Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
798/21.2JALRA.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PROVA PROIBIDA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I - Sejam as buscas judiciárias ou efetuadas por órgão de polícia criminal, o juízo de prognose sobre a existência de indícios para a realização da busca deve ser aferido perante a situação concreta, em função de critérios de razoabilidade, ou seja, de necessidade, adequação e proporcionalidade perante o objetivo, nos termos extraídos da 2.ª parte do art. 18.º , n.º 2 da CRP.
II - O tipo de crime, os meios utilizados para o crime e os objetos encontrados na posse do agente aquando do flagrante delito são, entre outros, fatores relevantes para a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal decidirem, em função de critérios de razoabilidade, se existem indícios para ser autorizada/ordenada ou efetuada busca em lugar reservado ou não livremente acessível ao público. Tais indícios não têm de ser fortes ou indícios suficientes, pois quando assim o CPP o quis referiu-o expressamente nas normas legais.
III - Sendo o fim da busca domiciliária a apreensão de coisas ou objetos relacionados com o crime que estarão no domicílio do arguido, não é a distância entre o local da ocorrência do flagrante delito e o da busca, que determina a validade ou não desta, mas sim a adequação e necessidade de realização dessa diligência, para salvaguarda do meio de prova que, objetivamente e em face das regras da experiência comum, ali se poderá encontrar.
IV - Não existindo expresso na lei um hiato temporal a respeitar entre a constatação do flagrante delito e a busca, é medianamente claro que o mesmo não poderá ser dilatado, sob pena de a busca se tornar inadequada e desnecessária ao fim visado, por inútil, pois a possibilidade de destruição ou de movimentação das provas aumenta com o decurso do tempo.
V - Não é o resultado da busca - consubstanciado na apreensão ou não de objetos do crime ou relacionados com ele no lugar reservado ou não livremente acessível ao público -, que determina a validade ou invalidade do juízo sobre a existência de indícios que determinou a realização da busca.
VI - O direito ao sigilo da correspondência e das comunicações privadas, como à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática, são expressões do direito à reserva de intimidade da vida privada, consagrado no art. 26.º, n.os 1, in fine e 2 da CRP).
VII - Entende-se que o art. 179.º do CPP se aplica à correspondência física em trânsito, fechada, até à sua abertura. Uma carta recebida e aberta não goza da proteção do art.179.º do CPP, mas do regime aplicável a qualquer documento escrito guardado em arquivo pessoal. São essencialmente duas as razões que suportam este entendimento: por um lado, tem-se em conta a específica situação de perigo em que a mensagem se encontra durante o processo de comunicação, altura em que o emissário e o destinatário não têm controlo sobre ela. Por outro lado, assume-se que correspondência suscetível de ser violada é apenas aquela que dispõe de uma proteção física exterior, que faz com que a mensagem se encontre fechada, tornando o respetivo conteúdo inacessível por terceiros.
VIII - Com o novo regime de recolha da prova em ambiente digital, contemplado na Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime), passou a entender-se, pelo menos maioritariamente, que as mensagens de correio eletrónico, armazenadas, deixaram de estar sujeitas ao regime das interceções telefónicas, por via do art. 189.º, n.º 1 do CPP e passaram a ficar sujeitas ao regime de apreensão do art. 17.º da Lei do Cibercrime.
IX - O art. 17.º da Lei do Cibercrime não faz qualquer distinção entre mensagens de correio eletrónico abertas ou fechadas, no momento de exigir a intervenção do Juiz de Instrução para autorizar ou ordenar a apreensão daquelas mensagens, com a consequente legitimação para a utilização no processo.
X- A doutrina, como a jurisprudência do TC, têm caminhado em direção a uma disciplina tendencialmente unitária da apreensão de correio eletrónico em processo penal, apresentando, entre outros argumentos: a eliminação da barreira física que protege o conteúdo comunicação física até ao momento da abertura da carta - não tem pura e simplesmente aplicação no âmbito das mensagens eletrónicas. A distinção entre mensagens abertas e fechadas é não só artificial, porque o destinatário pode marcar, livremente, as mensagens como abertas ou fechadas, mediante a seleção de uma simples opção no computador: independentemente de ter lido ou não a mensagem, está na sua total disponibilidade classificá-la como não lida ou como lida, como é falível, porque nada garante que uma mensagem marcada como aberta tenha já esgotado a sua natureza de comunicação, tendo sido efetivamente lida. Diferentemente do que sucede na correspondência postal ou com as mensagens SMS que já foram lidas pelo destinatário, não pode afirmar-se que o processo de comunicação (a especial situação de perigo) cessou pela primeira abertura do correio eletrónico ou que o destinatário se encontra com total domínio sobre a mensagem. Enquanto a mensagem se mantiver na caixa de correio - sem ser definitivamente armazenada em qualquer lugar do computador do destinatário e eliminada dos servidores do provider -, ela está sob controlo do fornecedor de serviços eletrónico.
XI - Tendo os prints das mensagens de correio eletrónico sido apreendidos e juntos aos autos sem para tal sido proferido despacho de autorização do Juiz de Instrução, a apreensão das mensagens de correio eletrónico e sua junção aos autos, não se mostram legitimadas por despacho de autorização do Juiz de Instrução, como é exigência do art. 17.º da Lei do Cibercrime.
XII - A intromissão no correio eletrónico, sem autorização judicial para a sua apreensão, integra a nulidade prevista n.º 3 do art. 126.º do CPP, que gera a proibição da utilização da prova.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 798/21.2JALRA.S1

Recurso Penal

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.

I - Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de Tribunal Coletivo, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., foi submetido a julgamento, sob acusação do Ministério Público, o arguido AA, devidamente identificado nos autos, imputando-lhe a prática de factos pelos quais teria praticado, em autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas I-B e I-C, anexas àquele diploma legal, agravado por reincidência nos termos do disposto nos artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal.


2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão de 8 de novembro de 2022, decidiu julgar a acusação procedente por provada e, em consequência, condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes na forma consumada, p. e p. no art.21.º n.º 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22/01, por referência às Tabelas Anexas I-B e I-C, e nos artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal, na pena de seis anos de prisão.

3. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido AA, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):

1. I- Delimitação do objecto do recurso: o presente recurso fundamenta-se, em primeiro lugar, nos vícios da matéria de facto, bem como na inobservância de requisitos cominados sob pena de nulidade, não sanada, cognoscível ainda que se trate de um recurso limitado a matéria de direito, conforme prescrito nos art.º 410.º n.ºs 2 alínea a) e n.º 3 e 432.º n.º 1 alínea c), todos do CPP., abrangendo ainda toda a matéria de direito do Acórdão Recorrido, ao abrigo do disposto no art.º 434.º do CPP.

2. Aponta-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de fato provada à douta sentença recorrida, previsto no art.º 410.º n.º 2 alínea a), por referência ao estatuído no art.º 432.º nºs 1 alínea b) e n.º 2, todos do CPP, na medida em que existe, no caso, claramente, uma omissão, na matéria de facto provada e não provada, dos seguintes factos: quais os estupefacientes consumidos pelo arguido, à data dos factos, o que releva para o efeito da integração do crime de tráfico de estupefacientes e não no crime de consumo, no que concerne à bolota de cocaína com o peso de 10,020 gramas e 59,1% de grau de pureza, tendo em consideração a quantidade de droga apreendida, os factos dados como não provados referentes, agora, somente a este estupefaciente, nomeadamente relativos ao intuito lucrativo da detenção da cocaína, que se destinaria a venda a terceiros, ao uso da balança de precisão para individualização de doses de cocaína e canábis e em face dos factos provados, quanto ao trabalho desenvolvido pelo arguido, o qual sempre trabalhou, não sendo verdade não trabalhar desde Dezembro de 2013.

3. Esta omissão resulta do próprio texto da sentença recorrida, na medida em que se dá como provado, laconicamente, que o arguido é consumidor de estupefacientes, sem especificar quais (a.11) e como não provado que o arguido utilizava a balança de precisão para individualizar a cocaína em doses, que posteriormente vendia ou que destinasse a droga à venda a terceiros.

4. Qual o consumo concreto deste estupefaciente pelo Arguido, tendo em consideração que os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, na qual se inclui a cocaína, Tabela I-B, foram, no caso da cocaína, estabelecidos com base em dados epistemológicos referentes ao uso habitual, o que significa que, pese embora a cocaína apreendida ao arguido tivesse o peso líquido de 10,020g, grau de pureza 59,1% e, segundo a portaria desse para 29 doses, tal não invalida que se provasse um consumo superior desta substância.

5. 3- Com que intenção detinha o arguido a cocaína: se se apurou não ser para venda qual a finalidade de tal detenção? Não esqueçamos que o art.º 21.º do DL 15/93 exclui, expressamente, do seu âmbito de aplicação o do art.º 40.º do mesmo DL. É certo que este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, contudo continua a entender-se que a detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a prática de um crime de consumo.

6. Ora, se atentarmos nos factos provados provou-se tão somente, nos factos a.7 e a.8: “O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e de deter cocaína, ( com que intenção é a pergunta que se impõe!) bem conhecendo as suas características e o seu carácter legalmente proibido, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.” E “O arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o que não o demoveu de atuar como atuou.

7. Concluímos, assim, que não era legítimo ao Digno Tribunal decidir pela prática de um crime de tráfico, do art.º 21.º n.º 1 do DL 15/93 ou por um crime de consumo, no que à cocaína respeita, sem o apuramento da factualidade suprarreferida.

8. Existindo, nesta precisa medida, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício que emerge do texto da própria sentença recorrida, conjugado com as regras da experiência, na medida em que na mesma se deixa exposto, nos factos provados que o arguido agiu com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e deter cocaína e nos não provados que o arguido destinasse tais estupefacientes à venda ou cedência a terceiros, o que, logicamente significa que o Tribunal a quo se coibiu de apurar a factualidade referente à intenção da detenção do estupefaciente. Ou seja, conjugando o teor da sentença recorrida com as regras da experiência resulta evidente que não foi apurado o destino da droga apreendida, não sendo, salvo o devido respeito por entendimento contrário, concluir, sem qualquer prova nesse sentido, que se destinaria a outro fim que não o consumo próprio, no que à cocaína respeita.

9. SEM PRESCINDIR E SEM CONDESCENDER, entendemos que a sentença recorrida, ao concluir que a detenção da cocaína pelo arguido não se destinaria a consumo próprio, mas a qualquer outra finalidade, pois que o arguido é condenado por tráfico de canábis e cocaína, do art.º 21.º n.º 1 do DL 15/93, retirou do facto provado da detenção da cocaína, uma ilação que as premissas não permitiam, face ao facto provado de inexistência de intenção de venda da mesma cocaína.

10. De facto, se se apurou não ser para venda, abre-se a possibilidade, compatível com a quantidade apreendida, de ser para consumo próprio. Não esqueçamos que o art.º 21.º do DL 15/93 exclui, expressamente, do seu âmbito de aplicação o do art.º 40.º do mesmo DL. É certo que este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, contudo continua a entender-se que a detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a prática de um crime de consumo.

11. Ora, se atendarmos nos factos provados provou-se tão somente, nos factos a.7 e a.8: “O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e de deter cocaína, (com que intenção é a pergunta que se impõe!) bem conhecendo propósito concretizado de cultivar e deter canábis e deter cocaína e nos não provados que o arguido destinasse tais estupefacientes à venda ou cedência a terceiros, o que, logicamente significa que o Tribunal a quo se coibiu de apurar a factualidade referente à intenção da detenção do estupefaciente. Ou seja, conjugando o teor da sentença recorrida com as regras da experiência resulta evidente que não foi apurado o destino da droga apreendida, não sendo, salvo o devido respeito por entendimento contrário, concluir, sem qualquer prova nesse sentido, que se destinaria a outro fim que não o consumo próprio, no que à cocaína respeita.

9. SEM PRESCINDIR E SEM CONDESCENDER, entendemos que a sentença recorrida, ao concluir que a detenção da cocaína pelo arguido não se destinaria a consumo próprio, mas a qualquer outra finalidade, pois que o arguido é condenado por tráfico de canábis e cocaína, do art.º 21.º n.º 1 do DL 15/93, retirou do facto provado da detenção da cocaína, uma ilação que as premissas não permitiam, face ao facto provado de inexistência de intenção de venda da mesma cocaína.

10. De facto, se se apurou não ser para venda, abre-se a possibilidade, compatível com a quantidade apreendida, de ser para consumo próprio. Não esqueçamos que o art.º 21.º do DL 15/93 exclui, expressamente, do seu âmbito de aplicação o do art.º 40.º do mesmo DL. É certo que este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, contudo continua a entender-se que a detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a prática de um crime de consumo.

11. Ora, se atendarmos nos factos provados provou-se tão somente, nos factos a.7 e a.8: “O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e de deter cocaína, (com que intenção é a pergunta que se impõe!) bem conhecendo as suas características e o seu carácter legalmente proibido, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.” E “O arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o que não o demoveu de atuar como atuou.

12. Concluímos, assim, que não era legítimo ao Digno Tribunal decidir pela prática de um crime de tráfico, do art.º 21.º n.º 1 do DL 15/93 e não por um crime de consumo, no que à cocaína respeita.

13. Existindo, nesta precisa medida, erro notório na apreciação da prova, vício que emerge do texto da própria sentença recorrida, conjugado com as regras da experiência, na medida em que na mesma se deixa exposto, nos factos provados, que o arguido agiu com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e deter cocaína e nos não provados que o arguido destinasse tais estupefacientes à venda, o que, logicamente significa que o Tribunal a quo, pese embora a pequena quantidade, não considerou, sequer, a hipótese de mero consumo, mesmo sem qualquer prova em contrário. Ou seja, conjugando o teor da sentença recorrida com as regras da experiência resulta evidente que não foi considerado, sequer, o consumo como destino da droga apreendida, não sendo, salvo o devido respeito por entendimento contrário, legítimo concluir, sem qualquer prova nesse sentido, que se destinaria a outro fim que não o consumo próprio.

14. Em qualquer dos casos, verifica-se ainda a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quanto à decisão sobre as proibições de prova, pois na fundamentação da matéria de facto, na secção da prova proibida, a sentença remete para dois Acórdãos, tirados no mesmo processo, o Acórdão da Relação do Porto, de 07/07/2016, Processo 2039/14.0JAPRT.P1, Relator José Carreto e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/11/2016, Relator Pires da Graça, Proc.º 2039/14.0JAPRT.P1.S1 que defendem a aplicabilidade do art.º 17.º da Lei do Cibercrime quanto à apreensão de correio electrónico, bem como para o regime de apreensão de correspondência do art.º 179 do CPP, concluindo, porém que, num caso em que não existiu prévio despacho judicial para a apreensão de mensagens de correio electrónico, tal regime foi escrupulosamente seguido.

15. Assim, em toda a sua fundamentação de direito, a decisão recorrida remete para a aplicabilidade dos mesmos artigos referidos na Contestação do Arguido, aliás, parcialmente transcrita na decisão recorrida, e nos factos enumerados, nesta parte, como fundamento da decisão de improcedência das proibições de prova invocadas pelo arguido, decorre que a apreensão do correio electrónico não foi ordenada ou autorizada pelo juiz (de instrução), tendo sido aprendidos e juntos aos autos prints dessas mensagens, pelos órgãos de polícia criminal, o que imporia a lógica decisão no sentido da procedência da proibição de prova referente aos prints de correio electrónico.

16. Existe, portanto, uma evidente contradição insanável da fundamentação com a decisão, resultante do próprio texto da sentença recorrida, por si só, na medida em que a fundamentação da decisão impunha decisão oposta à proferida quanto às proibições de prova, sendo extremamente relevante para a boa decisão da causa, uma vez que serviu de alicerce da convicção probatória do julgador, quanto à decisão da matéria de facto, não sendo ultrapassável essa contradição com recurso às regras da experiência, nem tão-pouco com recurso à decisão recorrida no seu todo, para os termos e efeitos do disposto no art.º 410.º n.º 2 alínea b) do CPP.

17. Da Renovação da Prova ou Reenvio - No caso de Recurso Per Saltum, como o recurso é interposto directamente da 1.ª Instância para o STJ, não se abre a possibilidade de renovação da prova, pois o Supremo Tribunal de Justiça conhece, exclusivamente, de matéria de direito, sem prejuízo do preceituado nos art.º 132.º n.º 1 alínea c) do CPP, ou seja, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer também dos vícios da decisão recorrida, desde que tais vícios decorram do texto da própria decisão, por si só, ou conjugada com as regras da experiência, ou de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada ( vd. art.º 410.º n.ºs 2 e 3, conjugados com o art.º 434.º do CPP).

18. Não sendo legalmente possível a renovação da prova em sede de Recurso Per Saltum, a solução reside no reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio, segundo o disposto no art.º 426.º do CPP, que estabelece uma norma também aplicável ao recurso Per Saltum.

19. Assim, sendo a competência do STJ restrita à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, nos termos do art.º 434.º, do CPP, atenta a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou, caso assim não se entenda, do vício de erro notório na apreciação da prova, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.º 426.º, do CPP, limitado às concretas questões seguidamente elencadas:

20. 1- Quais os estupefacientes consumidos pelo arguido, à data dos factos, o que releva para o efeito da integração do crime de tráfico de estupefacientes e não no crime de consumo, no que concerne à bolota de cocaína com o peso de 10,020 gramas e 59,1% de grau de pureza, tendo em consideração a quantidade de droga apreendida, os factos dados como não provados referentes, agora, somente a este estupefaciente, nomeadamente relativos ao intuito lucrativo da detenção da cocaína, que se destinaria a venda a terceiros, ao uso da balança de precisão para individualização de doses de cocaína e canábis e em face dos factos provados, quanto ao trabalho desenvolvido pelo arguido, o qual sempre trabalhou, não sendo verdade não trabalhar desde Dezembro de 2013.

