Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23399/19.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ENERGIA ELÉTRICA
SILÊNCIO
ATROPELAMENTO
PEÃO
CULPA DO LESADO
CULPA EXCLUSIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
DIRETIVA COMUNITÁRIA
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 03/15/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :
I - O princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o que vem consignado no art. 483.º do CC segundo o qual Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no art. 487.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
II - Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela.
III - Do iter factual apurado, resulta inequivocamente que o comportamento do peão violou o disposto nos arts. 99.º, n.os 1 e 2, al. a), e 101.º, n.º 1, do CEst, quando aí se prevê que os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados, ou na sua falta, pelas bermas (n.º 1); Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efectuem o seu atravessamento; os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente, o que significa que a vítima agiu com culpa, tal como se concluiu no acórdão recorrido.
IV - A vexata quaestio daqui é a de saber se podemos assacar ao condutor do veículo alguma responsabilidade a título de riscos próprios do veículo, como vem decidido, o que determinou uma situação de concorrência entre culpa e risco.
V - A ilação tirada pelo segundo grau, traduzida no silêncio do veículo mostra-se excessiva, porquanto tendo o acidente ocorrido em 2017, já depois da entrada em vigor do Regulamento n.º 540/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16-04-2014, que determinou a instalação do sistema AVAS (Acoustic Vehicle Alerting System) e do Regulamento Delegado (UE) 2017/1576 da Comissão, de 26-06-2017, o qual definiu os requisitos de ensaio para os níveis mínimos de emissões sonoras do AVAS em marcha avante e marcha-atrás, bem para a mudança de frequência do som emitido, seria imperioso questionar se o veículo eléctrico seguro na ré estava ou não munido do apontado sistema sonoro, ou não, e para tal, as mencionadas características, deveriam ter sido objecto oportuno de alegação e prova, o que não aconteceu.
VI - Mas, mesmo que por mera hipótese de raciocínio académico assim se não entendesse, nunca poderia o tribunal , sem mais e à partida, fazer impender sobre um veículo eléctrico um risco, estimado em 20%, pela sua circulação silenciosa, sem sequer cuidar de apurar, segundo critérios de adequação e proporcionalidade, tendo em atenção as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, qual teria sido a efectiva contribuição dos “riscos próprios do veículo”, reduzidos estes apenas ao silêncio por ser eléctrico, para a produção do resultado danoso em paralelo com a actuação do peão, tendo em atenção a gravidade da culpa desta, traduzida num atravessamento inopinado de uma faixa de rodagem com trânsito, distraída, de costas para a circulação, a falar com as colegas à saída do trabalho, sem dar qualquer possibilidade à condutora de efectuar uma manobra para evitar o embate.
VII - De outra banda, sempre seria mister apurar, segundo as regras gerais, nessas circunstâncias específicas, se o silêncio da circulação daquele veículo teria sido ou não determinante para o atropelamento, ou se esse silêncio passaria sempre desapercebido face ao ruído do restante trânsito.
VIII - Nestas circunstâncias mostra-se afastada uma qualquer possibilidade de concorrência entre culpa e risco, na medida em que a aceitação desta figura implicaria, sempre, a constatação da contribuição do veículo para a produção do resultado que in casu não se apurou, acrescendo ainda que a condutora conduzia no cumprimento das regras de circulação rodoviária e por forma a evitar o resultado produzido, o qual só ocorreu por culpa exclusiva do peão, cujo comportamento se mostrou violador daquelas mesmas regras cujo cumprimento lhe era igualmente exigido.
IX - As normas estradais, constantes do CEst e demais diplomas que regulam o trânsito são dirigidas aos automobilistas e também aos peões, disciplinando-se assim o comportamento humano, quer na condução, quer na circulação a pé, de molde a evitar os constrangimentos naturais daí advenientes.
X - O Tribunal de Justiça, no acórdão de 09-06-2011 proferido no processo C-409/09 (Ambrósio Lavrador) concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano, cfr. http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ.
XI - Sendo a jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido da existência de obrigação da interpretação conforme, ou seja, que as jurisdições nacionais devem, na medida do possível, interpretar o respectivo direito à luz das directivas comunitárias (ainda que não transpostas) de acordo com os arts. 249.º e 5.º do Tratado CE, não podemos deixar de interpretar as normas nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva em conformidade com tais directivas, de onde apesar de se admitir face às mesmas a compatibilização da culpa com o risco, por a tal se não opor a legislação portuguesa, a concatenação a fazer não pode deixar de efectuar uma análise criteriosa da actuação dos intervenientes por forma a apurar qual a contribuição que cada um teve para a produção do resultado, fazendo afastar o risco, quando se prove que tal contribuição foi exclusiva do lesado.
Decisão Texto Integral:


PROC 23399/19.0T8PRT.P1.S1.

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I AA e BB, por si e na qualidade de únicos herdeiros da sua filha CC, instauraram acção declarativa comum contra COMPANHIA DE SEGUROS FIDELIDADE SA, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização global no montante de €150.000 acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento, por danos não patrimoniais próprios, perda do direito à vida de sua filha e danos morais desta, sofridos por via do acidente de viação de que esta foi vitima, ocorrido por culpa do segurado da Ré.

Alegaram para o efeito e em síntese:

A sua filha foi vítima de um atropelamento por um veículo ligeiro de passageiros quando era conduzido por uma trabalhadora ao serviço e sob as ordens e direção da sociedade sua empregadora, proprietária do veículo seguro na Ré.

O atropelamento deu-se numa avenida quando, conduzindo com pouca atenção, distraída e apenas a cerca de 30 cm do passeio, a condutora embateu com o vértice dianteiro direito do veículo contra a vítima, CC, que ali estava imobilizada, causando-lhe a morte, ocorrida dois dias depois do acidente.

A Ré contestou a ação, impugnando factos alegados relativos à dinâmica do acidente, considerando que o mesmo se ficou a dever à imprevidência do peão sinistrado, e o quantum indemnizatório, concluindo pela total improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente com a abolvição da Ré do pedido.

Inconformados os Autores apelaram da sentença, vindo o recurso a ser julgado

parcialmente procedente, com a revogação da sentença tendo-se condenado a Ré a pagar aos Autores a indemnização de € 27.400,00, acrescida de juros de mora à taxa lega, vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento.

Irresignada a Ré vem interpor recurso de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

«[1.] O Tribunal da Relação ... confirmou a decisão da Primeira Instância, a qual considerou que: “O atropelamento ficou a dever-se a culpa exclusiva da vítima”;

2. Ainda assim, por a viatura envolvida no acidente ser movida a energia eléctrica, o Tribunal da Relação ... suportou nesse facto o dever de indemnizar no âmbito da responsabilidade pelo risco, concorrendo, desta forma com a responsabilidade civil extra contratual.

