Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3311/16.0T8PDL.L2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: SEGURO DE INCÊNDIO
OBJETO DO CONTRATO DE SEGURO
ÓNUS DA PROVA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
FACTO IMPEDITIVO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
SEGURADORA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
FACTOS PROVADOS
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Com o CPC-2013 ocorreu um alargamento dos poderes da Relação no capítulo da matéria de facto. Tem-se vindo a vincar, cada vez mais (tratando-se de um caminho iniciado com a Reforma de 1995/96), que a Relação deve formar o seu juízo autónomo, de acordo com os elementos probatórios disponíveis, assumindo-se como um tribunal de instância e devendo, assim, introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivos para tal.

II. Não é vedado, na sequência da prova produzida, densificar ou desdobrar, na exposição factual, certos pontos da matéria invocada nos articulados, desde que tal se contenha nos limites alegados, não equivalendo isso a acrescentar ou substituir um facto por outro ou outros.

III. Não há excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, d), do CPC, artigo que se refere a vícios de sentença, quando esteja em causa a consideração de algum facto que não devesse ser atendido, estando-se, aí, no domínio do erro de julgamento e não do conhecimento de questões a resolver (essas, sim, enquadráveis naquele preceito).

IV. No capítulo da sindicância do uso dos poderes pelo Tribunal da Relação, relativamente à reapreciação da decisão de facto, o Supremo Tribunal de Justiça pode verificar se foram observadas as directrizes prescritas no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, mas não pode intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem na aferição da sua consistência.

V. A definição de incêndio como combustão acidental (entre o mais) não pode deixar de ser articulada com uma cláusula em que se prevê a exclusão da garantia do seguro relativamente a actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis, pressupondo a demonstração de um comportamento doloso para o afastamento da responsabilidade da seguradora.

VI. Atendendo às regras de repartição do ónus da prova, cabe ao lesado alegar e provar a ocorrência do incêndio e os danos sofridos, como factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1, do C. Civil), recaindo sobre a seguradora a prova de que o incêndio não teria tido causa acidental, por se tratar se matéria impeditiva do direito invocado (art. 342.º, n.º 2, do mesmo Código).

VII. Assim, não se apurando a causa de um incêndio, deve a consequência da ausência de prova consistente funcionar contra quem tinha o ónus de demonstrar que o incêndio não foi acidental, ou seja, contra a seguradora.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I


RIVAIS DIRECTOS, CONFECÇÕES E MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA, com os sinais dos autos, intentou acção declarativa comum contra AÇOREANA DE SEGUROS, SA, agora SEGURADORAS UNIDAS, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

«A) A quantia de 280.440,03€ a título de danos de perda e danos referente à mercadoria destruída e danificada pelo incendio a que se reportam os presentes autos.

B) A quantia de 25.000,00€ a título de danos provocados pelo sinistro nas benfeitorias existentes no estabelecimento comercial da A..

C) A quantia de 6.000,00€ a título de responsabilidade civil extra-contratual de exploração e assistência ao estabelecimento comercial e função temporária de uso do local arrendado.

d) O que se vier a apurar em liquidação de sentença relativo aos lucros cessantes da A. na exploração do seu estabelecimento comercial desde Janeiro de 2014 até Novembro de 2014.

Tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a data da ocorrência do sinistro até integral e efectivo pagamento.»


Alegou, em síntese, ter, no estabelecimento comercial da Autora, denominado “L...”, instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito à Rua ..., ..., ..., deflagrado um incêndio, que provocou danos, sendo esse sinistro coberto pelo contrato de seguro, titulado pela apólice nº. ...23, celebrado com a Ré.


A Ré contestou, alegando, em resumo, que o seguro não cobre lucros cessantes ou indirectos nem a privação do uso, o valor do prejuízo quanto à mercadoria deve ser determinado pelo valor de compra excluído o IVA, não estando o sinistro em causa  enquadrado nas condições gerais e particulares da apólice.

Refere ainda, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, na defesa da improcedência da acção, que o incêndio só pode ter sido provocado por alguém que tenha tido acesso ao estabelecimento em causa a mando e em representação da Autora e, ainda, que, no mínimo, não se pode concluir qual a origem do evento e, portanto, que tenha sido acidental e, consequentemente, seja enquadrável na apólice em causa.

A Autora respondeu relativamente à matéria da excepção, pugnando pela improcedência desta, explicitando que os lucros cessantes foram por si peticionados como indemnização devida pela demora da Ré na conclusão do procedimento e não enquanto incluídos na cobertura da apólice, de acordo com o art. 26º das Condições Gerais da Apólice.

Foi proferido despacho saneador, com fixação, no mesmo acto, do objecto do processo e selecção dos temas de prova.

Realizou-se a audiência de julgamento, sendo proferida sentença que julgou a acção

improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

Desta sentença apelou a Autora, tendo sido proferido acórdão pela Relação de Lisboa, no qual se determinou a ampliação da matéria de facto, anulando-se a decisão proferida.

Após novo julgamento, foi proferida sentença que voltou a julgar a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

Recorreu, novamente, a A., tendo sido proferido acórdão que decidiu:

«a) Alterar a decisão de facto no sentido e medida indicados;

b) Revogar a sentença recorrida;

c) Condenar a Ré SEGURADORAS UNIDAS, SA, a pagar à Autora RIVAIS DIRECTOS, CONFECÇÕES E MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA, o montante de €305.440,03 (trezentos e cinco mil, quatrocentos e quarenta euros e 3 cêntimos), acrescido de juros à taxa legal indicada desde a citação até integral pagamento;

d) Absolver a Ré do demais pedido.»


No que se refere a custas, após correcção de lapso, foram elas fixadas pelo seguinte modo (em 15-07-2021):

«Custas em ambas as instâncias pela Autora e pela Ré na percentagem do decaimento que são de 2% (dois por cento) e 98% (noventa e oito por cento), respectivamente.»


Irresignada, a R. interpôs recurso de revista, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«A) - Alteração da matéria de facto produzida pelo Tribunal da relação de Lisboa.


1. O Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal essencialmente para apreciação da matéria de direito, no entanto não deixa de ser um tribunal que decide e reaprecia-se a decisão do tribunal de recurso (da relação) também quanto à matéria de facto e quanto à conformidade dessa decisão de acordo com o direito e de acordo com a sua interpretação que faz das normas vigentes (art.º 682 n.º 1 do C. P. Civil), ou seja sempre que essa reapreciação não estiver dependente ou sujeita ao principio da livre apreciação, como são os exemplos dos depoimentos testemunhais, e puder ser aferida pela contradição existente entre a fundamentação produzida e até entre os factos assentes, globalmente.

2. Sendo um Tribunal que essencialmente decide sobre matéria de direito, também não deixa de poder aferir da legalidade da alteração da matéria de facto no uso dos poderes previstos no art.º 674 n. 3 e 682 ambos do CPC.

3. É esta revisão que se pretende que o STJ faça.

4. Apesar da boa fundamentação das decisões (sentença) proferida pela 1ª instância numa decisão surpresa o douto tribunal da relação altera a matéria de facto, na sua generalidade, arrasa com a matéria assente, introduzindo pelo menos um facto novo, não alegado, e que está em contradição com os factos alegados e confessados pela autora e elimina os pontos 18 a 21 da matéria assente na sentença.

5. Socorrendo-se para o efeito de presunções judicias que desafiam a normalidade dos factos e o raciocínio normal do “bonus pater família“ sem fundamentar ou rebater a argumentação da sentença de 1 ª instância e introduzindo novos conceitos factos que não foram alegados.

6. Ora, o tribunal de recurso não deve substituir-se ao tribunal de julgamento pois embora tenha acesso a todas as (mesmas) provas, não dispõe da vivacidade da imediação sem que para isso tenha evidencias claras que a prova foi mal decidida, tanto mais que aquela resultou de duas audiências de julgamento que acabaram por depor sobre toda a matéria do incendio.

7. Diz-nos o Ac. do STJ, de 31-05-07 a este propósito que «quando a opção do julgador se centra em elementos diretamente interligados com o princípio da imediação, o tribunal de recurso só tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio e de controlar e convicção do julgador da 1a Instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. A atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum.

8. Desde logo e relativamente à matéria alterada pelo aresto objecto do recurso e que concretamente ao descrito em 13 e 17 da matéria que se encontrava assente o tribunal recorrido “a quo” refere o seguinte:

“3.3.3. Em consequência, considera-se provado sob os pontos de facto 13 e 17 o seguinte: 13. Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na prateleira referida em 12., apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial.

13.a. No dia 21.12.2013 AA, quando pelas 19h00 encerrou o estabelecimento, extinguiu a chama da vela que se encontrava na prateleira referida em 12., não tendo sido possível apurar se extinguiu totalmente a incandescência do respectivo pavio. (sublinhado nosso)

17. Na zona de início de combustão a iluminação do teto encontrava-se desligada, o ferro de engomar com caldeira acessória não tinha energia dado que a ficha se encontrava fora da tomada e a lamparina de caixa que se encontrava na prateleira sobre a tábua de engomar estava apagada.”


9. Ora, o ponto 13 está claramente em contraditório o ponto 13 a. A vela ou foi ou não foi apagada. Se existe pavio incandescente não foi apagada, nem sequer meio apagada.

10. Acontece que a própria autora alegou que tinha apagado a vela que normalmente e usualmente acendia no estabelecimento, (Art.12 da Petição Inicial.)

11. Apagado só tem um sentido apagar e este facto que foi aceite pela R.

12. Ora a prova por confissão é vinculativa e não pode ser alterado pelo douto tribunal da relação objecto do presente recurso;

13. O douto acórdão violou o disposto no Art.º607 n.º4 do C. P. Civil uma vez que a matéria confessória está sujeita a prova vinculada Art.º607 n.º4)

14. Nem tão pouco pode aquele tribunal aditar outro facto para tirar sentido ao primeiro como fez ao mencionar que a vela ficou incandescente, quando fundamenta nas declarações da autora (AA) que claramente referiu que a vela e o pavio ficaram apagados.

15. A resposta dada pelo Tribunal da Relação sobre factos que não foram alegados e que não integram a causa de pedir é excessivo, pelo que esse facto não poderão ser considerados na decisão, sob pena da violação do disposto no Art.º 264 n.º5 e Art.º 615 n.º1 alínea d).

16. Acontece ainda que tendo o A. confessado que apagou a vela em causa não poderá o douto acórdão vir dar por “não escrito” ou melhor retirar o efeito prático deste facto.

17. O douto acórdão violou o disposto no Art.º607 n.º4 do C. P. Civil uma vez que a matéria confessória está sujeita a prova vinculada Art.º607 n.º4)

18. Senão vejamos, diz o tribunal da relação:

“A possibilidade de reacendimento da vela relaciona-se com situações de manutenção da incandescência, apesar da extinção da chama, provocando uma nova eclosão de chama. Entendemos que não resulta categoricamente do depoimento de AA que a extinção da incandescência tenha sido por ela verificada naquele dia e que importa ter em consideração a distinção entre extinção de chama e extinção de incandescência quanto ao acto globalmente indicado como de apagar a vela. Embora a descrição que fez admita esse sentido. (sublinhado nosso) Por outro lado, a explicação que decorreu em julgamento, permite considerar que a expressão normal “apagar a vela” que constitui a alegação fáctica da Autora na petição, deve ser desdobrada nas duas acções em que se consubstanciam nada impedindo que se considere que a admissão por acordo deve conter essa distinção, permitindo julgar provada uma ou ambas as acções que consubstancia. Isto em razão das diferenças que uma e outra situação têm quando consideradas num contexto de ignição de um incêndio, como explicou a testemunha BB ouvida na segunda fase de produção de prova. Em suma, concluímos que ambas as possibilidades se equivalem, o que determina que se considere que a contraprova alcançou lançar a dúvida sobre se o acto descrito como apagar a vela foi idóneo à extinção da incandescência do pavio. (sublinhado nosso) “

19. Tal como se concluiu no voto de vencido do aresto aqui em causa ”Na petição inicial foi alegado que AA apagou a vela.

