Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3813/13.TBGDM.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES
Descritores: INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
PROVA TESTEMUNHAL
SOCIEDADE COMERCIAL
RESPONSABILIDADE
LIQUIDATÁRIO
PRESCRIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
MEIOS DE PROVA
CREDOR
CRÉDITO
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE / PRESCRIÇÃO DE DIREITOS DE CRÉDITO CONTRA A SOCIEDADE.
Doutrina:
- Aníbal de Castro, A caducidade, 28.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 445-446.
- Mota Pinto, C.J, 1985, 3.º, 9.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 364.º, 393.º, N.º 3, 934.º, 498.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 63.º, N.º1, 158.º, 163.º, 174.º, N.º3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, N.ºS 1 E 2, ALS. A) E B), 674.º, N.º3, 682.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13/11/1986, BMJ, 361.º, 496;
-DE 28/01/2003, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 1/07/2008, PROCESSO N.º 191/08, 1.ª SECÇÃO;
-DE 14/06/2011, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 19/06/2012, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Todo o documento é susceptível de interpretação e é admissível prova testemunhal, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 393.º do CC, com o objectivo de determinar o sentido que as partes atribuíram a determinada cláusula inserta num documento, ou seja, por excepção ao disposto no art. 394.º do CC, é admissível prova testemunhal com vista a interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental.

II - Na presente acção pretendem os autores, apoiados no que está proposto no art. 158.º, do CSC, que os réus os indemnizem pela circunstância de, sendo liquidatários da sociedade da “GG, Lda.”, não terem estes prevenido os interesses dos seus credores (demandantes), prestando uma caução que garantisse o pagamento desse crédito se viesse a ser, como veio, reconhecido por sentença e, ao invés, distribuindo património pelos ex-sócios.

III - Desta feita, não podendo beneficiar os réus do prazo de prescrição de cinco anos, concedido pelo disposto no art. 174.º, n.º 3, do CSC, é aplicável ao caso sub judice a regra geral do prazo de três anos.

IV - Tendo presentes as regras do ónus da prova, constata-se que os réus não demonstraram, como lhes competia, que os autores, mais de três anos antes da propositura da acção, tinham conhecimento dos factos que integrariam a prescrição do direito invocado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




AA e BB, com os sinais dos autos, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, DD, EE e FF, identificados nos autos, pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem aos autores a quantia de 30.925,47 euros, acrescida de juros de mora à taxa de 5% desde Setembro de 2007 até integral pagamento, juros esses que, nesta data, perfazem o montante de 9.409 euros, ou, se assim e não entender, acrescida de juros à taxa de 4% também desde Setembro de 2007 até integral pagamento, juros esses que, nesta data, perfazem o montante de 7.527 euros.


Alegam, em síntese, que os réus foram sócios liquidatários de uma sociedade comercial por quotas, que foi dissolvida, liquidada e encerrada, tendo distribuído entre si o activo que existia, sem acautelarem o pagamento da quantia em que a dita sociedade poderia vir a ser condenada no âmbito de uma acção judicial que, à data da liquidação, estava pendente, e em que os também aí autores demandavam a então sociedade ré.

Afirmam, por fim que com tal actuação os autores se viram impedidos de cobrar o seu crédito contra a dita sociedade, já que, à data em que transitou em julgado a respectiva sentença condenatória, a mesma sociedade já estava liquidada, encerrada e sem património.


Citados, os réus contestaram, invocando a prescrição da eventual obrigação de indemnizar, nos termos do art. 498.º do Código Civil e no mais, impugnando a factualidade alegada pelos autores, nomeadamente que tenha sido efectivamente partilhado algum activo entre os sócios liquidatários.


Houve resposta dos demandantes.


Saneado e instruído o processo, foi realizada a audiência de discussão e julgamento.

Após o julgamento, proferiu-se sentença na qual se decidiu (dispositivo):

“Pelo exposto, julgo a acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência, absolvo os RR. do pedido.

Condeno os AA. nas custas do processo.”.

