão recorrido.

UU) Diz respeito a uma exclusividade na concessão de crédito, ou seja, todos os créditos concedidos a clientes do vendedor são feitos por um único e exclusivo credor.

VV) Demonstra a prática comercial a inexistência dessa exclusividade. Todos sabemos que as empresas vendedoras trabalham com várias instituições financeiras diferentes, delas possuem propostas de crédito, podendo o mesmo consumidor ver o seu pedido ser feito a várias instituições de crédito diferentes, acabando o negócio por ser feito com aquela que conceder o crédito ou com aquela que apresentar as melhores condições.

WW) Assim, nem no plano meramente conjectural resulta provada a mais pequena aparência de exclusividade.

XX) O contrato de mútuo é válido e eficaz, sendo a separação e independência dos contratos por demais evidente.

YY) A apreciação da questão suscitada é claramente necessária, desde logo pelo facto de existirem interpretações profundamente díspares, como aqui se demonstrou. Disparidade que em nada abona em nome da certeza jurídica que se deseja, é, por isso, imperioso determinar e definir de forma clara e inequívoca o verdadeiro sentido e alcance do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91 de 21 de Setembro, contribuinte tal clarificação, de forma decisiva, para uma melhor aplicação do direito.

ZZ) Modestamente entende a recorrente que os interesses aqui trazidos à colação são de particular relevância social, desde logo pelo que já se deixou dito na alínea anterior, mas, também dada a importância que o crédito ao consumo tem, hoje em dia, na sociedade onde nos inserimos.

Relevante é também porque a latitude que os nossos tribunais concedem à interpretação do aludido preceito, nomeadamente dos seus nºs 2 e 3, traduz-se, na prática, numa protecção verdadeiramente ilimitada à conduta do consumidor, constituindo um pasto fácil para o vingar de situações abusivas.

AAA) A apreciação dos interesses reveste ainda o carácter de relevo social, por penalizar de forma severa, um contraente (credor) quando o mesmo cumpre escrupulosamente as obrigações que para si decorrem do contrato celebrado com o outro (consumidor).

BBB) No que toca aos aspectos de identidade entre o acórdão aqui em crise e o proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 20/12/2004, publicado com o nº convencional JTRP00037510 e com os acórdãos proferidos pelo STJ no processo 3798/08-7 e no processo com o nº convencional 07A685, têm como aspecto de identidade a relação existente entre o contrato de compra e venda/ prestação de serviços e o contrato de mútuo. O apurar se os vícios ou vicissitudes do primeiro se repercutem no segundo. Em caso afirmativo de que forma. Em suma, os quatro acórdãos focados fazem uma interpretação da relação de trilateralidade (e dos seus efeitos) consagrada no nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei 359/91 de 21 de Setembro.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que, em conformidade com a jurisprudência dominante decida pela validade e eficácia do contrato de mútuo celebrado entre a recorrente e os recorridos, com o que se fará JUSTIÇA!»

O recorrido contra-alegou. Sustentou não ocorrer contradição com os acórdãos apontados pelo recorrente –“Desde logo desconsidera que o Recorrido muito antes de ser demandado no processo executivo, após resolver o contrato nos termos do artigo 428° do CC, tentou devolver a viatura, quer ao fornecedor, quer ao financiador, contudo só após a interposição de acção de consignação em depósito o conseguiu. Tal não obstou a que, em manifesto abuso de posição processual, a Recorrente viesse executar o Recorrido. (…) De facto, a Oposição levada a cabo pelo Recorrido baseia-se na Resolução Contratual e na Consignação em Depósito, contudo nenhum dos Acórdãos citados pela Recorrente refere tal circunstância” – e defendeu a manutenção do decidido.

4. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

“1. O executado AA subscreveu a livrança dada à execução, no valor de € 23.125,88, para ser paga à exequente, datada de 05/12/2005, e com vencimento em 04/01/2006 e a executada BB deu nessa livrança o seu aval ao subscritor (al. A-) dos factos assentes).

2. À livrança dada à execução está subjacente o contrato de mútuo nº 156371, celebrado entre o executado AA e a Exequente (al. B-) dos factos assentes).

3. O mesmo executado celebrou um contrato de compra e venda com o stand DD, Comércio e Reparação de Automóveis, Unipessoal, Lda, com sede na Rua..., em Vila Nova de Famalicão, relativo a um Jeep de marca Nissan, modelo Patrol (als. C-) e D-) dos factos assentes).

