Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6275/07.7TBVFX.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
GARANTIA AUTÓNOMA
FIANÇA
EXCEPÇÕES
GARANTIA DE BOA EXECUÇÃO DO CONTRATO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DE IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS
DIREITO BANCÁRIO - GARANTIAS
Doutrina: - Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Livraria Almedina, 1998, pág. 609.
- Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, pág.208.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.10.97, BMJ 470, 597;
-DE 31/3/04, PROCESSO N.º 04A510, EM WWW.STJ.PT ;
-DE 29/4/08, PROCESSO N.º 380/08, 6.ª SECÇÃO;
-DE 19/5/10, PROCESSO N.º 241/07.0TBMCD-A.S1, EM WWW.DGSI.PT.
Sumário : I - A garantia autónoma é independente da validade e subsistência do contrato-base (rectius: da obrigação que garante), pelo que não se confunde com a fiança, que, sendo acessória, está subordinada a essa validade e subsistência.

II - Com a autonomia pretende-se que não possam ser opostas excepções relacionadas com o contrato garantido, isto é, exteriores ao contrato de garantia, embora possam opor-se excepções próprias deste contrato.

III - Constando de documento escrito denominado “Garantia (…)” que o banco 2.º réu declarou prestar, em nome e a pedido da empresa 1.ª ré, uma garantia bancária, a favor da autora, “até ao montante de Esc. 75 000 000$00 (…), destinada a caucionar o bom pagamento de facturas referentes ao fornecedor de baterias de arranque da marca ... e ... (…)”, responsabilizando-se o banco “dentro do valor da (…) garantia, por fazer a entrega (…) de quaisquer quantias que se tornem necessárias até àquele limite, se a citada firma, faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo”, verifica-se que a garantia ajuizada, quanto à finalidade que lhe preside, é uma garantia de boa execução, pois destina-se a assegurar o adequado cumprimento de obrigações contratuais, e é uma garantia simples, não automática, porquanto o direito do beneficiário está dependente da prova do incumprimento da obrigação do devedor.

IV - Na determinação do real alcance da garantia prestada pelo banco, em particular na parte em que refere que o 2.º réu “ (…) presta uma garantia bancária (…) destinada a caucionar o bom pagamento de facturas referentes ao fornecedor de baterias de arranque de marca ... e ...”, não tendo sido possível apurar qual foi a vontade real comum das partes (o sentido subjectivo comum), há que aplicar, em primeira linha, a regra do art. 236.º, n.º 1, do CC, mostrando-se fora de toda a dúvida que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (no caso, a autora), não poderia entender a declaração negocial do banco 2.º réu senão no sentido de que as baterias incluídas na garantia prestada eram as das marcas “...” e “...”.

V - Se as partes tivessem querido que a garantia incluísse, mais do que as ditas marcas, baterias cujas referências coincidissem com as daquelas, por certo teriam explicitado no texto essa vontade negocial, utilizando a expressão “baterias com as características das da marca ... e...”, ou outra de teor semelhante.

VI - Os factos relativos à execução do contrato-base não devem ser chamados à colação para interpretar o texto da garantia porque o banco réu, enquanto garante, é inteiramente alheio a tal contrato; por isso as estipulações deste não lhe são oponíveis e não podem ser invocadas para o efeito de determinar o exacto conteúdo e âmbito da prestação a que se vinculou.

VII - Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia, nunca as derivadas da relação principal, limitação esta que vale também, nos seus precisos termos, para o beneficiário.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso

A “AA”, Ldª, propôs contra “BB”, Ldª, e o Banco “CC”, SA, uma acção ordinária, pedindo a condenação dos réus no pagamento das quantias de, respectivamente, 361.736,23 € e 313.684,75 €, acrescidos de juros de mora vincendos à taxa legal até ao efectivo reembolso.

Alegou que no âmbito da sua actividade comercial forneceu à 1ª ré várias baterias que não lhe foram pagas e cujo valor ascende a 329.360,23 €.