3. Esta questão, plasmada nas alegações de Recurso pelos Autores, constitui uma verdadeira questão nova, na medida em que este recorrente colocou perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida.

4. Da matéria de facto julgada como provada não é estabelecido que o veículo movido por carga elétrica, não produzisse ruído, pelo menos suficiente, para despertar a atenção do peão.

5. Perante a inexistência deste facto, seja controvertido, ou constante da factualidade julgada como provada, não pode o Tribunala quo, criar ex novo, e apartir dele,suscitar a questão nova tal qual formulada no Acórdão em crise.

6. O segmento decisório, inovatório introduzido pela Relação segundo o qual a viatura ...-QG-... era silenciosa, não tem nenhum suporte na matéria de facto produzida e provada na Primeira Instância;

7. Nem a concorrência daquele facto para a verificação do acidente foi suscitada e submetida a decisão pela Primeira Instância;

8. Estamos confrontados com uma questão nova, não passível de apreciação em sede de recurso;

9. Sendo certo que o enquadramento factual na responsabilidade pelo risco é matéria de direito, de conhecimento oficioso do tribunal, ainda assim, a factualidade que a suporta terá de ter sido trazida aos autos e aí dada como provada;

Numa outra perspectiva,

10. O Tribunal da Relação decidiu que que o acidente se deu por culpa exclusiva da lesada;

11. Uma vez que o acidente se decorreu de uma acção exclusiva da lesada, acção totalmente controlável e dependente da sua vontade;

12. culpa exclusiva do lesado, nos termos do artigo nº 505º do CC, afasta a responsabilidade pelo risco decorrente do artigo nº 503º nº 1 do CC;

13. A exclusiva culpa do lesado e, consequentemente, o afastamento de qualquer responsabilidade do condutor, como no caso em crise, afasta a possibilidade de se fazer recurso à responsabilidade pelo risco para determinar a indemnização.

14. Portanto, in

casu, o nexo causal, para efeitos da determinação da responsabilidade pelo risco, não se demonstrou.

15. Antes pelo contrário, evidenciou-se e estabeleceu-se que a culpa pelo acidente é exclusivamente imputável à lesada, o que afasta a responsabilidade pelo risco.

16. Neste sentido, o termo imputável tem, neste caso, o sentido de «atribuível» e só se pode atribuir um facto a alguém, em terminologia jurídica, quando tal facto é, pelo menos, controlável pela sua vontade, como sucedeu in casu.

17. E Deverá excluir-se totalmente o direito a indemnização ao peão, maior de idade, que, no momento em que decide descer do passeio e iniciar a travessia da via, ainda de costas para os veículos automóveis que circulavam nesse sentido de marcha, fê-lo sem olhar para a via de trânsito e sem cuidar se circulava algum veículo.

18. No âmbito da responsabilidade objectiva, ou sem culpa, a culpa da vítima afasta a razão de ser e a lógica do risco.

19. É o que claramente resulta do artigo 505.º do Código Civil.

20. A exclusão da responsabilidade pelo risco nas situações referidas no art.º 505.º justifica-se por uma questão de justiça: sendo já bastante severa a responsabilidade lançada sobre o detentor do veículo, não se afigura razoável sobrecarregá-la ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação ou a quem deliberadamente o provocou.

21. Violou o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação os arts. 483.º, 503.º e 505.º do Código Civil, bem como os arts 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2, do Código Processo Civil.».

Apresentaram os AA. recurso subordinado, apresentando as seguintes conclusões:

«[1ª -] Foi praticada uma irregularidade na alteração da matéria de facto que não se justificava;

2ª Tendo sido alterada injustificadamente a matéria de facto vertida no ponto 11 da fixação da matéria em primeira instância;

3ª- Ou seja, a matéria assente naquele ponto "logo que desceu do passeio foi de imediato colhida peia esquina da frente direita do veículo automóvel "QG”;

4ª- E irregularmente substituída pela seguinte matéria "Assim, logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida peia esquina da frente do veículo automóvel "QG";

5ª  - Discorda-se, por isso, da alteração substancial daquela matéria, a qual não foi objecto de reclamação pelos Recorrentes nas suas alegações de recurso, nem pela Recorrida Apelada em eventual ampliação do objecto do recurso;

6ª- Essa irregularidade é susceptível, assim de gerar a sua nulidade e a consequente manutenção da matéria fixada na lª instância naquele item 11, sendo mesmo de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196ª do CPC;

7ª - Provando-se, como se provou, que a viatura QG pertencia à sociedade comercial V..., Lda e era conduzida por DD, ao serviço daquela entidade empregadora, é indubitável que estamos perante a presunção de culpa da condutora pela sua circulação;

8ª- Por tal motivo se impondo à condutora o ónus de provar que nenhuma culpa lhe advém do deflagrar do acidente e das suas consequências;

9ª - Também, no item 11 da matéria de facto se provou que "logo que desceu do passeio foi de imediato colhida pela esquina da frente direita do automóvel QG";

10ª- Assim se desconhecendo se a CC iria fazer o atravessamento da via e de forma inopinada ou apressada, já que lhe foi tolhido o seu movimento ao ser imediatamente embatida pela viatura, logo que desceu do passeio;

11ª - Tornando-se, por isso, incompatível, a prova de que a condutora não tinha opções para evitar o embate, com a matéria fixada nos itens 6 e 11 da matéria provada;

12ª- Ora se o arruamento dispunha de passeios em ambos os sentidos e ainda uma pista de velocípedes situada em ambos os lados da faixa de rodagem, isso faz ressaltar à evidência que a CC, logo que pôs um pé fora do passeio, ainda ficou posicionada na pista de velocípedes, não tendo, por isso atingido a faixa de rodagem;

13ª- A ser assim, como parece evidente, fica demonstrado que a viatura circulava muito próximo do passeio, em flagrante desrespeito pelo artigo 13g do Código da Estrada e sobre a aludida pista de velocípedes;

14ª- Sucedendo ainda que a condutora do QG tinha obrigação de circular mais pelo interior da faixa de rodagem, já que, se o arruamento tinha 9 metros de largura, a sua hemifaixa possuía 4,5 metros de largura;

15ª o que a prudência lhe recomendava, tendo em consideração que havia muitas pessoas no local, que saiam dos seus empregos, como foi provado no item 7 da matéria de facto;