                                              

Inconformados, apelaram os autores desta sentença para a Relação do Porto, que, por acórdão de 16.11.2015 (cfr. fls. 416 a 433), julgando procedente a apelação, revogou decisão recorrida e, em consequência, julgou a acção procedente, por provada, e condenou os réus, solidariamente, a pagarem aos autores a quantia de € 30.925,47 (trinta mil novecentos e vinte e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. 


Inconformado, recorre agora para este Supremo Tribunal o réu FF, que alegou e concluiu pelo modo seguinte:

1. Estatui o art. 674 n.º 1 do CPC que constituem fundamentos da revista:

a) A violação da lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável;

b) A violação ou errada aplicação da lei de processo;

c) As nulidades previstas nos artigos 615° e 666°;

2. Consignando-se no n.º 3 do citado preceito legal que, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

3. No caso dos autos a modificação da decisão sobre a matéria de facto, nos concretos em que a Relação a operou, configura erro manifesto de apreciação da prova resultante da violação de regras de direito probatório material, assim se reconduzindo a um efectivo erro de direito.

4. A prova de uma deliberação social não é susceptível de ser feita com recurso à prova testemunhal, mas tão só com recurso ao concreto documento (ata da sociedade) onde tal deliberação se mostra vertida, ou em alternativa por confissão.

5. A prova de que em Fevereiro de 2004, em Assembleia Geral, os sócios da GG deliberaram entre si distribuir o saldo de caixa e as contas bancárias de que a sociedade era titular só poderia ser feita através da respectiva ata onde essa deliberação se mostrasse reproduzida.

6. De acordo com o entendimento probatório da Relação tal deliberação mostrar-se-á vertida na acta n.º 33 da sociedade, mas resulta claro desse documento que a referida acta não está completa, não se mostra assinada, nem está certificada pela Conservatória como sendo cópia fiel do original.

7. Além disso, nenhum dos Réus confessou ter assinado a mencionada acta, tendo todos eles negado que houvessem recebido qualquer valor aquando da liquidação do acervo social, pelo que o escrito naquele documento não terá correspondência com a realidade.

8. Uma acta é um documento escrito que prova o modo como foi tomada uma deliberação social, isto é a vontade dos sócios manifestada em assembleia geral.

9. Dispõe o art.º 63° do CSC que "As deliberações dos sócios só podem ser provadas pelas actas das assembleias ou quando sejam admitidas deliberações por escrito, pelos documentos donde elas constem."

10. A factualidade dada como provada pela Relação sob os itens 5 e 6 do douto acórdão recorrido, apenas poderia ser provada por uma das seguintes formas previstas na lei:

 - Ou pela exibição do documento exigido, no caso a acta, lavrada no respectivo livro nos termos do art. 63° n.º 1 do CSC;

 - Ou pela confissão expressa, judicial ou extra -judicial, nos termos do art.º 364° do C.Civil.

11. No caso dos autos, nem a acta foi exibida, nem o facto foi confessado pelos Réus.

12. Não se colhe dos autos, nos temos legalmente exigidos em termos de prova aceite, a existência de qualquer deliberação tomada pelos sócios da GG no sentido seja da distribuição dos saldos de caixa e contas bancárias de que a sociedade fosse titular, seja da efectiva partilha do acervo patrimonial, e não se colhendo a prova da existência de tal deliberação, sem ela também não é possível fazer a prova da partilha do acervo societário, ou mesmo a prova da sua real existência.

13. Além de inexistir confissão dos Réus quanto a tal factualidade e de inexistirem nos autos qualquer outro instrumento ou meio probatório que demonstre a existência e subsequente distribuição de activos entre os sócios, nenhuma das testemunhas inquiridas e, maxime a testemunha HH, referiu que materialmente a sociedade detivesse aquando da deliberação de dissolução e partilha, quaisquer saldos de caixa ou depósitos bancários.