Em nome e a pedido da 1ª ré o Banco “CC”, SA (“CC”) prestou a favor da autora uma garantia bancária até à importância de 374.098,00 € abrangendo o valor das baterias que se encontram em dívida, no montante de € 329.360,23 €. Todavia, instada a honrar a garantia prestada por carta da autora de 20/3/07, a 2ª ré apenas aceitou fazê-lo pela quantia de 48.051,48 €.

A 1ª ré não contestou.

Fê-lo o réu “CC”, que alegou, em resumo, ter prestado garantia bancária a favor da autora apenas para o bom pagamento de facturas relativas ao fornecimento de baterias ... e ...e das quais conste, expressamente, a indicação destas marcas; como esse não é o caso das facturas identificadas na petição inicial o pagamento relativo ao fornecimento das baterias exigido pela autora não lhe é exigível.

Houve réplica.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente:

a) Condenou a 1ª ré a pagar, subsidiariamente, à autora a quantia global de 266.432,37 €, acrescida de juros de mora comerciais à taxa legal em vigor nas datas dos vencimentos das facturas mencionadas no ponto 12) da matéria de facto até 12/11/07, e ainda 87,70 €, acrescidos de juros de mora comerciais desde a citação até ao efectivo reembolso;

b) Condenou p réu “CC” a pagar à autora, a título de principal pagador e sem benefício de excussão prévia, a quantia de 266.432,37 €, com juros de mora comerciais vencidos desde 20/3 a 12/11/07 sobre 314.489, 86 € e vincendos desde essa data sobre 266.432,37 € até ao efectivo reembolso.

O réu “CC” apelou e, dando provimento parcial ao recurso, a Relação revogou a sentença na parte em que o condenara no pagamento de juros de mora, decidindo que só são devidos juros vincendos a partir do trânsito em julgado da decisão da 2ª instância.

Mantendo-se inconformado, o réu pede revista, sustentando a revogação do acórdão recorrido e a sua consequente absolvição do pedido com base em trinta e três conclusões que, na sua parte útil, podem resumir-se assim:

1ª) À luz do disposto nos artºs 236º, nº 1, e 238º do CC qualquer pessoa colocada na posição do Banco recorrente compreenderia  que as partes quiseram delimitar as marcas ao ler “destinada a caucionar o bom pagamento de facturas referentes ao fornecedor de baterias de arranque da marca ... e ...”;

2ª) Enquanto declaratário normal, não é exigível ao Banco que onde lê “L02046C14-B BAT.TARGA 55426” ou, por exemplo, “L05070C11 - B BAT. TARGA 92434”, deva ler ... e “…”;

3ª) Se as partes quisessem que a garantia bancária abrangesse referências e não marcas teriam feito constar tais referências da garantia bancária, ou pura e simplesmente teriam omitido as marcas;

4ª) A interpretação dos termos da garantia bancária acolhida pela Relação acarreta a sua nulidade, por indeterminabilidade do seu objecto (artºs 280° e 400° do CC e AUJ 4/2001 de 23/1/01);

5ª) O alcance que se extraiu do texto da garantia bancária prestada pelo recorrente colide com os princípios da boa-fé que devem nortear as partes, quer nos preliminares, quer na execução dos contratos que livremente celebram (artºs 227°, 405° e 762° do CC);

6ª) Dizer que as baterias constantes das facturas referidas em 12) correspondiam às características e às referências das marcas … e … não é o mesmo que dizer que as baterias constantes das facturas referidas em 12) eram da marca … e …;

7ª) Questões como as características e referências das baterias, a que o recorrente, enquanto garante, é alheio,  não podem ser chamadas à colação para interpretar a garantia, pois são assuntos que dizem exclusivamente respeito à 1ª ré e à autora;

8ª) Qualquer interpretação com recurso a elementos exógenos à declaração negocial peca por excesso e extravasa aquilo que as partes convencionaram;

9ª) A interpretação feita pelo acórdão recorrido ignorou o elemento literal, dado que na garantia não constam referências, nem lá ficou a constar a expressão “baterias com as características das da marca … e …”.

A autora contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

De entre os factos que a Relação considerou definitivamente assentes interessa destacar os seguintes, visto o objecto do recurso:

1) A autora dedica-se ao fabrico e comercialização de baterias.

2) A autora é fornecedora das baterias de arranque das marcas ... e ....

3) Por escrito datado de 24/4/00, denominado “Garantia nº ...” o réu “CC” declarou:

“(...) prestar em nome e a pedido de “BB”, LDA, com sede em Sacavém, uma garantia bancária”, a favor da autora, “até ao montante de Esc. 75.000.000$00 (Setenta e Cinco Milhões de Escudos), destinada a caucionar o bom pagamento de facturas referentes ao fornecedor de Baterias de Arranque da Marca ... e “…”.

Responsabiliza-se este Banco, dentro do valor da presente garantia, por fazer a entrega a V. Exªs de quaisquer quantias que se tornem necessárias até àquele limite, se a citada firma, faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo.

É, pois, de até Esc. 75.000.000$00 (Setenta Cinco Milhões de Escudos) o valor da presente garantia e é válida pelo período de um ano a contar da presente data, considerando-se automaticamente renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, salvo denúncia do Banco fiador, com a antecedência de trinta (30) dias do período que estiver em curso, sem prejuízo das obrigações assumidas até ao termo da duração da fiança”.

4) A autora enviou ao réu “CC” uma carta, datada de 20/3/07, com o seguinte conteúdo: “Na qualidade de fornecedor de Baterias de Arranque à empresa “BB”, Lda, com sede em Sacavém, vimos junto de V. Exªs accionar a Garantia Garantia Bancária nº ... que em fotocópia anexamos, pelo incumprimento verificado no pagamento da sua dívida do montante de 329.360,23 euros (Trezentos e Vinte e Nove Mil,  Trezentos e Sessenta Euros e Vinte e Três Cêntimos), porquanto a referida sociedade apesar de inúmeras vezes interpelada não cumpriu com os vários planos de pagamento estabelecidos”.

5) O réu “CC” enviou à autora uma carta, datada de 11/4/07, com o seguinte teor:

“Assunto: Accionamento da Garantia Bancária nº ..., no valor de 374.098,42 euros, emitida a pedido de “BB”, Lda.

Na sequência do V/pedido de accionamento da Garantia Bancária acima melhor identificada, bem como dos contactos havidos, relativos ao mesmo assunto, vimos solicitar a V.Exªs a confirmação do valor das facturas vencidas e não pagas pela n/ Cliente “BB”, Lda, referente ao fornecimento de Baterias de Arranque da Marca ... e ...(marcas abrangidas pela Garantia), bem como cópias das mesmas, a fim de se poder dar seguimento ao V/ pedido”.

6) A Ré “BB” enviou ao réu “CC” uma carta, datada de 23/8/07, com o seguinte con­teúdo: “

Assunto: Garantia Bancária Tudor nºs ....

No seguimento de reunião efectuada hoje no Centro de Empresas do Saldanha, confirmamos as seguintes condições: 1 - A Garantia em assunto, nos termos do nosso acordo de distribuição em regime de exclusividade para o mercado português das marcas … e …, destina-se exclusivamente para garantir o pagamento dos fornecimentos daquelas duas marcas de Baterias, que pertenciam em 1997 à CEAC e actualmente são propriedade da Exide. 2 - Na presente data não há nenhuma factura de baterias … por liquidar e de baterias … estão por liquidar as seguintes facturas: Factura nº 242730 - 31.523,28 euros; Factura nº 245541 - 13.110,35 euros; Factura nº 246634 - 346,59 euros. As três facturas perfazem o valor de 44.980,22 euros. 3 - Relativamente ao valor de 3.071,27 euros que a Tudor reclama como parte da factura nº 230.303, infelizmente na presente data não nos é possível confirmar essa situação. Recordamos porém que os pagamentos da “BB” regra geral não eram efectuados de acordo com os valores exactos das facturas, e, consequentemente, era frequente existirem em conta corrente facturas parcialmente pagas. Nesta conformidade admitimos como possível a situação reclamada pela Tudor e, nestas condições, o valor máximo da dívida da “BB” para com a Tudor na presente data incluindo Baterias ... e ... poderá ser de 48.051,49 euros”.

7) O réu “CC” enviou uma carta à autora, datada de 31/8/07, com o seguinte teor:

“Assunto: Garantia Bancária n.º .... Em nome da: “BB”, Lda.