21. 2- Qual o consumo concreto deste estupefaciente pelo Arguido, tendo em consideração que os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, na qual se inclui a cocaína, Tabela I-B, foram, no caso da cocaína, estabelecidos com base em dados epistemológicos referentes ao uso habitual, o que significa que, pese embora a cocaína apreendida ao arguido tivesse o peso líquido de 10,020g, grau de pureza 59,1% e, segundo a portaria desse para 29 doses, tal não invalida que se provasse um consumo superior desta substância.

22. 3- Com que intenção detinha o arguido a cocaína: se se apurou não ser para venda qual a finalidade de tal detenção? Não esqueçamos que o art.º 21.º do DL 15/93 exclui, expressamente, do seu âmbito de aplicação o do art.º 40.º do mesmo DL. É certo que este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, contudo continua a entender-se que a detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a prática de um crime de consumo.

23. No que tange ao vício da contradição insanável da fundamentação com a decisão quanto às proibições de prova, referente aos prints de mensagens de correio electrónico, juntos pelo órgão de polícia criminal, deve determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento, que retire da proibição de prova das mensagens de correio electrónico, valoradas pelo Douto Tribunal a quo, as devidas e legais consequências.

24. Pelo que, salvo melhor entendimento, deverá ser ordenado o reenvio parcial do processo ao tribunal de 1.ª instância para aí ser repetido o julgamento, por juízo da mesma categoria e composição, após a redistribuição do processo, nos termos do art.º 426.º- A do CPP.

25. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO com fundamento no art.º 379.º n.º 1 alínea a), por referência ao estatuído no art.º 374.º n.º 2 do CPP. Sem conceder, caso se entenda não verificados nenhum dos vícios da decisão tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, na qual se inclui a cocaína, Tabela I-B, foram, no caso da cocaína, estabelecidos com base em dados epistemológicos referentes ao uso habitual, o que significa que, pese embora a cocaína apreendida ao arguido tivesse o peso líquido de 10,020g, grau de pureza 59,1% e, segundo a portaria desse para 29 doses, tal não invalida que se provasse um consumo superior desta substância.

22. 3- Com que intenção detinha o arguido a cocaína: se se apurou não ser para venda qual a finalidade de tal detenção? Não esqueçamos que o art.º 21.º do DL 15/93 exclui, expressamente, do seu âmbito de aplicação o do art.º 40.º do mesmo DL. É certo que este artigo foi expressamente revogado pelo art.º 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, contudo continua a entender-se que a detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a prática de um crime de consumo.

23. No que tange ao vício da contradição insanável da fundamentação com a decisão quanto às proibições de prova, referente aos prints de mensagens de correio electrónico, juntos pelo órgão de polícia criminal, deve determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento, que retire da proibição de prova das mensagens de correio electrónico, valoradas pelo Douto Tribunal a quo, as devidas e legais consequências.

24. Pelo que, salvo melhor entendimento, deverá ser ordenado o reenvio parcial do processo ao tribunal de 1.ª instância para aí ser repetido o julgamento, por juízo da mesma categoria e composição, após a redistribuição do processo, nos termos do art.º 426.º- A do CPP.

25. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO com fundamento no art.º 379.º n.º 1 alínea a), por referência ao estatuído no art.º 374.º n.º 2 do CPP. Sem conceder, caso se entenda não verificados nenhum dos vícios da decisão da matéria de facto, entendemos que o Acórdão recorrido sempre padecerá da nulidade por omissão da fundamentação da decisão.

26. Se analisarmos a sentença recorrida, verificamos que da mesma consta a enumeração de factos provados e não provados, porém, a sentença falha na exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão de condenação pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, no que toca à canábis, previsto e punível pelo art.º 21.º n.º1 do Decreto-Lei 15/93 de 22/01.

27. A sentença recorrida não justifica, por referência aos factos provados e não provados, o raciocínio lógico que levou o Colectivo a considerar preenchidos os pressupostos do crime base e não o tipo privilegiado do art.º 25.º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, não justificando nem analisando a matéria de facto à luz dos requisitos legais de cada um dos tipos de crime, falhando na apreciação crítica da prova produzida.

28. “Reportando-nos agora, em concreto, à factualidade apurada nos presentes autos, temos que resultaram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo base de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art.º 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01, pelo qual o mesmo deverá ser condenado, uma vez que não se provaram quaisquer causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa.” (sic)

29. Parece-nos evidente, salvo o devido respeito por entendimento diverso, que muito se respeita, que no que concerne às razões, de facto, de preenchimento do tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes do art.º 21.º n.º 1 do DL considerado, no que concerne à canábis, a decisão recorrida é completamente omissa, pois não elenca que factos provados justificam a previsão legal do art.º 21.º nº 1 e porque motivo se afasta o tipo incriminador do art.º 25.º n.º 1.

30. Além disso, também não analisa, no fundo, os factos à luz do disposto nesse artigo, ou seja, não indica que interpretação da norma do art.º 25.º foi seguida, não considerando em que medida a factualidade descrita integra o tipo base e não o tipo privilegiado, falhando na apreciação crítica da prova produzida, como se impunha.

31. O mesmo se diga mutatis mutandis, das razões que afastam a subsunção da factualidade provada, de facto e de direito, no que concerne à cocaína apreendida ao arguido na busca domiciliária, ao crime de consumo de estupefacientes, previsto no art.º 2.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000 de 29/11.

32. Retira-se dos factos provados, relativamente à detenção da cocaína, factualidade que poderia, salvo o devido respeito por entendimento diverso, ser enquadrada no crime de consumo, atendendo à quantidade apreendida, ao facto de o arguido ser consumidor de produtos estupefacientes, à não prova da individualização de cocaína em doses individuais e posterior venda da mesma bem como ao facto provado de o arguido trabalhar, não tendo despesas com a habitação, luz e água, asseguradas pelos seus pais, não se entendendo o seu enquadramento no art.º 21.º do DL 15/93 de 22/01, pois não foi indicado, por referência aos factos concretos, ou às normas aplicáveis, o raciocínio lógico que levou a sentença recorrida a considerar provado o crime de tráfico do art.º 21.º.

33. No sentido da exigência destes requisitos, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo: 106/08.8TAIDN.C1, Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS, de 23/02/2011, cujo sumário é: “A fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P., reclama do julgador o exame crítico das provas, que consiste na sua descrição e no respetivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.

34. Por outras palavras, é necessário que a decisão contemple a crítica por que razão umas provas merecem credibilidade e outras não, sendo imperioso que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada.”

35. As nulidades da sentença vêm elencadas no art.º 379.º do CPP, sendo a primeira a omissão de fundamentação, entendida esta como “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal”, na formulação do art.º 374.º n.º 2 do CPP.

36. Por todo o exposto, e caso não se entenda procedente o vício da matéria de facto, o acórdão recorrido é nulo, por omissão de requisito cominado sob pena de nulidade, a saber, omissão de fundamentação, nos termos do art.º 379.º n.º 1 alínea a), por referência ao estatuído no art.º 374.º n.º 2 do CPP.

37. Nulidade insanável e arguível em sede de recurso, nos termos do disposto no art.º 410.º n.º 3 do CPP, com a consequência de dever ser repetida a sentença pelo Digno Tribunal de 1.ª Instância.

38. À cautela, vem o Recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade da interpretação do art.º 374.º n.º 2 do CPP, seguida na decisão recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos, ou seja a fundamentação de facto e de direito, por tal interpretação colidir com o estatuído no art.º 268.º n,º 3 da CRP, que consagra o direito à fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, pois no caso tal omissão equivale a total falta de fundamentação de um acto decisório com elevados custos para o direito à liberdade do arguido, constitucionalmente previsto no art.º 27.º n.º 1 da CRP.

39. Acresce a isto que a interpretação, seguida na decisão recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos, se traduz na violação dos limites constitucionais à restrição de direitos, liberdades e garantias, pois o direito à fundamentação das decisões judiciais consiste num direito fundamental de natureza análoga, que assim é violado com a referida interpretação, conforme previsto nos art.º 18.º nºs 2 e 3 e 17.º da CRP.

40. A interpretação seguida pela sentença recorrida, seguida na decisão recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos viola ainda o direito constitucional ao recurso, bem como o princípio da mais ampla defesa, pois só se pode recorrer devidamente, quando estejam claras as razões de facto e de direito de uma concreta decisão, com a consequente restrição do direito à mais ampla defesa do arguido, previstos no art.º 32.º n.º 1 da CRP.

41. A interpretação seguida pela sentença recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos viola ainda o princípio da presunção de inocência, previsto no art.º 32.º n.º 2 da CRP, pois a decisão tem, forçosamente, de fundamentar a aplicação do direito aos factos, para que possa ser compreensível e impor-se a alguém presumidamente inocente.

42. Defendemos, portanto, a interpretação do art.º 374.º n.º 2 do CPP de que a decisão deve justificar com a factualidade provada concreta, bem como com as razões de direito extraídas das normas legais aplicáveis, a sua razoabilidade concreta, não se limitando a aplicar cegamente uma previsão legal, sem tornar expressas as razões, de facto e de direito em que se fundamenta, nomeadamente, sem justificar o afastamento de um tipo privilegiado.

43. Questões de inconstitucionalidade que se suscitam, para efeitos do disposto no art.º 70.º n.º 1 alínea b) e 75-A n.º 2, ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

44. SEM PRESCINDIR E SEM CONDESCENDER, DA NULIDADE DO ACÓRDÃO, com fundamento na Valoração de Prova Proibida -a) Busca Domiciliária Ilegal

45. Na fundamentação da matéria de facto provada e não provada, na secção em que o Colectivo se pronunciou sobre as proibições de prova, oportunamente suscitadas na Contestação, cujo teor foi dado, parcialmente por reproduzido, na decisão recorrida, a decisão recorrida julga improcedentes, por não provadas, as proibições de prova invocadas na Contestação, defendendo a validade da busca domiciliária diurna, pois foi realizada sem consentimento do visado – o qual se recusou a assinar o auto de busca - ao abrigo da detenção em flagrante delito.

46. Sucede, porém, que resulta do teor do Acórdão da Relação do Porto, parcialmente transcrito no Acórdão recorrido, que a situação aí em análise é muito distinta da do caso vertente.

47. As buscas domiciliárias, neste caso, citado pelo Acórdão recorrido, ao contrário do que sucedeu no caso dos autos, em que o órgão de polícia criminal surpreende um desconhecido junto à plantação de canábis -conforme resulta da prova documental junta aos autos, em particular, do auto de notícia/participação, de 20/08/2021 e dos autos de diligência datados de 20/08/2021, 01/09/2021 e 02/09/2021 – foram fundadas num prévio conhecimento do envolvimento do visado pela busca nos factos, ou seja, existiam indícios de que haveria objectos relacionados com o crime ou que podem servir de prova, em local reservado ou não livremente acessível ao público (art.º 174º2 CPP).

48. Não esqueçamos que o art.º 174 do CPP contém os fundamentos materiais da busca:

“1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.

2 - Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.

49. “Assim, para além de considerar-se que a busca, enquanto meio de obtenção de prova, encontra-se estruturalmente associada a uma entrada em espaço de acesso restrito ou vedado e a uma actividade direcionada à descoberta de algo – objectos ou indivíduo a deter - que se encontrará tendencialmente escondido ou dissimulado (cfr. Acórdão TC 216/2012), decorre ainda do n.º 2 do art.º 174 do CPP que esta finalidade estrutural da busca implica que a mesma apenas pode ter lugar quando existam indícios – e não meras suspeitas ou conjeturas – da existência de objetos relacionados com o crime em determinado local.” (vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04/02/2014, Proc.º 41/11.2PEVR.E1, Relator António Latas)

50. “Ainda que uma situação de flagrante delito não relacionada com o domicílio possa constituir indício de que o detido guarda estupefaciente no seu domicílio, fundamentando, assim, a emissão de mandado de busca domiciliária, tal não se confunde com a ocorrência de flagrante delito envolvendo o domicílio, enquanto pressuposto da realização de busca em flagrante por iniciativa de OPC, nos termos do art.º 177.º n.º 2 c) e n.º 3 ) do CPP. “Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05/02/2019, Proc.º 35/15.9PESTB.E1, Relator António João Latas.

51. Revertendo ao caso concreto, a busca domiciliária tem de se fundamentar em factos objetivos, que levem a crer que as coisas ou objetos relacionados com o crime estarão, efetivamente, escondidos no domicílio do Arguido, não uma mera hipótese, motivada pela experiência e praxis policiais.

52. Sobretudo, quando, e como referido na Contestação, o domicílio do arguido, pessoa desconhecida no inquérito e que foi detida à saída de uma plantação de canábis, que se situa a 3km do local da detenção, inexistindo qualquer indício na investigação que apontasse para a dissimulação de objetos relacionados com a prática do crime por que foi detido, no seu domicílio.

53. Dispõe o art.º 125.º do CPP que “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, regendo, quanto à prova proibida, o art.º 126.º do CPP.

54. Ora, estamos, portanto, perante uma intromissão abusiva no domicílio do arguido, logo toda a prova produzida por intermédio da busca, ou seja, todos os objectos apreendidos no decurso da busca constituem meio de prova proibida, nos termos do disposto no art.º 126.º n.º 3 do CPP.

55. Assim o impõe, desde logo, o princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio, previsto no art.º 34.º da CRP, o qual determina a nulidade de todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão no domicílio: a bolota de cocaína, a balança de precisão , o computador, bem como todos os resultados da pesquisa informática ao computador apreendido, compilados e gravados em CD, contendo dados apreendidos no computador do arguido.

56. De facto, havendo uma apreensão do computador no decurso de uma busca domiciliária ilegal, existe um acesso ilegítimo a um sistema informático, tal como definido no art.º 2.º alínea a) da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, na sua redação original, vigente à altura da apreensão do computador e da pesquisa informática ordenada pela autoridade judiciária competente.

57. Convém não olvidar que o pressuposto de uma busca informática legalmente autorizada pela autoridade judiciária competente é um acesso legítimo ao sistema informático, nos termos do art.º 15.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.

58. Ora, sendo a pesquisa inquinada por uma apreensão ilegítima de sistema informático, como o computador apreendido, também essa pesquisa informática é proibida, assim como proibida será a valoração de todo a qualquer dado informático apreendido no seu decurso.

59. Esta valoração de prova proibida no Acórdão recorrido gera a nulidade do mesmo, por se fundar em prova proibida, nulidade insanável e arguível em sede de recurso, nos termos do disposto no art.º 410.º n.º 3 do CPP, com a consequência de dever ser repetida a sentença pelo Tribunal a quo.

60. À cautela, vem o Recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade da interpretação seguida pelo Tribunal recorrido, como ratio decidendi, dos arts.º 174.º n.º 2 e n.º 5 alínea c) do CPP e 177.º n.º 3 alíneas a) e b) do CPP , segundo a qual é admissível uma busca domiciliária diurna, em caso de detenção em flagrante delito, por tráfico de estupefacientes, num determinado local, sem continuidade física ou qualquer relação com o local buscado, ainda que inexistam quaisquer indícios que levem a suspeitar que nesse domicílio se encontrem objectos relacionados com o crime em questão, na medida em que se restringe demasiado o direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no art.º 34.º da CRP e fora dos limites do art.º 18.º da CRP, autorizando a entrada no domicílio dos cidadãos fora das hipóteses legalmente previstas, de forma desadequada, desnecessária e, portanto, desproporcionada, questão de inconstitucionalidade que se suscita, para efeitos do disposto no art.º 70.º n.º 1 alínea b) e 75-A n.º 2, ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

61. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO com fundamento na valoração de Mensagens de Correio Electrónico apreendidas no decurso de pesquisa informática legítima ou ilegítima sem despacho judicial prévio, como resulta da sentença recorrida, em sede de fundamentação da matéria de facto, seguidamente à secção Da Prova proibida.

62. Tais prints foram juntos pelo órgão de polícia criminal, sem despacho judicial prévio que a autorizasse ou ordenasse, isto independentemente de considerarmos a pesquisa informática, autorizada pela autoridade judiciária como legítima ou ilegítima, conforme se considere a busca domiciliária legal ou ilegal.

63. A Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, a chamada Lei do Cibercrime, estabelece proibições de prova, em particular a do art.º 17.º, que concerne à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, mesmo na sequência de pesquisa informática (ordenada pelo Ministério Público) ou outro acesso legítimo a um sistema informático.

64. Art.º 17: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal. (itálicos nossos)

65. Tal norma processual é directamente aplicável ao caso vertente, ex vi do disposto no art.º 11.º n.º1 alíneas b) e c) da Lei 109/2009, ou seja, a processo relativo a crime cometido por meio de sistema informático ou em que se imponha a recolha de prova em suporte electrónico, situando-se a recolha de prova armazenada num computador no contexto de recolha de prova digital.

66. Vejamos o conceito de sistema informático no art.º 2.º alínea a) da Lei n.º 109/2009: qualquer dispositivo ou conjunto de dispositivos interligados ou associados, em que um ou mais deles de entre eles desenvolve, em execução de um programa, o tratamento automatizado de dados informáticos, bem como a rede que suporta a comunicação entre eles e o conjunto de dados informáticos armazenados, tratados, recuperados, transmitidos por aquele ou aqueles dispositivos, tendo em vista o seu funcionamento, utilização, protecção e manutenção”.