16ª- e na circulação da viatura deveria afastar-se o mais possível daquele aglomerado de pessoas, onde também estava a CC;

17ª- Assim prevenindo qualquer possível contacto do automóvel com o corpo de alguma daquelas pessoas, incluindo a CC;

18ª- Ora, em vez disso, arriscou a condutora circular demasiado próxima do amontoado de pessoas quando se lhe impunha o dever de cuidado;

19ª- já que conduzia um veículo eléctrico e, por isso, silencioso, devendo advertir as pessoas para a sua presença, nomeadamente buzinando e reduzindo ao mínimo a sua velocidade;

20ª- Não fazendo sentido em ter-se dado como provado que a condutora nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efectuar para evitar o embate;

21ª- Era sua obrigação agir de outra forma, tanto mais, que tripulava uma viatura silenciosa, fazendo elevar o risco da sua circulação;

22ª - Em vez disso, não tomou os comportamentos normais de uma condutora diligente, pois não abrandou a marcha da viatura, não travou, não se desviou do aglomerado de pessoas, nem buzinou para alertar a presença do carro eléctrico;

23ª - Assim se demonstrando que a condutora do QG não logrou ilidir a presunção legal de culpa ao conduzir a viatura da sua entidade empregadora;

24ª - Por outro lado, também não está demonstrado nos autos que a responsabilidade pelo acidente radicasse na culpa exclusiva da vítima CC;

25ª - Sucedendo ainda que, para além da presunção de culpa da condutora, não está também afastada a responsabilidade pelo risco, face ao binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utilizadores das vias públicas;

26ª - Acrescentando-se ainda que a utilização em massa dos veículos eléctricos faz aumentar o risco de perigo que representam, por serem silenciosos, apanhando desprevenidos os outros utentes das vias públicas, como é o caso dos peões;

27ª - Bem se sabendo que o moderno direito rodoviário apresentasse hoje como garante de uma maior protecção aos lesados, alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco;

28ª - Consagrando a protecção das vítimas dos acidentes de viação, numa sociedade em que o excesso de veículos, quer estacionados, quer em circulação, criam desequilíbrios, limitando o espaço pedonal e aumentando potencialmente a sinistralidade;

29ª - ora a condutora do veículo não agiu com grau de destreza, atenção e toda a diligência normal para evitar o atropelamento que se deu entre a parte dianteira direita da viatura contra o corpo da malograda vítima;

30ª - Não estando, assim, apurado nos autos que seja imputável à falecida CC a culpa exclusiva pelo acidente, como erradamente se decidiu;

31ª - Bem pelo contrário, o embate verifica-se, provando-se que manteve a mesma velocidade de que vinha animada;

32ª - Não travando, nem abrandando, não buzinando para assinalar a sua presença de veículo eléctrico silencioso, nem se desviando apesar de circular numa via com 9 metros de largura;

33ª - e ocupando o espaço da pista de velocípedes que ladeava a faixa de rodagem, circulando, até, muito próximo do passeio;

34ª - judo isto apesar da existência de um aglomerado de pessoas que na altura saíam dos seus empregos, o que aconselhava, a um condutor prudente, redobrados deveres de atenção e conduta estradai;

35ª - Assim, as descritas circunstância do atropelamento, apontam irremediavelmente para a responsabilidade da condutora do veículo automóvel que nem tão pouco ilidiu a sua presunção de culpa;

36ª - Devendo, assim, ao contrário do decidido, ser julgada procedente a acção e a Ré seguradora condenada no pedido;

37ª - Porém, se assim não se entender pela total responsabilidade da condutora, sempre poderá equacionar-se a contribuição da sua responsabilidade com a contribuição da responsabilidade da malograda vítima;

38ª - ou seja, a entender-se que a vítima também contribuiu para a verificação do sinistro, então obteremos uma concorrência de culpas cuja divisão é justo que se faça na proporção de 50% de responsabilidade para a condutora do veículo atropelante e 50% da responsabilidade para a vítima;

39ª - já que também a condutora do "QG" não está isenta de culpa, porquanto não reduziu a marcha, não se desviou, não travou nem buzinou;

40ª - Não se tendo comportado como condutora atenta e diligente, nem com capacidade para executar uma condução eficiente e segura;

41ª - Sendo certo que tinha ao seu alcance todas as condições para manobrar eficazmente a viatura;

42ª - Nomeadamente poderia e deveria usar os travões para diminuir a velocidade do veículo, a buzina e as luzes para assinalar a sua presença e o volante para se desviar, tanto mais que a visibilidade era boa, o piso da estrada estava em boas condições e a via por onde circulava tinha 9 metros de largura;

43ª - Apesar de todas aquelas condições a condutora foi incapaz de esboçar qualquer tentativa para evitar a colisão ou minorar as suas consequências;

44ª - Daí que em concorrência de culpas seja justo atribuir-lhe 50% de responsabilidade;

45ª - - Também sem prescindir e se assim não se entender, então resta seguir a esteira do Acórdão da Relação proferido, que defende a concorrência de culpa e a responsabilidade pelo risco;

46ª - Apenas discordando com a fixação em 20% quanto ao risco da viatura decidido no Acórdão recorrido;

47ª - Devendo apurar-se em que medida o risco agravado do veículo concorreu para a verificação do sinistro;

48ª - Assim, tendo em conta aquele risco agravado do veículo, por se tratar de viatura eléctrica silenciosa, sendo, por isso, muito intensa a sua contribuição para o resultado danoso, afigura-se também repartir aquela responsabilidade na proporção de 50% para cada interveniente, ou seja, 50% para o risco do veículo e 50% para a da lesada;

49ª - O Acórdão recorrido violou as disposições legais contidas nos artigos 1962 do CPC e artigos 139 do Código da Estrada e 503^ do Código Civil;

Termos em que deve o recurso subordinado merecer provimento e, em consequência, deve revogar-se o Acórdão recorrido e determinar-se pela responsabilidade total da condutora do veículo.

Se assim não se entender, deve subsidiariamente decidir-se pela repartição da culpa na percentagem de 50% para a condutora e 50% para a vítima.

E finalmente, se assim também não se entender, deve repartir-se a concorrência de culpa da lesada e risco agravado do veículo eléctrico na proporção de 50% para a lesada e 50% para o risco.

Mais deve a Recorrida subordinada ser condenada a pagar aos Recorrentes os valores percentuais que se apurarem com os valores indemnizatórios já identificados no Acórdão Recorrido.».

Nas contra alegações a Ré pugna pela improcedência do recurso subordinado.

II As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

1- No dia 24 de Outubro de 2017, pelas 17.50h, na Avenida ..., da União de freguesias ..., ..., ... e ..., ocorreu um acidente de viação;

2- No qual foi interveniente o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula ...-QG-..., movido a energia eléctrica, pertencente à Sociedade Comercial V..., Lda;

3- O veículo automóvel era, naquele momento, conduzido por DD, ao serviço da sua entidade empregadora, a Sociedade Comercial V..., Lda, sob as ordens e direcção desta;

4- O veículo matrícula ...-QG-Ol circulava naquele dia e àquela hora pela Avenida ..., no sentido descendente, ou seja, no sentido ..., fazendo-se a sua condutora acompanhar de dois filhos menores de idade;

5- A zona do acidente configura uma recta com inclinação descendente relativamente ao sentido de marcha do veículo ...-QG-...;

6- Tendo o arruamento por onde circulava aquele veículo boa visibilidade e uma largura de cerca de 9 metros e sendo ladeado por passeios dos dois lados, com pista de velocípedes de ambos os lados da faixa de rodagem e lugares de estacionamento para cada sentido do trânsito, como transparece do croquis de fls. 74, que se dá aqui por integrado;

7- O veículo automóvel QG transitava a cerca de 50 km/hora, na sua hemifaixa de rodagem, no momento em que circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos e em que a CC, tal como diversas outras pessoas, saíam dos seus locais de trabalho.

8- A CC pretendia atravessar para o outro lado da rua, em local em que a aguardava uma colega de trabalho, estacionada com o seu veículo automóvel em “segunda fila”;

9- A CC circulava no passeio, no sentido descendente, de costas para os veículos automóveis que nesse momento circulavam no mesmo sentido descendente, enquanto falava para colegas suas que se encontravam nessas imediações;

10- A CC iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do QG sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito.

11- Assim, logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG”.

12- Atendendo à proximidade entre a manobra iniciada pela CC e o veículo QG, a condutora deste nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efectuar para evitar o embate;

13- Em consequência do embate, a CC foi projectada, caiu desamparado no chão, perdeu os sentidos e, após, foi transportada em ambulância para o Hospital ..., no ..., onde ficou internada e a ser tratada aos ferimentos recebidos, os quais, pela sua gravidade, vieram a ocasionar a sua morte, ocorrida no dia 26 de Outubro de 2017;

14- A CC era filha dos autores, sendo estes os seus únicos e universais herdeiros;

15- O decesso de sua filha, causou aos autores grande dor e abalo psicológico;

16- Os autores eram muito afeiçoados à sua filha, sendo também esta muito afeiçoada aos seus pais;

17- Entre o momento do acidente e o seu decesso, a CC sofreu dores mercê das lesões graves causadas;

18- Pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº ...74, o proprietário do veículo matrícula ...-QG-... tinha transferido a garantia da responsabilidade por danos causados a terceiros com a sua circulação, para a ré Companhia de Seguros Fidelidade.

Factos não provados:

- Que, quando o veículo automóvel embateu contra o corpo da CC, esta se encontrasse imobilizada no interior da via de trânsito dos veículos;

- Que a condutora do veículo automóvel conduzisse naquele momento com pouca atenção ao trânsito ou distraída;

- Que, àquela hora, o trânsito naquela artéria fosse pouco intenso;

-Que, no momento do acidente, a CC estivesse a utilizar um telemóvel.

Insurge-se a Recorrente contra a decisão plasmada no Acórdão recorrido uma vez que aí se entendeu que “O atropelamento ficou a dever-se a culpa exclusiva da vítima” e não obstante tal afirmação porque se constatou então que a viatura envolvida no acidente era movida a energia eléctrica, fez-se suportar nesse facto o dever de indemnizar no âmbito da responsabilidade pelo risco, concorrendo, desta forma com a responsabilidade civil extra contratual, apesar dessa questão, plasmada nas alegações de Recurso pelos Autores, constituir uma verdadeira questão nova, na medida em que este recorrente colocou perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, não consta da matéria de facto dada como provada  e não foi tratada na sentença recorrida.

Analisemos.

O princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o vem consignado no artigo 483° do Código Civil segundo o qual «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no artigo 487º, nº1, do mesmo diploma legal.

Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela, cfr Antunes Varela, Das Obrigacões em Geral, I Vol., 1986, 477/478.

Da materialidade assente resulta que:

-O veículo automóvel QG transitava a cerca de 50 km/hora, na sua hemifaixa de rodagem, no momento em que circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos e em que a CC, tal como diversas outras pessoas, saíam dos seus locais de trabalho.

-CC pretendia atravessar para o outro lado da rua, em local em que a aguardava uma colega de trabalho, estacionada com o seu veículo automóvel em “segunda fila”;

-A CC circulava no passeio, no sentido descendente, de costas para os veículos automóveis que nesse momento circulavam no mesmo sentido descendente, enquanto falava para colegas suas que se encontravam nessas imediações;

-A CC iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do QG sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito.

-Assim, logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG.

-Atendendo à proximidade entre a manobra iniciada pela CC e o veículo QG, a condutora deste nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efectuar para evitar o embate;

-Em consequência do embate, a CC foi projectada, caiu desamparado no chão, perdeu os sentidos e, após, foi transportada em ambulância para o Hospital ..., no ..., onde ficou internada e a ser tratada aos ferimentos recebidos, os quais, pela sua gravidade, vieram a ocasionar a sua morte, ocorrida no dia 26 de Outubro de 2017.

Deste iter resulta inequivocamente que o comportamento do peão violou , violando o disposto nos artigos 99º, nº 1 e 2, alínea a) e 101º, nº1 do Código da Estrada, quando aí se prevê que “os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados, ou na sua falta, pelas bermas” (nº 1); “Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efectuem o seu atravessamento”; “os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.

Quer dizer, a malograda vítima agiu com culpa, tal como se concluiu no Acórdão recorrido.

A vexata quaestio daqui é a de saber se podemos assacar ao condutor do veículo alguma responsabilidade a título de riscos próprios do veículo, como vem decidido, o que determinou uma situação de concorrência entre culpa e risco.

Esta problemática tem vindo a germinar nos nossos Tribunais por via da dicotomia entre as teses clássicas (Antunes Varela), que afastam qualquer hipótese de concorrência entre culpa e risco, desde que não se apure qualquer relação entre o sinistro e os riscos próprios do veículo e as teses mais recentes (Calvão da Silva/Brandão Proença), em que se admite essa concorrência desde que se apure que o acidente tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo.