20. Não pode ser outra a conclusão do tribunal;

21. Ora, uma vela ou foi apagada ou ficou acesa, não há meio termo. Não pode o douto aresto julgar provado que AA «extinguiu a chama da vela que se encontrava na prateleira referida em 12., ignorando-se se extinguiu totalmente a incandescência do respectivo pavio.

22. Pois não é possível/plausível que depois de extinta a chama o pavio se reacenda sozinho, pois as regras da experiência demonstram à saciedade que nem sequer é fácil reacender o pavio com um fósforo logo após se extinguir a chama, devido ao estado líquido em que durante algum tempo fica a superfície da vela.

23. Em suma, esse ponto da matéria de facto é, em si, contraditório e bem assim, afronta a realidade.

Quanto à restante matéria alterada,

24. Acresce que, vem o douto aresto recorrido, alterar a matéria dos pontos de facto de 14 e 15, 18, 19, 20 e 21, arrasando a decisão da 1ª instância e indo muito além do alegado pela autora nas suas doutas alegações, para tanto fundamentando-se em possibilidades nunca antes aventadas e que não se regem pelos princípios normais da causalidade adequada nem tão pouco em raciocínios ponderados do bónus pater familie:

25. Nomeadamente, fundamentando em raciocínios ilógicos e que não corresponderam à transparência dos depoimentos das testemunhas e que não são fundamentados ou justificados e elaborando em presunções judiciais todas assentes em pressupostos e factos que para além de não corresponderem á normalidade dos factos, assentam em teses mirabolantes agora urdidas pelo tribunal da relação.

26. Fá-lo em contradição com os relatórios juntos aos auto (relatório da p… que até invoca) e em contraditório com a logica inerente à normalidade das situações;

27. Refere o aresto “Diga-se, aliás, que a própria testemunha refere que uma vela com outras características podia por algum motivo ter-se desequibilibrado e tombado da prateleira sem a descrição correcta da vela - características e dimensões, havia a possibilidade da mesma ter ficado acesa e tombado -, possibilidade que afasta dado o diâmetro/altura da vela e o consequente centro de gravidade, sem nunca equacionar as possíveis circunstâncias de desequilíbrio da prateleira. Importa ainda considerar na questão que ora nos ocupa o mais que foi declarado pela testemunha CC, que exclui categoricamente a possibilidade de o incêndio se dever a outra coisa diferente de acção humana dolosa utilizando chama directa e o álcool como acelerante de combustão e as testemunhas DD, BB ou EE que colocaram essa hipótese de lado (declarações prestadas em audiência e fls 636 e 637, maxime 637 verso). E, se as testemunhas DD e BB foram parcas em considerações, embora tivessem sido as primeiras a deslocar-se ao local, a testemunha EE, ouvida na segunda fase da produção de prova, que fez a análise documentada no relatório de fls 636 e 637, foi também ela categórica. Não quanto à origem do incêndio, mas quanto à impossibilidade de cientificamente a determinar nas condições e com as pesquisas em concreto efectuadas, nomeadamente com a falta de análise para pesquisa da presença do eventual acelerante. Não esquecemos que a testemunha CC entendeu tal pesquisa inútil por o álcool ser altamente volátil e não deixar vestígios (veja-se também o que consta a respeito no relatório da A..., Lda, a fls 108 verso e 531 a 552), mas também é certo que a testemunha EE não teve a mesma opinião: é possível fazer análise mesmo do álcool mas é difícil ter um resultado positivo; (Isto porque entretanto o álcool evaporou-se e não deixa resido)

28. Como é evidente.

29. A primeira questão era saber se era álcool e para saber isso tem de recolher-se uma amostra. De igual modo, não pode deixar de ter-se em consideração que esta última testemunha, cuja imparcialidade e ausência de interesse não oferece dúvida, não excluiu outras probabilidades de ignição – nomeadamente decorrentes da electricidade e da lâmpada do tecto na zona da tábua, embora não as dissesse de probabilidade assegurada ou forte. Assim: Concretamente, eu não estou a dizer que foi uma lâmpada, o que estou a dizer é que quando chegamos a uma conclusão temos de a explicar muito bem e eliminar todas as outras possibilidades e neste relatório não está explicado porque é que a nível elétrico não era possível a ignição e quando as coisas não são explicadas mantêm-se em aberto.” (sublinhado nosso)

30. “O estado da lâmpada pode ter sido consequência do incendio e nada ter a ver com problemas no caixilho da lâmpada.

31. Com o devido respeito não pode o douto tribunal da Relação esconder-se em raciocínios generalistas que foram alegados na acção.

32. Em suma, a testemunha pronunciou-se no sentido de dever ter sido excluída a questão da electricidade, o que não aconteceu. Relembra-se que AA disse, sem que ninguém a tenha desmentido, que na altura em que chegaram à loja para deparar com a situação do incêndio, alguém tentou ligar a electricidade porque estava tudo às escuras e o quadro disparava sempre pelo que pediram ao vizinho uma lanterna e nunca mais tiveram luz. Em suma do que declarou, a testemunha EE concluiu: na hipótese de alguém ter apagado as velas todas e desligado o quadro só pode ser por acção humana dolosa. Ora esta hipótese não se verifica, não só pelo que se concluiu quanto à vela como também porque é certo que o quadro não foi desligado (o que aliás consta da decisão de facto em ponto não impugnado) uma vez que ninguém colocou em causa que ficaram acesas as iluminações próprias do Natal (cf. fls 1061/1062 foto da árvore de Natal). Disse AA: no sábado não desliguei o quadro. Deixei a árvore de Natal ligada na montra e luz em cada montra e tinha um relógio que à meia noite desligava. De notar que um dos argumentos aduzidos pela testemunha CC foi o de a roupa se encontrar mais afectada na zona inferior entre o apoio do ferro de engomar e entre a segunda e a terceira pilha de roupa, indiciando a escorrência de álcool e a maior infiltração desse líquido acelerante. Ora, do relatório da P..., Lda, a fls 44 verso é indicando que a maior afectação da zona inferior terá resultado da irradiação da combustão da caldeira do ferro de engomar, que estava debaixo da tábua, em virtude do calor libertado pela chapa da tábua de engomar que era de metal. “

33. Ora o ferro/caldeira encontrava-se sobre a tábua de ferro no descanso (conforme vide foto n.º170, 171, 172, juntas aos autos pela Autora)

34. Isso não explica então por que razão a maior afetação não se deu junto do monte que estava mais próximo da caldeira, ou seja, o primeiro (o mais próximo do ferro) e nunca entre a segunda e a terceira pilha. Ou seja, este raciocínio está ferido de qualquer logica atenta as fotos/fls 544).

35. Para além do facto de não corresponder à verdade que o ferro/caldeira se encontrava debaixo da tábua, estava sob a tábua, conforme fotografias.

36. Assim, e porque o douto Tribunal da Relação se socorreu não só de factos que não foram alegados como referencias que não se encontrava documentadas como refere, para alterar a prova assente e provada, bem como de ilações que ofendem a logica transversal ao bónus pater familie, colocando completamente em causa o principio da imediação da prova sem que tenha fundamentado em concreto a sua decisão, deve o presente tribunal e porque tem legitimidade para isso, anular a decisão do douto arresto quanto alteração da matéria de facto suprarreferida por exceder os poderes da relação colocando em hipótese factos novos que não constam e não fazem parte dos autos para por em crise toda a matéria dada como assente que conduzia à absolvição da R., em concreto nomeadamente os factos alterados.

37. Ainda douto aresto que agora se coloca em causa, eliminando a matéria de facto 18 a 21 da matéria assente e objecto da repetição de julgamento, invocando argumentos de todos ilógicos e que mais uma vez socorrendo-se de factos novos que por serem factos novos não teve a R. a oportunidade de fazer contra prova ou até pronunciar sobre os mesmos. Nomeadamente no que concerne à possibilidade do incendio ter sido provocado por uma lâmpada o que facilmente poderia ter sido demonstrado que não era possível, caso esse facto tivesse sido alegado pela parte;

38. Pergunta-se, mas tendo o incendio início em cima da tábua (e esse facto é pacifico) como se pode considerar que o incendio pode ter sido provocado por uma lâmpada.

39. Não se pode pretender, como pretende o douto aresto objeto do recurso, que a R. faça prova de todos as mais fantásticas hipóteses para que a autor possa demonstrar que o incendio teve uma causalidade acidental, externa à acção humana;

40. Hipóteses estas que ultrapassam os factos constantes.

41. Parece-me evidente por todos os factos assentes e provados que a lógica “normal“ aponta para o facto do acidente não ter origem acidental (montes de roupa empilhada cima da tabua de ferro, fósforos no chão; álcool no local , pelo menos 2 frascos, caixote com roupa dentro no chão ao pé da tabua, roupa antiga marcada em escuros, luz desligada, situação económica difícil do segurado, etc. etc..) . São estes os factos relevantes e que afastam a possibilidade de estarmos perante um incêndio acidental.

42. Aliás, conclusão que a 1ª instância retirou da causa de pedir.

43. Porque viola as disposições supra descritas o aresto em causa deverá ser anulado e baixar de novo ao tribunal da relação no sentido de ser proferido novo aresto que tenha em consideração os factos fixados no ponto 13 e nos pontos 18 a 21 da matéria provada da decisão da 1ª instância, que está sobrejacente fundamentada da qual resulta que o acidente foi provocado por acção humana e não por acidente.

44. Aliás, o mais normal é ter sido o próprio segurado a provocar o incêndio de forma a ser ressarcido dos prejuízos que vinha acumulando e parcas vendas que vinha a fazer;

45. Vejamos com a presente indemnização quase que diria que sai o totoloto ao segurado, senão vejamos o segurado vinha acumulando prejuízos desde 2009 no valor de €145.629.73 euros ou seja à cerca de 6 anos que a única coisa que tinha conseguido era acumular prejuízos.

46. Já se encontrava e já tinha despedido pessoal para diminuir as suas despesas.

47. Em 2012 tinha vendido na totalidade do ano, a quantia global de 22.203,43 euros e em 2013 a quantia global de 11.488,41 euros, (vide relatório da P… junto pela A.), pelo que a maior interessada neste incendio seria a própria Autora a ver-se livre de todo o velho stock, que acumulava, e recebendo uma indemnização que lhe cobriria todos os prejuízos;

48. Em resumo, o aresto agora em causa não poderia alterar a matéria de facto como o fez aditando e considerando factos que não foram alegados pelas partes:

49. Não podia assentar factos que iam contra os próprios factos alegados e confessados pela autora, nomeadamente quando referiu que a vela apagou;

50. Da decorrência logica dos factos assentes o incêndio em causa não se enquadra na hipótese em causa nos autos porque não foi acidental.

51. Mas antes de acão humana, e é esta a conclusão que se pode tirar dos factos;

52. P Tribunal da 1ª instância decidiu de acordo com os documentos juntos nos autos e de acordo com as presunções judiciais inerentes ao raciocínio do Homem médio.