4. Para pagamento do preço desse veículo automóvel, o executado deu à troca um outro veículo automóvel, um Opel Corsa B, 1.5 D, de matrícula ...-EN, de dois lugares, em boas condições, no valor de € 3.500,00 (al. E-) dos factos assentes).

5. Tendo como finalidade, exclusivamente, a aquisição do veículo automóvel referido em 4-, foi ainda celebrado em 28 de Março de 2005, nas instalações do stand vendedor, um contrato de mútuo entre executado e exequente (al. F-) dos factos assentes).

6. O contrato de mútuo foi concluído junto do stand vendedor, uma vez que este se predispôs a tratar de todo o financiamento envolvendo aquela aquisição, bem como toda a papelada (al. G-) dos factos assentes).

7. O stand actuou, a título de intermediário de crédito, ajudando na preparação e conclusão daquele contrato (al. H-) dos factos assentes).

8. O stand é que tratou de todo o processo de financiamento ao executado, uma vez que este tinha capacidade financeira para adquirir o veículo (al. I-) dos factos assentes).

9. E a Exequente apenas concedeu ao executado o crédito, para que este procedesse à aquisição do veículo ao stand vendedor (al. J-) dos factos assentes).

10. O executado enviou ao stand vendedor em 7 de Abril de 2005 uma carta registada com aviso de recepção, dando conta do motivo da sua vontade em fazer cessar o contrato de compra e venda (al. K-) dos factos assentes).

11. Expôs-lhe que a sua decisão se prendia com o facto de estar convencido que o veículo era do ano de 1996 e recentemente ter vindo a descobrir que tal não era verdade, que o mesmo era do ano de 1989 (al. L-) dos factos assentes).

12. E que por esse motivo, não estava mais interessado na sua aquisição (al. M-) dos factos assentes).

13. Nessa carta, foi ainda o stand informado de que o executado já tinha contactado a exequente para lhe comunicar a sua intenção de se resolver quer o contrato de compra e venda quer o contrato de mútuo (al. N-) dos factos assentes).

14. Contudo, a referida carta veio devolvida ao remetente com o dizeres “não atendeu”.

15. Motivo pelo qual o executado, em 18 de Abril de 2005, remeteu segunda via da mesma ao stand vendedor, dando-lhe conhecimento que também havia resolvido o contrato com a exequente (al. P-) dos factos assentes).

16. O executado enviou em 5 de Abril de 2005 à Exequente uma carta registada com aviso de recepção, dando-lhe conhecimento da sua vontade em resolver o dito contrato (al. Q-) dos factos assentes).

17. Nessa carta, explicava que resolvia o contrato de crédito celebrado com a Exequente, destinado a financiar a aquisição do veículo automóvel acima referido (al. R-) dos factos assentes).

18. Informou-a que a sua decisão se ficava a dever ao facto de ter comprado o veículo convencido de que este era do ano de 1996, tendo vindo afinal a descobrir que o mesmo era do ano de 1989 (al.S-) dos factos assentes).

19. Em resposta, a exequente, em carta que data de 17 de Junho de 2005, exonerou-se de qualquer responsabilidade (al. T-) dos factos assentes).

20. Dizendo ser completamente alheia aos factos, que, segundo ela, só ao stand e ao executado diziam respeito (al. U-) dos factos assentes).

21. Numa outra carta, de 27.06.2005, a exequente afirmou mesmo que não podia ser lesada por conflitos existentes entre o executado e o stand (al. V-) dos factos assentes).

22. O executado sempre se disponibilizou a entregar o veículo automóvel Nissan Patrol (al. W-) dos factos assentes).

23. Com efeito, enviou várias cartas, quer ao stand, quer à Exequente, nas quais pedia a marcação de um dia e hora para, em conjunto, formalizar a entrega (al. Y-) dos factos assentes).

24. Por estar em condições de restituir o que recebeu (al. X-) dos factos assentes).

25. Acontece que, nem o stand, nem a Exequente, alguma vez manifestaram o propósito de acolher tal pretensão do executado (al. Z-) dos factos assentes.

26. Como o Executado queria libertar-se da obrigação de entregar o veículo, requereu ao Tribunal a consignação em depósito do veículo automóvel Nissan Patrol, matrícula ...-PS, do ano de 1989, e de cor preta (als. AA-) e BB-) dos factos assentes).