Na espécie, o Acórdão recorrido, ao atribuir a culpa na produção do resultado ao comportamento negligente da sinistrada, fez afastar, por um lado, qualquer presunção de culpa que pudesse recair sobre a condutora do veículo seguro, por via da aplicação do disposto no artigo 503º, nº3 do CCivil, que conduzia o veículo por conta, no interesse directo, sob as ordens e orientações da respectiva dona, como decorre da matéria dada como provada nos pontos 2. e 3., por força do disposto no artigo 505º do mesmo diploma,

cfr Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, 320/323.

Lê-se no Acórdão recorrido:

«A partir do momento em que se adote o entendimento de que aquele preceito não exclui o concurso da culpa do lesado com o risco, a leitura atualizada do art.º 505º do Código Civil, no entendimento de Calvão da Silva é esta: “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, a fortiori, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.22 Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. A partir desse momento, como dizíamos, continua a importar analisar a sequência naturalística do próprio acidente de modo a verificar se dela resulta, não obstante a atuação da vítima, a intervenção, no processo causal do acidente, dos riscos próprios do veículo.

Também Brandão Proença se tem mostrado profundamente crítico em relação ao entendimento tradicional nesta matéria, proclamando o mesmo que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.

“Numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”.23

Não sendo ainda pacífico este entendimento, menos pacífico é também o âmbito de abrangência dos riscos consentidos no concurso com a culpa do lesado.24

Na falta de definição rigorosa do que sejam os riscos próprios dos veículos, como conceito normativo ou indeterminado que é, temos que o risco tende a confundir-se com o perigo.

Como refere Dário Martins de Almeida, “no risco, compreende-se tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento, com os seus vícios de construção, com os excessos ou desequilíbrios da carga do veículo, com o seu maior ou menor peso ou sobrelotação, com a sua maior ou menor capacidade de andamento, com o maior ou menor desgaste das suas peças, ou seja, com a sua conservação, com a escassez de iluminação, com as vibrações inerentes ao andamento de certos camiões gigantes, susceptíveis de abalar os edifícios ou quebrar os vidros das janelas. É o pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga de eixo ou a barra da direcção que podem partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento, a falta súbita de travões ou a sua desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectadas pela roda do veículo (há mesmo casos em que pode aqui haver culpa); e até alta velocidade constitui um risco, ao mesmo tempo que pode representar um acto culposo. Enquanto em circulação, a própria estrada com os seus defeitos pode emprestar à viatura riscos graves”.

(…)

Não se trata de um regime de causalidade pura ou física. Antes tem que ser demonstrada, como pressuposto dessa responsabilidade objetiva, uma relação jurídico-civil relevante no sentido da existência um nexo objetivo de causa-efeito entre a circulação de um veículo e o efeito danoso. O dano tem que ter conexão com os riscos específicos do veículo; é necessário que o perigo latente no exercício desta atividade se desencadeie.

O carácter perigoso do veículo reside mais no seu uso (o risco-atividade) do que o seu dinamismo próprio.

É pela análise da sequência naturalística do próprio acidente que se verifica se dela resultam, não obstante a atuação da vítima no processo causal do acidente, os riscos próprios do QG.

De jure constituto, o risco não se presume. A não demonstração do nexo causal inviabiliza a pretensão do lesado à indemnização com base no risco, pois a responsabilidade objetiva pressupõe todos os requisitos da responsabilidade menos os da culpa e da ilicitude do facto.

(…)

Impõe-se saber se a facticidade demonstrada encerra algum risco próprio do veículo QG, de tal modo relevante que, por si só, constitua uma causa adequada para o dano-evento (atropelamento com morte da CC) capaz de concorrer efetivamente com a responsabilidade subjetiva da vítima.

Aceite a possibilidade, ainda que excecional, de concorrência da imputabilidade (atribuição com ou sem culpa) do facto ao lesado com o risco do veículo, temos para nós que o direito constituído nacional não presume a causalidade num acidente determinada pelo risco, impondo-se a prova efetiva de uma causa de risco, e não apenas o mero risco próprio da atividade de circulação, pese embora a sua perigosidade objetiva. Por isso, há que indagar se, para além da culpa da vítima, o veículo QG contribuiu com risco relevante para a colisão com o peão. Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objetiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos daquele veículo.

Aqui chegados, destacamos os seguintes factos:

- O veículo ...-QG-... tinha como fonte de energia a eletricidade;

- Nas circunstâncias do acidente circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos de marcha;

- Antes do acidente, a CC circulava no passeio, no sentido descendente, de costas para os veículos automóveis que nesse momento circulavam no mesmo sentido descendente, enquanto falava para colegas suas que se encontravam nessas imediações;

- Logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG”.

- Atendendo à proximidade entre a manobra iniciada pela CC e o veículo QG, a condutora deste nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efetuar para evitar o embate.

Vejamos então.

Os veículos elétricos têm caraterísticas muito específicas que os distinguem dos automóveis com motor de combustão, desde logo o facto de ser silenciosa a sua movimentação, como é do conhecimento geral.

É sabido também que, não obstante estar a aumentar a venda de veículos elétricos em Portugal, eles representam ainda uma fatia pouco significativa no conjunto de veículos que circulam pelas estradas portuguesas, de tal modo que a generalidade dos peões ainda não se habituou à sua presença e a lidar com as suas caraterísticas especiais, designadamente ao seu movimento tendencialmente silencioso.

Os peões valorizam ainda, de modo muito significativo, o ruído dos motores dos automóveis como forma de pressentirem o perigo da sua aproximação, confiando automaticamente na audição, desvalorizando algumas vezes o sentido da visão, aquele que melhor informação nos pode transmitir. É uma conduta errada.

A comunidade ainda não interiorizou devidamente a importância da observação na prevenção do perigo que os veículos elétricos representam para os peões e ciclistas na via pública. Disso, devem estar cientes os condutores daqueles veículos, enquanto novos e mais adequados hábitos de segurança rodoviária se vão instalando progressivamente na população em geral.

Ora, se à condutora do QG não era exigível condução diferente, tendo agido sem culpa, nem por isso o perigo inerente à utilização de um veículo elétrico deixou de estar presente nas circunstâncias do acidente. É um risco novo inerente às condições específicas de veículo com motor silencioso, de construção relativamente recente e de utilização pouco frequente, a que os peões ainda não estão habituados. A ausência do ruído típico dos motores de combustão e a reduzida utilização de veículos elétricos, leva facilmente os peões de normal condição a convencerem-se que à ausência daquele ruído corresponde a ausência de veículos, agindo descuidadamente em conformidade, nomeadamente ao iniciarem a travessia das faixas de rodagem.