53. Sendo o S.T.J. que essencialmente decide sobre a matéria de direito, também não deixa de poder aferir da legalidade da alteração da matéria de facto efetuada pelo Tribunal recorrido, quando essa alteração ofende os mais elementares princípios do direito e estejam em contradição com a fundamentação apresentada, ou na ausência desta.


À cautela e não prescindindo,

B) - Quanto à inversão do ónus da prova e enquadramento do sinistro na apólice

54. Compete à autora fazer prova do enquadramento do sinistro aqui em causa, o incendio nas condições gerais da apólice;

55. A clausula geral que define o incendio é clara e prevê que seja um incendio seja acidental.

56. Ora da matéria assente pelo aresto em recurso não resulta que o evento tenha sido acidental, mas antes provocado por acção humana, uma vez que se iniciou na tabua de ferro onde não existia qualquer fonte de calor:

57. Mesmo que se diga que não provou que foi causado por acção humana também temos de dizer que não se provou que foi causado por acidente;

58. Logo não está provado que se deva enquadrar na apólice em causa, porque não se apurou a causa e a mesma é inconclusiva;

59. Logo, mesmo que não se altere os factos provados, deve a R. ser absolvida do pedido;

60. Tal como refere o voto de vencida, “Quanto à interpretação das cláusulas contratuais, considerando-se que fica inútil a cláusula sobre o afastamento da responsabilidade da seguradora quando o incêndio é causado dolosamente, é de contrapor que a acolher-se o entendimento vencedor, então para quê a cláusula com a definição do que incêndio é a combustão acidental

 61. A cláusula que define o incêndio abrangido pela cobertura do seguro, é cristalina, explicita que só a combustão acidental é abrangida pela cobertura do seguro”.

62. “O entendimento vencedor dá prevalência à cláusula respeitante ao dolo em detrimento da cláusula que define o incêndio, anulando-a, quando é evidente que a referência à exclusão em caso de dolo é tão só um reforço de que só o incêndio acidental releva para responsabilizar a seguradora.

63. Mesmo que assim não se considere competia ao autor fazer prova de que o incendio “providencial” de que foi “vítima” se ficou a dever a um acidente e não ação humana.

64. De forma a estarem preenchidos os requisitos da apólice em causa;

65. Quem invoca um facto e quer aproveitar-se dele é que o tem de demonstrar. (Art.º 342 do C. Civil)

66. É, por isso, o autor que tem de demonstrar que a causa do acidente foi acidental;

67. Que não foi provocada por acção humana, nomeadamente dos representantes da A. ou dos que lhe são civilmente responsáveis

68. Não basta alegar ter sido um incendio é necessário fazer prova das condições em que o mesmo ocorreu;

69. Na verdade, nos termos do disposto no art.º 1, sob a epigrafe “definições 2 estabelece-se: Incendio: Combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos próprios meios”.

70. Também não pode o tribunal esperar que a parte confesse que ateou fogo ao seu próprio estabelecimento, sendo certo que a parte prestou declarações que foram consideradas nos factos assentes e devidamente fundamentados;

71. Decorre da matéria assente que o incêndio se ficou a dever ao facto de alguém ter ateado fogo em cima de uma tabua de passar ferro.

72. Ficou ainda provado que todas as instalações do estabelecimento comercial se encontravam fechadas e trancadas e assim permaneceram quando ocorreu o incendio em causa;

73. Ficou ainda provado que quem tinha a chave do estabelecimento o socio gerente do estabelecimento e a sua mãe de quem tinha adquirido há muito pouco tempo o referido estabelecimento por trespasse;

74. Assim, ao contrário do que menciona o aresto, o que está em causa não é o acionamento da excepção prevista na apólice, mas antes o enquadramento do sinistro na apólice em causa e nas suas condições gerais.

75. Ora, tratando-se de um sinistro iniciado por uma fonte normal de fogo (chama) o mesmo nem sequer está enquadrado na apólice;

76. Ora, a apólice em causa não cobre acidentes decorrentes de incêndios que tenham como origem fogo, ou seja uma fonte normal de fogo, sejam eles acidentais ou não ou seja a mesma está destinada a cobrir, apenas, incêndios cuja origem estejam numa fonte anormal de calor, isto é, e por exemplo, curto-circuito, numa explosão provocada por gazes, etc…

77. Assim, para que a apólice funcione no que concerne ao incêndio é preciso que para além do mesmo ser acidental tenha tido origem num facto ou numa situação que não constitua uma fonte normal de fogo.

78. Por outro lado tendo resultado esse incendio de fogo posto, independentemente de quem o colocou, o mesmo não está enquadrado na apólice, sendo certo que competia à sociedade autora provar que as circunstâncias do incendio foram acidentais e advieram de circunstâncias que provocaram chama, mas que não tiveram como origem uma fonte normal de fogo;

79. Isso aconteceria se estivéssemos perante um incêndio provocado por uma acumulação de gazes, um curto-circuito ou até mesmo uma explosão. O que não é o caso sub judicie;

80. Se assim não fosse bastava ao segurado deixar uma vela acesa e esperar que a mesma ardesse o suficiente para a chama pegar fogo e teria todo o seu estabelecimento renovado e subsidiado pela entidade seguradora.

81. Esta cláusula destina-se exatamente a prevenir a cobertura de incêndios com origem em acção humana ou origem desconhecida:

82. Já que, muitos eram os casos em que as seguradoras se viam a ter que indemnizar comerciante e industriais (segurado) em situações de, claramente, fogo posto (sem que se conheça o seu autor) ou em situações que não se determine a causa.

83. Aliás, este entendimento está de acordo com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 13.06.2018 Proc. n.º952/16.9T8PVZ-A.P1, publicado em WWW.DGSI.pt


Deverá assim, anular-se a decisão ora objeto de recurso e enviar de novo o processo ao tribunal da relação para proferir novo acórdão já expurgado das questões de facto novas introduzidas e caso assim não se entenda proferir o supremo tribunal de justiça aresto que absolva a R. do pedido pelo facto da autora não ter demonstrado que o incêndio em causa se enquadra nas condições gerais da apólice.»


Contra-alegou a Autora, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assumem-se como questões a apreciar as de saber se o Tribunal recorrido não podia, pelas razões aduzidas pela Recorrente, ter alterado, nos termos em que o fez, a matéria de facto e se o mesmo Tribunal errou na determinação do ónus da prova e, em consonância com isso, na valoração dos factos apurados, impondo-se, ao contrário do decidido, concluir que o incêndio em causa não está coberto pela apólice.



II


No acórdão impugnado, foram considerados provados os seguintes factos:

«1. A A. é uma sociedade constituída em 2009, com um capital social de €5.000,00 (cinco mil euros), pelos senhores FF e seu pai GG casado com AA, sendo que esta última, à data da constituição da sociedade, exercia a atividade de comércio a retalho de vestuário e calçado para adultos.

2. Como gerente da A. foi, então, nomeado o GG o qual, em  2011, cedeu a sua quota a FF que passou, a partir daí, a ser o único sócio e gerente da sociedade.

3. Até 9 de janeiro de 2009, o estabelecimento comercial aqui em causa – “L...”, instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito à Rua ..., ..., ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...20 – era detido por AA como empresária em nome individual.

4. Por contrato de cessão de exploração datado de 9 de janeiro de 2009, em que é cessionária AA, a A. adquire a exploração daquele estabelecimento, aquisição que integra os móveis constante da relação que lhe é anexa, por um período de 10 anos e mediante a contrapartida mensal de €500,00 (quinhentos euros).

5. O estabelecimento em causa era composto por loja que confrontava com a via pública, mas de forma recuada, com acesso a um hall exterior, e que, por sua vez, tinha um corredor que dava acesso ao estabelecimento destinado a arrumação ou depósito, atelier de costura ou instalações sanitárias que não se encontravam separadas da loja por qualquer porta.

6. O imóvel era antigo, carregado de materiais combustíveis quando em contacto com uma fonte de calor.

7. No dia 22 de dezembro de 2013, cerca das 14h00, AA dirigiu-se ao estabelecimento comercial identificado em 3. A fim de o abrir ao público.

8. Aí chegada, ao abrir o cadeado do gradeamento que protege as montras do referido estabelecimento, deparou-se com água a escorrer pelo interior dos vidros das referidas montras e com estes completamente escurecidos, tendo também verificado que a iluminação de Natal que decorava a loja e que no dia anterior tinha deixado ligada, estava desligada, assim como a iluminação da própria montra.

9. Perante tal facto, e com receio de entrar, ligou para FF, sócio-gerente da A. para que ele se dirigisse à loja, o que este de imediato fez.

10. Ao procederem à abertura da loja, logo, constataram um forte odor a queimado, bem como uma nuvem de fuligem negra que impedia que se pudesse ver para o interior do estabelecimento, apurando o FF que tinha ocorrido um incêndio na divisão de costura do estabelecimento, incêndio esse que já se encontrava extinto.

11. No local onde tal incêndio deflagrou encontrava-se uma tábua de engomar, com o ferro e a respetiva caldeira, vestuário diverso em cima da referida tábua, bem como, ao lado daquela tábua, no solo, um caixote com várias peças de roupa no seu interior.

12. Colocada na parede à qual a tábua de engomar estava encostada, por de cima dela, encontrava-se uma prateleira com uma imagem de Nossa Senhora de ..., um busto do Santo Cristo ... numa redoma de vidro, mais 3 ou 4 figuras religiosas, uma caixa de fósforos, uma jarra de flores, três pequenas velas e uma outra vela maior.

13. Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na prateleira referida em 12., apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial.

14. No dia 21.12.2013 AA, quando pelas 19h00 encerrou o estabelecimento, extinguiu a chama da vela que se encontrava na prateleira referida em 12., ignorando-se se extinguiu totalmente a incandescência do respectivo pavio.

15. O incêndio referido em 10. teve início em cima de uma tábua de engomar (zona de ignição) onde se encontravam depositadas inúmeras peças de roupa, dispostas em três amontoados separados entre si.

16. Na ponderação sobre a origem do incêndio foi considerada a morfologia da área ardida e interpretados os danos observados.

17. No local estavam dois frascos de álcool, um deles ainda com álcool e sem sinais de afetação pelo calor; vestígios de cera, no solo, por debaixo da tábua de engomar; bem como fósforos no chão do estabelecimento.

18. A combustão deu-se a baixa velocidade de propagação, decorrente do tipo de material combustível e da sua compactação, libertando, contudo, uma elevada quantidade de fuligem que se viria a depositar em todo o espaço do estabelecimento.

19. Na zona de início de combustão a iluminação do teto encontrava-se desligada, o ferro de engomar com caldeira acessória não tinha energia, dado que a ficha se encontrava fora da tomada, e a lamparina de caixa que se encontrava na prateleira sobre a tábua de engomar estava apagada.

20. Não existiam quaisquer tipos de marcas de arrombamento nos, pelo menos, 7 sistemas de fecho existentes na porta de acesso à loja, cinco cadeados em cada portão de ferro forjado e 2 fechaduras na porta do estabelecimento e janela existentes e fechada por dentro.

21. Entre a roupa encontrada no estabelecimento e à venda, encontravam-se peças marcada em escudos e peças de todas as estações, sendo que, o incêndio ocorreu nas vésperas do comércio encerrar para as festividades natalícias.

22. O incêndio danificou toda a roupa, acessórios e restante mercadoria que se encontrava no interior do estabelecimento comercial, ficando impregnados do cheiro a fumo e fuligem e amarelos pela absorção do fumo, ficando assim inutilizados o que é impeditivo da sua venda ao publico.

