Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2851/19.3T8STB-A.E1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
PROCESSO EQUITATIVO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: CONFIRMADA
Sumário :
I. A verificação da dupla conforme impede a admissão do recurso de revista normal, nos termos do art.º 671.º, n.º 3, do CPC.

II. A invocação de nulidade do acórdão não prejudica a existência de dupla conformidade, sendo irrelevante para efeito da admissão do recurso de revista.

III. A mera invocação de omissão de pronúncia por inconstitucionalidade não torna o recurso de revista admissível.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[1]:



I. Relatório

Os embargos de executado deduzidos por AA, BB, CC e DD contra a Caixa Geral de Depósitos, S.A., foram julgados improcedentes, no saneador-sentença, com fundamento na impossibilidade de verificação dos fundamentos alegados de fraude à lei e da simulação na concessão do mútuo pela exequente/embargada aos 3.º e 4.º embargantes, de quem os dois primeiros foram fiadores.

Inconformados, os embargantes apelaram, insistindo na nulidade do contrato de mútuo, por simulação e fraude à lei e suscitando a “inconstitucionalidade da atuação da Recorrida”.

Ainda irresignados, os embargantes interpuseram recurso de revista, arguindo nulidade do acórdão que subsumiram ao disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. d), por omissão de pronúncia da invocada inconstitucionalidade, e com fundamento em errada apreciação das provas, invocando prova testemunhal produzida noutro processo e insistindo na simulação e fraude à lei.


O recurso de revista assim interposto não foi admitido, por despacho da Ex.ma Desembargadora Relatora, de 6/3/2021, com o seguinte teor:

Cremos que o nosso acórdão não comporta recurso de revista já que confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a sentença da 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 854º do mesmo Código).

Ademais, não se verifica nenhuma das situações versadas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 629.º do CPC.

Termos em que não se admite o recurso interposto por BB e outros (art.º 641º, n.º 2, a) do CPC).

Notifique.


Ainda não conformados com a decisão de não admissão do recurso de revista, os embargantes reclamaram dela pugnando pela sua admissibilidade, sustentando que arguiram a nulidade por omissão de pronúncia da inconstitucionalidade, o que, no seu modo de ver, determina a sua admissão.

Não foi apresentada resposta.

A reclamação foi indeferida, por despacho do actual Relator, de 28/4/2021, cujo teor aqui se dá por produzido e que adiante se reproduzirá na parte tida como relevante, em suma por verificação do obstáculo da dupla conforme.

Ainda inconformados, os reclamantes vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, mas que se entendeu converter oficiosamente em reclamação para a conferência, por o despacho do Relator não ser susceptível daquela impugnação.


II. Fundamentação

Na fundamentação do despacho que indeferiu a reclamação, após se remeter para o respectivo relatório quanto aos factos, foi dito o seguinte:

«… pese embora as decisões judiciais sejam impugnáveis por meio de recurso (art.º 627.º, n.º 1, do CPC), a admissibilidade deste está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei (cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 83).

Um dos limites ou obstáculo à admissão do recurso é a verificação da dupla conforme, o qual está previsto no art.º 671.º, n.º 3, do CPC, que dispõe:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

O artigo seguinte reporta-se à revista excepcional, pelo que é irrelevante para a admissão da revista normal, única interposta.

E os casos em que o recurso é sempre admissível estão previstos no art.º 629.º, n.º 2, do CPC.

Não se trata de nenhum desses casos, nem os recorrentes invocaram alguma situação ali prevista.

Por isso, a presente situação está abrangida pelo n.º 3, do transcrito art.º 671.º, como também é afirmado no despacho reclamado e os embargantes/reclamantes aceitam.

O acórdão confirmou, na íntegra e por unanimidade, a sentença que apreciou.

E fê-lo “sem fundamentação essencialmente diferente”.

Com efeito, existe total conformidade, verificando-se apenas pequenos aditamentos que não configuram desconformidade na fundamentação, muito menos essencial.

Tem sido este o entendimento do STJ que tem afirmado, repetidamente, que só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância (Cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 28-04-2014, Revista n.º 473/10.3TBVRL.P1-A.S1 – 2.ª Secção; de 18-09-2014, revista n.º 630/11.5TBCBR.C1.S1 – 7.ª Secção; de 19-02-2015, revista n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S – 7.ª Secção; de 27-04-2017, revista n.º 273/14.1TBSCR.L1.S1 – 2.ª Secção; de 29-06-2017, revista n.º 398/12.8TVLSB.L1.S1 – 7.ª Secção; de 30-11-2017, revista n.º 579/11.1TBVCD-E.P1.S1 – 7.ª Secção; de 15-02-2018, revista n.º 28/16.9T8MGD.G1.S2 – 2.ª Secção; de 12-04-2018, revista n.º 1563/11.0TVLSB.L1.S2-A – 7.ª Secção; todos disponíveis em www.dgsi.pt).

De nada serve a invocação da violação da lei substantiva e processual e do disposto no art.º 674.º, n.º 1, do CPC, onde estão indicados os fundamentos da revista, visto que, para poderem ser apreciados, era necessário que a revista fosse admissível e, como vimos, não é, face à existência de dupla conforme.