14. Nenhuma prova foi feita nem quanto à efectiva distribuição de qualquer montante, nem quanto ao efectivo conhecimento de todos os sócios da pendência de acção proposta pelos Autores contra a GG, sendo certo que o conhecimento dessa acção apenas foi assumido pelo Réu EE, que em momento algum informou ter dado conhecimento da mesma aos demais co-réus e, no que aqui importa ao ora Recorrente.

15. Estatui o art. 158.º n.º 1 do CSC sob a epígrafe - Responsabilidade dos liquidatários para com os credores sociais - que "Os liquidatários que, com culpa, nos documentos apresentados à assembleia para os efeitos do artigo anterior indicarem falsamente que os direitos de todos os credores da sociedade estão satisfeitos ou acautelados, nos termos desta lei, são pessoalmente responsáveis, se a partilha se efectivar, para com os credores cujos direitos não tenham sido satisfeitos ou acautelados ".

16. No caso concreto, entende-se que os Recorridos não lograram provar, nem que os Recorrentes, enquanto liquidatários da sociedade, soubessem que os direitos dos credores sociais perante a sociedade a liquidar não estavam acautelados, e concretamente que todos e cada um deles tivesse conhecimento da acção judicial interposta pelos Recorridos contra a sociedade, nem que tenha havido partilha entre estes de qualquer bem que constituísse o acervo patrimonial da mesma; ónus da prova que, num e noutro caso lhes competia, nos termos do disposto no art. 342° n° 1 do C. Civil.

17. A responsabilidade dos liquidatários perante os credores sociais, nos termos definidos no art. 158° do CSC, tem natureza subjectiva.

18. Dispõe o art. 498° n.º 1 do CC que, o direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.

19. Como os próprios Autores alegam no n.º 3 da P.I., pelo menos, aquando do trânsito em julgado da sentença proferida contra a sociedade GG, facto ocorrido em 05/07/2007, aqueles tiveram conhecimento do direito que lhes competia, podendo, e devendo exercer o seu direito de executar a respectiva sentença, pelo que o exercício de eventual direito de indemnização mostra-se prescrito pelo decurso do prazo de 3 anos.

20. Tudo sem prejuízo, de os direitos dos credores exercíveis contra os antigos sócios, nos termos do art. 163° do CSC, prescreverem no prazo de 5 anos a contar do registo de extinção da sociedade – cfr. art. 174° n.º 3 do CSC, sendo certo que, também nesta parte, já decorreram bem mais de cinco anos sobre a data do registo de encerramento e extinção da sociedade, facto ocorrido em 2004.

22. E tudo, sem prejuízo e, sem conceder, de nos termos do art. 163.º n.º 1 do CSC, eventual responsabilidade dos sócios liquidatários, não poder ser superior ao montante que cada um deles recebeu na partilha.

23. O douto acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 63°,163° e 174° do CSC, 342° n.º 1, 364° n.º 1 e 498° n.º 1 do CC e bem assim o disposto no art. 607 n° 5 do C.P.Civil.

Termina pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e se absolva o recorrente dos pedidos contra si formulados.


Contra-alegaram os recorridos pedindo a manutenção do julgado.

    

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


A Relação considerou provados os factos seguintes:

1. Por decisão transitada em julgado em 5/7/2007, proferida na acção ordinária n.º 1581/2001 que correu termos no 2º Juízo Cível de Gondomar, a GG, Sociedade Imobiliária, Lda., com sede em …, Penafiel foi condenada a pagar aos Autores a quantia de 30.925,47 euros.

2. Na pendência dessa acção, os sócios da mesma - os aqui RR - deliberaram, por unanimidade, em 31 de Dezembro de 2003, em Assembleia geral que levaram a cabo nessa data, “Uma vez que a sociedade praticamente não tem qualquer actividade há cerca de cinco anos, e não tem activo nem passivo, propôs o Sr. Presidente que se promovessem as diligências necessárias para a sua liquidação e dissolução, tendo as contas sido aprovadas nesta data.” - cfr. certidão de fls. 247 que aqui se dá por reproduzida.