23. O mesmo incêndio danificou a pintura do estabelecimento com manchas pretas e amarelas do fumo; a instalação elétrica; a tábua de engomar e respetiva caldeira; rodapés do quarto de costura e corredor; prateleira que se encontrava por cima da tábua de engomar; aparelho de ar condicionado; cortina de ar; 5 balcões de atendimento ao público e prateleiras de exposição de mercadoria; 2 maples de 1 lugar.

24. Em razão do incêndio aqui em causa foi aberto pelo MºPº de ... o processo de inquérito nº.11/14...., que correu termos no DIAP ..., tendo, ali, sido proferido um primeiro despacho de arquivamento datado de 17.1.2014, em que se concluiu que “uma vela que se encontrava numa prateleira e que se reacendeu” e não tendo sido recolhidos indícios que permitissem imputar os factos a título de negligência, arquivam-se.

25. Inquérito que foi reaberto por despacho de 9.7.2014 e que voltou a ser arquivado por despacho de 25.2.2015, sustentado na perícia solicitada ao laboratório da polícia científica da PJ.

26. A A. celebrou com a R. um seguro de responsabilidade civil multi-riscos/empresas pelo qual esta assumiu, através da apólice nº. ...23, a responsabilidade pelo risco quanto às seguintes coberturas, entre outras, que totalizam o capital coberto de €461.500,00:

. incêndio pelo valor de €400.000,00;

. danos em mercadorias pelo valor de €350.000,00;

. danos em benfeitorias pelo valor de €50.000,00.

27. Em 22.12.2013 foi aberto pela R. o processo para regulação do sinistro, tendo sido nomeada uma equipa de peritagem para o efeito, tendo em 6 de janeiro de 2014 solicitado à A. a documentação necessária, e tendo esta de imediato sido entregue, por esta àquela equipa.

28. A A., através da sua mandatária, porque as perícias levadas a cabo pela R. não estavam concluídas, dirigiu em 22 de janeiro de 2014, carta à R. em que a alertava para o prejuízo que lhe advinha da impossibilidade de exercer a sua atividade comercial e em que lhe solicitava o pagamento por conta da quantia de €5.000,00 para fazer face aos encargos que a mesma se estava a ver obrigada a suportar durante a paralisação da sua atividade, missiva a que respondeu a R., em carta datada de 10 de fevereiro de 2014, recusando tal adiantamento.

29. Em 24 de março de 2014 a A. enviou à R. carta em que, face à não conclusão da peritagem, a alerta que, caso o processo não ficasse concluído no prazo de 15 dias a partir da receção da mesma, recorreria aos meios judiciais para que fosse ressarcida dos prejuízos advenientes do incêndio.

30. Em 22 de abril de 2014, perante inércia e silêncio da R., a A., através da sua mandataria, solicitou àquela uma reunião, disponibilizando-se a R. a realizar a referida reunião, tendo posteriormente solicitado o adiamento da mesma para o dia 7 de maio de 2014, mas que nunca teve lugar.

31. Em 5 de junho de 2014 a R. dirigiu carta à A. em que aquela declina qualquer responsabilidade no ressarcimento dos prejuízos reclamados por esta, alegando em suma que a “ocorrência” não se afigurava suscetível de enquadramento nas coberturas definidas no contrato de seguro.

32. A mercadoria que foi afetada pelo incêndio e referida em 22. tinha o valor de custo total de €285.967,84.

33. A reparação dos danos atinentes aos ativos referidos em 23. importava o montante de €25.000,00.

34. A A. de Janeiro de 2014 a abril de 2014 teve de arrendar um espaço para armazenar toda a mercadoria que se encontrava no armazém do estabelecimento comercial no que despendeu a quantia de €6.000,00.

35. A A., em razão do sinistro teve o seu estabelecimento fechado desde a ocorrência do sinistro e até dezembro de 2014, altura em que conseguiu ceder a exploração do mesmo.

36. O estabelecimento referido em 3. Apresentava, então, prejuízos que não se debelaram com a outorga do contrato referido em 4., mantendo o estabelecimento comercial em causa exatamente as mesmas pessoas que tinha ao balcão.

37. O incêndio ocorreu em vésperas de Natal, já no final de estação.

38. Parte do material existente tinha largos anos, pois muitas das peças ainda ostentavam o preço em escudos e euros.

39. A A. vinha acumulando prejuízos desde 2009, data da sua constituição, e à data do incêndio já acumulava de prejuízos transitados na quantia de €145.629,73 (cento e quarenta e cinco mil e seiscentos e vinte e nove euros e setenta e três cêntimos).

40. A A. não efetuou, após o incêndio, quaisquer obras na loja.

41. A A. cessou a sua atividade comercial com efeito a 31.3.2015.

Nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi artigo 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, adita-se o seguinte facto assente com base no relatório da A..., Lda, não impugnado quanto a tal:

42. O relatório elaborado a solicitação da Ré que concluiu pela existência de dolo na produção do incêndio está datado de 20 de Abril de 2014.»



III


III.1.

A Recorrente invoca, relativamente à decisão da matéria de facto operada pela Relação, o previsto nos arts. 674º, nº3, e 682º do CPC.


Dispõe o nº 3 do art. 674º o seguinte:

«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.»


E preceitua, por sua vez, o art. 682º:

«1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.

3 - O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.»


Em regra, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é, conhece apenas da matéria de direito.

Contudo, surgem, como se vê, as excepções previstas no nº 3 do art. 674º e no nº 3 do art. 682º.

Abrantes Geraldes refere que tais excepções não constituem limites absolutos à interferência do Supremo Tribunal de Justiça no que toca à delimitação da matéria de facto provada e não provada, ocorrendo outras situações, a que estão subjacentes verdadeiros erros de aplicação do direito, que podem justificar a “intromissão” do Supremo (Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 453-454). E especifica:

«Assim acontece designadamente quando o confronto com os articulados revelar que existe acordo das partes quanto a determinado facto, que o facto alegado por uma das partes foi objeto de declaração confessória com força pro­batória plena que não foi atendida ou quando esse facto encontra demonstração plena em documento junto aos autos, naquilo que dele emerge com força probatória plena, incluindo a eventual confissão nele manifestada.

É verdade que estas situações não se encontram formalmente assina­ladas nos preceitos que especificamente delimitam a esfera de poderes do Supremo Tribunal de Justiça e o âmbito do recurso de revista, mas parece evidente que a assunção de factualidade que esteja plenamente provada, como questão de direito que realmente é, deve ser considerada (art. 5.º, n.º 3). Conclusão que pode ser ainda reforçada mediante a invocação da aplicação remissiva ao recurso de revista (com as devidas adaptações) do disposto no art. 663.°, n." 2 (e do art. 607.°, n.º 4, 2.ª parte), prevista no art. 679.°.»


No que se refere a eventuais contradições na matéria de facto, considerou-se no Ac. do STJ de 17-05-2017, Rel. Lopes do Rego, Proc. 217480/10.6YIPRT.P2.S1, publicado em www, dgsi.pt, que:

«Verificando-se contradições entre a matéria factual definida pela Relação na sequência de procedência parcial da apelação em que se impugnavam vários pontos da decisão proferida acerca da matéria de facto, cabe ao STJ decretar a anulação do acórdão recorrido, determinando a remessa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de que sejam sanadas as contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a solução jurídica do pleito.»


Ainda quanto aos poderes do Supremo relativamente à decisão da Relação sobre a matéria de facto, exarou-se no Ac. do STJ de 30-11-2021, Rel. Tomé Gomes, Proc. 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, igualmente em www.dgsi.pt, o seguinte:

«I. Em sede de sindicância sobre o uso dos poderes pelo Tribunal da Relação na reapreciação da decisão de facto impugnada, cabe ao tribunal de revista ajuizar se, em tal pronunciamento, foram observadas as diretrizes prescritas no artigo 607.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC, de modo que o tribunal de recurso estribe a formação da sua convicção sobre o invocado erro de julgamento através dos fatores decisivos para tal.

II. Mas já não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência, o que lhe está vedado por virtude do preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, a contrario sensu, e 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

III. Em suma, ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efetuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador.

IV. As ilações extraídas pelas instâncias, no domínio de presunções judiciais baseadas na factualidade dada como provada, nos termos previstos nos artigos 349.º e 351.º do CC, são da sua exclusiva competência, estando, como tal, vedadas à sindicância do tribunal de revista, salvo quando se mostrem desprovidas de qualquer base factual ou sejam eivadas de ilogicidade manifesta.»


Refere a Recorrente que o tribunal de recurso não deve substituir-se ao tribunal de julgamento, pois, embora tenha acesso às mesmas provas, «não dispõe da vivacidade da imediação sem que para isso tenha evidências claras que a prova foi mal decidida, tanto mais que aquela resultou de duas audiências de julgamento que acabaram por depor sobre toda a matéria do incêndio».

Cita, a propósito, o Ac. do STJ de 31-05-2007, no qual se fez constar que:

«(…) quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação, o tribunal de recurso só tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio e de controlar a convicção do julgador da 1ª instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e aos conhecimentos científicos.

A atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, que o Tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face as regras da experiência comum.»


Trata-se de um acórdão tirado em processo-crime, relatado por Simas Santos, no Proc. nº 07P1412, publicado em www.dgsi.pt.

Ora importará ter em consideração que com o CPC-2013 ocorreu um alargamento dos poderes da Relação no capítulo da matéria de facto. Tem-se vindo a vincar, cada vez mais (tratando-se de um caminho iniciado com a Reforma de 1995/96), que a Relação deve formar o seu juízo autónomo, de acordo com os elementos probatórios disponíveis, «designadamente em resultado da reponderação de documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência» (Abrantes Geraldes, op. cit., p. 331), assumindo-se como um tribunal de instância e devendo, assim, «introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivos para tal.» (ibid., p. 332).

No Ac. do STJ de 10-02-2016, Rel. Abrantes Geraldes, Proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1, em www.dgsi.pt, concluiu-se, nesta linha, que:

«1. Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no art. 640º do NCPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do art. 662º.».


Em concreto, no caso que nos ocupa, a Recorrente centra a sua atenção nos pontos 13 e 17 dos factos provados.

Na 1ª Instância, deu-se por provado, nesses pontos, o seguinte:

«13.

Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na prateleira referida em 12., apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial, o que também fez no dia 21.12.2013 quando, pelas 19h00, o encerrou;

[…]

17.

Na zona de início de combustão não existia qualquer fonte de calor porquanto: a iluminação do teto encontrava-se desligada; o ferro de engomar com caldeira acessória também não tinha energia dado que a ficha se encontrava fora da tomada; uma vela de cera e uma lamparina de caixa que se encontravam na prateleira sobre a tábua de engomar haviam sido apagadas pela AA, antes de abandonar o local (artigo 34 da contestação)».


O Tribunal da Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto e, no que concerne aos pontos 13 e 17, considerou provado que:

«13. Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na prateleira referida em 12., apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial.

13.a. No dia 21.12.2013 AA, quando pelas 19h00 encerrou o estabelecimento, extinguiu a chama da vela que se encontrava na prateleira referida em 12., não tendo sido possível apurar se extinguiu totalmente a incandescência do respectivo pavio.

17. Na zona de início de combustão a iluminação do teto encontrava-se desligada, o ferro de engomar com caldeira acessória não tinha energia dado que a ficha se encontrava fora da tomada e a lamparina de caixa que se encontrava na prateleira sobre a tábua de engomar estava apagada


A matéria indicada em 13.a. figura, na formulação final dos factos provados, no ponto 14 e a matéria do aludido ponto 17 encontra-se contemplada, nessa fixação final, no ponto 19 (tendo ocorrido uma renumeração, como vem explicado no início do ponto 4. Fixação da matéria assente do acórdão).