E a invocação da nulidade do acórdão também é irrelevante, para este efeito, visto que ela não prejudica a existência de dupla conformidade (cfr., neste sentido, Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 369).

Reafirma-se aqui que ocorre dupla conforme relativamente às questões suscitadas na apelação, únicas que a Relação podia e devia conhecer, o que, aliás, nem sequer é posto em causa na reclamação.»


Na reclamação ora em apreço, resultante da conversão oficiosa, invocou-se, exclusivamente, a questão da inconstitucionalidade, por violação dos princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.º 20.º, n.ºs 1 e 4, e dos princípios da identidade pessoal e da iniciativa económica privada previstos nos art.ºs 26.º e 61.º, todos da CRP.

Todavia, não vislumbramos razões para alterar o que foi decidido pelo Relator, nem elas foram invocadas, em bom rigor, em tempo útil pelos reclamantes.

Repudiamos todas as insinuações referenciadas pelos embargantes/reclamantes.

Na reclamação do despacho do Relator da Relação, que o aqui Relator apreciou, e cujo objecto está agora em reapreciação, estava em causa unicamente a alegada omissão de pronúncia da inconstitucionalidade, tendo em vista a admissão, ou não, do recurso de revista interposto.

Acontece, porém, que, como se disse, a invocada nulidade é irrelevante, para este efeito, visto que ela não prejudica a existência de dupla conformidade.

A invocada nulidade, tal como as restantes, apenas poderiam ser apreciadas pelo Tribunal Superior, caso fosse admissível recurso de revista.

E, no caso, não é – repete-se – pela verificação da dupla conforme que os reclamantes não põem em causa.

Não havendo recurso, é perante o Tribunal que proferiu a decisão a quem é imputada a nulidade que a mesma deve ser arguida, sendo esse mesmo tribunal o competente para a apreciar (cfr. art.º 615.º, n.º 4 ex vi art.º 666.º, n.º 1, ambos do CPC).

Assim sendo, não tinha este Supremo Tribunal que conhecer de qualquer inconstitucionalidade, tanto mais que não foi suscitada perante ele.

Ainda assim, não deixamos de afirmar aqui que não existem as inconstitucionalidades tardiamente suscitadas na reclamação, ora em apreciação, resultante da conversão oficiosa do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.

Desde logo, porque não foi suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma aplicada, tendo apenas sido invocada a “inconstitucionalidade da actuação da Recorrida”!

Depois, porque a existência da dupla conforme, verificada e confessada, em cada afecta os princípios constitucionais invocados.

Com efeito, o Tribunal Constitucional “tem considerado que não existem impedimentos absolutos à limitação ou condicionamento do acesso ao Supremo” (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, pág. 349). O direito ao recurso, designadamente o de interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pode ser limitado pelo legislador ordinário, como vem sendo afirmado, de forma unânime, pela jurisprudência (cfr., entre outros, ac. do STJ de 19/5/2016, proc. 122702/13.5YIPRT.P1.S1 in www.dgsi.pt.).

Segundo o acórdão acabado de citar, tirado a propósito do valor da acção e da sucumbência, mas cuja doutrina se aplica também noutras situações, como a presente, a jurisprudência constitucional, face à natural escassez dos meios para administrar a Justiça e a necessidade da sua racionalização, “vem expressando o entendimento de que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição” (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 453, e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, págs. 763 e segs., citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, ainda que seja vedada “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito. Cfr. ainda diversa jurisprudência citada por Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos em O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e segs. Sobre o princípio do duplo grau de jurisdição e sua conexão com a CRP cfr. ainda Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., págs. 72 a 76).

No mesmo acórdão é ainda afirmado que “Também tem sido assumido que tal direito não é necessariamente decorrente do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 99 e 100)”.

“Em suma, o direito ao recurso não se apresenta com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas” (cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75).

Segundo o mesmo acórdão e citando Lopes do Rego, as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais” (in “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, inserido em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 764).

Daí que a limitação de dois graus de jurisdição nos termos referidos não ofende os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, nem o direito a um processo justo e equitativo, muito menos o da identidade pessoal e o da iniciativa privada.


A reclamação tem, necessariamente, que improceder, havendo que confirmar o despacho do Relator.

           

Sumário:

1. A verificação da dupla conforme impede a admissão do recurso de revista normal, nos termos do art.º 671.º, n.º 3, do CPC.

2. A invocação de nulidade do acórdão não prejudica a existência de dupla conformidade, sendo irrelevante para efeito da admissão do recurso de revista.

3. A mera invocação de omissão de pronúncia por inconstitucionalidade não torna o recurso de revista admissível.


III. Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se, integralmente, o despacho reclamado.


*           


Custas da reclamação pelos reclamantes, por lhe terem dado causa, não obstante resultar de conversão oficiosa, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

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Lisboa, 22 de Junho de 2021

 

Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator, que assina digitalmente)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António Magalhães (2.º Adjunto)

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[1] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães