Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2672/15.2T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: REVISTA EXCEPCIONAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVA PERICIAL.
Doutrina:
-A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, p. 657;
-F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, p. 127;
-Miguel Teixeira de Sousa, Estudo Sobre o Novo Processo Civil, p. 374.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 640.º, N.ºS 1 E 2, 652.º, N.º 1, ALÍNEA H), 662.º, N.º 1 E 671.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 396.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-05-2009, PROCESSO N.° 3811/05, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-09-2013, PROCESSO N.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-02-2017, RELATOR PAULO SÁ, IN SASTJ, WWW.STJ.PT;
- DE 20-04-2017, RELATOR PAULO SÁ, IN SASTJ, WWW.STJ.PT.
Sumário :
I Quando o segundo grau aprecia a materialidade factual impugnada, através de uma análise crítica dos depoimentos prestados acerca da mesma, não estamos perante qualquer omissão dos ónus aludidos no artigo 640º do CPCivil, por banda daquela, pressuposto este que pode originar uma reapreciação por banda do Supremo Tribunal de Justiça, no caso de dupla conformidade decisória, uma vez que se entende que tal violação integra um poder específico da Relação na esteira da jurisprudência que vem sendo firmada acerca desta problemática, cfr inter alia os Ac da Formação de 22 de Fevereiro de 2017 e de 20 de Abril de 2017 (Relator Paulo Sá) in SASTJ.

II Neste caso, tendo o Tribunal da Relação apreciado a matéria de facto impugnada, através da análise dos elementos de prova, a pretensão de alteração da mesma em sede de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, transcende a possibilidade de impugnação com fundamento na violação dos ónus referidos naquele artigo 640º.

III Nesta circunstância, está-se perante a situação aludida no normativo inserto no artigo 671º nº3 do CPCivil, de dupla conformidade, não sendo admitida a Revista e por isso não se poderá conhecer do objecto do recurso.

APB

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I M intentou acção declarativa com processo comum, contra S, pedindo que sejam declarados nulos, por falta de forma, os contratos de mútuo celebrados com a Ré e a condenação desta a restituir-lhe a quantia de €39.500,00 (trinta e nove mil e quinhentos euros), acrescido de juros legais contados desde a citação até efectiva devolução.

Para tanto, alegou, em síntese, que a solicitação da Ré, entregou-lhe, a título de empréstimo, os montantes de €2.500,00, €12.000,00 e €25.000,00, respectivamente nas datas de 5.12.2012, 23.09.2013 e 23.01.2014, sem que até à data tais montantes lhe tenham sido restituídos.

A Ré deduziu contestação, pedindo a sua absolvição do pedido e a condenação da autora como litigante de má-fé, uma vez que as quantias referidas foram entregues ao seu então companheiro e filho da Autora, P, com o intuito de liberalidade, configurando contratos de doação.

A autora respondeu à contestação pugnando pela improcedência do pedido de litigância de má-fé contra si deduzido, pedindo, por seu turno, a condenação da Ré como litigante de má-fé.

Foi proferida sentença a julgar a acção totalmente procedente, declarando nulos os mútuos correspondentes ao montantes de €12.000,00 e de €25.000,00, condenando a Ré a restituir à autora a quantia global de €39.500,00 (trinta e nove mil e quinhentos euros), acrescidos dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal vigente, calculada à taxa de 4%, desde a citação (03.09.2015) até integral pagamento e absolvendo Autora e Ré dos pedidos de condenação como litigantes de má-fé.

Não se conformando com tal decisão dela veio a Ré recorrer de Apelação, a qual veio a ser julgada improcedente, tendo sido confirmada a sentença impugnada.

 

De novo inconformada recorreu a Ré, agora de Revista excepcional, tendo a Formação a que alude o normativo inserto no nº3 do artigo 672º do CPCivil, ordenado a remessa dos autos à distribuição como Revista normal, porque aí se entendeu que a questão suscitada pela Recorrente em sede de recurso, tem como objecto o contéudo dos poderes da Relação relativamente à reapreciação da apreciação da matéria de facto e aos ónus do Recorrente que a impugna, ou seja a invocada violação das normas dos artigos 640º e 662º do CPCivil.

A Recorrente apresentou as seguintes conclusões:

- Cabe no âmbito dos poderes de controlo do STJ sindicar se o Tribunal da Relação, ao apreciar a matéria de facto decidida pela 1ª instância, se conformou ou não com o prescrito no art. 662.° do CPC.

- A recorrente tem direito a ver as suas pretensões (re)apreciadas, pelo menos, por duas instâncias. No caso concreto, a 2ª instância ao não realizar uma efectiva análise crítica das provas em que se fundamentou a matéria de facto impugnada, impossibilitou o cumprimento do duplo grau de jurisdição.

- Além disso, o acórdão recorrido entra em contradição com vários arestos deste Supremo Tribunal e proferidos pelos vários Tribunais da Relação, no que concerne à interpretação e aplicação dos dispositivos respeitantes à reapreciação da matéria de facto, mormente os art.°s 155.°, 640.° e 662.° do CPC.