67. Definindo-se, na sua alínea b) do mesmo normativo legal, “dados informáticos” como qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função.

68. Ora, no caso trata-se de mensagens de correio electrónico acessíveis por meio de um computador, que constitui, indubitavelmente, um sistema informático, no decurso de pesquisa informática, ordenada pelo Ministério Público (seja ela legítima ou ilegítima) e, que, portanto, nele ficariam armazenadas, sob a forma de ficheiros informáticos.

69. Chegamos à aplicabilidade deste regime às mensagens de correio electrónico em questão por duas vias: por um lado, como eram acessíveis mediante um computador, são mensagens processadas e armazenadas digitalmente; por outro lado, enquadram-se na categoria normativa

“dados informáticos” e estão sujeitas quanto à sua pesquisa, apreensão ou recolha às normas processuais penais que norteiam a recolha de prova em suporte electrónico.

70. Assente a aplicabilidade do art.º 17.º da Lei 109/2009 às mensagens de correio electrónico que impõe a intervenção do juiz de instrução, previamente à apreensão de correio electrónico, temos que discordar da inaplicabilidade do art.º 179.º, com as devidas alterações, ao caso vertente, interpretação sufragada pela decisão recorrida.

71. Entendemos, salvo o devido respeito, por entendimento diverso, o que muito se respeita, que também na apreensão de mensagens de correio electrónico, sejam elas mensagens fechadas ou abertas ( sabendo-se aliás que é possível marcar, na caixa de correio electrónico, uma mensagem como lida, sendo esta não lida), por imposição legal, deve ser sempre o juiz de instrução a ordenar ou a autorizar, por despacho, a apreensão de tais mensagens.

72. Fazendo as devidas adaptações, ou seja, verificados os requisitos do art.º 17 e da alínea a) do art.º 179.º do CPP, visto o da alínea b) ser derrogado pela Lei Especial do Cibercrime e da alínea c) ser coincidente com o requisito do art.º 17.º, poderá existir ingerência na correspondência digital, sempre mediante intervenção do juiz.

73. Serão ainda aplicáveis o n.º 2 do art.º 179.º e o n.º 3 do CPP, mais relevante para o caso concreto, o qual dispõe, claramente em sentido idêntico ao do art.º 17.º:“O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.”

74. O próprio Acórdão recorrido remete, na apreciação das provas proibidas para Acórdãos que subscrevem este mesmo regime processual do art.º 17.º da Lei do Cibercrime, bem como para o regime de apreensão de correspondência do art.º 179 do CPP, o Acórdão da Relação do Porto de 07/07/2016, Proc.º n.º 2039/14.0JAPRT.P1, Relator José Carreto, disponível em www.dgsi.pt, nas suas conclusões VII a IX e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2016, proferido no mesmo processo, 2039/14.0JAPRT.P1.SI, Relator Pires da Graça.

75. A sentença recorrida, na parte em que considera aplicáveis os arts.º 15.º n.º 1 e 16.º n. 1 e não o art.º 17.º da Lei 109/2009, incorre em erro na determinação da norma aplicável e segue uma interpretação do art.º 17.º inconstitucional, na medida em que equipara a apreensão de mensagens de correio electrónico, previsto no art.º 17.º da Lei 109/2009, à apreensão dos demais dados informáticos, previstas nos arts.º 15.º e 16.º, o que deixa desprotegido o direito à não ingerência na correspondência ou nas comunicações, previsto no art.º 32.º n.º 8 da CRP.

76. Nem se diga que este regime, assim delimitado, contraria o disposto na Lei 32/2008, o qual disciplina tão somente a conservação de dados gerados ou tratados no contexto oferta de serviços de comunicações electrónicas, aplicando-se a dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como a dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes.

77. Contudo, logo o n.º 2 do art.º 1.ºda Lei 32/2008 preceitua que “A conservação de dados que revelem o conteúdo das comunicações é proibida, sem prejuízo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, e na legislação processual penal relativamente à interceção e gravação de comunicações.

78. Ora, estão em causa prints de mensagens de correio electrónico, portanto, dados de conteúdo, isto é, não estão em causa dados, para efeitos da Lei 32/2008, o que é visível no disposto no art.º 2.º n.º 1 alínea a) do mesmo diploma legal: «Dados», os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador.

79. Como é sabido, dados de tráfego são, nos termos do art.º 2.º alínea c), “os dados informáticos relacionados com uma comunicação efectuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajeto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo do serviço subjacente.

80. Dados de conteúdo, isto é, dados que revelem o teor das comunicações electrónicas não são abrangidos pelo disposto na Lei 32/2008, regendo sobre estes o art.º 17.º da Lei 109/2009 e no que for adaptável, o art.º 179.º do CPP, por remissão da própria lei 32/2008 no seu art.º 1.º n.º 2 parte final.

81. Mas ainda que se considere que a Lei 32/2008 abrange dados de tráfego, verificar-se-ia que o art.º 1.º n.º 2 da Lei 32/2008, exceciona do seu regime o disposto na Lei 41/2004 de 18/08, que, no art.º 4.º estabelece a inviolabilidade das comunicações eletrónicas:

82. Portanto, esta lei consagra a inviolabilidade das comunicações como abrangendo, ainda os dados de tráfego respetivos, os chamados “meta dados” e não somente os dados de conteúdo, equiparando ambos no seu potencial lesivo de direitos, liberdades e garantias.

83. Destarte, o Acórdão recorrido, ao valorar prints de mensagens de correio electrónico, cuja apreensão não foi precedida de despacho judicial prévio, valorou prova proibida, nulidade insanável e arguível em sede de recurso, nos termos do disposto no art.º 410.º n.º 3 do CPP, com a consequência de dever ser repetida a sentença pelo tribunal a quo.

84. À cautela, se vem invocar a inconstitucionalidade da interpretação dos art.ºs 17.º da Lei 109/2009 e 179.º do CPP, seguida como ratio decidendi, segundo a qual é legítima a apreensão e junção aos autos de prints de mensagens de correio electrónico, pelos órgãos de polícia criminal, sem precedência de despacho judicial e, portanto, fora das hipóteses legalmente previstas, por violação da proibição de ingerência na correspondência, telecomunicações e demais comunicações, fora das hipóteses previstas na lei criminal, conforme estatui o art.º 34.º n.ºs 1 e 4 da CRP, questão de inconstitucionalidade que se suscita, para efeitos do disposto no art.º 70.º n.º 1 alínea b) e 75-A n.º 2, ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

85. SEM PRESCINDIR E SEM CONCEDER, DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS: Não se pode o Recorrente conformar com o enquadramento dos factos provados no ilícito-típico p. e p. pelo art.º 21.º n.º 1 do DL 15/93 de 22 de Janeiro, face aos factos provados e não provados que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

86. Ora, no caso concreto, e no que concerne à canábis, tendo em vista a sua subsunção jurídica a um dos tipos legais previstos no DL 15/93 de 22/01, teremos de atender à imagem global do facto: estamos perante uma forma de cultivo algo rudimentar, pois a plantação era efetuada ao ar livre, e cuidada com recurso a trabalho manual e com instrumentos pouco sofisticados, como jerricans, baldes, serras, pá, machado, enxada, pulverizador, embalagens de fertilizantes, etc., muito longe do cultivo em larga escala, em estufas para plantação de canábis, divididas consoante o estádio de evolução da planta, com recurso a maquinaria e instrumentos sofisticados, tais como: ventoinhas, lâmpadas LED, extractores/intractor, desumidificadores, termómetros digitais, etc.

87. Depois, se é certo que o peso total de plantas é considerável, cerca de 27,45kg, convém não olvidar a natureza do produto, canábis, um dos menos nocivos para a saúde, que estava ainda no seu estado natural, não preparado para consumir, pois nem sequer estava seco e triturado, cujas folhas pesavam 5,5kg, aproximadamente.

88. Acresce a isso, o grau baixíssimo de pureza da canábis apreendida, somente de 5,9%.

89. Não se provou qualquer cedência ou intuito lucrativo do cultivo e detenção da canábis, nem que o arguido custeasse as suas despesas com o produto da venda a canábis, muito menos que houvesse tido lugar qualquer ato de venda ou cedência a terceiro da canábis apreendida, provando-se, outrossim, que o arguido era consumidor de produtos estupefacientes.

90. Por todo o exposto, deve a conduta do arguido, quanto à canábis, integrar, quanto muito, a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art.º 25.º alínea a) do DL 15/93.

91. Note-se o caso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 28/17.1GEMFR-3, Relator: JOÃO LEE FERREIRA, Data do Acórdão: 26-09-2018 em que ficou decidido o seguinte: “IV- Integra o cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade dos artigos 21º nº 1 e 25º al. a) do Decreto- Lei nº 15/03 de 22/1, a conduta de quem, apesar de não lhe ser conhecido nenhum acto concreto de venda ou cedência a outra pessoa, deteve e cultivou cannabis em folhas ou sumidades durante um período de tempo de cerca de oito meses, com um total apreendido de 981 plantas de cannabis e o peso líquido total de 3. 045,4 gramas, contendo percentagens de tetrahidrocanabinol (adiante designado apenas por THC) entre 1,5% e 14,6 %., mediante a utilização em armazém, de um complexo equipamento e de todos os materiais necessários.”

92. Sem preocupações de exaustividade, veja-se ainda um caso muito semelhante ao dos presentes autos, tratado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 58/09.7GBBGC.S1, Relator: SANTOS CARVALHO, Data do Acórdão: 02-03-2011:

93. I - O tribunal recorrido qualificou os factos provados num crime de tráfico comum de estupefacientes p. e p pelos art.21º, nº 1 do D.L. nº 15/93 de 22 de Janeiro.

94. II - Considerou que não se tratava de um tráfico de menor gravidade (art.º 25.º do DL 15/93) pois que “atenta a quantidade do produto que o arguido cultivava e detinha em casa (peso líquido de cannabis 30.147,790 gramas e ainda mistura de produto vegetal e sementes com o peso bruto de 95,093 gramas) não podemos subsumir a sua conduta no referido art. 25º, mas sim, no art.21º, do citado diploma legal com referência á Tabela”.

95. III - Tem o STJ entendido que para se aquilatar do preenchimento do tipo legal do art.º 25.º, do DL 15/93, de 22-01, haverá de se proceder a uma "valorização global do facto", não devendo o intérprete deixar de sopesar todas e cada uma das circunstâncias a que alude aquele artigo, podendo juntar-lhe outras.

96. IV - “A tipificação do art.25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art.21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar” (entre muitos, o Ac. STJ de 15/12/99, proc. 912/99).

97. V - Ora, fazendo uma avaliação crítica dos factos provados, verificamos que o tráfico aparentava ser muito rudimentar. O recorrente, trabalhador agrícola, plantou numa propriedade da família algumas dezenas de pés da planta cannabis e, depois, tratou da pequena plantação, nomeadamente com rega de gota a gota e, na altura da floração, iria colher as flores, os frutos e as folhas, iria secá-los, triturá-los (como ainda chegou a fazer a algumas) e iria, com toda a probabilidade, vendê-los (mas não se chegou a provar que alguma venda tenha sido efectuada e, portanto, que os depósitos bancários fossem produto do crime, como também não se provou que a detenção fosse para consumo próprio, de resto, como o próprio recorrente afirma).

98. VI - É certo que a quantidade detida pelo recorrente não se pode considerar propriamente como pequena, pois o mesmo tinha em seu poder, para futura comercialização, em proveito próprio, cerca de 31,300 kg líquidos de cannabis (as já referidas quantidades mais cerca de 1,1 kg que estava escondido no galinheiro). E note-se que a pesagem da cannabis arrancada da terra pela entidade policial se fez apenas com as sumidades, frutos, semente e folhas, isto é, após terem sido retirados os caules e as raízes.

99. VII - Contudo, estamos perante o produto que estava ainda, na sua maioria, no seu estado natural, não preparado para consumir, pois nem sequer estava seco e triturado, o que quando acontecesse se traduziria em muito menor peso. Em qualquer caso, o produto seria o que os consumidores designam por “erva”, ou marijuana e não o compacto com resina designado por haxixe.

100.VIII – Assim, não há que valorizar demasiado a quantidade e devemo-nos concentrar no facto de que se tratava da posse, para venda futura, de uma das substâncias estupefacientes menos prejudicial para a saúde dos consumidores.

101. IX - Deste modo, fazendo uma avaliação global dos factos, entendemos mais adequado qualificar os factos no tráfico de menor gravidade, p. e p. no art.º 25.º, al. a), com referência à tabela I-C, do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.”

102. Já quanto à cocaína apreendida em casa do arguido, atendendo aos factos provados quanto aos consumos aditivos do arguido, embora não se provem quais nem quanto, e ao asseguramento das despesas pelos pais, e aos não provados quanto à intenção lucrativa da detenção da cocaína, à utilização da balança de precisão para individualização de doses individuais para posterior venda, e à quantidade pequena apreendida, suficiente para 29 doses individuais mas que, em todo o caso, excede os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estaríamos perante um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punível nos termos do art.º 2.º n.º 2 e 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29/11, conjugados com o art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação do Ac. STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25-06-2008, in DR IA Série, de 05-08-2008.

103. DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA Caso se entenda procedente a por nós propugnada qualificação jurídica, no que ao tráfico de menor gravidade diz respeito, sempre deverá a pena de prisão ser suspensa na sua execução, ainda que com regime de prova, dado os factos provados relativos à inserção familiar, económica e social do arguido, que denota ter encontrado a sua verdadeira vocação e estar, finalmente, a construir o seu projeto de vida, bem estruturado e sólido.

104. Só a suspensão da execução da pena permitirá, ao arguido, ainda que se entenda ser de revogar a liberdade condicional que lhe foi concedida, não comprometer todo o processo de ressocialização e de integração na comunidade que este tem empreendido, em liberdade, não se lhe impondo uma pena de prisão efetiva.

Desta forma se fazendo a costumada JUSTIÇA

            4. O Ministério Público, no Juízo Central Criminal ..., respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento ao recurso e confirmação da decisão recorrida, formulando para tanto as seguintes conclusões (transcrição):

1- Haverá insuficiência da matéria de facto para a decisão, sempre que dela resulte, através da sua leitura, isolada ou conjugadamente com as regras da experiência, uma lacuna ou hiato factuais que não permitam chegar à solução jurídica adequada à situação em causa – a solução justa do caso -, podendo e devendo o Tribunal investigar todos os elementos julgados relevantes para essa decisão.

2- No caso em apreciação não se vislumbra, de uma leitura integral do texto da decisão recorrida, a carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de Direito, sobre a mesma.

3- Deste modo, e em face do exposto, entendemos que do texto do acórdão colocado em crise não resulta o invocado vício da previsão do artigo 410.º/2, al. a), do Código de Processo Penal.

4- O imputado erro na apreciação da prova consiste no dar como provado algo que notoriamente está errado “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.”.

5- Não resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que tenha sido dado como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou, que, tomando mão de um processo racional e lógico, se retire de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou, ainda, que determinado facto provado seja incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.

6- Isto dito, e salvo o devido respeito, percorrido o teor do Acórdão a quo nele se verifica que o mesmo não incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova, pelo que a pretensão do Recorrente apenas pode ser qualificada como discordância acerca do modo como o Tribunal a quo deu como provada a respectiva factualidade, o que, de todo, não equivale à existência do invocado vício, razão pela qual tal arguição deverá ser julgada improcedente.

7- Compulsado o acórdão recorrido na parte respeitante à prova proibida, designadamente no que concerne à apreensão do correio electrónico, não se nos afigura a existência de qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.

8- De facto, diz-se no acórdão em riste (e resulta dos autos) que a apreensão do correio electrónico não foi ordenada pelo JIC, tendo, antes, sido a Magistrada do MP quem determinou que se procedesse a pesquisa informática no computador apreendido, vindo a considerar o Tribunal a quo que tal prova era válida e legal, mormente (acrescentamos nós) ao abrigo do estatuído no artigo 15.º/1 da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro.

9- Assim, cremos que também não poderá colher o argumento aduzido.

10- Em face do que se deixa escrito e porquanto, desde logo, não se vislumbra que a decisão recorrida enferme de algum dos enunciados vícios, entendemos que o sufragado reenvio não deverá ter lugar.

11- No acto decisório o juiz opta por uma solução, entre várias possíveis e alternativas, destinando-se, assim, o dever de fundamentação a permitir perceber porque é que a decisão se orientou num sentido e não noutro, devendo explanar os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão. Trata-se de uma garantia que tem consagração constitucional – artigo 205.º/1 do CPP.

12- Ora, afigura-se-nos que o Tribunal a quo mencionou, de forma esclarecedora, qual a relevância que lhe mereceu a prova produzida, tendo efectuado uma análise crítica no que respeita à mesma, sendo que na fundamentação levada a cabo, para além da enumeração dos factos provados e não provados, consta uma exposição, completa e concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão proferida, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, pelo que, também neste ponto, entendemos que não assiste razão ao Recorrente, tendo o Tribunal a quo, após atender ao valor autónomo dos diversos elementos de prova, procedido a uma avaliação englobante do contexto probatório, tendo fundamentado a sua convicção.

13- A lei não define o que deve entender-se como “indícios” para os efeitos de ser determinada uma busca, porém, vêm sendo entendidos como suspeitas, indicações, sinais ou quaisquer outros elementos que apontem para a existência dos objectos no lugar em causa.