27. Em acção que correu termos no 1.º Juízo deste Tribunal, processo nº 1103/06.3TBFLG, onde foi decidido, por sentença de 10.03.2008, transitada em julgado em 01.04.2008, autorizar o depósito do veículo de marca Nissan, modelo Patrol, nas instalações da Requerida Stand ..., Comércio e Reparação de Automóveis, Unipessoal, Lda (al. CC-) dos factos assentes).

28. No acto da venda, em 28 de Março de 2005, foi assinado o também pré-clausulado contrato de mútuo (al. DD-) dos factos assentes).

29. Foi este o único motivo pelo qual o contrato de mútuo foi assinado pelo executado (al. FF-) dos factos assentes).

30. Ambos os contratos foram celebrados em estrita colaboração entre o credor (Exequente) e o vendedor (stand), designadamente na conclusão do contrato de crédito, já que foi a única pessoa que os apresentou (al.GG-) dos factos assentes).

31. O contrato de mútuo foi efectuado para pagamento do preço devido ao stand, pela compra da viatura (al. HH-) dos factos assentes).

32. A Exequente entregou directamente ao vendedor o dinheiro do crédito (al. LL-) dos factos assentes).

33. O crédito serviu para financiar o pagamento do bem objecto do contrato de compra e venda (al. PP-) dos factos assentes).

34. O executado não celebrou qualquer outro contrato de crédito para aquisição de bens de consumo para além do que celebrou para adquirir a viatura (al. QQ-) dos factos assentes).

35. A Exequente somente em 13 de Abril de 2005 enviou ao executado os documentos relativos à viatura supra mencionada (al. RR-) dos factos assentes).

36. Que consistiram no livrete e na guia de substituição dos documentos de circulação do veículo objecto do contrato de crédito celebrado com a Exequente (al. SS-) dos factos assentes).

37. O livrete da viatura encontrava-se rasurado na parte destinada às anotações especiais (al. TT-) dos factos assentes).

38. E disso o executado deu conta ao vendedor, na carta que lhe enviou em 1 de Julho de 2005 (al. UU-) dos factos assentes).

39. No contrato de mútuo não consta, na parte referente à identificação do veículo, o ano do mesmo (al. VV-) dos factos assentes).

40. O acordo de compra e venda celebrado pelo executado e pelo stand referido em 3) referia-se a um veículo do ano de 1996 (art. 1.º da BI).

41. Existia um acordo de cooperação entre esse stand e a Exequente, visando a concessão de financiamento para aquisição do veículo automóvel (art. 2.º da BI).

42. O executado apenas celebrou tal contrato de compra e venda por estar convencido de que o veículo era do ano de 1996 (art. 3.º da BI).

43. Vindo posteriormente a saber que o mesmo era do ano de 1989 (art. 4.º da BI).

44. O executado e o stand acordaram na entrega do veículo automóvel descrito em D), do ano de 1996 (art. 9.º da BI).

45. O veículo automóvel que o stand entregou ao Executado em 2 de Abril de 2005 era do ano de 1989 (art. 6.º da BI).

46. O contrato de compra e venda apenas foi levado a bom termo e se firmou com base nesse veículo em particular: um Jeep da marca Nissan, modelo Patrol, do ano de 1996 (art. 11.º da BI).

47. A decisão de comprar o carro foi influenciada por esta descrição em causa e sobretudo pelo ano que a matrícula ostentava no ato de venda (art. 12.º da BI).

48. Em 5 de Abril de 2005 ainda não tinha sido entregue ao executado cópia do contrato de mútuo celebrado com a exequente, onde constavam as condições para fazê-lo cessar (art. 13.º da BI).

49. Ambos os contratos, de compra e venda e mútuo, foram preenchidos pelo vendedor e assinados por este e pelos Oponentes (art. 14.º da BI).

50. A exequente, em Novembro de 2005, remeteu carta ao executado, alegando que o mesmo teria assinado uma declaração de renúncia ao direito de revogação da proposta de crédito, e, consequentemente, ao período de reflexão garantido legalmente (art 15.º da BI).