- Encontram, assim, preenchidos os pressupostos exigidos nos art.°s 671.° e 672.° do CPC para admissibilidade de revista nos termos gerais e revista excepcional.

- O Tribunal da 2.ª instância tem de fazer novo julgamento da matéria de facto, procurar a sua própria convicção, assegurando um duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.

- Pelo que, a reapreciação da matéria de facto consubstancia praticamente um novo julgamento e um poder vinculado de reapreciação substancial da matéria de facto, cumprindo-lhe realizar uma análise crítica das provas, obedecendo, por isso, às mesmas regras de julgamento a que deve obedecer a 1ª instância.

- No caso concreto, o Tribunal da Relação do Porto não concretizou uma real, meticulosa e conscienciosa reapreciação da matéria de facto, aceitando acríticamente a fundamentação realizada na 1ª instância, abstendo-se, como lhe competia, de avaliar activamente os elementos probatórios indicados pela recorrente nas suas alegações.

- Em boa verdade, a 2ª Instância não analisou nenhum dos argumentos nem das imprecisões invocadas pela recorrente, relativamente à testemunha Maria de Fátima, "colando-se" acriticamente à fundamentação vertida pela lª instância, onde se expendeu que os valores entregues pela autora se destinaram a ajudar a Ré ou o casal nas despesas do dia a dia, tencionando a autora que tais valores lhe fossem devolvidos.

- No que concerne à testemunha P, filho da A. e antigo companheiro da Ré, o Acórdão limita-se a constatar, tal qual a lª instância, que este tinha conhecimento dos valores entregues, que se destinavam a suprir as suas dificuldades económicas e que nada foi pago à A.

- A decisão em análise ignorou por completo as incongruências e contradições de que enferma tal depoimento e pormenorizadamente descritas no recurso de apelação.

- Perante um manancial de incoerências e inconsistências, o Acórdão limitou-se a concluir que esta testemunha relatou factos do seu conhecimento pessoal e, por isso, foi convincente; desconsiderando infundadamente as asserções e argumentos constantes das alegações de recurso.

- Já a apreciação realizada pela 2ª Instância no que respeita à testemunha M F configura praticamente um decalque da apreciação preconizada na sentença proferida pela 1ª instância, constando-se que a Relação não realizou uma real e conscienciosa apreciação deste elemento probatório.

- O Acórdão desconsiderou por completo a questão da efectiva posse e titularidade das contas bancárias identificadas que eram movimentadas pela testemunha P, filho da A. - Na verdade, a facticidade provada de 29 a 32 da sentença e todos os demais elementos probatórios impunham a constatação de que tais contas pertenciam também a P, filho da autora, apesar de tituladas pela Ré e que era exclusivamente movimentada por P.

- Tanto mais que o apuramento da posse e administração das aludidas contas bancárias era essencial para se apurar se os valores entregues pela A. se destinaram a suportar despesas e investimentos do seu filho P.

- O Acórdão recorrido não procedeu ao reexame dos factos instrumentais aludidos pela Recorrente e que permitiriam concluir com séria probabilidade que a autora agiu com animus donandi.

- Impõe-se, assim, concluir que o Tribunal de 2ª instância não realizou um reexame crítico, impressivo e concreto das provas produzidas em lª instância e dos meios de prova invocados pela recorrente, não efectuou um novo julgamento em matéria de facto, com devia, furtando-se a formar a sua própria convicção, não reapreciando, como lhe competia, as provas apresentadas em que assentou a parte impugnada da decisão.

- Limitando-se a Relação a um controlo formal da motivação da decisão da 1ª instância da matéria de facto, não tendo procedido a uma correcta reavaliação da matéria de facto, procurando a sua própria convicção, não cumpriu o que impõe o art. 662.° do CPC, não se tendo assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

- Terá, portanto, de ser anulado o Acórdão recorrido e determinar-se a baixa do processo para que a Relação cumpra o múnus de reapreciar de forma crítica, pormenorizada e conscienciosa a matéria de facto impugnada pela recorrente.

- Por outro lado e sem conceder, à 2ª Instância foi atribuído um real poder/dever de apreciação da matéria de facto pela Relação - duplo grau de jurisdição.

- A interpretação preconizada no Acórdão de que a 2ª Instância apenas pode alterar a decisão da matéria de facto, quando esta enferme de erro, erro grosseiro ou manifesto, é desconforme com o art. 9.°, n.° 2 do Código Civil e violadora dos preceitos constitucionais plasmados no art.°s 20.°, n.° 2, 18.°, n.° 2, 202.°, n.° 2, 209., n.° 2, 210.°, n.° 2 e 215.° da Constituição da República Portuguesa: O Princípio da Tutela Jurisdicional, o direito de defesa, direito de boa administração da justiça e ainda o Princípio da Igualdade consagrado no art. 13.°, n.° 2, bem como o art. 2.° n.° 2 que consagra o Princípio do Estado de Direito.