14- Vertendo ao caso em concreto cumpre sublinhar que o Recorrente foi detido junto a uma plantação de canábis, carregando 2 jerricans vazios, sendo que no local estavam: - 62 (sessenta e duas) plantas de canábis, com cerca de 2 metros de altura, e 94 (noventa e quatro) plantas de canábis, em diversas fases de germinação ou ainda jovens, com um peso total aproximado de 27,45 quilogramas;

- 2 (dois) baldes, em plástico;

- 1 (uma) serra para madeira com punho em metal, de cor vermelha;

- 1 (uma) pá com punho de metal em cor azul;

- 1 (um) machado;

- 1 (uma) enxada;

- 1 (um) saco de plástico (marca Continente), contendo no seu interior: (i) um pulverizador, em plástico, de cor verde, marca VITO, com capacidade de 1,5 litros; (ii) um pulverizador, em plástico, de cor branca, marca W5, com capacidade de 1,5 litros; (iii) duas embalagens de nutrientes específico para plantas que produzem resina da marca SENSI BLOOM PART A; (iv) duas embalagens de nutrientes específico para plantas que produzem resina da marca SENSI BLOOM PART B A; (v) duas embalagens de fertilizantes/adubos específico para plantas que produzem resina da marca SENSI GROW PART A; (vi) uma embalagem de fertilizantes/adubos específico para plantas que produzem resina da marca SENSI GROW PART B A; (vii) duas embalagens de suplementos/estimuladores específicos para plantas que produzem resina da marca SENSI ZYM A; (vii) duas embalagens vazias de sementes de canábis da marca BIG BUD SENSI; (ix) uma embalagem de fertilizante inicial completo, especial para plantas de cannabis muito jovens ou recém germinadas da marca FORMULEX; (x) uma embalagem de repelente de javalis, raposas, toupeiras e outras pragas da marca WILD STOP da KERBL; (xi) um spray de insecticida de marca branca, casa e plantas.

15- Em face das circunstâncias vindas de enunciar e relativas ao momento em que ocorre a abordagem do Recorrente pela PJ, cremos que as mesmas não podiam deixar de levar, à luz das regras da experiência comum, a um estado de suposição de que aquele se vinha dedicando à actividade de tráfico de estupefacientes (cultivo) e de que na sua residência poderiam vir a ser encontrados objectos relacionados com o cometimento do crime em apreço susceptíveis de servirem de prova no processo.

16- Por tudo o exposto, estando, assim, em causa uma busca realizada na sequência da detenção (do arguido), em flagrante, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, não vislumbramos a invocada nulidade, nem que a busca em apreciação ofenda o disposto nos artigos 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa.

17- Ora, a pesquisa informática foi realizada em sede de inquérito sendo que a competência para a determinar em face disso é do MP, conforme decorre do artigo 15.º/1 da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro.

18- Compulsados os autos, constata-se que a pesquisa em causa foi mandada realizar por quem tinha competência para tal – a Magistrada do MP.

19- Acresce que a existir qualquer nulidade a mesma reconduzir-se-ia à prevista no artigo 120.º/2, al. d) do Código de Processo Penal, pelo que há muito se acha sanada, já que a mesma só viria a ser invocada aquando da contestação – artigo 120.º/3, al. c) do Código de Processo Penal.

20- A outra pretensão do Recorrente foca-se no tipo penal ínsito no artigo 25.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01.

21- Sucede que dos factos apurados cremos que não resulta que a sua conduta possa integrar o tipo de tráfico de menor gravidade, pois nada permite concluir que se mostra consideravelmente diminuída a ilicitude do seu comportamento, sendo que a lei não exige a intenção lucrativa ou lucros avultados como elemento integrante do crime, bastando-se com a prática dos factos fraudulentos; tratando-se, pois, de um crime de perigo comum, que visa a protecção da saúde pública.

22- Note-se, além do mais, que as folhas das plantas que o Recorrente tinha no pinhal apresentavam o peso líquido de 5.589,700 gramas e 5,9% de grau de pureza, correspondendo a seis mil, quinhentas e noventa e cinco doses individuais e a bolota de cocaína com o peso bruto de 10,020 gramas e 59,1% de grau de pureza, correspondente a vinte e nove doses individuais.

23- Assim, entendemos que não merece censura a subsunção jurídica realizada pelo Tribunal a quo.

24- Ainda que a pena aplicada ao Recorrente fosse igual ou inferior a 5 anos, considerando que o mesmo é reincidente, a facticidade teve lugar quando se encontrava em Liberdade Condicional e o crime anterior pelo qual foi condenado respeita também a um crime de tráfico de estupefacientes, consideramos que as suas condições pessoais - operando ao nível da prevenção especial – e bem assim, as concretas circunstâncias da prática do ilícito criminal, - que operam ao nível da prevenção geral, admitem ou permitem que fosse fixada uma pena de prisão inferior/igual a 5 anos e que a mesma fosse suspensa na sua execução.

            5. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido AA e manutenção do decidido.

            6. Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, respondeu o recorrente, renovando o entendimento de que o recurso por si apresentado deve ser julgado procedente.

            7. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

      II- Fundamentação

            8. A matéria de facto apurada e respetiva convicção constante do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição):

      a) Factos provados

   a.1) Em data não concretamente apurada, anterior a Agosto de 2021, o arguido AA plantou num pinhal sito em ..., ..., numa zona de mato cerrado e de difícil acesso, dissimuladas em envolvente de vegetação, diversas plantas de canábis, as quais regou.

   a.2) No dia 02 de Setembro de 2021, cerca das 17h50m, no mencionado pinhal, o arguido detinha:

- 62 (sessenta e duas) plantas de canábis, com cerca de 2 metros de altura, e 94 (noventa e quatro) plantas de canábis, em diversas fases de germinação ou ainda jovens, com um peso total aproximado de 27,45 quilogramas;

- 2 (dois) jerricans, em plástico;

- 2 (dois) baldes, em plástico;

- 1 (uma) serra para madeira com punho em metal, de cor vermelha;

- 1 (uma) pá com punho de metal em cor azul;

- 1 (um) machado;

- 1 (uma) enxada;

- 1 (um) saco de plástico (marca Continente), contendo no seu interior: (i) um pulverizador, em plástico, de cor verde, marca VITO, com capacidade de 1,5 litros; (ii) um pulverizador, em plástico, de cor branca, marca W5, com capacidade de 1,5 litros; (iii) duas embalagens de nutrientes específico para plantas que produzem resina da marca SENSI BLOOM PART A; (iv) duas embalagens de nutrientes específico para plantas que produzem resina da marca SENSI BLOOM PART B A; (v) duas embalagens de fertilizantes/adubos específico para plantas que produzem resina da marca SENSI GROW PART A; (vi) uma embalagem de fertilizantes/adubos específico para plantas que produzem resina da marca SENSI GROW PART B A; (vii) duas embalagens de suplementos/estimuladores específicos para plantas que produzem resina da marca SENSI ZYM A; (vii) duas embalagens vazias de sementes de canábis da marca BIG BUD SENSI; (ix) uma embalagem de fertilizante inicial completo, especial para plantas de cannabis muito jovens ou recém germinadas da marca FORMULEX; (x) uma embalagem de repelente de javalis, raposas, toupeiras e outras pragas da marca WILD STOP da KERBL; (xi) um spray de inseticida de marca branca, casa e plantas.

   a.3) O arguido utilizou estes utensílios, ferramentas agrícolas e produtos fertilizantes e similares para a plantação, cultivo e recolha das plantas canábis mencionadas.

   a.4) Para tanto, o arguido havia comprado, no dia 11 de Agosto de 2021, através da internet, mediante mensagem de correio electrónico enviada da sua conta ... para o sítio da internet da THGrow, quatro produtos relacionados com o cultivo de sementes de canábis, no valor total de €347,84 (trezentos e quarenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) das marcas Sensi Grow Por A, Port B e Sensizim.

   a.5) As folhas das plantas que o arguido tinha no pinhal, acima mencionadas, tinham o peso líquido de 5.589,700 gramas e 5,9% de grau de pureza, correspondendo a seis mil, quinhentas e noventa e cinco doses individuais.

   a.6) Nesse mesmo dia, 02 de Setembro de 2021, pelas 18h40m, o arguido detinha na sua residência, sita na Rua ..., ... do ..., ..., ..., no interior de uma gaveta da mesa-de-cabeceira do seu quarto:

- uma bolota de cocaína com o peso bruto de 10,020 gramas e 59,1% de grau de pureza, correspondente a vinte e nove doses individuais.

- 1 (uma) balança de precisão com tampa de cor cinza, da marca IM2TEC, modelo LONGBOW LTD, com a inscrição ITEM: DS-22-200g 0.01g KR CE, que utilizava para pesar a canábis e a cocaína.

   a.7) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e de deter cocaína, bem conhecendo as suas características e o seu carácter legalmente proibido, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.

   a.8) O arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o que não o demoveu de actuar como actuou.

   a.9) O arguido AA foi condenado por Acórdão transitado em julgado em 14 de Dezembro de 2018, proferido no Processo Comum Colectivo n.º4/16...., do Juízo Central Criminal ... –– Juiz ..., na pena de cinco anos e três meses de prisão efectiva, pela prática em 2016 de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do D.L. n.º15/03, de 22/01.

   a.10) No âmbito do referido processo, o arguido ficou privado da liberdade desde 11 de Janeiro de 2017 até 11 de Julho de 2020, data em que lhe foi concedida liberdade condicional até ao termo da pena, em 14 de Abril de 2022.

   a.11) O arguido é consumidor de produtos estupefacientes.

   a.12) A condenação referida, a sua situação de reclusão e o facto de se encontrar em liberdade condicional aquando da prática dos factos em apreço não constituíram para o arguido suficiente advertência para que não voltasse a cometer crimes, revelando ausência de consciência crítica relativamente aos seus actos.

      Mais se provou:

   a.13) O arguido AA é filho de pais emigrantes em ..., onde nasceu e viveu até aos 11 anos de idade, junto dos pais e de um irmão mais novo dois anos. A dinâmica familiar era afetuosa e tranquila entre todos os elementos da família, direcionada à aquisição de regras e valores cívicos e hábitos de trabalho.

   a.14) O pai do arguido era operário de construção civil e a mãe trabalhadora de atividades domésticas para particulares.

   a.15) Quando tinha, onze anos de idade, o arguido veio residir para Portugal, na companhia dos pais que tentaram o retorno ao país de origem. No entanto, a situação económica ficou aquém das expectativas daqueles e acabaram por regressar a ..., onde ainda se mantêm, deixando AA e o seu irmão BB entregues aos cuidados dos avós.

   a.16) Junto dos avós, o processo educativo do arguido decorreu na ausência de uma supervisão vincada e assertiva, devido aos afazeres profissionais daqueles, situação que terá sido conducente do seu progressivo desinteresse escolar e subsequente absentismo e falta de motivação, tendo direcionado as suas aptidões para a prática de futebol que praticava de forma estruturada no ....

   a.17) No 9º ano de escolaridade o arguido ficou retido e nessa altura, com 16 anos de idade, regressou a ... para junto dos pais, onde concluiu o 9º ano de escolaridade.

   a.18) Aos 19 anos, o arguido veio sozinho para Portugal, para casa dos pais e trabalhou na área da pintura de construção civil e montagem de estruturas metálicas, atividades que exerceu no ... e ..., e em ... e ....

   a.19) Nesta altura manteve relações de convívio social com pessoas com hábitos de consumos de haxixe, passando também ele a consumir esse tipo de substâncias de forma regular.

   a.20) AA esteve em cumprimento de uma pena de 5 anos e 3 meses de prisão por condenação no processo 4/16...., tendo beneficiado do regime de excecional de flexibilização da pena, denominada licença de saída administrativa, a qual teve início em 21-04-2020. Em 11 de julho de 2020, transitou para o regime de liberdade condicional cuja data de termo ocorreu em 11-04-2022.

   a.21) No regresso ao meio livre, AA regressou a casa dos pais, onde ainda reside, junto do seu irmão. Trata-se de uma moradia de dois pisos, que dispõe de adequadas condições de habitabilidade, inserida em meio rural.

   a.22) Não tem despesas relacionadas com a habitação, nomeadamente consumos de água, energia e comunicações, uma vez que estas são assumidas pelos pais.

   a.23) Nas imediações da residência residem familiares, tios, com quem o arguido mantém um relacionamento próximo e saudável.

   a.24) Desde novembro de 2021 que o arguido trabalha como consultor imobiliário para a Imobiliária C..., com a qual celebrou um contrato de trabalho, sem termo, apresentando progressos laborais significativos ao nível da sua evolução e inserção no grupo profissional e demonstra forte motivação pelo interesse por esta atividade, a par de uma imagem muito favorável nas relações com os clientes e com os restantes colaboradores.

   a.25) O seu rendimento salarial é variável, sendo calculado à percentagem sobre o valor das transações comerciais, estimado à data atual, numa média de 1.500€ mensais.

   a.26) Os contactos do arguido AA com os seus progenitores são dispersos, não demonstrando relações com um peso familiar significante, embora os períodos de férias daqueles sejam passados em Portugal em comunhão familiar.

   a.27) Na zona de residência, a imagem social de AA é positiva, sendo associado a um jovem pacato e educado. O mesmo surge associada à imagem dos elementos da família alargada, nomeadamente dos avós já falecidos, e dos tios que residem nas imediações, com quem mantém laços familiares regulares e saudáveis. A comunidade tem conhecimento da sua anterior situação jurídica, mas não são conhecidos indicadores de censura ou rejeição à sua presença.

   a.28) AA mantém atualmente uma relação de namoro com CC, operadora comercial, sendo o relacionamento avaliado por ambos de gratificante e promotor de tranquilidade e equilíbrio do seu estado pessoal.

   a.29) AA identifica e reconhece condutas de dever ser, jurídico e normativo perante situações semelhantes, consideradas em abstrato, às que lhe são imputadas. Contudo não revelou sentido crítico, nem identificou vítimas quanto aos presentes autos.

   a.30) Para além da condenação referida em a.9), do CRC actualizado do arguido AA consta ainda que o arguido sofreu uma outra condenação:

- Nos autos de processo abreviado nº 160/21.... do Juízo Local Criminal ... – J..., por sentença datada de 27/05/2021, transitada em julgado em 28/06/2021, foi o arguido AA condenado pela prática, em 15/03/2021, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5, o que perfez a multa global de € 600, já extinta pelo pagamento.

      b) Factos não provados

   Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente não se provaram quaisquer outros factos que estejam em oposição com os julgados provados, concretamente, não se provou:

- Que o arguido secou, moeu, preparou, dividiu em doses individuais e vendeu posteriormente o referido produto estupefaciente aos consumidores que para o efeito o procuraram;

- O arguido utilizava a balança de precisão por forma a individualizar a canábis e a cocaína em doses, que posteriormente vendia.

- O arguido destinava as folhas de canábis e a cocaína aludidas à venda a terceiros que o procurassem e contactassem para o efeito, suportando as suas despesas com o lucro daí resultante, já que não exerce qualquer actividade profissional remunerada desde Dezembro de 2013.

- O arguido vendeu canábis e cocaína, e agiu com vista a obter proventos económicos.

- O arguido não trabalha desde Dezembro de 2013.

      c) Fundamentação da Matéria de Facto

   Para a delimitação positiva e negativa do quadro factual “supra” traçado foi decisivo o conjunto da prova produzida, analisada individualmente, e ponderada no seu conjunto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, e balizada pelas regras da experiência comum e pelos limites legais de proibição de prova.

      § Da prova proibida:

   Na sua contestação, o arguido veio alegar a nulidade da busca domiciliária realizada, e da apreensão do computador do arguido e subsequente perícia informática que possibilitou o acesso às mensagens de correio electrónico do mesmo.

   Salvo o devido respeito por entendimento diverso, não tem, todavia, razão. Da análise dos elementos juntos aos autos constata-se que:

- a fls. 23-24 consta o auto de detenção do arguido, realizada pelas 18h17m do dia 02/09/2021;

- no auto de diligência de fls. 21-22, consta expressamente que, após a perseguição e detenção do arguido, que saía com jerricans vazios da plantação de cannábis, “seguidamente, o detido foi conduzido à sua residência onde, ao abrigo da detenção em flagrante delito, se realizou uma busca” (sic);

- a fls. 27-28 consta o auto de apreensão de 62 plantas de cannábis, com um peso total aproximado de 27,45 Kgs, e diversos objectos e utensílios agrícolas (2 jerricans, 2 baldes, uma pá, um machado, uma enxada, diversos sacos de fertilizantes, etc..), apreensão essa realizada no mesmo dia 02/09/2021, iniciada pelas 18h30m;

- a fls. 61-62 consta o auto de busca domiciliária e apreensão, e respectiva reportagem fotográfica a fls. 63-64, diligência realizada no mesmo dia 02/09/2021, iniciada pelas 18h40m (portanto, 23 minutos após a detenção do arguido) e concluída pelas 19h55m do mesmo dia 02/09/2021. Pese embora do “pré-formulário” do impresso do auto de busca domiciliária conste um parágrafo relativo ao consentimento do arguido, tal, no caso, é inoperante, porquanto o arguido não deu o seu consentimento à realização da busca, e recusou-se mesmo a assinar o respectivo auto. Daí que, a fls. 22, se tenha feito constar que a busca se realizou “ao abrigo da detenção em flagrante delito”.

   Ora, atentas as concretas circunstâncias em que o arguido foi surpreendido, junto a uma plantação de cannábis, e carregando 2 jerricans vazios ( donde se depreende que se preparava para os ir encher de água ao poço existente nas proximidades, para subsequente rega das plantas de canábis), consideramos que está verificado o pressuposto legal de flagrante delito – o arguido detém plantação de canábis -, o qual autoriza a realização de busca domiciliária por parte do órgão de polícia criminal, sem prévio mandato de busca judicial.