3. Na sequência dessa deliberação, mediante a apresentação nº 2 de 2004/02/04, foi lavrado o registo, provisório por dúvidas da dissolução da sociedade e encerramento da liquidação, inscrição essa convertida em definitiva mediante a Ap. nº 5 de 2004/03/31 e publicitada em Diário da República.

4. A GG ou os seus sócios liquidatários não informaram o processo referido em 1º dos factos descritos em 3. e 4., tendo a mesma interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto em data posterior aos mesmos.

5. Em 4 de Fevereiro de 2004, em Assembleia Geral (de que foi lavrada a acta nº 33) os sócios da GG deliberaram distribuir entre si o saldo de caixa e de contas bancárias de que era titular a GG, cujo valor global era superior ao valor em que a GG foi condenada no processo referido em 1.

6. Aquando da deliberação de dissolução e aquando da posterior liquidação da GG, Lda., os réus não acautelaram o pagamento da eventual dívida da GG que viesse a ser reconhecida naquele processo judicial referido em 1), designadamente através da prestação de uma caução.

7. Todos os réus conheciam a pendência daquela acção e a possibilidade de daí advir a condenação da GG, L.da, em valor igual ao pedido, e omitiram, naquelas assembleias gerais, qualquer referência a esse facto e agiram como se a sociedade não tivesse acções pendentes contra si.

8. Os autores viram-se impossibilitados de cobrar coercivamente o seu crédito, na medida em que, para além do que foi distribuído pelos réus, nenhum património da GG, L.da, sobejou que permitisse que a dívida em causa fosse solvida. 



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Nesta ação os autores pretendem reaver dos réus a quantia de € 30.925,47.

Fundamentam este seu pedido na circunstância de, tendo os réus sido sócios liquidatários de especificada sociedade comercial por quotas, a qual foi dissolvida, liquidada e encerrada, foi o seu activo existente distribuído entre si sem terem acautelado o pagamento da quantia em que a dita sociedade poderia vir a ser condenada no âmbito de uma acção judicial que à data da liquidação estava pendente e, na qual, os aqui autores demandavam a então sociedade ré.


Com esta atitude viram-se os demandantes impedidos de cobrar o seu crédito contra a referida sociedade, já que, à data em que a respectiva sentença judicial condenatória transitou em julgado, aquela já estava liquidada, encerrada e sem património


Invocaram os réus em seu favor a prescrição do pedido de indemnização formulado pelos autores (art.º 498.º do C.Civil) e, ainda, que tivesse sido partilhado qualquer activo societário entre os sócios liquidatários.

Neste contexto factual os autores afirmaram que, só em 2013 tiveram conhecimento da liquidação e dissolução da sociedade “GG”.


A sentença proferida na 1.ª instância julgou procedente a exceção peremptória de prescrição do direito invocado pelos autores e, consequentemente, absolveu os réus do pedido.

A Relação, todavia, procedendo à pedida reapreciação do julgamento da matéria de facto, alterou-a, julgou improcedente a invocada prescrição e condenou os réus no pedido.


É contra esta resolução que o demandado/recorrente FF reage.


Vamos apurar se lhe assiste razão.



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I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (n.º 3 do artigo 674.º do atual C.P.Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, em vigor desde o dia 1 de Setembro de 2013 e aplicável ao caso “sub judice”),


Neste circunstancialismo jurídico-processual havemos de ter em conta que a decisão proferida pelo tribunal recorrido (Relação) quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º do atual C.P.Civil (n.º 2 do art.º 682.º do atual C.P.Civil) e que “o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito” (n.º 3 do art.º 682.º do atual C.P.Civil).


Quer isto dizer que, funcionando como tribunal de revista e, por isso, excluído por regra da possibilidade de abordar questões de facto, o Supremo Tribunal de Justiça só nos particularizados termos admitidos pelos números 2 e 3 do art. 682.º do atual C.P.Civil lhe é permitida ingerência em matéria de facto, ou seja, neste domínio só é admissível a sua intervenção no campo da designada prova vinculada, isto é, quando a lei exige determinado tipo de prova para certas circunstâncias factuais ou quando atribui específica força probatória a determinado meio probatório.