Face à reclamação apresentada por V. Exªs ao abrigo da Garantia Bancária referida em assunto, informamos que estamos nesta data a creditar a vossa conta com o N/B ..., junto do “CC”, por Eur. 48.051,49 (quarenta e oito mil e cinquenta e um euros e nove cêntimos), valor correspondente ao total das facturas, referidas pelo nosso Cliente “BB”, Lda., como sendo o montante em dívida: Factura nº 242730 no valor de 31.523,28 euros; Factura nº 245541 no valor de 13.110,35 euros; Factura nº 246634 no valor de 346,59 euros e Factura nº 230303 no valor de 3.071,27 euros.

Para os nossos serviços agradecemos que nos termos da minuta que juntamos, nos remetam recibo da importância por nós paga, bem como o documento original da Garantia Bancária”.

8) Na sequência dos factos descritos, o réu “CC” entregou à autora, em 12/9/07, a quantia de 48.057,49 €.

9) O montante referido em 8) destinou-se, pelo menos, ao pagamento da factura 56/242730, de 3/3/06, no valor de 31.253,28 €.

10) De entre as baterias que a autora fabrica e comercializa há aquelas que se referem às marcas principais Tudor, Exide, ..., Cetra e Deta, reconhecidas internacionalmente, e há aquelas que se referem a marcas secundárias, que apesar de terem forte expressão nos mercados locais, podem ser utilizadas por alguns distribuidores, ficando da sua responsabilidade a estratégia comercial a utilizar.

11) A ré “BB” sempre exigiu que lhe fossem fornecidas baterias sem indicação da marca porque necessitava de fornecer baterias à associada “DD”, as quais eram etiquetadas por esta com a marca que bem entendia.

12) A autora forneceu à ré “BB”, a pedido desta, as baterias que constam das facturas:

56/230303, de 16/12/05, no valor de 51.175,98 €; 56/232037, de 28/12/05, no valor de 26.807,07 €; 56/240066, de 13/2/06 no valor de 14.747, 24 €; 56/240249, de 14/2/06, no valor de 6.948,55 €; 56/240258, de 14/2/06, no valor de 14.551,22 €; 56/242082, de 25/2/06, no valor de 4.980,00 €; 56/242083, de 27/2/06, no valor de 6.863,97 €; 56/242084, de 27/2/06, no valor de 5.203,97 €; 56/242730, de 3/3/06, no valor de 31.523,28 €; 56/242733, de 3/3/06, no valor de 16.445,47 €; 56/242749, de 3/3/06, no valor de 2.216,24 €; 56/242419, de 15/3/06, no valor de 22.547,75 €; 56/244433, de 15/3/06, no valor de 12.623,57 €; 56/245540, de 23/3/06, no valor de 14.611,79 €; 56/245541, de 23/3/06, no valor de 346,59 €; 56/257889, de 26/6/06, no valor de 33.344,21 €; 56/258330, de 28/6/06, no valor de 4.867,10 €; 56/270566, de 20/9/06, no valor de 4.066,45 €; 56/271260, de 25/9/06, no valor de 4.898,08 €; 56/ 273479, de 9/10/06, no valor de 2.256,41 €; 56/273943, de 11/10/06, no valor de 5.871,89 €; 56/279040, de 13/11/06, no valor de 11.031,81 €; 56/279781, de 16/11/06, no valor de 4.530,12 €; 56/282661, de 4/11/06, no valor de 2.568,95 €; 56/282699, de 4/12/06, no valor de 40,78 €; 56/293960, de 2/2/07, no valor de 22.467,64 €.

13) As facturas referidas em 12) venciam-se no prazo de 90 dias, a contar do final do mês da emissão de cada uma delas.

14) De entre as facturas referidas em 12), a ré “BB” pagou apenas à autora a quantia de 4.457,59 € por conta do valor da factura referida na primeira alínea de 12) e a quantia de 8.498,68 € por conta do valor da factura 056/293960.