Nesta sede, este Tribunal secunda e louva-se na jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores, designadamente no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2016, Processo 2039/14.0JAPRT.P1, relatado pelo Ex.mo Desembargador JOSÉ CARRETO, in www.dgsi.pt, onde, relativamente a um caso semelhante ao dos presentes autos, se decidiu: «IV -A busca em casa habitada pode ser realizada pela autoridade policial nos casos de flagrante delito (abrangendo o flagrante delito em sentido restrito, o quase flagrante delito e a presunção de flagrante delito) desde que por crime a que corresponda pena de prisão – artº 174º nº 2, 3 e 5, al. c), do CPP.

V- As buscas subsequentes ao flagrante delito não estão limitadas ao local e ao momento do crime (não existe um limite temporal para tal diligência), devendo exigir-se apenas que não se trate do decurso de um prazo desproporcionado para o efeito ou inadequado ao caso, de acordo com as regras da proporcionalidade, adequação e razoabilidade face à necessidade da mínima intromissão/intervenção na vida do arguido e tendo em vista o crime em análise e seus contornos.

     VI - A busca de onde resulte a apreensão de um computador é regulada pelas normas do Cód. Proc. Penal.

      VII A pesquisa no computador dos dados informáticos que dele constam, bem como a apreensão desses dados é regulada na Lei do Cibercrime, em cujo âmbito definido logo no artº 1º se encontram “as disposições penais materiais e processuais (…), relativas ao domínio (…) da recolha de prova em suporte electrónico”.

       VIII - Apreendido um computador com acesso à internet, a autoridade judiciária pode ordenar ou autorizar a pesquisa desse sistema informático (artº 15º nº 1) e se no seu decurso foram encontrados dados ou documentos informáticos a autoridade judiciária ordena ou autoriza essa apreensão (artº 16º nº 1) – sem prejuízo da apreensão pela polícia criminal sujeita a validação (artº 16º nº 2 e 4), apreensão essa sujeita às formas do nº 7 do mesmo artº.

       IX – Se, no decurso da pesquisa, for encontrado correio eletrónico ou registo de comunicações de natureza semelhantes, o juiz ordena ou autoriza a sua apreensão (artº18º), seguindo-se o regime da apreensão de correspondência do CPP (artº 179º).»

      No mesmo processo 2039/14.0JAPRT.P1.S1 se pronunciou o Colendo STJ, por douto acórdão datado de 23/11/2016, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Pires da Graça, loc. cit, onde se decidiu: «O artº 174.ºdo CPP, ao referir-se aos pressupostos da revista e busca, refere:

1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista. 2 - Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca. 3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência. 4 - O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máxima de 30 dias, sob pena de nulidade. 5 - Ressalvam-se das exigências contidas no n.º 3 as revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

        c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.

Por sua vez o Artigo 177.ºdo CPP, versando a Busca domiciliária dispõe: 1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.

2 - Entre as 21 e as 7 horas, a busca domiciliária só pode ser realizada nos casos de: a) Terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada; b) Consentimento do visado, documentado por qualquer forma;

c) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.

O artº256.º define o Flagrante delito da seguinte forma: 1 - É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer. 2 - Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar. 3 - Em caso de crime permanente, o estado de flagrante delito só persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente está nele a participar.

O acórdão da Relação ao versar sobre a nulidade das buscas (flagrante delito: busca em casa e no computador), começou por dizer:

“Sob esta questão, estão em causa as diligências de prova subsequentes à detenção dos arguidos e realizadas ao estabelecimento e a residência do arguido e o exame do computador apreendido, tendo em conta o conceito de flagrante delito e o local da busca, e o regime legal de acesso ao conteúdo de um computador.

Sendo que para o recorrente não existe flagrante delito quanto à sua detenção porque em face dos dados que existiam no momento da intervenção policial o arguido era desconhecido da investigação e não havia nenhuma evidencia do cometimento do crime e não tendo as buscas sido autorizadas e tendo decorrido 3 horas desde a detenção até as buscas em local diferente não foi em acto seguido, e ao conteúdo do computador só poder ter acesso mediante observância do regime do artº187º e ss CPP e não da lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15/9).” E sobre o flagrante delito explicou:

A divergência centra-se em primeiro lugar na existência ou não de flagrante delito (dado que não houve consentimento – nº 40 factos provados).

Como resulta dos artºs 174º 2, 3 e 5 c) CPP em termos gerais a busca visa obter a apreensão de objectos de que há indícios que se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público e são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, mas podem ser efectuadas por órgão de polícia criminal “Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.” e tratando-se de busca em casa habitada, sob pena de nulidade, só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz, mas podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal, nos casos de flagrante delito, tudo nos termos do artº 177º 1 e 3 a) e 174º5 CPP.

Defende o arguido que não ocorreu flagrante delito, porque as autoridades policiais não sabiam que o arguido BB ia estar no aeroporto sendo uma surpresa.

Tal facto não só não obsta ao flagrante delito, como lhe é essencial, pois que só ocorre o flagrante delito se o arguido o está cometendo, e para isso tem de estar no local do crime e cometendo-o.

Na verdade, nos termos do artº 257º 1 e 2 CPP “ 1-É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer. 2 - Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar.”

Daqui resulta que o flagrante delito abrange o flagrante delito em sentido restrito, quando o arguido é surpreendido na execução do crime - quando o está a cometer, o quase flagrante delito, quando o arguido é surpreendido no local do crime no momento em que o acabou de cometer, e presunção de flagrante delito, quando o arguido é perseguido logo após a prática do crime, ou encontrado com objectos ou sinais que mostram claramente que o acabou de cometer ou nele participar (cf. Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 10º ed. 1999, pág. 496; G. Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II, Verbo, 2008, pág. 266, acrescentando este autor que existe “ uma relação de simultaneidade entre a actualidade da execução do crime e a sua constatação por terceiro.”

Ora o arguido DD estava no local e estava a participar no crime em execução tal como os co-arguidos e a autoridade policial sabia da participação do arguido nos factos apenas não sabia que também ia estar no aeroporto esperando a droga.

Na verdade a PJ já sabia da participação do arguido porque na folha impressa fotografia do co arguido AA e da mala com a droga que chegara ao inspector da PJ vinha o email do arguido (sinal evidente do seu conhecimento, e ao vê-lo no aeroporto receber o co arguido e a droga que vinha na mala, duvida não tiveram (nem podiam ter) da sua participação no crime que estava a ser executado. O que eles estranharam foi a presença ali do arguido pois estavam a contar que apenas o arguido CC fosse esperar o co arguido com a droga. Não há assim duvida que o arguido foi surpreendido na execução do crime de trafico que estava a cometer com os co arguidos;

Assim existindo flagrante delito, as buscas podiam ser ordenadas pela autoridade policial.

Questiona o arguido que as buscas subsequentes ao flagrante delito só podem ser as feitas no local do crime. Sem razão.

Tal não constitui requisito das buscas em caso de flagrante delito, nem podia constituir (e apenas quando muito, por razões de segurança a revista do próprio deve ser feita no local), pois o que caracteriza as buscas é o seu pressuposto material: é a existência de indícios de que há objectos relacionados com o crime ou que podem servir de prova, em local reservado ou não livremente acessível ao público (artº 174º2 CPP), não limitando a lei a qualquer requisito de distância do local do crime;

Ora a PJ já sabia da existência do envio da fotografia do arguido e da mala da droga enviados para o email do arguido BB: apenas era preciso saber onde estava a o computador onde o email tinha sido aberto e apreendê-lo, como fizeram, e esta ligação era importante para a responsabilização do co arguido, pois o mais já eles sabem: que ambos os arguidos estão a receber o coarguido AA com a mala da droga, que sabiam que ele transportava.

Outra questão é a de saber se é possível proceder à busca 3 horas após a detenção, ou se esta tem de ser em acto seguido e imediato.

        Ou seja se há limite temporal para a diligência de prova.

      Ora a lei nada diz sobre isto, e em boa verdade não o pode fazer, face à diversidade dos casos que podem ocorrer, daí que devem imperar regras de normalidade, razoabilidade e bom senso, tanto mais que quando a lei se refere à necessidade imediata de determinado acto, como v.g. no artº 174º6 CPP (validação pelo juiz de busca em caso de terrorismo … etc.) não fixa um limite temporal, e o Tribunal Constitucional, no ac. nº 278/2007, DR. II Série de 20/06/2007 entende ainda conforme à Constituição, e por isso não julgou inconstitucionais as normas constantes do nº 5 do artº174º e da parte final do nº 2 do artº177º do CPP, quando “interpretadas no sentido de que, efectuada busca domiciliária por órgão de polícia criminal sem precedência de autorização judicial, (…) é de quarenta e oito horas o prazo para a comunicação ao juiz de instrução da efectivação da busca e a decisão judicial da sua validação pode resultar, de forma implícita, desde que inequívoca, da decisão de validação da detenção do arguido e de fixação da medida de coacção de prisão preventiva.” ou como o fez o STJ no ac 13/3/2008 www.dgsi.pt relativamente ao artº 188º CPP redacção anterior sobre o conceito de “ apresentação imediata”, ao expressar: “Nem a lei nem a Constituição estabelecem um prazo para que as escutas sejam apresentadas ao Juiz, logo não se exige que tal apresentação ocorra após um determinado número de horas ou de dias de intercepção por isso, somos do entendimento de que o termo 'imediatamente' tem de ser entendido com adequação, razoabilidade e proporcionalidade, tendo em conta os interesses em conflito a acautelar (o interesse da investigação e o da salvaguarda do sigilo das comunicações), a natureza e a complexidade da investigação em causa.”

Ora aplicando esta doutrina manifesto se torna que a realização de uma diligencia de prova passadas 3 horas após a detenção por flagrante delito não é um prazo excessivo e se enquadra nas diligencias a que pode proceder em virtude desse facto e portanto tudo depende dos actos a levar a cabo e onde, do caso concreto e do bom senso, sendo efectivamente de ponderar, como o fez o tribunal recorrido, a ausência de hiatos nas actividades e actos necessários e subsequentes à detenção em flagrante delito, como sejam a deslocação para as instalações da PJ, expediente, e outras diligencias de aquisição ou conservação da prova de nos dá conta a sentença recorrida, como sejam: …foram abordados às 9:45 horas – cfr. fls. 2; Logo foram efetuadas as buscas à viatura ...-EB (o Ford Fiesta ); São realizados os testes rápidos – cfr. fls. 16 e 17, são transportados do aeroporto [...] para as instalações da PJ [...]; foram efetuadas as revistas pessoais a apreensões destas recorrentes (cfr. fls. 23);E logo após são efetuadas as buscas ao estabelecimento, às 13:15 horas, e depois à habitação.”

Em face disto, parece-nos evidente que tais diligências de busca não podiam sequer ser feitas antes e face ao modo como se desenrolaram foram em tempo recorde, aliás como a situação impunha, não fossem os objectos / meios de prova desaparecerem (como v.g podia acontecer com o computador).

Tais diligências de prova têm de ser realizadas necessariamente após a detenção do arguido em flagrante delito e antes da validação judicial quer da detenção quer da sua apresentação para validação se for o caso (artºs 174º6 e 177º4 CPP) pois como refere o ac. RP de 21/1/2015 www.dgsi.pt “I - No artº174º 5 al. c) CPP o flagrante delito antecede lógica e casualmente a revista e a busca.”

Estas diligências de prova nada têm a ver (e por isso submetidas a regime diverso), embora sem delas poderem ser desligadas, com as diligências da autoridade policial que constituem providências cautelares quanto aos meios de prova do artº 249º ss CPP).

       Tais buscas são assim temporalmente válidas.

Em face disso, não vemos que o espaço de 3 horas entre a detenção por flagrante delito e o início da realização das buscas subsequentes ao estabelecimento comercial e residência do arguido, ofenda o disposto nos artºs 32º e 34º CRP, por se tratar de diligências de prova abusivamente obtidas, nem se trata do decurso de um prazo desproporcionado para o efeito ou inadequado ao caso, tendo observado a regras da proporcionalidade, adequabilidade e razoabilidade face à necessidade de mínima intromissão/ intervenção na vida do arguido, em vista do crime em análise e seus contornos;

Improcede, assim esta questão.

A abrangência legal do flagrante delito não se encontra delimitada no espaço, ou seja, não se encontra territorialmente vinculada pela distância do local do crime.

Como salientou a Exma Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação do ... em sua resposta:

“O acórdão recorrido a fls 110 a 124, tal como o tribunal da 1ª instância a fls 61 a 75, analisaram a questão de forma bastante fundamentada, concluindo que o espaço temporal de 3 horas entre a detenção por flagrante delito e o inicio da realização das buscas subsequentes ao estabelecimento comercial e à residência, não ofende o disposto nos artigos 32º e 34° da CRP, por não se tratarem de diligências de prova abusivamente obtidas nem de prazo desproporcionado, tendo sido observados os princípios da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, face à necessidade de intromissão na vida do arguido.

Concorda-se com o acórdão recorrido quando diz :"Há uma coincidência temporal inerente á detenção em flagrante delito".

Com efeito, citando, ainda, aquele acórdão: "Não existiram interrupções entre a detenção e as buscas efectuadas ao estabelecimento. Ê necessário aos inspectores da PJ deslocarem-se para o local onde se situa a residência. “

        Inexiste pois qualquer nulidade ou interpretação inconstitucional de normas legais.

Diz o recorrente nas conclusões 4 a 4.3 que a Polícia Judiciaria acedeu às mensagens do correio electrónico do computador e examinou-as apenas com a autorização do Ministério Público; Acontece que, o acesso e analise a esses elementos constantes do computador submetem-se ao regime dos artigos 187º e seguintes do CPP e, por isso, apenas autorizáveis pela autoridade judicial;

Mais diz que uma interpretação das normas constantes dos artigos 11º e 15º da Lei nº109/2009, de 15/09 que permitam acesso, com autorização do Ministério Público, aos elementos constantes do computador inquina de inconstitucionalidade as referidas normas por contenderem com o estatuído no artigo 34º da CRP; Do mesmo modo as referidas normas são inconstitucionais por não exigirem que seja um juiz a ordenar previamente o acesso aos dados contidos num computador, designadamente tratando-se de mensagens de correio electrónico.

Porém, não tem razão, pois como explicou o acórdão recorrido, “estamos no âmbito da chamada prova digital e sobre esta matéria, neste momento como resulta da própria Lei 109/2009 de 15/9, estão em vigor, na medida em que para eles remete, quer as normas do Cód. Proc Penal, quer da Lei 32/2008 (conservação de dados), tornando-se complementares entre si (v.g artºs 11º2, 15º 6, e 18º4 da lei do cibercrime).

Assim na apreensão de dados digitais, são aplicáveis as normas da Lei 109/2009 e apenas subsistem aquelas outras normas na medida em que não são reguladas por esta nova lei, e assim e exemplificativamente, como é o caso, se a busca de onde resultou a apreensão do computador é regulada pelas normas do Cód. Proc. Penal, já a pesquisa no computador dos dados informáticos que dele constam, bem como a apreensão desses dados é regulada na Lei do Cibercrime, em cujo âmbito definido logo no artº1º se encontram “as disposições penais materiais e processuais (…), relativas ao domínio (…) da recolha de prova em suporte electrónico” ( cf. ac. REv de 20/01/2015 www.dgs.pt)

          Apreendido um computador com acesso à internet, a autoridade judiciária, pode ordenar ou autorizar a pesquisa desse sistema informático (artº15º 1), e se no seu decurso foram encontrados dados ou documentos informáticos a autoridade judiciária ordena ou autoriza essa apreensão (artº 16º1) sem prejuízo da sua apreensão pela policia criminal sujeita a validação (artº16º 2 e 4) apreensão essa sujeita às formas do nº7 do mesmo artº), e sendo encontrado no decurso da pesquiza correio eletrónico ou registo de comunicações de natureza semelhantes, o juiz ordena ou autoriza a sua apreensão (artº 18º) seguindo-se o regime da apreensão de correspondência do CPP ( artº 179º)

Como flui dos factos, todo este regime mostra-se observado, inexistindo por isso qualquer nulidade, sendo que tais normativos não ofendem a Constituição (vg artº 34º invocado) pois que a leitura dos dados existentes no correio electrónico, (única fase onde poderia estar em causa a privacidade é submetida ao controlo judicial), sendo todas as demais devidamente regulamentadas a exigir a intervenção da autoridade judiciária (quer a ordenar quer a autorizar ou a validar a intervenção previa) sendo que está ressalvada no artº 34º4 CRP da proibição de ingerência, os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Improcede assim esta questão.”

Na verdade, como salienta a Exma Procuradora-Geral Adjunta na Relação do ..., em sua resposta, “O que estava em causa com a apreensão e acesso ao computador do arguido, era a eventual recolha de prova que se encontrava em suporte informático, sendo aplicável a Lei na 109/2009 de 15 de Setembro.

Encontrando-se observado nos autos todo o regime que consta daquele decreto lei, para o qual remete o CPP, inexistindo qualquer nulidade, pois está ressalvada no art°34°, 4 da CRP da proibição de ingerência, os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Concluiu-se pois, pela inexistência de nulidade ou desconformidade interpretativa com normas da Constituição da República Portuguesa. (…)».