- Assim sendo, na nossa humilde opinião, atendendo à especial importância de se assegurar a todos um duplo grau de jurisdição que consagra o princípio constitucional da tutela jurisdicional e da boa administração da Justiça, está em causa uma questão de relevância jurídica que contribuirá para uma melhor aplicação do direito, contribuindo para a pacificação social e realizando interesses comunitários de grande relevo.

Nas contra alegações a Autora, aqui Recorrida, pugnou pela rejeição do recurso.

II A única questão que se nos suscita para apreciação é a de saber se o segundo grau, apreciou a matéria de facto impugnada pela Recorrente em sede de recurso de Apelação ou recusou a sua apreciação com fundamento na omissão dos ónus aludidos no artigo 640º do CPCivil.

As instâncias deram como provados e não provados os seguintes factos:

Factos provados:

1. No dia 05.12.2012 a autora entregou à ré a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), que a ré recebeu por meio de cheque nº… do Millennium BCP.

2. No dia 23.09.2013, a autora entregou a ré a quantia de €12.000,00 (doze mil euros), através de cheque nº… que a ré recebeu.

3. No dia 23.01.2014 a autora entregou à ré a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) que a ré recebeu por meio de transferência bancaria.

4. Até à presente data a ré não liquidou qualquer quantia.

5. Nenhum dos empréstimos foi celebrado por escritura pública nem por documento particular autenticado nem por documento assinado pelo mutuário.

6. P viveu cerca de dez anos em comunhão de cama, mesa e habitação com a ré S, como se de marido e mulher se tratassem, num apartamento sito na Rua …, propriedade desta.

7. P e S terminaram a relação que os unia, no mês de Agosto de 2014.

8. Em virtude de ter sofrido acidente de viação, P estava flsicamente impossibilitado de gerir os seus negócios, nomeadamente a sociedade O L.

9. P é filho da aqui autora M.

10. A autora sempre demonstrou uma predilecção especial pelo filho P, passando os fins-de-semana completas na companhia do mesmo e na casa onde o ex-casal tinha a sua casa de morada de família, o apartamento sito na Rua ….

11.          A ré é licenciada em Música, exercendo a actividade profissional de professora de piano, na Academia de Música de … desde 1994 até à presente data.

12.          Sempre foi professora, nunca se tendo imiscuído nos negócios de P.

13.          Em 21 de Abril de 2006, P constituiu a empresa O L, com objecto social de comércio de artigos de óptica, vestuário e acessórios de moda, comércio de desperdícios e sucata, com sede na Rua ….

14.          Na qualidade de legal representante desta sociedade celebrou contrato de agência com a sociedade comercial X, que acabou por ser resolvido a 3 de Dezembro de 2009.

15.          Em Setembro de 2009, P e o Irmão T, acordaram na abertura de um estabelecimento comercial de óptica, sito em….

16.          Este estabelecimento, que passou a designar-se como Centro Óptico, teve como sócias de direito a autora e a esposa do T, A, ficando cada uma delas com uma quota de 50% do capital social.

17.0 Centro Óptico passou a ter sede na referida rua …, tendo sido formalizada a sua abertura a 24 de Abril de 2010.

18.          Foi sempre P o gerente comercial da sociedade, assumindo a responsabilidade pelo funcionamento do mesma, atendimento de clientes, compras e vendas de mercadoria.

19.          A autora nunca desempenhou qualquer acto de gestão nem recebeu, directamente, qualquer quantia da sociedade, limitando-se a assinar cheques ou documentos bancários que eram apresentados por P.

20. 0 P nunca prestou caução nos autos de execução que correram termos sob o processo n.º… no extinto 3.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de …

21. 0 relacionamento laboral entre os irmãos P e T começou a deteriorar-se em finais do mês de Abril de 2013, terminando com o despedimento de P e a instauração, por este, de um processo no Tribunal do Trabalho de … que se encontra a correr os seus termos com o n.º…, 2.° Juízo.

22.          P encontrava-se desempregado, necessitando de iniciar novo "projecto" empresarial, na área da venda de produtos ópticos e da optometria

23.          Iniciou, então, em finais do ano de 2013, contactos com o Presidente da Liga das Associações de Socorro Mútuo de … para a abertura de um Centro Óptico junto da Farmácia da Liga com sede …

24.          Centro Óptico que passou a ser designado como O L, Lda e a funcionar numas instalações anexas à Farmácia da Liga, estabelecimento pertencente à Associação de Socorro Mútuo de …

25.          Esta sociedade unipessoal foi formalmente constituída a 25 de Fevereiro de 2014, com o NIPC …

26.          A ré, a pedido do P, passou a figurar como sócia com uma quota de €5.000,00.

27.          À semelhança do que havia sucedido com o Centro Óptico de …, a ré não desempenhava quaisquer funções de gerência, administrativas ou de outra natureza.

28.          No próprio contrato, outorgado entre a Liga das Associações de Socorro de … e a O L, Lda, cujo teor consta de fls. 245 a 247v (p.p.), ficou que esta, denominada por «adjudicatária», designa como seu interlocutor o Sr. P, pessoa que ficará responsável pela O L e nomeada para a representar junto da Liga.