51. O Oponente respondeu nos termos que constam a fls. 99 (art. 16.º da BI).

Nota: os seguintes factos constantes da matéria assente são conclusivos e por isso dão-se por não escritos:

1. Ao contrato de compra e venda estava associado o contrato de mútuo (al. EE-) dos factos assentes).

2. O mesmo (contrato de mútuo) era imprescindível para a realização do contrato de compra e venda, sendo ambos dependência um do outro (al. II-) dos factos assentes).

3. Assim, o contrato com o stand era o contrato principal (al. JJ-) dos factos assentes) e o contrato que deu origem à assinatura da livrança dada à execução (mútuo), era o acessório (al. KK-) dos factos assentes).

4. Entre o contrato celebrado com o stand e a livrança (emergente do contrato de mútuo) dada à execução existe uma ligação funcional (al. MM-) dos factos assentes).

5. O contrato de mútuo serviu única e exclusivamente para conseguir junto dos executados a celebração do contrato principal (al. NN-) dos factos assentes). 6. Ambos visavam a prossecução de uma finalidade económica comum (al. OO-) dos factos assentes).”

5. Para além da justificação da admissibilidade do presente recurso, o recorrente coloca as seguintes questões:

– Violação dos nºs 1 e 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91;

– Validade do contrato de mútuo.

6. Cumpre verificar se o presente recurso é admissível.

Não são aplicáveis ao presente recurso as alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 303/2007, que só atinge os processos instaurados a partir de 1 de Janeiro de 2008 (artigos 11º e 12º respectivos). Também por isso, é de € 14.963,94 o valor da alçada da Relação que vale para a presente execução, uma vez que foi o Decreto-Lei nº 303/2007 que a elevou para € 30.000,00.

Trata-se portanto de um recurso de revista, admissível nos termos gerais (artigos 678º, nº 1, 922º e 721º do Código de Processo Civil, na versão aplicável); não tem cabimento a invocação, nem do nº 4 do artigo 678º (do qual, aliás, nunca resultaria a admissibilidade da presente revista, porque esta depende da alçada), nem do artigo 721º-A do Código de Processo Civil, aditado pelo Decreto-Lei nº 303/2007.

            7. Assim, e antes de mais, cabe recordar o seguinte:

– Como entenderam as instâncias e as partes concordaram, a ligação funcional existente entre a compra e venda e o mútuo demonstra estar em causa um contrato de crédito ao consumo, aliás resultante do preenchimento de formulários previamente elaborados e, portanto, sujeito ao regime definido pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro (cláusulas contratuais gerais);

– Tendo em conta a data da sua celebração, é-lhe aplicável o regime constante do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, não obstante a revogação deste diploma pelo Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho;

– Como se observou por exemplo no acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Janeiro de 2010, citando o acórdão de 13 de Novembro de 2008 (www.dgsi.pt, proc. nº 07B2724), o Decreto-Lei nº 359/91 “veio regular os contratos de crédito ao consumo e, nomeadamente a apenas para o que agora interessa, disciplinar os casos em que o crédito, concedido sob a forma de contrato de mútuo, se destina a financiar a aquisição de serviços, esclarecendo as especiais implicações decorrentes da ligação funcional que, nesse caso, existe entre o mútuo e a aquisição. Na verdade, tal ligação (que permite afirmar ocorrer uma situação de união de contratos, uma vez que a aquisição – a compra e venda, modalidade que agora nos interessa – é a causa do mútuo) tem, naturalmente, repercussões no plano da subsistência e da execução dos contratos coligados. Assim, nomeadamente, no seu artigo 12º, o citado Decreto-Lei nº 351/91 dispõe expressamente sobre as repercussões da validade e eficácia do mútuo na compra e venda (nº 1) e, no sentido oposto, do incumprimento ou do cumprimento defeituoso desta compra e venda sobre aquele mútuo (nº 2)”;

– As instâncias coincidiram na procedência da oposição à execução. No entanto, divergiram na fundamentação que a suporta. A 1ª Instância considerou aplicável o nº 1 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91 e anulou o contrato de compra e venda, com fundamento em erro sobre o objecto, convertendo a alegação do oponente de que tinha resolvido o contrato, por incumprimento (cumprimento defeituoso) do vendedor, em pedido de anulação; e considerou que, sendo inválida a compra e venda, inválido era também o mútuo, com a justificação de que esta hipótese era igualmente abrangida pelo referido nº 1, não obstante a sua letra apenas prever a hipótese inversa –  “1 - Se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.”