Trata-se de um novo risco expressivo que pode afetar os peões nas vias públicas, em variadas situações de aproximação de veículos com aquela caraterística, suscetível de provocar danos pessoais graves que não podem deixar de estar cobertos e que não resultam exclusivamente de falta de diligência exigível dos peões em geral, os elementos mais vulneráveis e mais desprotegidos na via pública, a par dos ciclistas.

Pela forma como ocorreu no caso sub judice, temos como adequado fixar no equivalente a 20% do valor total dos danos a medida do risco do funcionamento do veículo contributivo para o acidente, da responsabilidade da R. por força do contrato de seguro.».

Quid inde?

Age com culpa, na acepção ético-jurídica quem adopta um comportamento censurável, que nas concretas circunstâncias não seria o adoptado por uma pessoa medianamente prudente e cautelosa, «A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor», in Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, l.º/536.

A sinistrada agiu com negligência ao atravessar a faixa de rodagem, repentinamente sem curar de saber se o podia fazer com segurança, o que implicava que, antes de iniciar a travessia, atentasse na aproximação de algum veículo.

Esta situação de culpa exclusiva do peão, que não é posta em causa por um qualquer comportamento violador das regras estradais pela condutora do veículo seguro, afasta a se uma qualquer harmonização entre culpa e risco, tendo em atenção um juízo de proporcionalidade emergente da análise da situação concreta, em que nada decorre dos autos que nos faça vislumbrar, minimamente que seja, alguma contribuição do veículo, enquanto engenho motorizado susceptível de produzir riscos, para a concretização do resultado.

Esse risco é-nos apresentado no Acórdão recorrido através do factor «veículo eléctrico silencioso».

Prima facie, concordando com a Recorrente, o Aresto em crise retira da factualidade provada um facto tido por certo e que aí não se encontra enunciado – que o veículo seguro na Ré é, para além de eléctrico, silencioso – para daí fazer extrair um «novo risco» para a circulação de veículos, sendo que, a problemática assim enunciada nem sequer foi objecto de discussão em sede de julgamento.

A aludida factualidade – veículo eléctrico –  bem como a qualidade que se lhe aponta – silencioso – não foi alegada pelas partes nos articulados, tendo sido introduzida a característica de o veículo ser movido a energia eléctrica aquando da sentença e aquele atributo, de o mesmo ser silencioso, resulta apenas do acervo conclusivo em sede de alegações aquando da Apelação interposta pelos Autores, cfr ponto 34º ,tratando-se de matéria que se mostra subtraída aos poderes cognitivos do Tribunal, por se tratar de um facto essencial, não podendo ter sido considerada como o foi, por não traduzir factualidade instrumental, nem complementar, nem tão pouco notória, dispensada assim de qualquer alegação e/ou prova nos termos do artigo 412º, nº1 do CPCivil.

Ora, se a questão de o veículo ser eléctrico, se mostra ultrapassada porque a Ré, notificada da sentença e da matéria aí dada como assente, máxime, o facto de se ter apurado que o veículo seguro na Ré era eléctrico – facto esse essencial não alegado –porque esta, agora Recorrente, teve ganho de causa em primeiro grau, não podendo recorrer a título principal, deveria ter nas suas contra alegações ampliado o objecto do recurso, nos termos do artigo 636º, nº2 do CPCivil arguindo a nulidade da decisão de harmonia com o artigo 615º, nº1, alínea b) do mesmo diploma, aplicável analogicamente, uma vez que aí se  especificou um fundamento de facto não carreado para os autos pelas partes essencial à decisão proferenda.

Não o tendo feito, aquela nulidade mostra-se ultrapassada.

Subsiste apenas a questão de ser dado como provado que o aludido veículo, porque movido a energia eléctrica, era silencioso.

Contudo, nunca se poderia extraído essa conclusão, porquanto.

O Regulamento n.º 540/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Abril de 2014, determinou a instalação do sistema AVAS (Acoustic Vehicle Alerting System), resultando dos seus considerandos 19 e 20, que «as vantagens ambientais esperadas dos veículos elétricos híbridos e exclusivamente elétricos traduziram-se numa redução substancial do ruído emitido por estes veículos. Esta redução de ruído eliminou uma fonte importante de sinais audíveis que permitiam aos peões cegos ou amblíopes e aos ciclistas, entre outros utentes das vias públicas, aperceber-se da aproximação, presença ou afastamento desses veículos. Assim, a indústria está a desenvolver sistemas de aviso sonoro de veículo (AVAS) para compensar esta falta de sinais audíveis nos veículos elétricos híbridos e nos veículos elétricos. Convém harmonizar o desempenho desses AVAS montados nos veículos. O desenvolvimento dos AVAS deverá tomar em consideração o impacto geral do ruído na população. A Comissão deverá analisar as potencialidades dos sistemas de segurança ativa presentes nos veículos mais silenciosos, tais como os veículos elétricos híbridos e em veículos elétricos, para melhor servir o objetivo de melhorar a segurança dos utentes vulneráveis das vias públicas nas zonas urbanas, tais como os peões cegos, amblíopes ou com deficiências auditivas, os ciclistas e as crianças.».

Nos termos do artigo 8.º do mencionado Regulamento estipulou-se que «até 1 de julho de 2019 os fabricantes devem instalar AVAS conformes com os requisitos do Anexo VIII nos novos modelos de veículos elétricos híbridos e de veículos elétricos. Até 1 de julho de 2021, os fabricantes devem instalar AVAS em todos os novos veículos elétricos híbridos e os veículos elétricos. Antes destas datas, caso os fabricantes decidam instalar AVAS nos veículos, devem garantir que esses AVAS cumprem as prescrições previstas no Anexo VIII.», no qual se determinou, além do mais, que «o som produzido pelo AVAS deve ser um som contínuo que assinale um veículo em funcionamento aos peões e outros utentes das vias públicas. O som deverá assinalar claramente o comportamento do veículo e ser semelhante ao som de um veículo da mesma categoria equipado com um motor de combustão interna.», sendo que, subsequentemente tal Regulamento veio a ser alterado pelo Regulamento Delegado (UE) 2017/1576 da Comissão, de 26 de Junho de 2017, o qual definiu os requisitos de ensaio para os níveis mínimos de emissões sonoras do AVAS em marcha avante e marcha-atrás, bem para a mudança de frequência do som emitido.