No que tange e a esses pontos, considerou-se no aresto recorrido, em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto, o seguinte:

«3.3.1. É o seguinte o teor do ponto de facto 13:

13. Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na prateleira referida em 12., apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial, o que também fez no dia 21.12.2013 quando pelas 19h00 o encerrou.

Pretendendo a Autora que se decida como segue:

Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na prateleira referida em 12., apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial, o que também pensou ter feito no dia 21.12.2013 quando pelas 19h00 o encerrou.

É o seguinte o teor do ponto de facto 17:

17. Na zona de início de combustão não existia qualquer fonte de calor porquanto: a iluminação do teto encontrava-se desligada; o ferro de engomar com caldeira acessória também não tinha energia dado que a ficha se encontrava fora da tomada; uma vela de cera e uma lamparina de caixa que se encontravam na prateleira sobre a tábua de engomar haviam sido apagadas pela AA, antes de abandonar o local.

Pretendendo a Autora que se decida como segue:

Na zona de início de combustão não existia qualquer fonte de calor, a não ser uma vela de cera e uma lamparina de caixa que se encontravam na prateleira sobre a tábua de engomar que AA pensava ter apagado, antes de abandonar o local, porquanto: a iluminação do teto encontrava-se desligada; o ferro de engomar com caldeira acessória também não tinha energia dado que a ficha se encontrava fora da tomada.

3.3.2. A primeira questão refere-se a estes pontos de facto e consiste em saber do estado de ignição da vela e da lamparina. Coloca-se em razão de existir o hábito, por parte da dona da loja, de todos os dias acender a lamparina e/ou a vela numa prateleira de vidro colocada sobre duas poleias fixas na parede por cima do local onde foi encontrada encostada a tábua de passar a ferro com a roupa ardida.

Nessa prateleira, por isso as vela e lamparina eram acesas, encontrava-se uma imagem de Nossa Senhora (a fls 106 e 1017 encontra-se parcialmente carbonizada sobre a tábua) e outra do Senhor Santo Cristo e uns ramos de cedro (era essa a denominada jarra de flores a que alude o ponto 12 da matéria de facto assente, sendo notório o hábito religioso de colocar tais espécies vegetais, em altares ou imagens, representando os ramos de Páscoa). Nessa prateleira foi ainda dito que poderia encontrar-se um frasco de álcool.

O procedimento habitual era de acendimento da vela e/ou lamparina na abertura da loja, sendo as mesmas apagadas no encerramento.

A questão colocada é, assim, a de saber se a vela e/ou lamparina foram apagadas no sábado antes do incêndio, quando o estabelecimento foi encerrado, encontrando-se presentes AA e seu filho, ela por ter estado no estabelecimento a trabalhar na parte da tarde e ele por a ter ido ajudar, encerrando com ela o estabelecimento.

Os dados que geram a polémica consistem em a Autora dizer na petição que a vela foi apagada, o que foi corroborado pelo depoimento de AA, referido no relatório inicial da Polícia Judiciária (cf. fls 631 a 635 e, já na segunda fase de produção de prova, fls 958 e seguintes com o conjunto total de fotos tiradas, também na versão a cores, até fls 1365), atribuindo este relatório o incêndio ao reacendimento da vela, enquanto o perito contratado pela Ré afirmou que era impossível o reacendimento de uma vela após ter sido apagada, o que foi contrariado pelo depoimento de BB e pela explicação da diferença entre pavio em chama e pavio em que ainda existe alguma incandescência. Por outro lado, o segundo relatório da Polícia Judiciária, subsequente à reabertura do inquérito criminal em razão do relatório desse perito, elaborado por EE, contraria a conclusão de CC considerando que a mesma não tem bases científicas suficientes por não ter afastado de forma adequada outras hipóteses de ignição.

De salientar que foram ouvidos como testemunhas os autores dos relatórios, considerando as duas fases em que decorreu a produção de prova (antes e depois do primeiro acórdão desta Relação).

A descrição do perito CC, explicitando o que consta do relatório da A..., Lda, de fls 109 e seguintes, foi clara quanto à possibilidade de a vela se reacender, indicando que a mesma não existe depois de a vela ter sido apagada. Da mesma descrição resulta que apagar uma vela, em termos técnicos, significa extinguir a chama e a incandescência do pavio. Na verdade, descreveu o perito que para uma vela reacender depois de apagada, tendo em atenção o processo de combustão que tem de iniciar-se pela liquidificação da estearina por uma fonte de chama viva, é necessária uma fonte de chama viva que reinicie a liquidificação.

Resulta da prova produzida que o reacendimento é possível no caso de não se ter extinguido completamente a incandescência do pavio da vela. Ou seja, extinguindo-se a chama, a incandescência pode permanecer, por breves momentos, sobretudo se o pavio for longo, permitindo o reacendimento da chama.

A mesma testemunha CC, perguntada pelo Ilustre Advogado se é comum ou habitual incêndios com velas, com energia de ativação em prédios urbanos, respondeu: é comum; especialmente (...) muitas vezes até em quartos.

Foi o que referiu BB, técnica da Polícia Judiciária que foi a primeira a deslocar-se ao local, ouvida apenas na segunda fase do julgamento: a pessoa pensa que apagou a vela e esta manterá alguma incandescência que permite o reacendimento.

Importa ainda considerar que a testemunha AA, dona do estabelecimento antes da Autora que manteve nele as mesmas funções, as testemunhas clientes e amigas, as empregadas e o fornecedor da loja, conhecedoras dos hábitos da loja, foram unânimes em afirmar que havia um cuidado meticuloso em apagar a vela e a lamparina que estivessem acesas no encerramento do estabelecimento. No julgamento, AA afirmou quanto a tal que era impossível que a vela fosse a causa do incêndio porque a prateleira é um bocadinho mais alta do que eu e eu agarrei a vela, estive com a vela na minha mão e eu apaguei (…) vi o palito...aquele coisinho...

E, como o Senhor Juiz lhe dissesse, a ficar escuro, concluindo por ela a frase, respondeu: Exactamente! … não havia lume naquele pavio.

Quanto à lamparina, disse que havia uma pequenina que já se tinha gasto, porque é umas que têm uma aureolazinha de...eu não sei explicar, é de... E, continuando, disse que naquele dia só a vela estava acesa.

Deste depoimento podemos retirar com certeza (e nenhum outro meio de prova pode responder a estas questões) que a lamparina não esteve acesa naquele dia e que a vela esteve acesa. Podemos ainda retirar que a vela foi apagada pela testemunha com o sentido de que esta extinguiu a chama que existia no pavio - não havia lume naquele pavio – confirmando a afirmação de que viu o pavio a ficar escuro.

Isto é o que a testemunha considera “apagar a vela”.

Mas sabemos que a possibilidade de reacendimento da vela (normal e não as denominadas mágicas) não se relaciona com situações em que a chama se mantém. Por isso mesmo é que se chama reacendimento: a chama extinguiu-se e volta a acender. A possibilidade de reacendimento da vela relaciona-se com situações de manutenção da incandescência, apesar da extinção da chama, provocando uma nova eclosão de chama.

Entendemos que não resulta categoricamente do depoimento de AA que a extinção da incandescência tenha sido por ela verificada naquele dia e que importa ter em consideração a distinção entre extinção de chama e extinção de incandescência quanto ao acto globalmente indicado como de apagar a vela. Embora a descrição que fez admita esse sentido.

Por outro lado, a explicação que decorreu em julgamento, permite considerar que a expressão normal “apagar a vela” que constitui a alegação fáctica da Autora na petição, deve ser desdobrada nas duas acções em que se consubstanciam nada impedindo que se considere que a admissão por acordo deve conter essa distinção, permitindo julgar provada uma ou ambas as acções que consubstancia.

Isto em razão das diferenças que uma e outra situação têm quando consideradas num contexto de ignição de um incêndio, como explicou a testemunha BB ouvida na segunda fase de produção de prova.

Em suma, concluímos que ambas as possibilidades se equivalem, o que determina que se considere que a contraprova alcançou lançar a dúvida sobre se o acto descrito como apagar a vela foi idóneo à extinção da incandescência do pavio.

Do que concluímos que se encontra demonstrado, que a lamparina não se encontrava acesa, que AA extinguiu a chama da vela quando procedia ao encerramento do estabelecimento, não se encontrando provado que tenha extinguido totalmente a incandescência do pavio.»


Importa referir que também foi alterado o ponto 15, que, na sentença tinha a seguinte redacção:

«No local estavam dois frascos de álcool, um deles no solo junto à tábua de engomar, este ainda com álcool e sem sinais de afetação pelo calor; uma vela; vestígios de cera, no solo, por debaixo da tábua de engomar; bem como fósforos no chão do estabelecimento (artigos 32 e 36 da contestação)».


Passou a ter esta redacção:

«15. No local estavam dois frascos de álcool, um deles ainda com álcool e sem sinais de afetação pelo calor; vestígios de cera, no solo, por debaixo da tábua de engomar; bem como fósforos no chão do estabelecimento


O ponto 14 da matéria de facto, na sentença, era do seguinte teor:

«O incêndio referido em 10. teve início em cima de uma tábua de engomar (zona de ignição) onde se encontravam depositadas inúmeras peças de roupa já com alguns anos, dispostas em três amontoados separados entre si».


Passou, no acórdão, a ter esta formulação:

«14. O incêndio referido em 10. teve início em cima de uma tábua de engomar (zona de ignição) onde se encontravam depositadas inúmeras peças de roupa, dispostas em três amontoados separados entre si.»


O ponto 14a tinha a seguinte redacção:

«Foi a morfologia da área ardida, através da interpretação dos danos observados, que deu clara confirmação do sentido da propagação do incêndio e do local onde teve o seu início (artigo 31 da contestação)».


No acórdão, ganhou esta redacção:

«Na ponderação sobre a origem do incêndio foi considerada a morfologia da área ardida e interpretados os danos observados


Foram considerados não provados os factos constantes dos pontos 18 e 21 da sentença, que eram do seguinte teor:

«18.

Tendo em conta as dimensões da lamparina e da vela que estavam na prateleira sobre a tábua de engomar, a sua sustentação e aplicação do centro de gravidade - vela com 65 mm de diâmetro por 100mm de altura e lamparina 38 mm de diâmetro por 12 mm de altura - não tombariam do local onde se encontravam ainda que tivessem ficado acesas (artigo 35 da contestação);

[…]

21.

No estabelecimento e no período que vai da hora de fecho referida em 13. e a de abertura mencionada em 7. não ocorreu qualquer curto-circuito...ou qualquer outra circunstância suscetível de determinar, de forma acidental, a ignição do incêndio, o qual apenas se justifica pela exposição do material combustível a uma fonte direta de fogo por via da ação de alguém que tenha tido acesso ao estabelecimento em causa e, considerando o que se refere em 19., a mando, em representação ou com o conhecimento e anuência da A. (artigos 40 e 41 da contestação)»


A Recorrente defende o seguinte:

«9. Ora, o ponto 13 está claramente em contraditório o ponto 13 a. A vela ou foi ou não foi apagada. Se existe pavio incandescente não foi apagada, nem sequer meio apagada.

10. Acontece que a própria autora alegou que tinha apagado a vela que normalmente e usualmente acendia no estabelecimento, (Art.12 da Petição Inicial.)