      No mesmo sentido se pronunciou ainda o douto Ac. TR Guimarães de  04/04/ 2022, relatado pela Ex.ma Desembargadora Cândida Martinho, no proc. 55/21.4PE BRG-A.G1, onde se decidiu: «I – As buscas abrangem um conjunto de actos desenvolvidos pela autoridade judiciária, ou por órgão de polícia criminal, com vista a obter elementos probatórios materiais da prática de um crime. II – São meios de obtenção de prova que se realizam em locais reservados ou não livremente acessíveis ao público, desde que sobre esses locais existam indícios de que aí se encontram, para além do mais, objectos relacionados com a prática do crime e que são susceptíveis de servirem de prova no processo. III – Na fase inicial do processo, para efeitos de ser determinada uma busca, o conceito de “indícios” deve ser entendido como suspeitas, indicações, sinais ou quaisquer outros elementos que apontem para a existência dos objectos num determinado lugar. IV – A realização de uma busca domiciliária passada cerca de 1 hora e 20 minutos após a detenção por flagrante delito não é um prazo excessivo, mostrando-se o hiato temporal verificado justificado em face das circunstâncias do caso concreto, ou seja, das várias diligências que houve necessidade de efectuar após o flagrante delito e a detenção do arguido.»

      Idêntico entendimento defende Nuno Filipe Caramelo Sousa, na defesa da sua tese intitulada “Das buscas domiciliárias efetuadas pelos órgãos de polícia criminal, após detenção em flagrante delito”, FDUL, 2021, disponível on line in “https://repositorio.ul.pt/bits team /10451/50561/1/ulfd0149626_tese.pdf”.

      De referir ainda que, por despacho proferido a fls. 91 e segs. dos autos, em 03/09/2021, a Digna Magistrada do MºPº validou a constituição como arguido de AA, validou as apreensões, e, ao abrigo da Lei do Cibercrime, determinou se procedesse a pesquisa informática no computador apreendido.

Por despacho proferido a fls. 98 e segs., mais determinou que o arguido fosse presente ao JIC para 1º interrogatório judicial de arguido detido.

Consequentemente, a fls. 107 e segs., no mesmo dia 03/09/2021, o JIC procedeu a 1º interrogatório judicial do arguido detido, e validou a detenção do mesmo.

A fls. 134 mostra-se certificado e cumprido o mandado de pesquisa informática assinado pela Digna Magistrada do MºPº, e, a fls. 136 -138 consta, datado de 03/09/2021, pelas 10h30m, o auto de pesquisa informática, relativo à caixa de correio electrónico do arguido encontrada no computador pessoal deste anteriormente apreendido no decurso da busca domiciliária; e a, fls. 148, no seguimento da pesquisa informática, consta o auto de apreensão dos 2 CDs e dados / ficheiros neles guardados.
      De todo o exposto resulta, portanto, e sem necessidade de mais considerações, que toda a prova recolhida na sequência da busca domiciliária à residência do arguido, busca essa iniciada apenas 23 minutos após a sua detenção em flagrante delito, o foi de  modo legal e legítimo, com observância das formalidades legais e constitucionais, não padecendo de qualquer dos vícios apontados, pelo que é prova válida e legal, sendo livremente apreciada e valorada pelo Tribunal Colectivo.
Termos em que, sem mais, se julgam improcedentes e não provadas as proibições de prova invocadas pela defesa.
*

      Reportando-nos agora em concreto à formação da convicção pelo Tribunal Colctivo e valoração e ponderação da diversa prova produzida, importa, desde logo, assinalar que as declarações prestadas em audiência pelo arguido e a versão dos factos por ele apresentada  não mereceram qualquer credibilidade por parte deste Tribunal Colectivo. Com efeito, o arguido negou a prática dos factos, contra as evidências, a sua detenção em flagrante delito, e as mais básicas regras da experiência ( para mais tendo em consideração que o arguido se encontrava em liberdade condicional, pela condenação por crime de tráfico do artº21º, e, ao ser surpreendido pela Polícia Judiciária, ainda tentou a fuga do local), e efabulou uma justificação estapafúrdia, inverosímil, e claramente arredada da realidade, quer para justificar a sua presença no local a transportar os jerricans vazios, quer para justificar a compra pela internet de sementes de canábis e de fertilizantes/aditivos para as plantas de canábis, que não mereceu qualquer credibilidade.

A falta de credibilidade da versão dos factos apresentada pelo arguido mais saiu reforçada por contraponto com os depoimentos das testemunhas de acusação EE (o inspector da PJ que procedeu à intercepção, perseguição e detenção do arguido, e posteriormente à busca domiciliária à residência deste), e FF (o inspector da PJ que recebeu a denúncia anónima da existência da plantação de cannabis, e que, posteriormente, à detenção do arguido, se deslocou ao local e procedeu à retirada e apreensão da maior parte das plantas de canábis), os quais prestaram depoimentos isentos, claros, verosímeis, credíveis e desassombrados, sendo que ambos foram peremptórios em descrever o local da plantação como um sítio ermo, distante, numa zona florestal, afastada das casas e de qualquer local de passagem, de difícil acesso, encontrando-se a plantação bem escondida, mas bem tratada, com sinais de se encontrar bem cuidada (regada e adubada), pois existiam no local recipientes (baldes, jerricans, vasos), alfaias agrícolas ( enxada, serra, machado), e embalagens de fertilizantes .

O depoimento da testemunha de defesa, GG, irmão do arguido e com ele residente, foi considerado em sede de determinação das concretas circunstâncias pessoais e familiares do arguido.

Com vista ao apuramento da verdade material revelou-se igualmente relevante o resultado da prova pericial (exames toxicológicos) cujos relatórios de exames periciais têm o n.º...69-BTX e n.º...46-BTX, juntos com as referências ...50 e ...96 ( fls. 163 e 172 dos autos).

E, bem assim, a análise crítica dos diversos meios de prova documental juntos aos autos, concretamente,

- Auto de notícia/participação, datado de 20/08/2021, junto com as referências ...52 e ...70 (fls. 11 e segs);

- Autos de diligência datados de 20/08/2021, 01/09/2021 e 02/09/2021, juntos com as referências ...52 e ...70 (fls. 13 e reportagem fotográfica anexa de fls. 14-18); e fls. 20 e fls. 21-22).

- Reportagem fotográfica, junta com as referências ...52 e ...70 (fls. 14-18);

- Auto de detenção datado de 02/09/2021, junto com a referência ...70 (fls. 23 e segs.);

- Autos de apreensão datados de 02/09/2021, 03/09/2021 juntos com as referências  ...70, ...89 e ...96 (cfr. fls. 27-28, 61-62 e reportagem fotográfica anexa de fls. 63 e segs.; e de fls. 124):

- Relatório de inspecção judiciária datado de 02/09/2021, elaborado pelo Especialista-Adjunto HH, junto com a referência ...70 (fs. 30 e segs.)

- Auto de busca e apreensão datado de 02/09/2021, junto com a referência ...63 970;

      - Reportagem fotográfica, junto com a referência ...70;

      - Auto de exame directo, datado de 02/09/2021, junto com a referência ...70;

      - Ficha de recluso junta com a referência ...70 ( fls.75 e segs.);

      - Autos de pesquisa informática datados de 03/09/2021, juntos com a referência ...96 (fls. 136 e segs.)

- Prints de mensagens de correio electrónico referentes à compra de fertilizantes e outros produtos, juntos com a referência ...96;

- Auto de exame directo datado de 16/03/2022, junto com a referência ...96 (fls. 139 e segs.)

      - Certidão junta com a referência ...51 (fls. 231 e segs.)

- CD contendo os dados apreendidos no computador do arguido, constante de fls. 146 dos autos;

e, bem assim, do teor do relatório social relativo ao arguido, e do CRC actualizado do mesmo, juntos aos autos na fase de julgamento.

Tudo meios de prova que, ponderados em conjunto, e analisados criticamente, de acordo com as regras de experiência, e por referência às presunções naturais, permitiram a este Tribunal Colectivo formular o juízo global da factualidade supra descrito.

De referir ainda que, por uma questão metodológica, se optou por extirpar do teor do texto da acusação as orações conclusivas ou relativas à mera descrição de meios de prova.

Os factos julgados como não provados resultaram de, da discussão da prova, não terem sido produzidas provas directas, cabais, seguras e suficientes que permitissem a este Tribunal Colectivo concluir, descartando os meios de prova circunstanciais que não permitem neste caso formular um juízo seguro, por apelo ao silogismo judiciário e às regras da experiência, e para além de dúvida razoável, pela sua verificação ou ocorrência.

*
    9. Objeto do recurso
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[1]
Face às conclusões da motivação do recorrente AA as questões colocadas ao S.T.J. para este decidir são as seguintes:

- Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- Do vício do erro notório na apreciação da prova;

- Do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

- Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação;

- Da valoração de prova proibida;   

- Da qualificação jurídica dos factos; e

- Da suspensão da execução da pena.

*

        1.ª Questão: Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

        10. O recorrente AA aponta ao acórdão recorrido o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), n.º 2 do art.410.º, por referência ao estatuído no art.432.º n.ºs 1 alínea b) e n.º 2, todos do C.P.P., na medida em que existe, no seu entender, uma omissão, na matéria de facto provada e não provada, sobre quais os estupefacientes consumidos pelo arguido à data dos factos, no que concerne à bolota de cocaína e, sobre qual a intenção com que o arguido detinha esse estupefaciente.

      Tendo o Tribunal a quo dado como provado apenas que o arguido é consumidor de estupefacientes, sem especificar quais estupefacientes (ponto a.11) e, como não provado, que o arguido utilizava a balança de precisão para individualizar a cocaína em doses e, posteriormente, vendia ou que destinasse a droga à venda a terceiros, não é legitimo o Tribunal decidir pela prática de um crime de tráfico do art.21.º, ou por um crime de consumo de estupefacientes do art.40.º, ambos do DL n.º 15/93 mesmo diploma, pois, por um lado, não se apurou a finalidade da detenção e, por outro, mesmo resultando da Tabela I-B deste diploma que embora a cocaína tivesse o peso líquido de 10,020 gramas, 59,1% de grau de pureza e que daria para 29 doses, tal não invalidaria que se provasse um consumo superior desta substância.     

      Conjugando o teor da sentença recorrida, com as regras da experiência, não é de concluir, sem qualquer prova nesse sentido, que a cocaína se destinaria a outro fim que não o consumo próprio.

      Vejamos se tem razão o recorrente.

      O art.410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

        a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

        b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou 

        c) O erro notório na apreciação da prova.

      Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P., que são de conhecimento oficioso, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.

      As normas da experiência comum são, na lição de Cavaleiro de Ferreira «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.».[2]

      O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) deste preceito, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.

        Como bem anota Pereira Madeira “Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do Processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão”[3].

       O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência ( art.127.º do C.P.P.).       

       Para afirmação deste vício importa, pois, perspetivar o objeto do processo, fixado pela acusação e/ou pela pronúncia, complementada pela pertinente defesa.

      Só existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes que integram o objeto do processo e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.[4]

      Só com um prévio conhecimento do tipo penal imputado ao arguido na acusação  é possível decidir se o Tribunal investigou ou não todos os elementos relevantes para a decisão da matéria de facto provada e, assim, se esta é insuficiente para a decisão de direito do ponto de vista das várias soluções que se perfilham em face do objeto do processo.

      O arguido AA foi acusado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º1 do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C do mesmo diploma, pelo que se impõe identificar, particularmente,  entre os elementos do tipo, os relativos ao bem jurídico e à conduta.

      O bem jurídico, enquanto expressão de um interesse da pessoa ou da comunidade protegido pelo direito penal, como concretização dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais, diferencia-se no tipo, nomeadamente, quanto á forma como é posto em causa pela atuação do agente e quanto à conduta. 

      Seguindo a lição de Figueiredo Dias, quanto à forma como o bem jurídico é posto em causa pela atuação do agente, a primeira distinção a considerar é entre crimes de dano e crimes de perigo.

      Nos crimes de dano a realização do tipo incriminador tem como consequência uma lesão efetiva do bem jurídico.

      Nos crimes de perigo a realização do tipo não pressupõe a lesão, bastando-se com a mera colocação em perigo do bem jurídico. Os crimes de perigo, distinguem-se, por sua vez, entre crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato.

      Enquanto nos crimes de perigo concreto, fazendo o perigo faz parte do tipo, este só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo, nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição.

      Nos crimes de perigo abstrato são tipificados comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, havendo como que uma presunção inilidível de perigo.

     Pelo facto de poderem constituir uma tutela demasiado avançada de um bem jurídico, pondo em perigo os princípios da legalidade e culpa, tem sido questionada a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Todavia, a doutrina maioritária e o Tribunal Constitucional, pronuncia-se pela sua não inconstitucionalidade quando visarem a proteção de bens jurídicos de grande importância, quando for possível identificar claramente o bem jurídico tutelado e a conduta for descrita de uma forma tanto quanto possível precisa e minuciosa. [5]

      Na classificação do crime quanto à conduta, isto é, na relação entre ação e resultado, diferenciam-se os crimes de mera atividade e os crimes de resultado.

      Nos crimes de resultado pressupõe-se no tipo legal a ocorrência no mundo exterior de um resultado imaginariamente separado da ação, de forma que pode ser levantada a questão do nexo causal entre a ação e o resultado. Dito de outro modo, “Nos crimes de resultado sob a forma de comissão por ação o tipo pressupõe a produção de um evento como consequência da atividade do agente. Nestes tipos de crime só se dá a consumação quando se verifica uma alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta. (…). Se, pelo contrário, o tipo incriminador se preenche através da mera execução de um determinado comportamento estaremos em face de crimes de mera atividade.”[6].   

      Os crimes de mera atividade, não pressupondo um resultado exterior, preenchem-se, pois, com a mera atividade ou conduta descrita na lei.

      Esta é, no essencial, a distinção levada a cabo na classificação doutrinaria entre os crimes materiais e os crimes formais, em que, respetivamente interessa ou é indiferente a realização do resultado para o preenchimento do tipo penal.

      Por fim, na construção dos tipos incriminadores, mas com estrutura especial, relevam ainda os chamados crimes de empreendimento, que, na definição de Figueiredo Dias são “aqueles em que se verifica uma equiparação típica entre tentativa e consumação; em que, por conseguinte, a tentativa de cometimento do facto é equiparada à consumação e é como tal jurídico-penalmente tratada. (…). A relevância prático-normativa da identificação desta espécie de crimes reside no facto de para eles não dever valer a atenuação especial da pena prevista para a tentativa (art.23.º, n.º2), nem o disposto no art.24.º, que consagra a não punibilidade da tentativa quando houver desistência.”.[7]

      Em regra, o facto punível doloso, percorre diversos estados de realização pelo agente, que vai da resolução, à preparação, ao começo de execução e ao resultado.  

      A delimitação entre ações preparatórias, começo de execução e consumação é da maior relevância no nosso ordenamento penal.

      As ações preparatórias, por via de regra não são puníveis. A tentativa, definida no art.23.º do Código Penal, como execução de atos de um crime que o agente decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, só é punível, em regra, se ao crime corresponder pena superior a três anos de prisão e, nesse caso, com pena especialmente atenuada. Já a consumação, como preenchimento integral de todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo da ilicitude, é sempre punível.

      O art.21.º do DL n.º15/93, na parte com interesse para a decisão, dispõe o seguinte:

      «1. Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer titulo receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.».

      O art.40º do DL n.º 15/93, para que remete este tipo legal, prevê o crime de consumo de estupefacientes, pelo que da conjugação dos dois tipos penais resulta que a detenção de estupefacientes ou a realização de outras ações enunciadas no art.21.º do D.L. 15/93, sobre a qual se não prove o consumo tem, entre nós, o sentido de tráfico.

      As ações típicas descritas no art.21.º do DL n.º 15/93, são as mais diversas.

       Numa linguagem vulgar, percebemos que cultivar é sinónimo de preparar e cuidar da terra e da produção que dela resulta; produzir significa fabricar ou dar origem a um novo produto; extrair significa tirar para fora; preparar tem o significado de aprontar para consumo, obter algo por meio da composição de elementos; oferecer é disponibilizar, em regra gratuitamente; puser à venda é expor, exibir, para fins de alienação mediante um preço; vender é alienar mediante o pagamento de um preço; distribuir é repartir, dar a diversas pessoas ou por diversos modos; comprar é adquirir por dinheiro, mediante o pagamento dum preço; ceder é sinónimo de emprestar, dar em troca de algo ou sem nada esperar; receber é acolher, rececionar de outrem, no caso, uma coisa ou produto; proporcionar a outrem é por à disposição de outra pessoa; transportar significa deslocar , transferir de um ponto a outro, mediante o uso de um meio de transporte; importar, significa introduzir no território nacional; exportar é enviar para fora do território nacional; transitar significa fazer passar através de determinado espaço; e deter tem aqui o sentido de possuir, a título precário ou definitivo.

      A qualificação do crime de tráfico de estupefacientes quanto ao bem jurídico, pressupõe, evidentemente, a identificação dos interesses protegidos pela norma incriminadora.

      Cremos ser razoavelmente pacífico que o tráfico de estupefacientes põe em causa uma plura­lidade de bens jurídicos, mas protege primordialmente a saúde pública e, em segundo plano, bens jurídicos pessoais, como a vida, à integridade física e a liber­dade dos virtuais consumidores; ademais, afeta a vida em so­ciedade, pelos comprovados efeitos criminógenos e dificulta a inserção social dos consumidores.