Daqui resulta que a ilação tirada pelo segundo grau, traduzida no silêncio do veículo se mostra excessiva, porquanto tendo o acidente ocorrido em 2017, já depois da entrada em vigor dos mencionados Regulamentos, seria imperioso questionar se o veículo eléctrico seguro na Ré estava ou não munido do apontado sistema sonoro, ou não, e para tal, as mencionadas características, deveriam ter sido objecto oportuno de alegação e prova, o que não aconteceu.  

Mas, mesmo que por mera hipótese de raciocínio académico assim se não entendesse, nunca poderia o Tribunal , sem mais e à partida, fazer impender sobre um veículo eléctrico um risco, estimado em 20%, pela sua circulação silenciosa, sem sequer cuidar de apurar, segundo critérios de adequação e proporcionalidade, tendo em atenção as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, qual teria sido a efectiva contribuição dos «riscos próprios do veículo», reduzidos estes apenas ao silêncio por ser eléctrico, para a produção do resultado danoso em paralelo com a actuação do peão, tendo em atenção a gravidade da culpa desta, traduzida  num atravessamento inopinado de uma faixa de rodagem com trânsito, distraída, de costas para  a circulação, a falar com as colegas à saída do trabalho, sem dar qualquer possibilidade à condutora de efectuar uma manobra para evitar o embate.

De outra banda, sempre seria mister apurar, segundo as regras gerais, nessas circunstâncias específicas, se o silêncio da circulação daquele veículo teria sido ou não determinante para o atropelamento, ou se esse silêncio passaria sempre desapercebido face ao ruído do restante trânsito.

Nestas circunstâncias mostra-se afastada uma qualquer possibilidade de concorrência entre culpa e risco, na medida em que a aceitação desta figura implicaria, sempre, a constatação da contribuição do veículo para a produção do resultado que in casu não se apurou, acrescendo ainda que a condutora conduzia no cumprimento das regras de circulação rodoviária e por forma a evitar o resultado produzido, o qual só ocorreu por culpa exclusiva do peão, cujo comportamento se mostrou violador daquelas mesmas regras cujo cumprimento lhe era igualmente exigido.

Não nos podemos esquecer que as normas estradais, constantes do Código da Estrada e demais diplomas que regulam o trânsito são dirigidas aos automobilistas e também aos peões, disciplinando-se assim o comportamento humano, quer na condução, quer na circulação a pé, de molde a evitar os constrangimentos naturais daí advenientes.

O Tribunal de Justiça, no Acórdão de 9 de Junho de 2011 proferido no Processo  C-409/09 (Ambrósio Lavrador) concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano, cfr http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ.

Sendo a jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido da existência de obrigação da interpretação conforme, ou seja, que as jurisdições nacionais devem, na medida do possível, interpretar o respectivo direito à luz das directivas comunitárias (ainda que não transpostas) de acordo com os artigos 249º e 5º do Tratado CE, não podemos deixar de interpretar as normas nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva em conformidade com tais directivas, de onde apesar de se admitir face às mesmas a compatibilização da culpa com o risco, por a tal se não opor a legislação portuguesa, a concatenação a fazer não pode deixar de efectuar uma análise criteriosa da actuação dos intervenientes por forma a apurar qual a contribuição que cada um teve para a produção do resultado, fazendo afastar o risco, quando se prove que tal contribuição foi exclusiva do lesado, cfr inter alia Ac STJ de 5 de Junho de 2012 (Relator Orlando Afonso), 1 de Junho de 2017 (Relator Lopes do Rego), 11 de Janeiro de 2018 (Relatora Graça Trigo) , 17 de Outubro de 2019 (Oliveira Abreu), 13 de Abril de 2021 (Relator Ricardo costa), 22 de Junho de 2021 (Relator Pinto de Almeida) e 19 de Outubro de 2021 (Relatora Fátima Gomes, in www.dgsi.pt.

Procedem, assim, as conclusões de recurso da Ré.

Recurso subordinado dos Autores.

Em sede de recurso subordinado insurgem-se os Autores contra a alteração da materialidade factual constante do ponto 11., a qual na sua tese foi indevidamente alterada, porquanto não foi objecto de impugnação.

Como deflui dos autos, os Recorrentes, ali Apelantes, impugnaram a matéria constante dos pontos 7., 10. e 12., a qual pretendiam que passasse a não provada.

O Tribunal da Relação, na análise factual efectuada, procedeu á alteração dos pontos 7. e 10, manteve o ponto 12. mas porque da apreciação feita poderia resultar uma incongruência entre o ponto 6. e o ponto 11., procedeu à alteração deste, o que foi feito de harmonia com o preceituado no artigo 662º, nº1 do CPCivil.

Aliás, lê-se no Aresto impugnado a propósito:

«Os factos provados evidenciam também alguma incongruência quando se conjugam os respetivos pontos 6 e 11. Disso mesmo dão conta os apelantes, tratando-se de matéria que não pode deixar de ser apreciada pela Relação, em ordem a conferir lógica e coerência aos factos provado, fazendo prevalecer a substância sob a forma (princípio pro actionem).

Se o veículo transitava na hemifiaxa de rodagem que lhe era destinada, se havia uma ciclovia de ambos os lados da faixa de rodagem e se a vítima foi colhida logo que desceu do passeio, é necessário conhecer a localização da ciclovia e se a vítima foi colhida nela o na faixa de rodagem. Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.

(…)

Tudo ponderado entre os depoimentos testemunhais e documentais juntos ao processo, incluindo os fotogramas, a matéria impugnada merece manter-se e alterar-se nos seguintes termos:

O ponto 7 sofre uma ligeira correção:

“7- O veículo automóvel QG transitava a cerca de 50 km/hora, na sua hemifaixa de rodagem, no momento em que circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos e em que a CC, tal como diversas outras pessoas, saíam dos seus locais de trabalho.”

O ponto 10 altera-se para o seguinte texto:

“10- A CC iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do QG sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito.”

O ponto 12 está corretamente decidido e também se mantém.

Em função da alteração do ponto 10, o ponto 11 carece também de ser modificado, passando a ter a seguinte redação:

“11- Assim, logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG”.

Termos em que procede parcialmente a impugnação da decisão em matéria de facto.».

Não se vislumbra, pois, a ocorrência de qualquer nulidade.

Mantendo-se a materialidade assente inalterada, tendo em atenção a procedência do recurso da Ré, claudica a pretensão impugnatória subordinada dos Autores.

III Destarte, concede-se a Revista da Ré, revogando-se em consequência a decisão plasmada no Acórdão sob recurso, repristinando-se a sentença de primeiro grau, claudicando ao recurso subordinado dos Autores.