29. 0 P não dispunha de contas bancárias tituladas em seu nome, sob pena de ver penhorados os saldos das mesmas.

30.0 P movimentava a conta bancária n.º00000 de que a ré era titular no Banco Santander Totta.

31. Foi da referida conta que foram descontadas rendas do contrato de leasing n.º…celebrado pela L e a Portugal, S.A. para aquisição da viatura com a matricula …

32.          Era também da mesma conta que eram liquidadas as contra-ordenações cometidas por P, quer em nome pessoal quer na qualidade de legal representante da L, Lda, bem como a conta do telemóvel desta sociedade, o prémio do seguro de caça e armas, o alojamento no Hotel E onde pernoitava todos os fins-de-semana enquanto frequentou a escola portuguesa de óptica ocular.

33. 0 P efectuava depósitos na referida conta.

34. 0 P desde Setembro de 2013 passou a frequentar a Escola Portuguesa de Óptica Ocular (Formação em Optometria), onde pagava uma mensalidade de €500,00.

35. A esta mensalidade,  acresciam   as  despesas   com   as   deslocações  para  Lisboa, alojamento, refeições e extras, todos os fins-de-semana, durante dois anos.

Não se provaram os seguintes factos:

(…)

Insurge-se a Recorrente contra o Aresto impugnado, uma vez que, na sua tese, tem direito a ver as suas pretensões (re)apreciadas, pelo menos, por duas instâncias e no caso concreto, a segunda instância ao não realizar uma efectiva análise crítica das provas em que se fundamentou a matéria de facto impugnada, impossibilitou o cumprimento do duplo grau de jurisdição pois no caso concreto, o Tribunal da Relação do Porto, não concretizou uma real, meticulosa e conscienciosa reapreciação da matéria de facto, aceitando acríticamente a fundamentação realizada na primeira instância, abstendo-se, como lhe competia, de avaliar activamente os elementos probatórios indicados pela Recorrente nas suas alegações.

Vejamos, então.

A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, cfr neste sentido inter alia o Ac STJ de 24 de Setembro de 2013 (Relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.

Com efeito, embora não se tratando de um segundo julgamento, mas antes de uma reponderação, até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não basta que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos, mas não limita o segundo grau de sobre tais desconformidades previamente apontadas pelas partes, se pronuncie, enunciando a sua própria convicção, não estando, de todo em todo, limitada por aquela primeira abordagem pois não podemos ignorar que no processo civil impera o principio da livre apreciação da prova, artigo 607, º, nº5 do CPCivil, cfr Ac STJ de 28 de Maio de 2009 (Relator Santos Bernardino), in www.dgsi.pt.

A Recorrente, no caso sujeito, indicaram no seu recurso de Apelação, os pontos de facto que no seu entender mereceriam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração proposta, tendo dado cabal cumprimento ao preceituado no artigo 640º do CPCivil, no que tange aos ónus a seu cargo em prole de tal resolução impugnatória.

Por seu turno, a decisão recorrida aquando da apreciação dos fundamentos recursórios concernentes à contestação da materialidade dada como assente pelo primeiro grau, plasmou o seu entendimento na seguinte fundamentação:

«[l.ª]questão - Da impugnação da decisão da matéria de facto.

Defende a apelante que a decisão proferida em Ia instancia e relativa a vários pontos de facto que julgou provados que elenca, enferma de erro manifesto na apreciação e interpretação da prova produzida em audiência de julgamento. Pois que, atentos os depoimentos produzidos pelas testemunhas M, P, M F, A, P J e as declarações da própria ré, a referida matéria de facto deveria ter sido julgada de outro modo, que enuncia.

Sendo que no fundo a apelante pretende que este Tribunal faça nova reapreciação da prova já produzida em audiência de julgamento em 1.ª instância, invocando mais do que qualquer erro na apreciação da prova, indevida valoração de testemunhas relativamente a outros, ou seja, põe em causa a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido.

Vejamos.

No que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.ª 662.° do C.P.Civil.

Como refere F. Amâncio Ferreira, in "Manual dos Recursos em Processo Civil", pág. 127, resulta de tal preceito que "...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação.,.", ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.

Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in "Estudo Sobre o Novo Processo Civil", pág. 374, "...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a justiça relativa dessa decisão. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.° 662.º n.° 1 do C.P.Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.

Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in "Manual de Processo Civil", pag. 657, a propósito do "Princípio da Imediação", "...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos {através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...".

Decorre também do preâmbulo do DL n.° 39/95 de 15.12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que "a criação de um verdadeiro e efectivo 2. ° grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais - e seguramente excepcionais - erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto".

Vendo ainda esse preambulo, dele consta também que "a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda aprova produzida em audiência -visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso".

Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.° 607.° n.° 5 do C.P.Civil, "O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto", mantendo o principio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo Tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.

Atendo em atenção o que preceitua o art.° 640.° n,°s 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e "sob pena de rejeição", que:

a) - Especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Devendo ainda, desenvolver a análise critica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável. c} - Indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Está assim hoje legalmente consagrada o dever deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.° n.° 1 do C.P.Civil, "alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa". Ou seja, deve o Tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada "segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cf. Ac. STJ de Proc. n.° 3811/05, da l.ª Secção, citado no Ac. do mesmo Tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.