      Considerando essa ressonância ética e as modalidades de ação descritas no art.21.º, n.º1,  do DL n.º 15/93, o crime de tráfico de estupefacientes tem sido classificado pela jurisprudência, quanto à forma como o bem jurídico é posto em causa pela atuação do agente, como um crime de perigo abstrato, pois que o legislador não exige, para a respetiva consumação, a efetiva lesão dos bens jurídicos tutelados e entende-se que das atividades ali descritas há já um perigo de lesão daquele bem jurídico múltiplo, que se reconduz à saúde pública.

      O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 441/94, consignou expressamente que a tipificação do tráfico de estupefacientes como crime de perigo abstrato é constitucio­nalmente consentida, ante os princípios da necessidade e da cul­pa.[8]

      No que respeita à classificação do crime quanto à conduta do agente, o entendimento generalizado na jurisprudência, é o de que, na dicotomia entre crimes de mera atividade e crimes de resultado, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de mera atividade, na medida em que se consuma com a conduta descrita na lei.

      Na construção dos tipos incriminadores com estrutura especial, o crime de tráfico de estupefacientes, vem sendo qualificado na jurisprudência, sem divergências, como crime de empreendimento.

      Retomando o caso concreto.

      Sendo relativamente à bolota de cocaína que o recorrente questiona a suficiência da matéria de facto provada para a sua condenação, por tráfico de estupefaciente, analisemos o que consta da acusação, da contestação e da fundamentação do acórdão recorrido a respeito dos estupefacientes apreendidos ao arguido AA.  

      Da acusação deduzida contra o arguido AA consta, designadamente:

      “Desde data não concretamente apurada, mas anterior a Agosto de 2021, o arguido AA, tendo em vista auferir lucros, decidiu dedicar-se ao cultivo e venda de canábis e à venda de cocaína, em ... e seus arredores.” (art.1);

        “No dia 02 de Setembro de 2021, cerca das 17h50m, no mencionado pinhal, o arguido detinha: - 62 (sessenta e duas) plantas de canábis (…).” (art.3);  

        “Nesse mesmo dia, 02 de Setembro de 2021, pelas 18h40m, o arguido detinha na sua residência, (…) uma bolota de cocaína com o peso bruto de 10,020 gramas e 59,1% de grau de pureza, correspondente a vinte e nove doses individuais.” (art.7);

      “O arguido destinava as folhas de canábis e a cocaína aludidas à venda a terceiros que o procurassem e contactassem para o efeito, suportando as suas despesas com o lucro daí resultante, já que não exerce qualquer actividade profissional remunerada desde Dezembro de 2013.” (art.8);

       “O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de cultivar, deter e vender canábis e cocaína, bem conhecendo as suas características e o seu carácter legalmente proibido, com vista a obter proventos económicos, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.” (art.9);

        O arguido é consumidor de produtos estupefacientes.” (art.13).

        O Ministério Público considera, pois, na acusação, que o arguido é consumidor de estupefacientes, mas em lado algum refere que a cocaína que este detinha e lhe foi apreendida, se destinava ao seu consumo próprio, mas, sim, que o arguido agiu com o propósito de deter e vender aquele produto estupefaciente.

         O arguido AA defendeu-se nos termos da contestação que juntou aos autos, invocando a ilegalidade da busca domiciliária e da apreensão da cocaína e do computador aí existente, bem como a ilegalidade da pesquisa eletrónica feita no computador, concluindo a pugnar pela não valoração destas provas por constituírem prova proibida; ofereceu o merecimento dos autos e alegou a seu favor, em concreto, as circunstâncias da sua vida pessoal e profissional que enuncia.

         Não alegou, pois, o arguido, em sua defesa, na sua contestação, que detinha a cocaína que lhe foi apreendida para seu consumo próprio - nem, aliás, para qualquer outro fim.

         Analisando a factualidade do acórdão recorrido, verifica-se que o Tribunal a quo deu como provado, com interesse para esta questão da detenção da cocaína, a seguinte factualidade da acusação:

- que em data não concretamente apurada, anterior a agosto de 2021, o arguido AA, plantou num pinhal diversas plantas de canábis, detendo, no dia 2 de setembro de 2021, 62 plantas de canábis;   

- que  nesse mesmo dia, 02 de Setembro de 2021, pelas 18h40m, o arguido detinha na sua residência, sita na Rua ..., ... do ..., ..., ..., no interior de uma gaveta da mesa-de-cabeceira do seu quarto, uma bolota de cocaína com o peso bruto de 10,020 gramas e 59,1% de grau de pureza, correspondente a vinte e nove doses individuais;

- que agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de deter  cocaína, bem conhecendo as suas características e o seu carácter legalmente proibido, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo; e

- que é consumidor de produtos estupefacientes.

      Deu como provado, ainda, face à prova produzida em julgamento, designadamente, que a partir dos 19 anos de idade o arguido passou a consumir haxixe de forma regular.

      Por sua vez, deu como não provado, nomeadamente:  

- que o arguido, tendo em vista auferir lucros, decidiu dedicar-se ao cultivo e venda de canábis e à venda de cocaína, em ... e seus arredores; e

- que vendeu canábis e cocaína.

       Do exposto, resulta que o Tribunal recorrido apreciou os factos constantes da acusação, dando uns como provados – tais como a detenção pelo arguido de uma bolota de cocaína e ser consumidor de produtos estupefacientes - e, outros, como não provados - como o arguido destinar à venda a cocaína que lhe foi apreendida e que utilizava a balança de precisão apreendida para individualizar as doses de cocaína destinadas à venda.

      Deu-se como provado que o arguido é consumidor de produtos estupefaciente, consumindo haxixe de forma regular a partir dos 19 anos de idade. Mas como se viu, nem o arguido alegou na contestação, nem o Tribunal a quo deu como facto provado, em face da prova produzida em audiência de julgamento, que a cocaína que ele detinha e lhe foi apreendida, se destinava ao seu próprio consumo.  

       Não constando dos factos provados que o arguido, apesar de ser consumidor de estupefacientes,  destinava a bolota de cocaína ao seu consumo próprio, a detenção daquele produto estupefaciente tem, entre nós, o sentido de tráfico, com o consequente preenchimento do tipo de ilícito objetivo do crime p. e p.  pelo art.21.º do D.L. 15/93.

         Os factos dados como provados no acórdão recorrido permitem, pois, que seja proferida, com a segurança necessária, uma decisão justa, sobre a prática de um crime de que o arguido vem acusado  - embora não seja a pretendida pelo ora recorrente.

      Em conclusão, não decorre do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, que o Tribunal a quo deixou de dar resposta a factos essenciais postulados pelo objeto do processo e que num juízo de prognose seriam dado como provado através dos meios de prova disponíveis, sendo certo que não existe carência de factos para suportar a decisão recorrida proferida dentro do objeto do processo.

      Deste modo, não se reconhece a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), n.º1 do art.410.º do C.P.P..

          2.ª Questão: Do vício do erro notório na apreciação da prova;
          11. No entender do arguido AA o acórdão recorrido incorreu, ainda, no vício do erro notório na apreciação da prova, na medida em que emerge dos factos dados como provados nos pontos a.7 – “o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e com o propósito concretizado de cultivar e deter canábis e de deter cocaína, bem conhecendo as suas características e o seu carácter legalmente proibido, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo” – e a.8 – “o arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o que não o demoveu de actuar como actuou” –, do acórdão recorrido, conjugados com as regras da experiência, que não foi apurado o destino da droga apreendida no que à cocaína respeita e, nesse sentido, que se destinaria a outro fim que não o consumo próprio. Se se apurou não ser a droga para venda, abre-se a possibilidade, compatível com a quantidade apreendida, de ser para consumo próprio.  
      Vejamos.
      O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto que, como todos os outros vícios do n.º2 do art.410.º do C.P.P., prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.
      Verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
      No dizer de Leal-Henriques e Simas Santos existe “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. [9]
     Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). 
     Este vício tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média.
     Nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.
     Vejamos.
      Para invocar este vício o recorrente conjuga factos provados (pontos a.7 e a.8, do acórdão recorrido) com factos não provados (que a cocaína detida pelo arguido, com peso de 10,020 gr se destinasse à venda), para concluir que ficou aberta a possibilidade da cocaína se destinar ao seu próprio consumo.   
     A factualidade dada como provada nos pontos a.7 e a.8, do acórdão recorrido, trazida à colação pelo recorrente, respeita ao elemento subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes, isto é, ao conhecimento e vontade de realizar os factos antijurídicos, com consciência da censurabilidade da conduta.

      Mais concretamente, consta daquela factualidade que o arguido, de modo livre, cultivou e deteve canábis e deteve cocaína, com conhecimento das características estupefacientes dos produtos e consciência de que esta sua conduta era proibida e proibida por lei penal.

     Esta factualidade provada não impõe, racionalmente, e só por si, na perspetiva de um cidadão médio, que deveria ter-se dado como provado que a cocaína se destinava ao consumo próprio do arguido, por tal o exigirem as regras da experiência comum.

     Por outro lado, o dar-se como não provado que o arguido destinava a cocaína à venda, não impõe uma decisão, sopesada à luz das regras da experiência comum, que aquele produto se destinava ao seu próprio consumo, tanto mais que o Tribunal a quo apesar de dar como provado, no acórdão recorrido que o arguido é consumidor de estupefaciente, apenas deu como provado que é consumidor de haxixe.

    A quantidade do produto apreendido de cocaína que detinha (10,020 gramas, com 59,1% de pureza, correspondente a 29 doses individuais), excedendo a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, a que alude o n.º 2 do Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, considerando os limites quantitativos máximos para as doses individuais deste produto descritas no mapa da Portaria n.º 94/96 de 26 de março, também não permite demonstrar que é ostensivamente errado não dar-se como provado que o arguido destinava a cocaína ao seu próprio consumo.

      Anotamos que não consta da fundamentação da matéria de facto, do acórdão recorrido, que o arguido declarou, em audiência de julgamento, que a cocaína que lhe foi apreendida se destinava ao seu próprio consumo.   

     Em suma, do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, designadamente, da factualidade provada e não provada, não se impõe concluir que o Tribunal a quo errou, e menos ainda ostensivamente, em termos de não escapar  à lógica do cidadão médio, ao não ter dado como provado que a cocaína (e a canábis) detida pelo arguido era para consumo próprio.

       Deste modo, não se reconhece, também, a existência do invocado vício do erro notório na apreciação da prova.


        12. Do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão

           O acórdão recorrido, no entender do recorrente, padece também do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, a que alude a alínea b), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal, quanto à decisão sobre as proibições de prova.

      Alega, neste sentido, que na fundamentação da matéria de facto, na secção da prova proibida, a sentença remete para dois acórdãos, tirados no mesmo processo - o acórdão da Relação do Porto, de 07/07/2016 (proc. n.º 2039/14.0JAPRT.P1, relator José Carreto) e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/11/2016, (proc.º 2039/14.0JAPRT.P1.S1, relator Pires da Graça  -, que defendem a aplicabilidade do art.17.º da Lei do Cibercrime quanto à apreensão de correio eletrónico,  do regime de apreensão de correspondência do art.179 do CPP, tal como o arguido defendeu na contestação, considerando assim necessário despacho judicial para aceder ao correio eletrónico.

Ora, no presente caso, em que não existiu prévio despacho do Juiz de instrução ordenado ou autorizando a apreensão de mensagens de correio eletrónico e o Tribunal a quo remeteu para aqueles dois acórdãos, decidiu-se no acórdão recorrido que tal regime foi escrupulosamente seguido, quando se impunha uma decisão no sentido da procedência da proibição de prova referente aos prints de correio eletrónico. Ou seja, face à fundamentação impunha-se ao Tribunal a quo uma decisão lógica oposta à proferida quanto às proibições de prova.

     Vejamos, em primeiro lugar, em que consiste este vício.

      Em termos sucintos, o vício da contradição insanável a que alude a alínea b), em apreciação, existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa. Duas proposições não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas.

      Ocorrerá este vício, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

      A oposição entre a fundamentação e a decisão, existirá quando a fundamentação de facto e/ou de direito aponta para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso.

      Mas este vício não se verifica quando o recorrente fundamenta o seu recurso na valoração da prova de modo diverso daquela que o tribunal entendeu, nem quando o resultado a que o juiz chegou na decisão advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados. 

      A contradição é insanável quando a decisão recorrida não fornece nenhum elemento para superar a incompatibilidade.

      Retomando o caso concreto.

      Da leitura da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido, resulta que o Tribunal a quo, no parágrafo intitulado “Da prova proibida”, visou responder à parte da contestação em que o arguido invocou “a nulidade da busca domiciliária realizada, e da apreensão do computador do arguido e subsequente perícia informática que possibilitou o acesso às mensagens de correio electrónico do mesmo.”

   Neste âmbito, começa por descrever, sumariamente, o teor do auto de detenção do arguido, junto a folhas 23-24; o auto de diligência, que culminou com a perseguição, detenção e condução do arguido à sua residência, constante de folhas 21-22; o auto de apreensão de plantas de canábis e diversos objetos e utensílios, junto a folhas 27-28; o auto de busca domiciliária e de apreensão, reportagem fotográfica, e “pré-formulário” da busca de onde resulta que o arguido não deu o seu consentimento à realização desta, juntos a folhas 61-62 e 63-64.

      Conjugando estes elementos, conclui que o órgão de polícia criminal estava autorizado à realização de busca domiciliária, sem prévio mandado de busca judicial.

      Seguidamente, consigna: “Nesta sede, este Tribunal secunda e louva-se na jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores, designadamente no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2016, Processo 2039/14.0JAPRT.P1, relatado pelo Ex.mo Desembargador JOSÉ CARRETO, in www.dgsi.pt que decidiu “um caso semelhante ao dos presentes autos” (…), e no acórdão do S.T.J., “datado de 23/11/2016, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Pires da Graça”, proferido no mesmo proc. n.º 2039/14.0JAPRT.P1.S1, consultável no local citado.

      Depois de transcrever segmentos significativos destas duas decisões, do sumário de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 4-4-2022, relativo a uma busca domiciliária,  e de indicar o estudo de Nuno Filipe Caramelo Sousa intitulado “Buscas domiciliárias efetuadas pelos órgãos de polícia criminal, após detenção em flagrante delito”, dedica o acórdão recorrido na última página respeitante à “prova proibida”, os seguintes parágrafos sobre a pesquisa informática no computador apreendido ao arguido:

   “ De referir ainda que, por despacho proferido a fls. 91 e segs. dos autos, em 03/09/2021, a Digna Magistrada do MºPº validou a constituição como arguido de AA, validou as apreensões, e, ao abrigo da Lei do Cibercrime, determinou se procedesse a pesquisa informática no computador apreendido. (…).

   “A fls. 134 mostra-se certificado e cumprido o mandado de pesquisa informática assinado pela Digna Magistrada do MºPº, e, a fls. 136 -138 consta, datado de 03/09/2021, pelas 10h30m, o auto de pesquisa informática, relativo à caixa de correio electrónico do arguido encontrada no computador pessoal deste anteriormente apreendido no decurso da busca domiciliária; e a, fls. 148, no seguimento da pesquisa informática, consta o auto de apreensão dos 2 CDs e dados / ficheiros neles guardados.”.

     E termina: “Termos em que, sem mais, se julgam improcedentes e não provadas as  proibições de prova invocadas pela defesa.”.

     Do ora exposto, em particular dos elementos literal e sistemático, temos como medianamente claro, que é relativamente à legalidade da busca domiciliária realizada na residência do arguido AA que o Tribunal a quo se louva e segue os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do S.T.J. proferidos no proc. n.º 2039/14.0JAPRT, e o acórdão do Tribunal de Guimarães, na medida em que terão decidido casos semelhantes ao dos presentes autos,  e que invoca ainda o estudo de Nuno Filipe Caramelo Sousa, intitulado “Buscas domiciliárias efetuadas pelos órgãos de polícia criminal, após detenção em flagrante delito”.

    A propósito da pesquisa informática levada a cabo no computador apreendido ao arguido, limita-se o Tribunal a quo a consignar que as diligências realizadas neste computador, nomeadamente a pesquisa à caixa de correio eletrónico e respetivos autos que certificam as diligências, resultam do cumprimento de mandado e pesquisa informática assinado pela Digna Magistrada do Ministério Público, constante de folhas 91, pelo que a prova assim obtida é válida e legal.

    Deste modo, na parte relativa ao acesso às mensagens de correio eletrónico o acórdão recorrido não remete, pelo menos expressamente, para os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do S.T.J. proferidos no proc. n.º 2039/14.0JAPRT, para decidir da legalidade da pesquisa eletrónica à caixa de correio do computador apreendido.

      Sendo pressuposto da existência do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, invocada pelo recorrente, fundamentar-se o acórdão recorrido no teor daqueles dois acórdãos para decidir da legalidade da pesquisa eletrónica à caixa de correio do computador apreendido e da apreensão de mensagens lá existentes, fica prejudicada a existência desse vício, uma vez que o acórdão recorrido não remeteu para os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do S.T.J. proferidos no proc. n.º 2039/14.0JAPRT, para decidir essa questão.

       Mas ainda que assim não fosse e o acórdão recorrido tivesse aderido, implicitamente, ao teor dos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do S.T.J. proferidos no proc. n.º 2039/14.0JAPRT para decidir não só da legalidade da busca domiciliária, mas também da legalidade da pesquisa eletrónica à caixa de correio do computador apreendido e da apreensão das mensagens, o S.T.J. entende que, no caso, não ocorreria o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, a que alude a alínea b), n.º1 do art.410.º do C.P.P..     

      Senão vejamos.