Custas pelos Autores.

Lisboa, 15 de Março de 2022

Ana Paula Boularot (Relatora por vencimento)

José Rainho

Luís Espírito Santo (Relator vencido nos termos da declaração que junta)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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Voto de vencido.
Elaborei projecto de acórdão que confirmaria o veredicto do Tribunal da Relação do Porto pelas seguintes razões essenciais (que consubstanciam agora o presente voto de vencido):
I – O artigo 505º do Código Civil não afasta totalmente a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo face a uma conduta culposa do lesado, sendo admissível o concurso entre ambas, desde que seja possível concluir, perante os factos dados como provados, que o risco próprio associado à circulação da viatura automóvel teve influência relevante para a eclosão do sinistro, não exonerando totalmente a responsabilidade daquele e levando à casuística ponderação da percentagem correspondente à quantificação da indemnização a atribuir à vítima, em consonância com o critério estabelecido no artigo 570º, nº 1, do Código Civil.
II – Deverá colocar-se definitivamente de lado a doutrina tradicional - dita “clássica” - em relação à interpretação do artigo 505º do Código Civil que afastava peremptoriamente tal possibilidade de concurso, não distinguindo na sua previsão normativa os diferentes graus de contribuição causal e culposa do lesado e levando portanto a que o efeito excludente da responsabilidade pelo risco viesse a abranger, indiferenciadamente, um conjunto de situações de mera distracção momentânea do peão, caracterizáveis como actos reflexos, instintivos ou de pura precipitação que, sendo humamente compreensíveis, são simultaneamente inerentes à interligação entre a movimentação dos peões e a sua forçosa intersecção com a cinética rodoviária, especialmente intensa e dinâmica nos centros urbanos.
III – Cumpre tornar efectivo um verdadeiro e actuante sistema de socialização do risco, inerente à obrigatoriedade de seguro de circulação automóvel, o qual, sem censurar a conduta do condutor (afastando-se portanto a sua responsabilidade sujectiva), faça operar em contraponto a responsabilidade objectiva ligada à própria movimentação rodoviária que, compreendida no contexto actual que se vive nas sociedades modernas (bem distante do panorama existente em 1967 - tempo em que entrou em vigor o actual Código Civil português), constitui um foco de permanente perigo para os peões que com ela são forçados a interagir.
IV – Na situação sub judice, o peão de saía do trabalho esperando-o do outro lado da rua e em segunda fila a viatura de uma colega de trabalho para lhe “dar boleia”, tendo sido num fugaz momento marcado por um misto de agitação, precipitação e repentismo que se fez, de supetão e impensadamente, à estrada, virado de costas para o trânsito, sendo, de imediato e violentamente, colhido pela viatura, projectado ao solo e vindo dias depois a falecer.
V – Este peão, embora não tenha assumido o comportamento que as regras rodoviárias lhe impunham, actuou em circunstâncias perfeitamente veniais para quem realmente compreende a intensidade, agitação e aceleração que marca o quotidiano dos centros urbanos, em especial na denominada “hora de ponta”, tudo se passando numa exígua fracção de segundo, instantâneamente (provou-se que logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG”), com o resultado trágico de que os autos dão notícia.
VI – Acresce que a circunstância de a viatura automóvel ser movida a energia eléctrica, sendo, por sua natureza, mais silenciosa que uma viatura movida a combustão de gasóleo ou gasolina (factor especial e concreto de risco acrescido que a própria União Europeia já reconheceu e sublinhou repetidamente em diversos diplomas legislativos), traduziu-se num elemento facilitador da adopção da conduta imprevidente do peão, na medida em que não lhe permitiu aperceber-se, pelo ruído habitual que se pressupõe noutros tipos de automóveis, da iminente aproximação da viatura ali mesmo ao lado, contribuindo assim de forma relevante para a eclosão do sinistro.
VII – Dar-se como provado, neste contexto, que “o peão seguia distraído” é afirmar-se coisa nenhuma no plano real dos factos: não nos parece que o tribunal tivesse arranjado meios de perscrutar os íntimos pensamentos e estados de alma do peão sinistrado (o que lhe estaria concretamente a passar pela cabeça nessa altura), constituindo a única realidade a tomar em conta a circunstância irrefutável de que não olhou para o fluxo do trânsito no momento em que iniciou a fatídica travessia da faixa de rodagem.
VIII - Perante este quadro factual, adoptando, como se adopta, a corrente interpretativa oposta à interpretação tradicional do artigo 505º do Código Civil, não faz sentido acabar na prática por decidir com base no raciocínio subjazente à doutrina clássica que, em sede de responsabilidade pelo risco, sobrevaloriza excessivamente a conduta culposa (ainda que ligeira) do peão e produz o mesmo invariável resultado de sempre (negação de atribuição de qualquer indemnização à vítima do acidente de trânsito), como se todas as situações de facto fossem equiparáveis (isto é, igualmente graves no prisma da análise da conduta do peão) e só raríssimos casos, de uma excepcionalidade extrema, merecessem afinal actuação jurisprudencial diferenciadora.
IX – Nestas circunstâncias, não é de excluir a atribuição de um montante indemnizatório aos autores, herdeiros do peão vítima (mortal) do acidente, introduzindo um factor de ponderação no montante indemnizatório a conceder, à luz do artigo 570º, nº 1, do Código Civil, sendo esta a única solução jurídica que se mostra verdadeiramente compatível com o espírito do ordenamento europeu sobre a matéria, consistentemente representado através das modernas e progressitas tendências doutrinárias e jurisprudências que exigem, sem sofismas nem tibiezas, a efectiva e eficaz protecção do “elo mais fraco” no campo da circulação rodoviária: o peão que se vê obrigado, no dia a dia, a partilhar o espaço comum da faixa de rodagem, numa comunidade cada vez mais marcada pela intensidade nas acções, emergência nos propósitos e aceleração nos movimentos, em particular nos centros urbanos a hora de elevada e dinâmica concentração de pessoas e veículos.
X – É equilibrada e ajustada a fixação da percentagem de 20% (vinte por cento) que está na base do cálculo do montante indemnizatória a atribuir aos AA., pais da vítima de atropelamento, uma vez que, embora não seja de excluir totalmente a responsabilidade pelo risco, há que reconhecer que a contribuição da lesada para o sinistro que a vitimou é muito mais determinante que o perigo causado pela circulação da viatura que seguia a sua marcha em total observância das regras estradais, sendo a sua condutora surpreendida com a inopinada presença na via do peão em atravessamente fora dos locais destinados para o efeito.

Luís Espírito Santo