A 2ª Instância, diferentemente, baseou a procedência no nº 2 do mesmo artigo 12º, manifestamente dirigido a uma hipótese diferente:

“2 - O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:

 a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;

b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior.”

Com efeito, aplicando este nº 2, a Relação tratou a situação como um caso de incumprimento da compra e venda, e não de invalidade; por esse motivo, procedeu à interpretação do requisito da exclusividade, atribuindo-lhe o sentido acima transcrito;

– Não obstante ter invocado o nº 1 do artigo 8º (revogação da “declaração  negocial do consumidor”, dentro do “período de reflexão”), foi naquele nº 2 do artigo 12º que o oponente fundamentou a influência da resolução do contrato de compra e venda sobre o mútuo;

– Não vem questionada a possibilidade de anulação da compra e venda, apesar dos termos concretos da oposição que foi deduzida, de a anulabilidade não ser de conhecimento oficioso (nº 1 do artigo 287º do Código Civil) e de ter sido declarada sem intervenção do vendedor; tais questões não serão portanto consideradas.

8. Exclui-se, desde já, a aplicabilidade ao presente caso do regime definido pelo nº 1 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91. Contrariamente ao que se sustentou na sentença, só a invalidade do mútuo é que implica a invalidade da compra e venda; a inversa não é verdadeira. Não é possível estender a letra do preceito de forma a fazê-la abranger uma hipótese a que o legislador não quis aplicar o mesmo regime, como resulta da cuidadosa distinção entre ambos os contratos feita no próprio nº 1 e do confronto entre os nºs 1 e 2; e, naturalmente, da ratio da diversidade de regimes entre estes dois números. Não há manifestamente paralelismo entre a possibilidade de controlo da validade do mútuo (no sentido de cuidado em evitar causas de invalidade, por definição contemporâneas da celebração do contrato) que tem o vendedor, que colaborou com o credor “na preparação ou na conclusão do contrato de crédito”, com aquela de que dispõe o credor de controlar a validade ou invalidade da compra e venda, à qual é alheio. No caso de que nos ocupamos, por exemplo, é manifesto que o exequente não teve nenhuma possibilidade de controlo das negociações que precederam a compra e venda, nomeadamente no que refere ao conhecimento da idade do automóvel.

E também não é possível aplicar o regime dos efeitos da invalidade, definido pelos artigos 287º e 289º do Código Civil, como se fez na sentença, raciocinando como se de um único contrato se tratasse. Tal como se diz na sentença, “num contrato de crédito ao consumo coexistem dois contratos distintos e autónomos”, embora interligados.

9. Mas igualmente se exclui a aplicação do disposto no nº 2 do artigo 12º. Deixando de lado a questão de saber se pode ter-se como adquirido o incumprimento por parte do vendedor, pressuposto de que partiu a Relação – há que não esquecer que o contrato de compra e venda foi anulado por erro, que o acórdão recorrido não alterou esse julgamento e que não é compatível considerar cumprido defeituosamente um contrato que foi anulado –, a verdade é que a prova não permite ter como verificada a condição da exclusividade exigida pela respectiva al. a)

Seguindo de perto o já citado acórdão de 7 de Janeiro de 2010, para que o consumidor (comprador) possa opor o incumprimento ao financiador (por via de acção ou de excepção, ou, naturalmente, em oposição à execução instaurada pelo último), é necessário que exista “entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último” e que o crédito tenha sido obtido pelo comprador no âmbito desse “acordo prévio”.

Ora, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Abril de 2007 (www.dgsi.pt como proc. nº 07A685), “a relação de trilateralidade consagrada neste preceito quanto aos efeitos do incumprimento contratual do vendedor confere ao consumidor a faculdade de accionar o financiador, ou de, quando demandado, alegar a excepção de incumprimento, fazendo-o repercutir no contrato de financiamento; mas para isso a lei exige a verificação em concreto de duas condições, que são a existência de um acordo prévio entre o credor e o vendedor – acordo dito de exclusividade – em virtude do qual este se obriga a direccionar os seus clientes para aquele com vista à concessão do crédito necessário à aquisição dos bens que ele, vendedor, fornece (1ª) e a obtenção do crédito no âmbito desse acordo prévio de exclusividade (2ª). Se não se verificarem estes dois requisitos, o credor não responde pelo incumprimento do vendedor: entendeu o legislador que só em situações com estes contornos a conexão entre os dois contratos é suficientemente apertada para que se possa justificar, mediante a extensão da responsabilidade do vendedor ao financiador, terceiro em relação ao contrato de compra e venda e em nome da efectiva protecção do consumidor, uma tão clara derrogação do princípio da relatividade dos contratos (no sentido exposto, cfr. o acórdão deste STJ de 5.12.06 (Pº 06A2879)”. Neste mesmo sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 20 de Outubro de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 1202/07.4TBBVCD.S1) ou de 20 de Março de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 1557/05.5TBPTL.L1.S1).