11. Apagado só tem um sentido apagar e este facto que foi aceite pela R.

12. Ora a prova por confissão é vinculativa e não pode ser alterado pelo douto tribunal da relação objecto do presente recurso;

13. O douto acórdão violou o disposto no Art.º 607 n.º4 do C. P. Civil uma vez que a matéria confessória está sujeita a prova vinculada Art.º 607 n.º4)

14. Nem tão pouco pode aquele tribunal aditar outro facto para tirar sentido ao primeiro como fez ao mencionar que a vela ficou incandescente, quando fundamenta nas declarações da autora (AA) que claramente referiu que a vela e o pavio ficaram apagados.

15. A resposta dada pelo Tribunal da Relação sobre factos que não foram alegados e que não integram a causa de pedir é excessivo, pelo que esse facto não poderão ser considerados na decisão, sob pena da violação do disposto no Art.º 264 n.º5 e Art.º 615 n.º1 alínea d).

16. Acontece ainda que tendo o A. confessado que apagou a vela em causa não poderá o douto acórdão vir dar por “não escrito” ou melhor retirar o efeito prático deste facto.»


Salvo o devido respeito, não se verifica a apontada contradição na matéria dos pontos 13 e 13.a (correspondendo este ao ponto 14 da fixação final dos factos). Na verdade, no ponto 13, vem referido, além do mais, que, todos os dias, AA apagava as velas quando fechava o estabelecimento comercial e, no ponto seguinte, que no dia 21.12.2013 AA, quando pelas 19h00 encerrou o estabelecimento, extinguiu a chama da vela que se encontrava na prateleira referida em 12., não tendo sido possível apurar se extinguiu totalmente a incandescência do respectivo pavio.

Reporta-se o ponto 13 a uma prática habitual, incidindo o ponto subsequente sobre o que foi possível apurar ter ocorrido no dia 21-12-2013. Dizer-se que AA  extinguiu a chama da vela representou, para a testemunha, como se explica no citado trecho da fundamentação do acórdão (não se olvidando que o Tribunal da Relação ouviu a prova gravada, na sua integralidade, como se deixou registado no aresto) o acto de apagar a vela, fazendo, por certo, o que era comum fazer, em cada dia, com a diferença de que, relativamente a este dia, surgiu a futura necessidade de indagar, com a possível minúcia, sobre o que se passou, dada a deflagração do incêndio, não se logrando apurar, no entanto, se, através daquele acto de apagar a vela  (consubstanciado, naturalmente, no gesto habitual e comum a isso tendente) se extinguiu totalmente a incandescência do pavio.

Observa a Recorrente que a própria Autora alegou que tinha apagado a vela que normalmente e usualmente acendia no estabelecimento (Art.12º da Petição Inicial.)

A A. alegou no art. 12º da p.i. o seguinte:

«Todos os dias, AA acendia as velas que se encontravam na referida prateleira, apagando-as quando fechava o estabelecimento comercial, o que também fez no dia 21/12/2013.»


Uma tal alegação compreende-se no âmbito de uma postura de afastamento de responsabilidade (desde logo, a rejeição de alguma intencionalidade a isso tendente) na produção do incêndio.


No art. 5º da contestação, a R. escreveu o seguinte (com destaque nosso):

«5. Admitem-se, por verdadeiros, os factos vertidos em 1º, 2º, 3º, 9º, 19º, 20º, 23º e 31º da douta P.I., impugnando-se o restante, nos termos do artigo 574º C.P.Civil, por não serem factos pessoais da Ré que deva conhecer e por serem falsos


Verifica-se, assim, que a R. impugnou  o conteúdo do art. 12º da petição inicial (que faz parte do “restante”), apesar de, mais à frente, reportando-se à perícia requerida pela Ré e na qual se concluiu por acção dolosa,  fazer menção a ter AA dito que apagara a vela.

A tese da Ré, apresentada na contestação, é no sentido de que mesmo que a vela ou lamparina tivessem ficado acesas, pelas suas dimensões, sustentação e aplicação do centro de gravidade – vela com 65 cm de diâmetro por 100mm de altura e lamparina 38 mm de diâmetro por 12 mm de altura - nunca tombariam do local onde se encontravam, concluindo que:

«36. Deste modo, estamos perante uma situação que foi recriada a fim de ser interpretada como acidental - já que também um recipiente contendo álcool viria a ser encontrado sobre o pavimento, com marcas de não ter estado sujeito à acção do calor antes de se encontrar naquele local.»


Não se vê na alegação do art. 12º da petição uma confissão, num contexto expositivo que é de sinal contrário (ou seja, de não admissão de responsabilidade na deflagração do incêndio), pois a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art. 352º do C. Civil).

A R. aponta para uma recriação, uma composição dos elementos, para se interpretar a situação como acidental, mas isola, como válido, esse aspecto (podendo até colocar-se a questão de saber se tal não colidirá, vista a inferência, em sentido oposto, que daí se pretende extrair, com o princípio da indivisibilidade da confissão, previsto no art. 360º do C. Civil).

Neste quadro, considera-se que estamos perante matéria que podia, como foi, ser submetida a prova, já que indissociável da demais, no sentido da inteira dimensão dos alegados actos e do cabal apuramento do modo como se deu o incêndio, não se olvidando que a R. começou por impugnar os factos não identificados expressamente (aí se incluindo o art. 12º), por não serem factos de que devesse conhecer e por serem falsos e, por outro, apontou para a dita recriação tendente a sugerir uma ocorrência acidental.

O que o Tribunal a quo fez foi, na sequência da prova produzida, densificar, desdobrar, na exposição factual, a dita alegação, tendo em conta o que ela poderia comportar. Não se tratou, pois, de acrescentar ou substituir um facto por outro ou outros de forma a tirar sentido ao primeiro.

Importa sublinhar que, mesmo no âmbito do CPC de 1961, já há muito se entendia que a matéria alegada (dentro, naturalmente, daquilo que ela albergava) podia, na sequência da actividade instrutória, dar origem a respostas explicativas ou restritivas, não tendo de ser meramente afirmativas ou negativas, quer no tempo do questionário (Ac. do STJ de 26-01-1994, Rel. Mário Cancela, Proc. nº 084348, com sumário publicado em www.dgsi.pt[1], quer, por maioria de razão, no da base instrutória (Ac. do STJ de 17-11-2011, Rel. Pereira da Silva, Proc. 1596/04.3TBAMT. P1.S2, também com sumário publicado em www.dgsi.pt[2].

A propósito da exposição da matéria de facto na sentença cível, no âmbito do novo CPC, escreveu Abrantes Geraldes (in “Sentença Cível”, Janeiro de 2014, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/asentencacivelabrantesgeraldes.pdf), o seguinte:

«A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do anterior CPC.

Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, nos temas de prova se inscreveram factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos convertida num relato natural da realidade fixada.

Já quando porventura se tenha optado por proposições de carácter mais abrangente ou de pendor mais genérico ou conclusivo, mas que permitam delimitar e compreender a matéria de facto que é relevante para a resolução do concreto litígio, poderá justificar-se um maior labor na sua concretização, seguindo um critério funcional que atenda às necessidades do concreto litígio, desde que, como é natural, seja respeitada a correspondência com a prova que foi produzida e bem assim os limites materiais da acção e da defesa.»


Recordar-se-á que, neste caso, quanto a temas de prova, relativamente às circunstâncias do sinistro, se exarou, no momento da prolação do saneador, o seguinte:

«3.o sinistro quanto à sua data, localização, dinâmica, causas e participação criminal (pontos 5 a 15, 19, 30 da PI e 28 a 37, 40, 41 a 46 da contestação)».


Como se vê, aí também figura o ponto 12 da petição inicial.


Entende-se, face ao que se tem vindo a expor, que o Tribunal recorrido não violou o disposto no art. 607º, nº4, do CPC, nem há aqui excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, d), artigo que se refere a vícios de sentença, não se aplicando aos eventuais vícios da apreciação da matéria de facto, conforme se exarou no Ac. do STJ de 23-03-2017, Rel. Tomé Gomes, Proc. 7095/10.7TBMTS.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt:

«I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.

II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.»


O Tribunal recorrido fez constar que:

«Resulta da prova produzida que o reacendimento é possível no caso de não se ter extinguido completamente a incandescência do pavio da vela. Ou seja, extinguindo-se a chama, a incandescência pode permanecer, por breves momentos, sobretudo se o pavio for longo, permitindo o reacendimento da chama.»


O Tribunal a quo reportou-se ao depoimento da testemunha BB, técnica da Polícia Judiciária, que foi a primeira pessoa a deslocar-se ao local e que depôs na audiência de julgamento, referindo, como se relata no acórdão, que a pessoa pensa que apagou a vela e esta manterá alguma incandescência que permite o reacendimento. Igualmente foi ouvida AA, concluindo o Tribunal recorrido, dentro dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do CPC, que se encontra demonstrado, que a lamparina não se encontrava acesa, que AA extinguiu a chama da vela quando procedia ao encerramento do estabelecimento, não se encontrando provado que tenha extinguido totalmente a incandescência do pavio.

Estamos perante prova produzida em audiência de julgamento, com exercício do contraditório e, como se retira da fundamentação do acórdão, com depoimentos díspares dos peritos sobre a questão em apreço, escrevendo-se no acórdão que «a contraprova alcançou lançar a dúvida sobre se o acto descrito como apagar a vela foi idóneo à extinção da incandescência do pavio».

Defende a Recorrente que uma vela ou está apagada ou está acesa, não havendo meio termo, apontando, pois, para uma situação de ilogicidade ou impossibilidade de ocorrência da situação vertida na matéria de facto. Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo extraiu da prova produzida que poderá acontecer que, através do acto de apagar a vela (o que, como é sabido, por norma, equivale a soprar a vela), possa suceder que se extinga a chama (o que, para quem levou a cabo esse acto, dando, em seguida, costas, significa ter apagado a vela), mas persista, por algum tempo, a incandescência do pavio e esta possa, em determinadas circunstâncias, vir a dar origem a um reacendimento.

Não estando demonstrada a evidência científica de que isso não possa acontecer e tendo o Tribunal recorrido retirado uma tal conclusão da prova produzida, não podendo este Tribunal, como tribunal de revista, «intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência» (Ac. do STJ de 30-11-2021, acima citado), não se vê fundamento para dar essa matéria como não provada.


Quanto à restante matéria alterada, a Recorrente refere que o Tribunal recorrido fundamentou a sua posição em possibilidades nunca aventadas e que que não se regem pelos princípios normais da causalidade adequada nem tão pouco em raciocínios ponderados do “bonus pater familiae”.

Alude a «raciocínios ilógicos e que não corresponderam à transparência dos depoimentos das testemunhas e que não são fundamentados ou justificados e elaborando em presunções judiciais todas assentes em pressupostos e factos que para além de não corresponderem à normalidade dos factos, assentam em teses mirabolantes agora urdidas pelo tribunal da relação».

Continua, dizendo que o Tribunal da Relação o fez em contradição com os relatórios juntos aos autos e em contraditório com a lógica inerente à normalidade das situações, debruçando-se, em seguida, sobre o que se escreveu no acórdão, pela forma constante das conclusões 27ª a 40ª.

Salvo sempre o devido respeito, o que a Recorrente faz é, acima de tudo, analisar depoimentos testemunhais (que não foram ouvidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas pelo Tribunal da Relação, dentro das competências que lhe assistem), para concluir que a Relação avaliou mal as provas, socorrendo-se, na sua opinião, «não só de factos que não foram alegados como referências que não se encontrava documentadas como refere, para alterar a prova assente e provada, bem como de ilações que ofendem a lógica transversal ao bonus pater familiae, colocando completamente em causa o princípio da imediação da prova sem que tenha fundamentado em concreto a sua decisão», considerando que deve este Supremo Tribunal «anular a decisão do douto aresto quanto alteração da matéria de facto suprarreferida por exceder os poderes da relação colocando em hipótese factos novos que não constam e não fazem parte dos autos para pôr em crise toda a matéria dada como assente que conduzia à absolvição da R., em concreto nomeadamente os factos alterados.»