15) As baterias constantes das facturas referidas em 12), nuns casos eram fornecidas já etiquetadas com a marca ... e, noutros casos, eram fornecidas apenas com menção às referências correspondentes às marcas ... e ..., sendo que, posteriormente, a ré “BB” etiquetava tais baterias, com exclusão das referidas em 11), com a marca que bem entendesse.

16) As encomendas da ré “BB” à autora eram realizadas tendo em conta a referência das baterias e não a marca que as etiquetava.

17) Com excepção da bateria identificada na factura junta a fls 38 da marca Tudor, modelo Millenium, todas as baterias fornecidas pela autora à ré “BB”, constantes das facturas referidas em 12), correspondiam às características e às referências das marcas ... e ....

18) O réu  “CC” só entregou o montante referido em 8), por conta do pagamento das facturas mencionadas em 9) e 18), por a tal ser convencido pela ré “BB”.

19) Logo que recebeu a carta  referida em 3) o réu “CC” reuniu diversas vezes com a ré “BB”, para apuramento do valor das baterias da marca ... e ... fornecidas pela autora e não pagas pela ré “BB”.

b) Matéria de Direito

No que se refere à qualificação do contrato que está na base do presente litígio não se regista já qualquer divergência entre as partes: recorrente e recorrida aceitam tratar-se de uma garantia bancária autónoma, embora não automática ou à primeira solicitação, sendo certo que quer na sentença da primeira instância, quer no acórdão recorrido, se chegou a conclusão perfeitamente idêntica.

Em termos práticos, e com relevo para a solução do presente recurso, o que isto significa é o seguinte:

1º) Por ser autónoma, a garantia não se confunde com a fiança, que é acessória; portanto, a garantia autónoma é independente da validade e subsistência do contrato-base (rectius: da obrigação que garante), enquanto que a fiança está subordinada a essa validade e subsistência;

2º) Com a autonomia, como se observa no acórdão do STJ de 19/5/10 (Pº 241/07.OTBMCD-A.S1), pretende-se que não possam ser opostas excepções relacionadas com o contrato garantido, isto é, exteriores ao contrato de garantia, embora possam opor-se excepções próprias deste contrato;

3º) Vê-se do seu texto - facto 3) - que a garantia ajuizada, quanto à finalidade que lhe preside, é uma garantia de boa execução, pois destina-se a assegurar o adequado cumprimento de obrigações contratuais (concretamente, o bom pagamento de facturas referentes ao fornecimento pela autora de certas baterias à 1ª ré);

4º) E é uma garantia simples, não automática, porquanto o direito do beneficiário (a autora) está dependente da prova do incumprimento da obrigação do devedor; se fosse automática, ou à primeira solicitação, bastaria a interpelação do garante (o réu “CC”) e não seria permitida a discussão sobre o cumprimento ou incumprimento do contrato base (o fornecimento das baterias). 

Sendo assim, pode dizer-se que o problema que subsiste para resolver, atendendo às conclusões da minuta, é somente o da determinação do real alcance da garantia prestada pelo banco, ou, dito de outro modo, o da fixação do seu efectivo conteúdo. E a esse respeito, enquanto que o recorrente sustenta que a garantia assegura tão somente o bom pagamento de facturas relativas ao fornecimento de baterias das marcas ... e ..., a recorrida defende que do contrato só resulta que as baterias fornecidas têm de ser daquelas marcas, mas não que estas tenham que constar das facturas, bastando a referência das baterias para se determinar as marcas em causa; ora, o certo é que, alega ainda, pelas referências constantes das notas de encomenda juntas aos autos feitas pela 1ª ré e confrontando os catálogos e impressos relativos às referências das baterias ... e ... o banco podia verificar, como de resto o fez o tribunal, que o material fornecido eram baterias destas marcas; não se trata, pois, conclui, de elementos exógenos à declaração negocial, nem de ultrapassar aquilo que as partes convencionaram, mas de reconhecer que da garantia não resulta a obrigação de aquelas marcas de baterias constarem expressamente nas facturas.

A posição das instâncias sobre esta questão - única, repete-se, que ainda está em aberto - não foi, de igual modo, coincidente.