Às instâncias cabe averiguar, exclusivamente, todo o circunstancialismo factual envolvente da acção, reservando-se para a Relação o último passo a dar sobre esta temática.

Competindo ao Supremo Tribunal de Justiça vigiar e denunciar se a Relação fez mau uso dos poderes que a proposição descrita no art.º 662.º do C.P.Civil vigente lhe concede, vejamos se esta ilegalidade ocorreu.

A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento e ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova (n.º 1 e 2, alíneas a) e b), do art.º 662.º do C.P.Civil em vigor).


A intenção do legislador, já declaradamente professada no relatório do Dec. Lei n.º 39/95, é no sentido de desenvolver um duplo grau de jurisdição quanto ao julgamento da matéria de facto exposta nos articulados, programando, todavia, o modo como esta prática há-de ser processualmente exercido e com o objectivo de, inequivocamente, se consignar que se não tem, necessariamente, de fazer uma universalizada impugnação de toda a facticidade em discussão na acção - a Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, em função do princípio da imediação da prova ou de qualquer outro” (Ac. STJ de 1/07/2008, Revista n.º 191/08-1ª Secção).

Convenhamos que “a Relação, neste caso, é um Tribunal de substituição, e não de mera cassação. Na verdade, se na reapreciação das provas a Relação encontrar justificação, dentro das fronteiras da lei, para alterar a matéria de facto, não anula a decisão do tribunal inferior para que este a reformule, antes se substitui ao tribunal a quo, ficando subjacente à alteração que porventura introduza no quadro factual uma nova e diferente convicção entrementes adquirida” (Ac. STJ de 28 de Janeiro de 2003; disponível em www.dgsi.pt).


II. Argúi o recorrente/réu que a Relação, na reapreciação da matéria de facto, incorreu em violação de regras de direito probatório material:

 - A factualidade dada como provada pela Relação sob os itens 5. e 6. do acórdão recorrido, apenas poderia ser provada pela exibição do documento exigido para tanto - no caso a acta - lavrada no respectivo livro, nos termos do art. 63.° n.º 1 do CSC, ou, então, pela confissão expressa, judicial ou extrajudicial, nos termos do art.º 364.° do C.Civil; e, porque se não encontra verificada esta exigência legal, também se não pode considerar provada a existência de qualquer deliberação tomada pelos sócios da GG no sentido da distribuição dos saldos de caixa e contas bancárias de que a sociedade fosse titular e de que houve a efectiva partilha do acervo patrimonial dela.

        

Não acompanhamos este entendimento assim professado pelo recorrente.

Ao considerar provado que “em 4 de Fevereiro de 2004, em Assembleia Geral (de que foi lavrada a acta nº 33) os sócios da GG deliberaram distribuir entre si o saldo de caixa e de contas bancárias de que era titular a GG, cujo valor global era superior ao valor em que a GG foi condenada no processo referido em 1.” (ponto 5. da matéria de facto provada), a Relação chegou a esta conclusão só depois de uma exaustiva e proficiente análise interpretativa da ata documentada a fls. 249, contrapondo-a com a cópia existente na C.R.C. de Penafiel juntamente com a cópia da acta anterior (se a acta em causa estava seguramente no livro de actas que foi exibido na conservatória e de onde foi extraída a cópia em causa e se todas as actas desse livro tinham sido assinadas, a acta 33 também o havia sido…) e, ainda, após fundamentada análise do depoimento da testemunha HH (esclareceu que não inventou os valores descritos no documento de fls. 249 (acta nº 33), que os sócios aceitaram e por isso assinaram a acta. Referiu que a GG, Lda., tinha contabilidade organizada, a mencionada acta nº 33 foi apresentada na Repartição de Finanças e com base nela os réus emitiram as declarações de IRS).  