Por outro lado, deve ainda a Relação, por força do disposto no n.°2 do art.° 662.° do C.P.Civil, "mesmo oficiosamente": a), a renovação "da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento"; b) a produção de novos meios de prova em segunda instância, "em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada"; c) a anulação da decisão da matéria de facto, mesmo oficiosamente, sempre que não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) se determine que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o Tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

No caso em apreço, consideramos que a apelante cumpriu minimamente, aqueles ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil.

Efectivamente, a l.ª instância julgou provado, além do mais, que: -1. No dia 05.12.2012 a autora entregou à ré a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros], que a ré recebeu por meio de cheque nº… do Millennium BCP.

-2. No dia 23.09.2013, a autora entregou a ré a quantia de €12.000,00 (doze mil euros), através de cheque n°… que a ré recebeu.

-3. No dia 23.01.2014 a autora entregou à ré a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros] que a ré recebeu por meio de transferência bancária.

-4. Até à presente data a ré não liquidou qualquer quantia.

-5. Nenhum dos empréstimos foi celebrado por escritura pública nem por documento particular autenticado nem por documento assinado pelo mutuário.

-8. Em virtude de ter sofrido acidente de viação, P estava fisicamente impossibilitado de gerir os seus negócios, nomeadamente a sociedade O L.

-20. 0 P nunca prestou caução nos autos de execução que correram termos sob o processo n.º …, no extinto 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de … ".

*

Da fundamentação de tal decisão pode ler-se: - "O tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica e conjugada de todas as provas atendíveis, designadamente, nos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida em audiência final, concatenando-as com as regras da lógica e da experiência comum.

(...) teve-se em consideração o depoimento da testemunha M, consultora financeira da Autora, a qual explicitou que a ré viveu durante cerca de dez anos com o filho da autora, P (...), existindo uma relação de proximidade entre o casal e a autora, a qual passava muitos finais de semana na companhia do então casal.

Fruto dessa proximidade a autora efectuou diversos empréstimos, os quais descreveu do seguinte modo.

Em 2012 houve um primeiro empréstimo, titulado pelo cheque junto a fls. 8 (p.p.), no valor de €2.500,00, que se destinou exclusivamente a dar apoio económico à Ré

Em 2013 houve um novo empréstimo, no valor de €12.000,00, titulado pelo cheque junto a fls. 9 (p.p.), o qual foi depositado na conta da ré, para suprir as dificuldades sentidas pelo casal em consequência da situação de desemprego do P.

Finalmente, em 23 de janeiro de 2014, a autora transferiu a quantia de €25.000,00 para a mesma conta da ré existente no Banco Millennium BCP (...)

(...) afirmou a necessidade que a autora teve em contrair um empréstimo bancário, depositando os fundos recebidos na mencionada conta da ré por forma a auxiliar economicamente o agregado familiar da ré, à data composto por esta, pelo seu companheiro P e pelos filhos de ambos.

(...) era o P quem geria, de facto, a O L,(...) dedicando-se a um conjunto de negócios, com destaque para a sociedade "L" de que era sócio gerente e para o "Centro Óptico " que geriu com um outro irmão, embora figurassem como sócias as respectivas esposa e companheira, aqui ré, situação que se manteve desde o ano 2011 até Abril/Maio de 2013, altura em que os irmãos, P e T, se desentenderam.

Embora desconheça para onde foram encaminhados os empréstimos, no seu depoimento expressou o entendimento de que a autora procurou ajudar o casal, sendo tais quantias transferidas para a conta bancária da ré, dado o perigo de penhora dos saldos bancários de que fosse titular o P devido às dívidas que tinha pendentes e a maior confiança que nela depositaria.

Esclareceu que foi ela própria quem efectuou a transferência bancária da conta da autora para o NIB que ela própria lhe indicou, referindo que desse montante apenas lhe foram pagos os primeiros seis meses de juros, o que indicia a intenção da autora em realizar essa transferência de dinheiro a título de empréstimo e não com intuito de liberalidade.

(...) depoimento da testemunha P, filho da autora e antigo companheiro da Ré, resultou apurado que as quantias em causa foram entregues à ré a titulo de empréstimo. (...), cujo objectivo foi o de possibilitar ao então casal debelar as dificuldades económicas com que se vinham debatendo.

Por fim, referiu que o valor de €25.000,00 foi entregue pela autora à ré a solicitação dele próprio, tendo aquela contraído um empréstimo bancário para conceder tal pecúlio à ré, conforme efectuou através de transferência bancária para a respectiva conta da qual era a titular no Banco Millennium BCP. Neste contexto, afiançou a referida maquia foi utilizada para satisfazer as despesas do casal e que apesar de se terem comprometido a amortizar o referido empréstimo, apenas conseguiram pagar os respectivos juros.