Poder-se-á naturalmente questionar a exclusividade aqui exigida, cuja justificação se encontrará no melhor controlo que o credor poderá ter sobre a actividade do vendedor, como se disse no acórdão de 13 de Novembro de 2008, já citado; em qualquer caso, a verdade é que a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido não tem correspondência no texto da lei (cfr. artigo 9º do Código Civil) e que, no presente caso, não está provada qualquer exclusividade na concessão de crédito para os contratos de compra e venda.

Note-se, aliás, que o oponente alegou que, no caso, se encontravam reunidas as exigências constantes do nº 2 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 359/91, afirmando expressamente na oposição que “existe entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último” (pontos 58, 102 e 103).

Tanto basta para que não possa retirar-se do nº 2 deste artigo 12º a consequência da procedência da oposição.

E, tendo em conta os factos alegados e provados, também se não pode fazer derivar essa consequência da união existente entre o mútuo a e compra e venda, à luz do regime geral dos contratos.

10. No entanto, estas verificações não obrigam a concluir no sentido da validade do contrato de mútuo, como pretende a recorrente; nem tão pouco dispensam a averiguação da eficácia da revogação da “declaração negocial (…) relativa à celebração” do “contrato de crédito” (nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 359/91), alegada pela oponente, eficácia essa que não depende da oponibilidade ao exequente, nem da invalidade, nem do incumprimento do contrato de compra e venda (nºs 59 e segs. da oposição).

Recorde-se, desde logo, que o exequente alegou que o oponente tinha renunciado ao exercício do direito de revogação (nº 5 do mesmo artigo 8º); mas a alegação de renúncia é improcedente. Com efeito, a data constante do documento junto para a demonstrar), 28 de Março de 2005 (fls.149), é a mesma em que “foi assinado o também pré-clausulado contrato de mútuo” (ponto 28 dos factos provados); e vem provado, em conformidade com a alegação da oponente e o expresso reconhecimento do exequente, que o automóvel só foi entregue em 2 de Abril seguinte (cfr. nº 5 do artigo 8º e ponto 45 dos factos provados). Falha, manifestamente, a exigência da entrega imediata do bem. A declaração foi assinada antes  de o automóvel ser entregue, não pode valer como renúncia antecipada ao direito de revogação.

O nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 359/91 (“período de reflexão”) dispõe que o consumidor, mediante “declaração enviada ao credor por carta registada com aviso de recepção e expedida no prazo de sete dias úteis a contar da assinatura do contrato, ou em declaração notificada ao credor, por qualquer outro meio, no mesmo prazo”, pode revogar a sua declaração negocial, tendente à celebração do mútuo. Afasta, assim, o regime geral da irrevogabilidade das propostas contratuais, depois de recebidas pelo destinatário ou deles conhecidas (nº 1 do artigo 230º do Código Civil).

Ora vem provado que o contrato de mútuo foi assinado pelo oponente, “nas instalações do stand vendedor”, em 28 de Março de 2005 (pontos 5, 28, da matéria de facto assente); e que o mesmo oponente “enviou em 5 de Abril de 2005 à Exequente uma carta registada com aviso de recepção, dando-lhe conhecimento da sua vontade em resolver o dito contrato” (pontos 16, 17).

Esta carta obedece às exigências legais, no que toca à revogação da declaração do oponente.

Conclui-se, portanto, que a declaração negocial do oponente (relativa ao contrato de mútuo) foi eficazmente revogada; como o recorrente invoca na oposição e reafirma nas contra-alegações da revista, “o motivo da resolução [em rigor, da revogação da sua declaração] foi legal e não convencional”.

Procede assim a oposição, embora por fundamento diverso do que fez vencimento no acórdão recorrido.

            11. Nestes termos, nega-se provimento à revista.

            Custas pelo recorrente.