Lembremos que todo o documento é susceptível de interpretação e que é admissível prova testemunhal, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 393.º do C.Civil, com o objectivo de determinar o sentido que as partes atribuíram a determinada cláusula inserta num documento (cfr. Ac. do STJ de 13.11.1986; BMJ, 361.º, pág. 496), ou seja que, por excepção ao disposto no art.º 394.º do C.Civil, é admissível prova testemunhal com vista a interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental (Prof. Mota Pinto, C.J, 1985, 3.º, pág. 9).


A Relação deu, assim, rigoroso cumprimento ao estatuído no n.º 1, do art.º 63º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) - as deliberações dos sócios só podem ser provadas pelas actas das assembleias ou, quando sejam admitidas deliberações por escrito, pelos documentos donde elas constem.


Igualmente, baseando-se a Relação em presunção judicial relativamente à prova de que “aquando da deliberação de dissolução e aquando da posterior liquidação da GG, L.da, os réus não acautelaram o pagamento da eventual dívida da GG que viesse a ser reconhecida naquele processo judicial referido em 1), designadamente através da prestação de uma caução” - ponto 6 da matéria de facto provada, não pode esta prova ser sindicada pelo STJ - o Supremo Tribunal de Justiça, cuja competência, em regra, se limita à matéria de direito, não pode sindicar o juízo de facto formulado pela Relação para operar a ilação a que a lei se reporta, salvo se ocorrer a situação prevista na última parte do n.º 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil (artigos 729.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) - Ac. STJ de 14.06.2011; www.dgsi.pt.[1]


Está, assim, este Supremo Tribunal impedido de censurar o julgamento que a Relação fez sobre as alterações decididas quanto à matéria de facto considerada provada na demanda.

III. Desde há muito tempo que a doutrina e a jurisprudência vêm explicitando que a razão da “prescrição” se vai buscar à praticada negligência do titular de discriminado direito, consubstanciada na omissão do seu exercício durante certo tempo, que o legislador contabiliza e durante o qual se faz presumir a renúncia ao direito, ou, torna aquele indigno de protecção jurídica (Prof. Manuel de Andrade; Teoria Geral da Relação Jurídica; II; pág. 445-446); constituindo a prescrição um facto extintivo do direito, tem o seu fundamento específico na situação antijurídica de negligência (Aníbal de Castro; a caducidade; pág. 28).

A prescrição, tal como a caducidade e o não uso, exprimem a relevância do tempo (do seu decurso sobre as relações jurídicas), visando a certeza e a segurança do tráfego jurídico, tendo como fundamento a consideração de que não merece a protecção do ordenamento jurídico quem descura o exercício dos direitos que lhes assistem, porque a paz social não se compadece com a inércia, para lá de limites temporais impostos pelo legislador (Ac. STJ de 19.06.2012; Relator o Ex.mo Cons. Dr. Fonseca Ramos; www.dgsi.pt).

Dispõe o art.º 498.º (prescrição) do Código Civil:

1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

 Todavia, se estiver em análise a responsabilidade dos antigos sócios de uma sociedade já extinta, após a sua liquidação, pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha (art.º 163.º do CSC), prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, os direitos de crédito de terceiros contra a sociedade, exercíveis contra os antigos sócios e os exigíveis por estes contra terceiros, nos termos dos artigos 163º e 164º, se, por força de outros preceitos, não prescreverem antes do fim daquele prazo (art.º 174.º, n.º 3, do CSC).


Na presente acção pretendem os autores, apoiados no que está proposto no art.º 158.º, do CSC[2], que os réus os indemnizem pela circunstância de, sendo liquidatários da sociedade da “GG, L.da”, não terem estes prevenido os interesses dos seus credores (demandantes), prestando uma caução que garantisse o pagamento desse crédito se viesse a ser, como veio, reconhecido por sentença e, ao invés, distribuindo património pelos ex-sócios.


Desta feita, não podendo os réus beneficiar do prazo de prescrição de cinco anos concedido pelo disposto no supra indicado art.º 174.º, n.º 3, do CSC, ao caso sub judice é aplicável a regra geral do prazo de três anos.