Deste depoimento sobressai evidenciado o circunstancialismo que motivou as referidas entregas em dinheiro, bem como a ideia de que estes correspondiam a empréstimos e não a quaisquer dádivas, existindo, por isso, a obrigação de futuramente se restituir tais quantias à autora.

A testemunha P, (...), asseverou, ainda, que tinha dívidas, maioritariamente de natureza fiscal, sendo os fundos disponíveis na conta do "Millennium BCP", para onde foram transferidas as quantias em dinheiro, utilizados para suportar despesas com a economia doméstica do casal, nomeadamente a liquidação do empréstimo à habitação, no valor mensal de €485,43, conforme é possível aquilatar pela análise do extracto junto a fls. 10 (p.p.) onde se constata a liquidação das prestações referentes aos meses de Setembro de 2013 e Janeiro de 2014.

Aludiu, igualmente, à actividade profissional desenvolvida pela Ré, assumindo-se como o gerente de facto dos estabelecimentos comerciais denominados por "O L " e "O L de… ", mencionando também o facto da quantia de €12.000,00, respeitante ao cheque junto a fls. 8 (p.p.), nunca ter sido utilizado, nem destinado, para a prestação de caução no âmbito do processo executivo movido pelo seu irmão T contra o então casal.

Do depoimento da testemunha M F, mãe da ré, resultou apurado que esta e o P viveram em união de facto durante cerca de dez anos, fixando a residência em …

Sobre os factos em litígio não revelou possuir conhecimento directo, uma vez que a partir de 2007, na sequência de desavenças com o P resultantes de uma parceria negocial que tiveram juntos, deixou de manter qualquer contacto com o casal até Agosto de 2014, data coincidente com a separação do casal. Neste contexto, não foi capaz de esclarecer a que título e por que motivo a autora entregou à ré as quantias referenciadas nos autos, afirmando que apenas visualizou os documentos que lhe foram exibidos, desconhecendo o destino dado ao dinheiro que foi transferido para a conta da ré, embora reconhecesse que a autora habitualmente auxiliava economicamente o agregado familiar da ré que o P tinha um conjunto acumulado de dívidas.

Do depoimento da testemunha A, que exerceu as funções de empregada doméstica em casa da ré, destaca-se que durante os anos de 2012 e de 2013, em que ali trabalhou, a ré viveu em união de facto com o P, sendo a autora visita frequente do casal Desconhece, todavia, a forma como era efectuada a gestão das economias do casal, nada conseguindo esclarecer a esse respeito.

(...)

Do depoimento da testemunha A C, antiga nora da autora, por ter sido casada durante cerca de 23 anos com o filho desta, T, resultou apurada a situação patrimonial e profissional da autora e da ré, bem como a forma como era efectuada a gestão do "Centro Óptico de … ", os proventos que retiravam da sua exploração - aludindo nesse particular que cada um deles retirava mensalmente uma quantia de €2,000,00 em dinheiro -, e as divergências que culminaram com a saída do P dessa sociedade.

Pormenorizou, ainda, que o P, por razões que se prendem com dívidas pendentes a terceiros, não pode ter quaisquer bens em seu nome, revelando, de forma inequívoca, desconhecer quaisquer outros factos.

Do depoimento da testemunha P J, administrador externo do condomínio do prédio onde a ré habita, resultou apenas expresso que, durante o período em que o casal viveu junto, era o P quem comparecia às reuniões do condomínio e a partir de 2012 começaram a existir atrasos no pagamento das quotas, atingindo em 2014 uma dívida global de €3.000,00, cujo montante vem sendo amortizado pela ré.

Das declarações de parte prestadas pela ré confirmou-se a sua relação pessoal com a autora, em resultado de ter vivido em união de facto com o seu filho P até Agosto de 2014, data coincidente com a sua hospitalização na sequência de um acidente de viação.

Corroborou, ainda, que detinha uma conta bancária no Banco "Millennium BCP", a par de uma outra no Banco Santander Totta, onde recebia o seu salário, que era também movimentada pelo P, (...)

Sobre as quantias bancárias enunciadas nos autos, esclareceu ter pedido à autora a quantia de €12.000,00, alegadamente por solicitação do P, tendo recepcionada tal quantia, embora desconheça o destino que lhe foi dado. Neste contexto, destaca-se a reconhecida predisposição da autora a aceder ao seu pedido de empréstimo, par comparação com a relutância que teria se o mesmo pedido lhe fosse dirigido pelo P, o que indicia que a autora numa perspectivou a concessão de tais quantias como uma doação, como a ré alega na sua contestação,

Reconheceu, Igualmente, que lhe foram entregues as quantias de €2.500,00 e de €25.000,00, cujo dinheiro entrou na sua conta bancária, o qual se destinava a cobrir as dificuldades do casal sendo a sua gestão efectuada pelo seu então companheiro P.