Não se subscrevem as conclusões da Recorrente, pois entende-se que a decisão da matéria de facto inserta no acórdão recorrido está devidamente fundamentada, tendo a Relação, face à prova produzida, maxime a resultante da audição de quem elaborou os relatórios periciais, pondo em confronto as explicações avançadas relativamente às possíveis causas do sinistro, para daí aferir da subsistência dos factos provados tal como vinham da 1ª Instância, tendo, em consequência disso, introduzido as alterações tidas por ajustadas ao que emanou do labor probatório.

A exploração de eventuais causas do sinistro, de acordo com depoimentos prestados, como a de, por exemplo, ele poder ter sido causado por uma lâmpada, não significa a introdução de factos novos no processo, tratando-se tão-só, no âmbito do exame probatório a que a Relação tem de proceder, de sopesar a solidez dos factos alegados e provados relativamente à origem do evento.

Importa, ainda, recordar o que se dispõe no nº 4 do art. 662º do CPC, ou seja, que não cabe recurso para o STJ das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 do art. 662º do CPC, a aplicar quando não esteja em causa a violação de regras do direito substantivo ou adjectivo (como as já enunciadas) e redunde o recurso, afinal, na apreciação do mérito da análise probatória realizada.


III.2.

A Recorrente defende que compete à A. fazer prova do enquadramento do sinistro nas condições gerais da apólice.

Observa que a cláusula geral que define o incêndio é clara no sentido de que o incêndio seja acidental.

Acrescenta que da matéria assente pelo aresto em recurso não resulta que o evento tenha sido acidental, mas antes provocado por acção humana, uma vez que se iniciou na tábua de passar a ferro onde não existia qualquer fonte de calor e, mesmo que se diga que não se provou que foi causado por acção humana, também não se provou que foi causado por acidente; logo, não está provado que se deva enquadrar na apólice em causa, porque não se apurou a causa e a mesma é inconclusiva, devendo a R. ser absolvida.

Chamando a atenção para o voto de vencida e nele se apoiando, considera que competia à A. fazer prova de que o incêndio de que foi “vítima” se ficou a dever a um acidente e não a acção humana, de forma a estarem preenchidos os requisitos da apólice em causa, pois quem invoca um facto e quer aproveitar-se dele é que o tem de demonstrar (art.º 342 do C. Civil).

Vejamos.

Nas Condições Gerais da apólice, no art. 1º, sob a epígrafe «Definições», vem definido incêndio como combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios.

No art. 3º, al. h), estabelece-se que se excluem da garantia obrigatória do seguro os danos que derivem, directa ou indirectamente, de: (…) h) Actos ou omissões dolosas do Tomador do seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis.

No acórdão recorrido, articulando estas normas entre si e cotejando-as com o regime legal geral, emergente do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril, escreve-se que:

«(…) face ao clausulado entendemos que a definição de incêndio, na vertente da  delimitação de sentido da expressão “combustão acidental” surge ambígua no confronto com o factor de exclusão “factos dolosos do segurado ou de pessoa por quem seja civilmente responsável”.

Por outras palavras.

Se acidental significa não intencional, ou seja, não devida a acto humano dirigido à sua produção, aquela exclusão seria desnecessária.

Por isso, entendemos que ao ver afirmada aquela exclusão numa cláusula do contrato, um declaratário normal sempre entenderia que o seguro abrangia todas as situações em que o incêndio se devesse a causas estranhas a dolo do segurado ou de pessoas por quem fosse civilmente responsável.

Nesses termos, cumpre interpretá-la assim visto o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do CC.

É também o que manda o artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro aplicável às cláusulas contratuais gerais como as que apreciamos.

O mesmo resultado se atinge considerando que, na dúvida, a ambiguidade de um clausulado pré-determinado convoca a interpretação mais favorável para o aderente nos termos do artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro.

[…]

Em suma, entendemos que a interpretação conjunta das duas cláusulas determina que o sinistro de incêndio objecto de cobertura é aquele em que o incêndio não se deve a acto doloso do tomador do seguro, do segurado ou de pessoa por quem sejam civilmente responsáveis.»


Relativamente ao ónus da prova, tendo, designadamente, em conta a doutrina de que lançou mão, o Tribunal a quo considerou, entre o mais, o seguinte:

«(…)  no seguro de danos que tem por objecto uma coisa, a indemnização é devida se ocorrer o sinistro coberto contratualmente, a saber, o evento aleatório que causou a danificação ou destruição da coisa. Ao tomador do seguro incumbe provar que o evento teve lugar, que se verificaram danos na coisa e que o evento foi a causa deles.

E explicite-se que evento aleatório não significa evento causado por razões diversas da acção humana dirigida intencionalmente a produzi-lo. Evento aleatório significa evento sujeita à alea da sua ocorrência ou não ocorrência por contraposição de evento necessário, ou seja, cuja ocorrência é certa.

O contrato de seguro é aleatório porque as partes se sujeitam a uma álea: a possibilidade de ganhar ou perder – a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto (cf. José Vasques in Contrato de Seguro, Coimbra, 1999, p. 104-105)

A lei prevê a verificação de actos dolosos dirigidos à produção do evento (artigo 46.º supra), estabelecendo que o segurador não é obrigado a efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado.

Ou seja, o segurador pode recusar a indemnização quando o sinistro seja causado pelo tomador do seguro ou pelo segurado. Mas essa é uma pretensão sua estabelecida no escalonamento de anomalias acima referenciado. E sendo-o, cabe-lhe a prova dos factos de que se conclui a sua verificação.

E se este é o que resulta do quadro legal, cremos ser também o que decorre do programa contratual concretamente estabelecido (como enunciámos supra), que o princípio da liberdade contratual - artigo 405.º do CC - impõe como normatividade a atender.

É o que resulta das cláusulas que antes se analisaram quanto ao contrato celebrado entre as partes na interpretação que considerámos a correcta. Também dele é manifesto o estabelecimento de uma normalidade – ocorrência do evento e dos danos – e de uma excepção impeditiva dos seus efeitos – comportamento doloso.

Assim é que este mesmo comportamento é previsto enquanto exclusão da obrigação de indemnizar. As partes consideraram-no como tal ao contratarem: a obrigação constitui-se pelo evento causador de danos e é excluída pelo dolo na produção do evento.

Em consequência, consideramos que no caso vertente os factos constitutivos da pretensão são os que se referem à ocorrência do incêndio e dos danos e à causalidade entre um e os outros, sendo que o dolo do segurado (ou de pessoa por quem seja civilmente responsável) constitui facto impeditivo cuja alegação e prova compete à Ré seguradora.

Concluímos assim, simplificando, que, para haver a indemnização, à Autora incumbia provar o incêndio e danos, e à Ré, para a recusar, incumbia provar o comportamento doloso.

Está provado o evento e danos. Não está provado o comportamento doloso. Aqui intervém a doutrina dos efeitos da falta de prova - o non liquet quanto ao facto impõe um liquet na decisão contra a parte a quem a prova do facto incumbia – e impõe-se a consideração das questões relativas aos standards de prova ou modelos de constatação, a que aludimos, os quais permitem objectivar o grau de dúvida/certeza da prova e da contra-prova nos termos dos artigos 342.º e 346.º ambos do Código Civil.

Este o quadro que define a apreciação da matéria de facto na parte em que a decisão foi impugnada.»


Estabelece o art. 342º, nºs 1 e 2, do C. Civil:

«1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.»


Concorda-se com o exarado no acórdão recorrido quando nele se diz que ao tomador do seguro incumbe provar que o evento teve lugar, que se verificaram danos na coisa e que aquele evento foi a causa deles (tratando-se dos factos constitutivos do seu direito de indemnização, assente na ocorrência – no caso, o incêndio – que vem prevista no contrato de seguro), de acordo com o disposto no nº 1 do art. 342º do C. Civil, recaindo sobre a seguradora o ónus de provar que o incêndio se deveu a conduta dolosa, causa de exclusão da sua responsabilidade, o mesmo é dizer,   facto impeditivo do direito invocado, nos termos do nº2 do mesmo artigo.

Foi esse o entendimento assumido no Ac. do STJ de 21-05-2020, Rel. Maria do Rosário Morgado, Proc. nº 15910/17.8T8PRT.P1.S1, publicado em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:15910.17.8T8PRT.P1.S1/ :

«II - Atendendo às regras de repartição do ónus da prova, cabe ao lesado alegar e provar a ocorrência do incêndio e os danos sofridos, como factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1, do CC), recaindo sobre a seguradora a prova de que o incêndio não teria tido causa acidental, ou seja dos factos ou circunstâncias excludentes do risco, nos termos já acima referidos (art. 342.º, n.º 2, do CC).»


Tratou-se de um caso em que a 1ª instância entendeu que impendia sobre a autora o ónus de demonstrar que o incêndio ocorreu por «combustão acidental», prova que não logrou fazer, e, por essa razão, absolveu a ré do pedido, mas o Tribunal da Relação do Porto entendeu diversamente e condenou a ré seguradora, o que foi confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, para além da determinação do ónus da prova nos descritos termos, também concluiu que: 

«I - A expressão “combustão acidental” ínsita na definição de incêndio constante do art. 9.º das Condições Gerais da Apólice, deve ser interpretada no sentido de o contrato de seguro cobrir o risco de incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis.»


Chegou-se a essa conclusão lançando mão das regras de interpretação (maxime do art. 236º, nº1, do C. Civil e do art. 11º do DL nº 446/85 (LCCG)), pondo em confronto aquela expressão ambígua (combustão acidental) com a cláusula em que se afasta a responsabilidade da Seguradora por actos ou omissões dolosas do Tomador do seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis.

Por outro lado, no Ac. do STJ de 09-06-2021, Rel. Barateiro Martins, Proc. 933/15.0T8AVR.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, entendeu-se que:

«I - As CCG inseridas em contratos de seguros são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos, o que significa o princípio da prevalência da vontade real do declarante e que, desconhecendo-se tal vontade real e não existindo mútuo consenso interpretativo, funciona o critério objetivo da impressão destinatário.

II - Sendo a “impressão do declaratário” a considerar a do tomador médio do seguro, sem especiais conhecimentos jurídicos, que lê as condições gerais com atenção e que razoavelmente as aprecia, devendo ser afastadas interpretações que conduzam a soluções desprovidas de racionalidade ou que retirem todo o efeito útil a uma cláusula suscetível de 2 sentidos.

III - Assim, havendo uma cláusula que define incêndio como “combustão acidental” e outra cláusula que exclui do objeto do seguro os danos “que derivem, direta ou indiretamente, de (…) atos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis” a impressão dum declaratário normal/médio tem de ser que o risco de incêndio contratado não cobre incêndios causados dolosamente.

IV - Efetivamente, um tomador médio, na articulação/interpretação de tais diversas cláusulas contratuais, não pode perder de vista que o risco coberto é a “combustão acidental” e, por conseguinte, não pode/deve extrair que, referindo-se uma “cláusula de exclusão” tão só aos incêndios “deriv[ados], direta ou indiretamente, de (…) atos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis”, ficam incluídos/cobertos os incêndios causados dolosamente por outra qualquer pessoa (identificada ou não identificada).