Com efeito, na sentença, depois de se ter concluído que o contrato ajuizado é uma garantia bancária autónoma, escreveu-se o seguinte (fls 240):

  “No caso vertente, o réu “CC” - repete-se - sustenta que a garantia bancária prestada apenas garante o bom pagamento de facturas relativas ao fornecimento de baterias das marcas ... e ... e onde constem expressamente essas marcas.

Tendo presente o que se disse sobre a declaração negocial, a mesma vale com o sentido que um declaratário normal (as circunstâncias do caso concreto, isto é, todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, sagaz e diligente, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta) colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

Ora, contrariamente ao sustentado pelo réu “CC”, resulta claro na garantia que prestou que o faz até ao montante de 75.000.000$00 (374.098,42 euros) destinado a caucionar o bom pagamento das facturas referentes ao fornecedor de baterias de arranque da marca ... e ....

Não resulta da garantia que tem que constar nas facturas expressamente aquelas marcas de baterias mas sim que as baterias fornecidas tem que ser dessas marcas (e é suficiente a referência às baterias para se determinarem as marcas em causa) e até se podia concluir, ainda, que bastava serem facturas emitidas pela autora (que é a fornecedora das baterias referidas) dado que a frase citada apenas fala - repete-se - em facturas referentes ao fornecedor de baterias da marca ... e ... (e o réu “CC”, conforme 18) e 19) dos factos provados chegou a pagar a factura junta a fls 38 e referente a baterias Tudor).

Se devessem constar tais marcas nas facturas, então constaria na garantia “destinada a caucionar o bom pagamento de facturas referentes ao fornecedor de baterias de arranque das marcas ... e ... e em que constem expressamente tais marcas de baterias”; mas não é o caso, como se viu.

De tudo o que se disse, conclui-se que a autora, beneficiária da garantia bancária em causa, apenas tinha de invocar, como invocou, que a garantida “BB” não procedeu ao pagamento de facturas referentes ao fornecimento de baterias ... e ....

Nada mais tem ou tinha que invocar para obter o pagamento do réu “CC” porque a garantia bancária, apesar de ter como causa o contrato celebrado entre a autora e a ré “BB”, é autónomo desse contrato”.

No acórdão recorrido, por seu turno, ponderou-se que (pág. 27 e sgs):

...

No nosso caso a definição da verdadeira natureza da garantia bancária accionada é matéria que se prende com a interpretação da declaração negocial que nela se contém e esta questão resolve aquela outra suscitada no recurso, que é a de saber se estão ou não presentes todos os elementos de facto que admitam uma interpretação segura sobre essa natureza.

Nos termos do referido nº 1 do art. 236º do CC, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratório normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, e o nº 2 acrescenta: “Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, a regra para o problema básico da interpretação das declarações de vontade é o de o sentido decisivo da declaração negocial ser aquele que seria apreendido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, exceptuando-se apenas dois casos: o de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1); o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2), (CC Anot.).

Por outro lado, nos negócios formais, ou seja, nos que devem constar de documento escrito, exige-se que o sentido da declaração tenha “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” (cfr.o referido  nº 1 do artº 238º do CC) e, no caso em apreço, estamos perante um negó­cio formal.

Ora, seguro é que, foi acordado e escrito que a garantia bancária abrangeria as baterias da marca "..." e "..." e não, como consta da sentença do Tribunal a quo: “Ora, contrariamente ao sustentado pelo réu “CC”, resulta claro na garantia que prestou (...) destinado a caucionar o bom pagamento das facturas referen­tes ao fornecedor (sublinhado nosso) de baterias de arranque da marca ... e ....”

Pelo contrário, no mesmo sentido, propugnado pelo recorrente interpretamos a garantia prestada, com o teor que ficou provado na matéria assente, no sentido de que o “CC” apenas garantia o pagamento das baterias das marcas ... e “...…..” e não outras.

Esclarecido este ponto, cumpre analisar se a prática seguida e aceite pelo fornecedor das baterias e pela sua cliente “BB” de, nas notas de encomenda e facturas, indicarem a maior parte das vezes referências e modelos e não a marca propriamente dita é, no caso concreto, oponível ao Réu “CC” para efeitos de accionamento da garantia bancária.