Tais declarações retractam a ideia de que as quantias em dinheiro entraram efectivamente na conta bancária da ré, com o objectivo de colmatar as dificuldades financeiras sentidas pelo casal, pelo menos disso se fazendo convencer a autora, sendo a gestão de tal pecúlio efectuado pelo P, com o consentimento da ré durante o período em que viveram em união de facto (...]",

*

Ouvida, cuidadosamente, a gravação de todos depoimentos prestados em audiência, designadamente os chamados à colação pela apelante - testemunhas M; P; M F; A; P J, e as declarações da ré/apelante, M S - intuindo, além do mais, das suas respostas, dos silêncios, das frases incompletas, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis e analisando ainda cuidadosamente o teor dos documentos juntos aos autos, não se encontram razões que permitam concluir que a decisão da matéria de facto, supra mencionada, enferme de erro e, menos ainda, de erro manifesto ou grosseiro.

Mas vejamos, sinteticamente e o que de mais relevante cada uma das testemunhas chamadas à colação pela apelante, declarou.

A testemunha M F, contabilista, prestando serviços para a autora nessa área, sendo sua amiga pessoal.

A testemunha relatou a sua relação pessoal e profissional para com a autora e que por tal razão teve conhecimento, e intervenção, nos empréstimos feitos pela autora à ré {nora) e em apreço nos autos, sendo que o primeiro foi apenas "para ajudar a M S", "para as despesas dela do dia-a-dia", quanto aos demais destinaram-se ao casal formado pela ré e pelo seu filho Pedro pudessem fazer face às despesas familiares que tinham, mas sempre com a perspectiva de vir a ser reembolsada por essas quantias, o que seria feito em prestações.

Finalmente a testemunha relatou o que deu origem ã presente acção, ou seja, a situação pessoal do filho da autora e a desavença do casal que este formava com a ré.

Esta testemunha prestou um depoimento isento, seguro, claro, espontâneo, relatando factos do seu conhecimento pessoal, e assim, absolutamente convincente.

A testemunha P, gerente comercial, filho da autora e mais declarou que viveu em união de facto com a ré durante cerca de 14 anos.

Começou por dizer que desconhecia o empréstimo de €2.500,00, só mais tarde veio a saber do mesmo pela mãe, que lhe disse "que eram sô coisas delas". Mais declarou que a mãe depois lhes emprestou (ao casal) mais as duas quantias em causa nos autos, altura em que esteve sem trabalhar e porque tinham dois filhos, era para que nada lhes faltasse em face das dificuldades que estavam a atravessar.

Mais relatou a testemunha que as quantias que a mãe lhes emprestou deveriam ser pagas em prestações, mas que nada foi pago, devido à situação difícil que atravessaram e explicou como a ela chegaram, incluindo um acidente de viação que o vitimou.

Esta testemunha, não obstante a estreita relação familiar para com a autora e a sua relação pessoal com a ré, revelou-se isento, claro, conciso, espontâneo, relatando factos do seu conhecimento pessoal e, por isso, convincente.

A testemunha M F, empresária e mãe da ré.

Começou por declarar que durante 5 anos não viu a filha, esteve de relações cortadas com ela, tendo depois atribuído tal facto a P, ex-companheiro da filha, que posteriormente descreveu como sendo uma pessoa que "náo tinha trabalho, que não tinha nada dele no Banco, que tinha apenas casa, cama e roupa lavada em casa da mãe". Depois relatou os investimentos que ela e o marido fizeram nos negócios que o P pretendeu levar a efeito e efectivamente montaram. Posteriormente a testemunha apelidou o dito P de "vaidoso" e de pretender ser apenas "Director Comercial, todavia era apenas vendedor a recibos verdes, tendo a empresa dado apenas prejuízos, tendo a testemunha assumido as dívidas.

Ou seja, em suma, a testemunha durante todo o seu testemunho limitou-se a relatar factos que imputou apenas ã baixa índole, pessoal e profissional, de P, e que deram origem às dificuldades económicas por que o casal passou. Sendo evidente a aversão, a antipatia e mesmo o rancor que a testemunha tem para com o referido P, pessoa que acusa de ter levado a sua filha para uma vida cheia de dificuldades, dizendo que a sua filha disso não precisava, já que tinha o seu próprio rendimento do trabalho como professora que a satisfazia plenamente.

Todavia, relativamente aos mútuos em causa nos autos, a testemunha nada revelou saber.

A testemunha A, desempregada, tendo declarado que foi empregada doméstica da ré e do Sr. P, durante cerca de 2 anos, trabalhando lá algumas horas por dia.

 A testemunha confirmou que a ré e o P viveram em união de facto e separaram-se em Agosto de 2014, mais dizendo que ao que sabe a razão da separação foi o facto da ré "ter descoberto as falcatruas dele1, o que sucedeu quando arrombaram o cofre existente na casa do casal, o que sucedeu quando ele estava internado no hospital depois do acidente de viação que tinha sofrido.

A testemunha relatou que a ré trabalhava diariamente na Academia de Música, desconhecendo se ela tinha quaisquer outros negócios, mas era uma pessoa de hábitos simples. Mais disse que o Sr. P, mesmo quando estava desempregado, não estava em casa.

A testemunha, nada, revelou saber sobre os mútuos em apreço nos autos.

A testemunha P J, responsável por uma empresa de administração de condomínios. A testemunha declarou que a ré é sua condómina.