V - Se se considerasse, por interpretação, que a cobertura do risco de incêndio compreende todo o incêndio para o qual o segurado não tenha dolosamente contribuído, então o termo “acidental”, constante da definição de “incêndio”, perderia todo o sentido útil e toda a racionalidade, na “economia” da delimitação do âmbito da cobertura em causa, ou seja, a utilidade normativa da “cláusula de exclusão” em causa não pode ir ao ponto de retirar utilidade normativa à própria definição do risco coberto.

VI - Assim, a articulação entre as duas cláusulas apenas permite dizer que o risco de incêndio cobre todos os incêndios comprovadamente acidentais e ainda aqueles cuja causa/origem não se haja logrado determinar, porém, todos aqueles que comprovadamente foram causados dolosamente (ainda que os autores sejam desconhecidos) não se podem considerar cobertos por um tal seguro de incêndio.

VII - Interpretação esta que não viola o princípio geral da boa fé (constante do art. 15.º e ss. do DL n.º 446/85), uma vez que não se pode dizer que tal contrato de seguro fique esvaziado no seu objeto/risco, na medida em que continuam cobertos todos os incêndios devidos a caso fortuito, todos os incêndios causados negligentemente e, inclusivamente, todos aqueles incêndios cuja causa não se logrou apurar (ou seja, não fica preenchida a previsão da al. b) do art. 18.º do DL n.º 446/85).»


Como se vê, neste acórdão considerou-se que da articulação das duas cláusulas (a que define o incêndio e a de exclusão da responsabilidade nos termos sobreditos) deve extrair-se que o risco de incêndio contratado não cobre incêndios causados dolosamente e aqui se incluem os que possa ser imputados, com dolo, por terceiros (e não apenas ao tomador do seguro, segurado ou pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis), concluindo que continuam cobertos todos os incêndios devidos a caso fortuito, todos os incêndios causados negligentemente e, inclusivamente, todos aqueles incêndios cuja causa não se logrou apurar.

Há que dizer que, por referência a estes dois acórdãos, o primeiro como acórdão-fundamento e o segundo como recorrido, foi proferido, em 19-10-2022, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, ainda não transitado, que confirmou o acórdão recorrido e cujo segmento uniformizador é do seguinte teor:

A cláusula contratual geral inserta em contrato de seguro, mesmo facultativo, em que se define o sinistro “Incêndio” como “combustão acidental”, não cobre, no seu âmbito e alcance, o incêndio causado dolosamente por terceiro, ainda que não seja identificado o seu autor”.(https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/10/pleno_civel_dec_19out.pdf ):

Não se exclui, pois, a responsabilidade da Seguradora por incêndios cuja causa não se logrou apurar.

Destes acórdãos se extrai que, não se provando que o incêndio (com os contornos definidos) tenha sido causado por dolo, prova que compete à Seguradora, não há exclusão da responsabilidade desta.

No caso que nos ocupa, defende a Recorrente que decorre da matéria assente que o incêndio se ficou a dever ao facto de alguém ter ateado fogo em cima de uma tábua de passar a ferro.

O Tribunal a quo concluiu que não está provado um comportamento doloso, considerando que:

«Tendo em atenção as diversas contradições, as possibilidades que se enunciaram quanto ao início do incêndio, e as conclusões antagónicas das perícias entendemos que se verifica uma situação de dúvida quanto a actuação dolosa como a única explicação para o início do incêndio. Mas, mais do que isso, porque não seria esse o standard de prova a aplicar, considerando a exclusão em sede civil do padrão evidence beyond a reasonable doubt, o conjunto de possibilidades e de hipóteses exploradas e por explorar não permite concluir sequer que a probabilidade da actuação dolosa é maior do que a de acidente e, menos ainda, padrão de constatação adequado no caso por uma situação de prova clara e convincente.

Em suma, concluímos que não está provado que o incêndio apenas pode ter origem em acção humana dolosa. A conclusão torna inútil a ponderação da atribuição dessa acção à esfera da Autora.»


Percorrendo a matéria de facto, não se vê que se tenha apurado a origem do incêndio Provou-se que teve início em cima de uma tábua de engomar (zona de ignição), onde se encontravam depositadas inúmeras peças de roupa, dispostas em três amontoados separados entre si. Mas uma coisa é saber onde o incêndio teve o seu início, outra determinar a sua causa e, designadamente, se a sua origem é dolosa (quer por parte de quem vem elencado na dita cláusula de exclusão, quer por terceiros, ainda que desconhecidos).

Discorda-se de que, por aquilo que se provou, se esteja perante um incêndio de fogo posto. Para tanto, era necessário, desde logo, apurar a origem do incêndio, o que, como se disse, não se conseguiu, não havendo matéria que sustente uma afirmação daquele teor.

A própria R. referiu na sua contestação, a dado passo, o seguinte:

«Acontece que resulta de todas as evidências supra referidas não se poder concluir, no mínimo, qual a origem do acidente, pelo que não se pode concluir que tenha sido acidental e consequentemente enquadrável na apólice em causa».


O problema é que a inconclusividade relativamente a determinada matéria funciona em desfavor de quem tenha o ónus da prova.

Relembre-se que o Tribunal recorrido deu como não provados os pontos 18 e 21 da matéria de facto da sentença (acima citados), justificando-se repetir aqui o teor do ponto 21 (decisivo, naturalmente, na revogada decisão da 1ª instância):

«No estabelecimento e no período que vai da hora de fecho referida em 13. e a de abertura mencionada em 7. não ocorreu qualquer curto-circuito...ou qualquer outra circunstância suscetível de determinar, de forma acidental, a ignição do incêndio, o qual apenas se justifica pela exposição do material combustível a uma fonte direta de fogo por via da ação de alguém que tenha tido acesso ao estabelecimento em causa e, considerando o que se refere em 19., a mando, em representação ou com o conhecimento e anuência da A. (artigos 40 e 41 da contestação)»


Os factos subsistentes, apesar das circunstâncias enunciadas em 17 a 20  da matéria adquirida, não se apresentam como suficientes para se concluir que o incêndio se deveu a comportamento doloso, sendo de subscrever o entendimento, nesse sentido, do Tribunal a quo, face a um conjunto de possibilidades e hipóteses que não obtiveram uma resposta definitiva.

Compare-se com a situação ocorrida no mencionado Proc. 933/15 (o acórdão recorrido, sobre o qual recaiu o dito AUJ), em que se deu como provado que:

«30. O incêndio teve origem numa ignição induzida com utilização de produto combustível no exterior do edifício e por baixo de uma porta lateral, que potenciou a combustão na sua fase inicial, e a sua propagação generalizada ao edifício, com elevada carga térmica considerando a predominância de materiais facilmente combustíveis, como a madeira.»


Entendeu-se, face a essa factualidade – que, ao contrário do que ocorre nos presentes autos, não deixava margem para dúvidas (tratando-se de uma “ignição induzida com utilização de produto combustível no exterior do edifício e por baixo de uma porta lateral”) – , que o incêndio foi doloso e, no acórdão uniformizador, o que estava em causa era saber se os actos dolosos de incêndio praticados por terceiros são ou não abrangidos pelo contrato de seguro (obrigatório ou facultativo), concluindo-se nos descritos termos.


Importa referir que, na fundamentação do acórdão proferido no Proc. 15910/17 (o acórdão-fundamento), se exarou que:

«(…) como causa de exclusão geral da responsabilidade contratual da ré apenas se preveem os atos ou omissões dolosas do tomador, segurado ou pessoas por quem sejam civilmente responsáveis (art. 7º, nº1, al. e), das Condições Gerais), o que, com suficiente segurança e certeza, permite concluir que, salvo naquelas situações, a responsabilidade assumida pela seguradora cobrirá todos os casos em que o segurado, por si ou por quem tem responsabilidade civil, não haja contribuído para o incêndio.»


O AUJ alargou o espectro a actuações dolosas de terceiros no sentido do afastamento da “combustão acidental” e, em consequência, da responsabilidade da Seguradora.

Daí que, não se apurando, como in casu, matéria que permita concluir que se esteja perante um evento dolosamente provocado (prova que cabia à Seguradora fazer), não se coloca o problema de aferir da relevância de acto de terceiro (ainda que desconhecido), não havendo, por isso, que esperar pela consolidação do AUJ.

É de concluir, tal como no acórdão recorrido, que, provada que foi, pela A., a ocorrência do acidente e dos danos dele resultantes, não resultaram apurados factos capazes de excluir a responsabilidade da Ré Seguradora, ao contrário do que é por esta defendido.


Improcede a revista.


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Sumário (da responsabilidade do relator)

1. Com o CPC-2013 ocorreu um alargamento dos poderes da Relação no capítulo da matéria de facto. Tem-se vindo a vincar, cada vez mais (tratando-se de um caminho iniciado com a Reforma de 1995/96), que a Relação deve formar o seu juízo autónomo, de acordo com os elementos probatórios disponíveis, assumindo-se como um tribunal de instância e devendo, assim, introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivos para tal.

2. Não é vedado, na sequência da prova produzida, densificar ou desdobrar, na exposição factual, certos pontos da matéria invocada nos articulados, desde que tal se contenha nos limites alegados, não equivalendo isso a acrescentar ou substituir um facto por outro ou outros.

3. Não há excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, d), do CPC, artigo que se refere a vícios de sentença, quando esteja em causa a consideração de algum facto que não devesse ser atendido, estando-se, aí, no domínio do erro de julgamento e não do conhecimento de questões a resolver (essas, sim, enquadráveis naquele preceito).

4. No capítulo da sindicância do uso dos poderes pelo Tribunal da Relação, relativamente à reapreciação da decisão de facto, o Supremo Tribunal de Justiça pode verificar se foram observadas as directrizes prescritas no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, mas não pode intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem na aferição da sua consistência.

5. A definição de incêndio como combustão acidental (entre o mais) não pode deixar de ser articulada com uma cláusula em que se prevê a exclusão da garantia do seguro relativamente a actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis, pressupondo a demonstração de um comportamento doloso para o afastamento da responsabilidade da seguradora.

6. Atendendo às regras de repartição do ónus da prova, cabe ao lesado alegar e provar a ocorrência do incêndio e os danos sofridos, como factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1, do C. Civil), recaindo sobre a seguradora a prova de que o incêndio não teria tido causa acidental, por se tratar se matéria impeditiva do direito invocado (art. 342.º, n.º 2, do mesmo Código).

7. Assim, não se apurando a causa de um incêndio, deve a consequência da ausência de prova consistente funcionar contra quem tinha o ónus de demonstrar que o incêndio não foi acidental, ou seja, contra a seguradora.



IV


Pelo exposto, nega-se provimento à revista.

- Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 10-11-2022


Tibério Nunes da Silva (Relator)

Nuno Ataíde das Neves

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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[1] «As respostas aos quesitos não têm de ser necessariamente afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas desde que se mantenham dentro da matéria articulada.»
[2] «IV. As respostas ao carreado para a base instrutória, não têm de ser, necessariamente, afirmativas ou negativas, antes, outrossim, restritivas ou explicativas, sem mácula, podendo sê-lo, as últimas desde que não constituam via para entrada no processo de factos essenciais da acção ou da excepção, não alegados, ao juiz, o qual não está obrigado a ater-se aos termos formais da(s) pergunta(s), vedado não sendo usar a explicação para fazer ingressar no processo os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa, como dispõe a 2.ª parte do n.º 2 do art.º 264.º do C.P.C., em ordem a dar à facticidade provada o enquadramento necessário à sua cabal compreensão.»