Defende o Banco que as partes não determinaram que o pagamento abrangeria fornecedores, ou referências, mas apenas marcas e que “…Uma coisa é o negócio havido entre a “BB” e a …, marcas brancas, marcas pretas, etc..., e esta deve aquela esses fornecimentos, uma vez que não os contestou.  Outra coisa bem diferente, é a responsabilidade do Banco, em face da garantia que prestou…..”.

Esta argumentação tem, a nosso ver,  em sede geral, bastante consistência. Mas, cai por terra face ao facto fixado em 18) do probatório (o qual não vem impugnado) e do qual resulta que com excepção de um caso todas as baterias fornecidas pela autora à ré “BB”, constantes das facturas referidas em 12), correspondiam às características e às referências das marcas ... e .... Eram em substância e conteúdo baterias ... e .... Isso ficou assente na sentença de 1ª Instância. E, se o banco não o sabia ou não tinha obriga­ção de o saber ficou agora assente através de tal facto levado ao probatório.

Em consequência aceitamos, como atendível, numa primeira fase, a recusa  do Banco em não pagar a totalidade do montante garantido (o que estava certo face às dúvidas de interpretação que a garantia acarretava e tendo presente que a garantia em causa não podia ser invocada pelo beneficiário senão em conformidade com os seus próprios termos pois o banco em garantias desta natureza só tem que pagar o que consta do título de garantia e em harmonia com o teor respectivo, sendo certo que  desde que o beneficiário respeite esse teor e reclame o que à face do título de garantia lhe é devido, não tem outro remédio senão pagar, devendo fazê-lo  imediatamente, sem discussão). Porém essa recusa, face ao que ficou dito, não pode subsistir.

Tendo ocorrido dúvidas de interpretação que foram sanadas por via judicial só a partir do momento da sua sanação podemos considerar que incorre em mora o Banco garante da obrigação, ou seja a partir do trânsito em julgado da presente decisão.

Aqui chegados entendemos estar perfeitamente delimitado, de acordo com a interpretação que fazemos do contrato de garantia, o campo da responsabilidade do ora recorrente “CC”. Não é o pretendido pela apelada no que respeita aos juros de mora mas também não é só o propugnado por esta Instituição Financeira a qual, esclarecidas as dúvidas de interpretação e face ao facto 18) da matéria de facto, tem de honrar o seu compromisso respondendo pelo capital em dívida”.

Interessa ainda referir que o quesito 48º da base instrutória, cuja resposta foi impugnada sem sucesso pelo recorrente na sua apelação, estava concebido do seguinte modo: “A autora e a 2ª ré quiseram apenas incluir no âmbito da cobertura da garantia referida em c) as facturas das quais constasse expressamente o fornecimento de baterias das marcas ... e ...?”. A resposta que mereceu, mantida pela Relação, foi esta: “Provado apenas o que consta em C) dos factos provados” (facto 3 da matéria de facto acima destacada).

Da adequada conjugação de tudo o que antecede - essencialmente, as posições sustentadas no presente recurso por recorrente e recorrida (a da recorrente condensada, em particular, nas conclusões que atrás pusemos em relevo) e as decisões da 1ª e 2ª instância - resulta com nitidez que a solução jurídica do caso sub judice passa em exclusivo pela interpretação do texto da garantia bancária, em particular da parte em que refere que o banco “CC”, ora recorrente, “...presta uma garantia bancária...destinada a caucionar o bom pagamento de facturas referentes ao fornecedor de baterias de arranque de marca ... e ...”.

Ora, nesta matéria os princípios fundamentais a ter em consideração são os seguintes (cfr. neste sentido o acórdão do STJ de 31/3/04 - Pº 04A510):

- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário - artº 236, nº2, do Cód. Civil;

- Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1;

- Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - artº 238, nº1; dito doutra forma: para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada;

- O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade - artº 238º, nº2.

Conforme já tivemos ocasião de referir no acórdão desta mesma conferência de juízes de 29/4/08 (Revª 380/08-6ª), estas regras, no fundo, não são mais do que critérios interpretativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes. E o que basicamente se retira do artº 236º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratório) – acordão deste Tribunal de 28.10.97, BMJ 470, 597

“Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este efectivamente conheceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declaratário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo”. Ainda segundo este mesmo autor,  “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objectivo que se pode depreender do seu comportamento”.