A testemunha relatou que nas assembleias de condomínio quem estava sempre presente era apenas o Sr. P, (companheiro/marido da D. M S). Mais disse, a certa ocasião, deixaram de ser pagas as prestações do condomínio, sendo que no final de 2014 estava em divida cerca de mais de €3.000,00. Que enviavam correspondência para a morada do prédio e que foi contactado pela D. M S, nos inícios de 2015, muito alarmada com os valores que estavam em débito, tendo-lhe sido dito que essas questões estavam na mão do Sr. P e que ela desconhecia a situação. Finalmente disse que a mesma tem vindo de forma progressiva a pagar essa dívida.

Sobre os mútuos a testemunha nada sabia.

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A ré/apelante, M S, professora de música.

Começou por declarar que viveu em união de facto com o filho da autora, P, durante cerca de 10 anos, estando separados há cerca de 2 anos.

Disse depois que a separação do casal começou com o acidente de viação que sofreram e em consequência do qual ele ficou hospitalizado cerca de um mês. Mais disse que foi nessa altura que começou a perceber o que se estava a passar, começou a tomar conta do que se passava em termos económico-financeiros no casal, já que até aí era o P que tomava conta de tudo, sendo que ela se limitava à sua profissão. Mais declarou que veio a saber que a Óptica dava muito dinheiro e que ele apenas lhe dava €150,00 por semana, razão pela qual sempre viveu mal, com pouco, mas acreditava nele.

Declarou ainda que nada sabia quanto às contas bancárias que tinha em seu nome mas que eram apenas movimentadas pelo seu companheiro, o qual não podia ter contas bancárias, devido à sua situação económica.

Mais disse que a autora "é a única pessoa que se aproveita naquela família" e que porque não tinha feito partilhas por morte do seu marido, e por isso, a mesma sentia-se na obrigação de dar/ajudar aos filhos sempre o que eles precisassem.

A ré, no fundo, limitou-se a reproduzir o que já havia alegado na sua contestação, ou seja, quem em nada beneficiou das referidas quantias entregues pela autora, e que, essas entregas seriam doações feitas pela mãe ao filho.

Pelo que sem necessidade de outros considerandos, pelo global da prova produzida nos autos e chamada à colação pela apelante é nossa segura convicção de que a decisão da matéria de facto alcançada em 1.ª instância e que deu lugar aos factos provados da fundamentação de facto da sentença recorrida impugnados por via do presente recurso, os quais correspondem exactamente à prova realizada nos autos relativamente a tais realidades, designadamente quanto à existência das entregas de dinheiro pela autora à ré, em apreço nos autos, seus montantes e sua finalidade.

Sendo nossa segura convicção de que essas entregas foram feitas, como bem sabia a autora, à ré, com o intuito de essas quantias serem restituídas à autora, portanto não se trataram de liberalidades feitas pela autora ao casal constituído pela ré e pelo seu filho P.

Finalmente é nossa segura convicção de que até hoje as ditas quantias não foram restituídas à autora.

Logo, pelo que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o teor dos documentos juntos aos autos e o teor dos depoimentos prestados em julgamento e acima referidos, e como é sabido, devendo o juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.° 607.° n.°5 do CP.Civil, julgamos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em apreço neste recurso deve manter-se inalterada, já que não se vislumbra que a mesma enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo esta, por isso, qualquer censura.

Improcedem as respectivas conclusões da apelante.».

Como deflui inequivocamente do trecho decisório que deixamos transcrito, o segundo grau exerceu as suas plenas competências na reapreciação da materialidade factual posta em causa pela Recorrente, através de uma análise crítica dos depoimentos prestados acerca da mesma, tendo concluído que se lhe afigurava bem julgada, não se lhe vislumbrando a ocorrência da omissão de tal apreciação por existência de erro no cumprimento dos ónus aludidos no artigo 640º do CPCivil, por banda daquela, pressuposto este que originou o Acórdão da Formação na esteira da jurisprudência que vem sendo firmada acerca desta problemática, cfr inter alia os Ac da Formação de 22 de Fevereiro de 2017 e de 20 de Abril de 2017 (Relator Paulo Sá) in SASTJ.

A conclusão a que se chegou no Aresto recorrido é coisa diversa daquela que a Recorrente defende quando aponta que ali se sustenta a interpretação no sentido de que o segundo grau apenas pode alterar a decisão da matéria de facto, quando esta enferme de erro, erro grosseiro ou manifesto, pondo em causa nas suas alegações e conclusões de recurso, afinal das contas, a apreciação factual efectivada a qual pretende que seja alterada, o que transcende a possibilidade de impugnação com fundamento na violação dos ónus referidos naquele artigo 640º.

 

E, assim sendo, porque se está perante a situação aludida no normativo inserto no artigo 671º nº3 do CPCivil, não sendo admitida a Revista nesta situação de dupla conformidade, julga-se findo o recurso pelo não conhecimento do respectivo objecto, nos termos do artigo 652º, nº1, alínea h) daquele mesmo diploma legal.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2018

Ana Paula Boularot - Relatora

Pinto de Almeida

José Rainho