Para “terem conhecimento do direito que lhe compete” (art.º 498.º, n.º 1, do CC) e, assim, poderem os réus beneficiarem da prescrição do direito, haveria de ficar comprovado que os autores sabiam que, para além de serem credores da “GG, L.da”, que esta sociedade tinha sido dissolvida e liquidada, os liquidatários não asseguraram o pagamento desse crédito e permitiram que os ex-sócios (neste caso eles mesmos) tinham recebido (partilhado) bens da sociedade sem estarem pagas as dívidas; e, como assinala a Relação, tendo presentes as aludidas regras do ónus da prova, constata-se que os réus não demonstraram, como lhes competia, que os autores, mais de três anos antes da propositura da acção, tinham conhecimento daqueles factos.


Não operando em favor dos recorrentes a prescrição do direito invocado pelos autores e verificando-se os requisitos legalmente impostos para a atribuição da indemnização pedida pelos autores, a ação terá de proceder.


  Contra esta afirmação não colhe a argumentação avançada pelos recorrentes e no sentido de que “pelo menos, aquando do trânsito em julgado da sentença proferida contra a sociedade GG, facto ocorrido em 05/07/2007, aqueles tiveram conhecimento do direito que lhes competia, podendo, e devendo exercer o seu direito de executar a respectiva sentença, pelo que o exercício de eventual direito de indemnização mostra-se prescrito pelo decurso do prazo de 3 anos”.  

     É que, como facilmente podemos depreender, a condenação inscrita nesta detalhada ação não se identifica em toda a sua plenitude com o direito que os autores pretendem fazer valer na presente ação.

  

          Concluindo:

     1. Todo o documento é susceptível de interpretação e é admissível prova testemunhal, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 393.º do C.Civil, com o objectivo de determinar o sentido que as partes atribuíram a determinada cláusula inserta num documento, ou seja, por excepção ao disposto no art.º 394.º do C.Civil, é admissível prova testemunhal com vista a interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental.

     2. Na presente acção pretendem os autores, apoiados no que está proposto no art.º 158.º, do CSC, que os réus os indemnizem pela circunstância de, sendo liquidatários da sociedade da “GG, L.da”, não terem estes prevenido os interesses dos seus credores (demandantes), prestando uma caução que garantisse o pagamento desse crédito se viesse a ser, como veio, reconhecido por sentença e, ao invés, distribuindo património pelos ex-sócios.

    3. Desta feita, não podendo beneficiar os réus do prazo de prescrição de cinco anos, concedido pelo disposto no supra indicado art.º 174.º, n.º 3, do CSC, é aplicável ao caso sub judice a regra geral do prazo de três anos.

     4. Tendo presentes as regras do ónus da prova, constata-se que os réus não demonstraram, como lhes competia, que os autores, mais de três anos antes da propositura da acção, tinham conhecimento dos factos que integrariam a prescrição do direito invocado.


Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça
, 19 de maio de 2016.


António da Silva Gonçalves (Relator)

Fernanda Isabel Pereira

António Joaquim Piçarra

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[1] Escreve-se no acórdão recorrido: Natural e logicamente, terá de concluir-se que os réus, desde a deliberação de dissolução da GG, L.da, até ao momento em que distribuíram entre si o activo que existia, não acautelaram o pagamento da eventual dívida daquela sociedade comercial que viesse a ser reconhecida no processo referido em 1. dos factos provados, designadamente através da prestação de uma caução, nos termos do art.º 154º do CSC.

[2] Artigo 158º (Responsabilidade dos liquidatários para com os credores sociais).

1. Os liquidatários que, com culpa, nos documentos apresentados à assembleia para os efeitos do artigo anterior indicarem falsamente que os direitos de todos os credores da sociedade estão satisfeitos ou acautelados, nos termos desta lei, são pessoalmente responsáveis, se a partilha se efectivar, para com os credores cujos direitos não tenham sido satisfeitos ou acautelados.