Na situação concreta dos autos, não tendo sido possível apurar, atenta a resposta dada ao quesito 48º da base instrutória, qual foi a vontade real comum das partes (o sentido sub­jectivo comum), há que aplicar, em primeira linha, a regra do artº 236º, nº 1. Ora, parece-nos fora de toda a dúvida que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (no caso, a autora) não poderia entender a declaração negocial do banco recorrente senão no sentido de que as baterias incluídas na garantia prestada eram as das marcas ... e “...”. Se as partes tivessem querido que a garantia incluísse, mais do que as ditas marcas, baterias cujas referências coincidissem com as daquelas, por certo tê-lo-iam feito; como correctamente observa o recorrente, teriam explicitado no texto essa vontade negocial utilizando a expressão “baterias com as características das da marca ... e ...”, ou outra de teor semelhante. É certo que do texto do contrato não resulta que das facturas relativas aos fornecimentos das baterias abrangidos pela garantia tenha que constar expressamente a menção às duas marcas em apreço. No entanto - e isto afigura-se decisivo - o banco recorrente, enquanto garante, é inteiramente alheio ao contrato celebrado entre o devedor e o beneficiário da garantia, contrato esse cujas cláusulas não lhe são oponíveis nem podem ser invocadas para o efeito de determinar o exacto conteúdo e âmbito da prestação a que se vinculou. No caso ajuizado, por conseguinte, os factos provados e relatados sob os nºs 10, 11, 15 e 16, todos relativos à execução do contrato-base, não podem nem devem ser chamados à colação para interpretar o texto da garantia, isto é, para determinar o sentido juridicamente relevante do que nele se clausulou. Conforme ensina o Prof. Menezes Cordeiro [1](e com ele vários outros autores), exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal. Só que, a nosso ver, esta limitação vale também, nos seus precisos termos, para o beneficiário. Daí que não possamos acompanhar o acórdão recorrido quando nele se afirma a dado passo que a argumentação do recorrente “cai por terra” perante o facto nº 18, “ do qual resulta que com excepção de um caso todas as baterias fornecidas pela autora à ré “BB”, constantes das facturas referidas em 12), correspondiam às características e às referências das marcas ... e .... Eram em substância e conteúdo baterias ... e .... Isso ficou assente na sentença de 1ª Instância. E, se o banco não o sabia ou não tinha obrigação de o saber ficou agora assente através de tal facto levado ao probatório”. Efectivamente, se não existe nenhuma prova de que o devedor garantido (1ª ré) ou o beneficiário da garantia (autora) informaram em tempo oportuno o banco desta realidade, bem como daquela que está retratada nos outros factos atrás referidos, - e tempo oportuno, neste con­texto, quer dizer em momento anterior à conclusão e formalização do contrato de garantia - e se também é certo, como de resto o acórdão recorrido reconhece, que o recorrente não tinha obrigação de conhecer esses factos (relativos a um contrato independente da garantia prestada), torna-se evidente, em nosso entender, que não é lícito chamá-los à colação para o efeito de fixar em definitivo  o sentido da vinculação contratual das partes à luz da impressão do destinatário. Quer dizer: mesmo que se admitisse que a interpretação preconizada pela recorrida era a conforme à regra estabelecida na 1ª parte do artº 236º, nº 1, por corresponder ao sentido objectivo dado pelo declaratário normal (e já vimos que não é assim), nunca ela poderia prevalecer porque, justamente, tal sentido não seria imputável à vontade do declarante (o recorrente); este, como ressalva a segunda parte do preceito, não poderia razoavelmente contar com ele.

Conclui-se, assim, que a revista merece provimento, ainda que por razões diversas, em parte, das invocadas.

III. Decisão

Nos termos expostos concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e absolve-se o réu do pedido.

Custas neste Supremo Tribunal de Justiça pela Recorrida e nas instâncias pela Autora e 1ª Ré, na proporção de 50% para cada uma.
Lisboa, 10 de Maio de 2011


Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

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[1] Manual de Direito Bancário, pág. 609 (Livraria Almedina, 1998).