      Alega o recorrente que os acórdãos da Relação do Porto, de 07/07/2016 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/11/2016, proferidos no proc.º 2039/14.0JAPRT, defendem a aplicabilidade do art.17.º da Lei do Cibercrime quanto à apreensão de correio eletrónico, que exige um prévio despacho judicial para a apreensão de mensagens de correio eletrónico,  pelo que no presente caso, em que não existiu prévio despacho judicial para a apreensão de mensagens de correio eletrónico, não podia o Tribunal a quo ter concluído que tal regime foi escrupulosamente seguido.

      Salvo o devido respeito, nos segmentos dos acórdãos da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça, transcritos na fundamentação do acórdão recorrido, não se faz qualquer referência à aplicabilidade do art.17.º da Lei do Cibercrime, norma que exige, efetivamente, a intervenção do Juiz de Instrução na apreensão de mensagens de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante, e aplicação correspondente do regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.

        Os  acórdãos da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça, no caso analisado no proc.º 2039/14.0JAPRT, consideram, sim, que se no decurso da pesquisa informática for encontrado correio eletrónico Juiz ordena ou autoriza a sua apreensão, nos termos do art.18.º da Lei do Cibercrime, seguindo-se o regime da apreensão de correspondência do art.179.º do Código de Processo Penal.

      O art.18.º da Lei do Cibercrime, sob a epigrafe “Interceção de comunicações”, exige despacho do Juiz de instrução a ordenar ou autorizar a interceção de dados (necessariamente em transmissão), seguindo, com as devidas adaptações o regime da interceção e gravação de conversas ou comunicações telefónicas constantes dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal.  

      O próprio recorrente, na conclusão 75 da motivação do recurso, entende que o disposto no art.17.º da Lei do Cibercrime foi alheio à decisão de julgar improcedente a proibição de prova, relativamente ao acesso ao correio eletrónico, ao mencionar que “A sentença recorrida, na parte em que considera aplicáveis os arts.º 15.º n.º 1 e 16.º n. 1 e não o art.º 17.º da Lei 109/2009, incorre em erro na determinação da norma aplicável…”.

     Com esta afirmação, reconhece que o resultado a que o Tribunal a quo chegou de julgar improcedente a proibição de prova invocada pelo arguido, advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal dos factos ao disposto no art.18.º da Lei do Cibercrime quando, no entender do ora recorrente, deveria subsumido os factos relativos à apreensão do correio eletrónico ao disposto no art.17.º do mesmo diploma. 

     Se foi assim, ou não, é outra questão que oportunamente se abordará a propósito da  valoração de prova proibida.

      Perante o exposto, não se reconhece a invocada existência do vício da contradição e, menos ainda insanável, entre a fundamentação e a decisão,  a que alude a alínea b), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal, quanto proibição de prova.

   

        13. Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação.

        Caso se entenda não se terem por verificados os vícios da decisão da matéria de facto, entende o recorrente que o acórdão recorrido padece de nulidade, nos termos do art.379.º, n.º 1, alínea a), por referência ao estatuído no art.374.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, por omissão da fundamentação da decisão, pelo que se impõe a repetição da decisão pelo Tribunal de 1.ª instância, nos termos do disposto no n.º 3 do art.410.º do mesmo Código.

      Argumenta que o acórdão recorrido, no que toca à canábis, falha na exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão de condenação pela prática em autoria material e na forma consumada, o crime base do tráfico de estupefacientes , p. e p. pelo art. 21.º, n.º1 do DL n.º 15/93 de 22/01, e não o do tipo privilegiado do art.25.º, n.º, 1 alínea a), do mesmo diploma.

      O mesmo se diga das razões que afastam a subsunção da factualidade provada ao enquadramento no “crime de consumo de estupefacientes, previsto no art.2.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000 de 29/11”, no que concerne à cocaína apreendida ao arguido na busca domiciliária.      Atendendo à quantidade apreendida, ao facto de o arguido ser consumidor de produtos estupefacientes, à não prova da individualização de cocaína em doses individuais e posterior venda da mesma, bem como ao facto provado de o arguido trabalhar, não tendo despesas com a habitação, luz e água, que são asseguradas pelos seus pais, poderia integrar este tipo.

      À cautela, suscita a inconstitucionalidade:

- da interpretação do art.374.º n.º 2 do CPP, seguida na decisão recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos, ou seja a fundamentação de facto e de direito, por tal interpretação colidir com o estatuído no art.º 268.º n,º 3 da CRP, que consagra o direito à fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, pois no caso tal omissão equivale a total falta de fundamentação de um ato decisório com elevados custos para o direito à liberdade do arguido, constitucionalmente previsto no art.º 27.º n.º 1 da C.R.P.;

- da interpretação, seguida na decisão recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos, se traduz na violação dos limites constitucionais à restrição de direitos, liberdades e garantias, pois o direito à fundamentação das decisões judiciais consiste num direito fundamental de natureza análoga, que assim é violado com a referida interpretação, conforme previsto nos art.º 18.º nºs 2 e 3 e 17.º da C.R.P.;

- da interpretação seguida pela sentença recorrida, seguida na decisão recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos viola ainda o direito constitucional ao recurso, bem como o princípio da mais ampla defesa, pois só se pode recorrer devidamente, quando estejam claras as razões de facto e de direito de uma concreta decisão, com a consequente restrição do direito à mais ampla defesa do arguido, previstos no art.º 32.º n.º 1 da C.R.P; e

-  da interpretação seguida pela sentença recorrida, como ratio decidendi, segundo a qual para a fundamentação do enquadramento jurídico para uma dada realidade não é necessário elencar, de entre os factos provados, quais os que constituem o substrato material do ilícito típico em causa, bem como qual a interpretação das normas aplicáveis, seguida pelo Tribunal na aplicação do direito aos factos viola ainda o princípio da presunção de inocência, previsto no art.º 32.º n.º 2 da CRP, pois a decisão tem, forçosamente, de fundamentar a aplicação do direito aos factos, para que possa ser compreensível e impor-se a alguém presumidamente inocente.

A interpretação que o recorrente defende do art.º 374.º n.º 2 do CPP é que a decisão deve justificar com a factualidade provada concreta, bem como com as razões de direito extraídas das normas legais aplicáveis, a sua razoabilidade concreta, não se limitando a aplicar cegamente uma previsão legal, sem tornar expressas as razões, de facto e de direito em que se fundamenta, nomeadamente, sem justificar o afastamento de um tipo privilegiado.

Vejamos se assim é.

Invocando o recorrente um conjunto alargado de normas jurídicas, que terão sido violadas no acórdão recorrido (artigos 17.º, 18.º n.ºs 2 e 3, 27.º n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2 e 268.º, n.º 3 da C.R.P., e 374.º, n.º 2 do C.P.P.)  importa, antes do mais, fazer-lhes uma breve referência nas partes relevante para a decisão, sem prejuízo de referenciar outras normas adequadas ao caso concreto.

O art.17.º da C.R.P., estabelece que o regime dos direitos, liberdades e garantias, aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.

Como afloramento do Estado de Direito Democrático, o n.º 2 do art.18.º da Lei Fundamental, estabelece pressupostos materiais para a restrição, legítima, de direitos, liberdades e garantias, através do chamado princípio da proporcionalidade.

Doutrinariamente, este princípio vem sendo desdobrado em três subprincípios: princípio da necessidade ou da exigibilidade ( as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); e proporcionalidade em sentido estrito ou da racionalidade (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).[10]. O n.º 3 desta norma, em complemento do n.º2, estabelece o modo de projeção legislativa das restrições de direitos, liberdades e garantias.

O art.27.º, n.º1, da C.R.P., consagra os direitos à liberdade e à segurança da pessoa humana, que se retira da sua dignidade.

Já o art.32.º, da Lei fundamental condensa os mais importantes princípios materiais do processo penal. A fórmula do n.º 1 ao estabelecer que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, consagra uma «cláusula geral» que permite identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no texto constitucional.

Já o seu n.º 2, consagra a presunção de inocência, que é um princípio de inspiração jusnaturalista iluminista, que assenta na dignidade do ser humano e na defesa da sua posição individual perante a omnipotência do Estado. É mais abrangente do que o princípio do “in dubio pro reo”, já que este é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.[11]

O art.268.º, n.º 3 da C.R.P., invocado pelo recorrente, respeitando ao dever da administração pública fundamentar os atos administrativos, não tem aplicação à decisão recorrida.

A necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, tem consagração, sim, no art.205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

O objetivo do dever de fundamentação é, na clara lição de Germano Marques da Silva,  permitir «a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte , mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando  por isso  como meio de autodisciplina.».[12]

É razoavelmente pacífico, na jurisprudência, que a fundamentação das decisões varia em função do tipo concreto de cada ato e das circunstâncias em que ele é praticado, cabendo ao tribunal, perante cada caso, ajuizar se um destinatário normal, perante o teor do ato e das suas circunstâncias, está em condições de perceber, com critérios de razoabilidade, o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, de forma a conformar-se com o decidido ou a reagir-lhe pelos meios legais.

A fundamentação da sentença penal tem tratamento específico no art.374.º do Código de Processo Penal.

O art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal estabelece que, na elaboração da sentença, ao relatório segue-se a fundamentação, «…que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.». 

A exigência do exame crítico das provas é um aditamento levado a cabo pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, na sequência de jurisprudência que se vinha formando sobre essa necessidade, nomeadamente pelo STJ, que interpretou aquele dever de fundamentação no sentido de que a sentença - para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova - há-de conter também os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional  que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, um exame critico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do Tribunal num determinado sentido.[13]

Também o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, declarou inconstitucional a norma do n.º 2 do art.374.º do C.P.P. na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões da matéria de facto se bastava com a simples enumeração dos meios de prova utilizados na 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal , por entender ser violado o dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º1 do art.205.º da Constituição da República Portuguesa, bem como quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º2 do art.410.º do mesmo Código , por violação do direito ao recurso consagrado no n.º1 do art.32.º da Constituição da República Portuguesa.[14]

Em suma, se um destinatário normal, perante o teor do ato e das suas circunstâncias, está em condições de perceber o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, então a decisão, independentemente de se concordar ou não com ela, então a decisão está fundamentada.

A falta de fundamentação da sentença tem tratamento específico no art.379.º, alínea a), do Código de Processo Penal, cominando com nulidade a sentença que não contiver as menções referidas no art.374.º, n.º 2 do mesmo Código.

Retomando o caso concreto.

Argumenta o recorrente, em primeiro lugar, que no que toca ao cultivo e detenção da canábis o acórdão recorrido falha na exposição dos motivos de facto e de direito que o levou a considerar preenchidos os pressupostos do crime base do art.21.º, n.º1 do DL n.º 15/93 de 22/01, e não os do tipo privilegiado do art.25.º, n.º, 1 alínea a), do mesmo diploma.

Vejamos se assim é.

Comecemos pela alegada falta de exposição dos motivos de facto, no que toca à canábis.

Para dar como provados os factos que respeitam ao cultivo e detenção de canábis por parte do arguido AA e que subsumidos ao direito levaram à condenação do ora recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, o Tribunal a quo não se limitou a enunciar os respetivos meios de prova.

Da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido, resulta que a testemunha FF, inspetor da P.J., declarou que recebeu uma denúncia anónima sobre a localização de uma plantação de canábis. Do depoimento desta testemunha e da testemunha EE, também inspetor da PJ, retira-se que após a realização de diligências foi encontrada essa plantação, bem tratada, regada e adubada, num sítio ermo, numa zona florestal afastada da das casas e de qualquer passagem, de difícil acesso, nos termos que se mostram também documentados no auto de notícia/participação, autos de diligências e reportagem fotográfica, para que se remete. Mais declararam estas duas testemunhas da P.J. ter surpreendido o arguido no local da plantação, transportando jerricans vazios e nessa situação  procurou fugir do local, tendo sido perseguido e detido, nos termos que constam também dos autos de detenção do arguido, e de diligência para que se remete.

Na sequência da detenção em flagrante delito procederam a uma busca na residência do arguido, onde foi apreendido, além do mais, um computador , e realizada uma pesquisa informática a este verificou-se a existência de mensagens de correio eletrónico referentes à compra de fertilizantes e outros produtos, para que remete nos autos.

Enquanto no âmbito da imediação e da oralidade os depoimentos destas duas testemunhas foram considerados isentos e credíveis, as declarações do arguido AA não mereceram ao Tribunal Coletivo qualquer credibilidade, porquanto “o arguido negou a prática dos factos, contra as evidências, a sua detenção em flagrante delito, e as mais básicas regras da experiência ( para mais tendo em consideração que o arguido se encontrava em liberdade condicional, pela condenação por crime de tráfico do artº21º, e, ao ser surpreendido pela Polícia Judiciária, ainda tentou a fuga do local), e efabulou uma justificação estapafúrdia, inverosímil, e claramente arredada da realidade, quer para justificar a sua presença no local a transportar os jerricans vazios, quer para justificar a compra pela internet de sementes de canábis e de fertilizantes/aditivos para as plantas de canábis, que não mereceu qualquer credibilidade.”.

Perante esta explicitação do processo de formação da convicção, entendemos que o Tribunal a quo examinou criticamente a prova produzida, em termos de se perceber a razão pela qual se deu como provado que no circunstancialismo de tempo e lugar  descrito o arguido, procedeu ao cultivo e era detentor das plantas de canábis que forma apreendida, pese embora este negar cultivar e ser o detentor dessas plantas.   

Não padece assim o acórdão recorrido de falta de exposição dos motivos de facto no que respeita à factualidade dada como provada no que toca ao cultivo e detenção da canábis apreendida quando foi detido em flagrante delito.

Analisemos agora a situação no que respeita à exposição dos motivos de direito que levou o Tribunal a quo a considerar preenchidos os pressupostos do crime base do art.21.º, n.º1 do DL n.º 15/93 de 22/01.

Na “Qualificação jurídica dos factos” o Tribunal a quo procede, em breve síntese, à transcrição do art.21.º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro e respetivo enquadramento da canábis e da cocaína nas tabelas anexas ao mesmo diploma, faz adequadas considerações sobre danosidade do  tráfico de estupefacientes e os bens jurídicos protegidos com a incriminação do tráfico e distribui a “tipologia de traficantes” prevista no diploma legal, determinando que os grandes traficantes estão pressupostos nos artigos 21.º e 22.º em conjugação com algumas das circunstâncias agravantes do art.24º; os médios e pequenos traficantes, no art.25º; e os traficantes-consumidores, no art.26º, todos do DL n.º 15/93).

Em seguida conclui: “…mostra-se muito relevante para o próprio enquadramento legal o conhecimento da personalidade do arguido e da sua situação pessoal e social - se é um “dealer” de apartamento ou de rua, ou se é um simples intermediário - e, em particular, se não é consumidor de droga, se é um consumidor ocasional, habitual ou mesmo já toxicodependente.

E, bem assim , a intenção com que o indivíduo detém ou possui a droga: se para seu uso pessoal, se para a vender ou por outro modo ceder ou entregar.

Ora, a intenção de um ser humano é de difícil comprovação directa, se não for o próprio a revelá-la. Daí que, na maioria dos casos, a mesma deduz-se dos mais diversos factos exteriores, desde que provados. De tais factos, seguindo as regras lógicas da experiência comum, o julgador retira as suas conclusões - sem que esteja, já, no campo das meras presunções.

Assim, a título exemplificativo, o quantitativo de droga detida é, em regra, um elemento de grande relevo, bem como, por outro lado, determinar se o arguido é ou não consumidor.

Do mesmo modo, também não serão indiferentes os próprios antecedentes criminais do arguido, e o facto de na sua posse terem ou não sido encontrados objectos habitualmente relacionados com o tráfico de droga (balanças, instrumentos e produtos de “corte” do estupefaciente; elevadas quantias em dinheiro ou objectos de valor dispersos - ouro, electrodomésticos, auto-rádios); ou com o consumo de estupefacientes ( seringas, pratas, colheres ).

Reportando-nos agora, em concreto, à factualidade apurada nos presentes autos, temos que resultaram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo base de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22/01, pelo qual o mesmo deverá ser condenado, uma vez que não se provaram quaisquer causas de justificação de ilicitude ou de exclusão da culpa.”

Referindo-se na fundamentação de direito, designadamente, que o art.21.º do DL n.º 15/93, de 22/01, é aplicável aos grandes traficantes e o art.25.º do mesmo diploma é aplicável aos médios e pequenos traficantes, que no enquadramento legal é relevante, nomeadamente e em particular, se o arguido é consumidor de droga, consumidor ocasional, habitual ou mesmo toxicodependente, e se detém a droga para seu uso pessoal, para vender, ceder ou entregar, qual o quantitativo da droga, os antecedentes criminais do arguido e se lhe foram encontrados objetos relacionados com tráfico de droga, como balanças, impunha-se ao Tribunal a quo explicar, em concreto, face aos próprios critérios que indica, qual o motivo pelo qual decidiu que a detenção da cocaína e o cultivo e detenção da canábis, integram o tipo fundamental e não o tipo do art.25.º do DL n.º 15/93, tanto mais que deu como provado que o arguido é consumidor de estupefacientes, e deu como não provado que este destinasse aqueles produtos estupefacientes à venda de terceiros e que a balança apreendida era utilizada para individualizar a canábis e a cocaína.

Uma vez que o acórdão recorrido se limita e dizer, “em concreto”, que a factualidade apurada preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo base de tráfico, entendemos ser insuficiente a fundamentação da decisão, uma vez que não se mostra suficientemente clarificada a razão pela qual entendeu que a conduta do arguido de cultivar e deter canábis e deter cocaína, integra a prática do crime fundamental previsto no art.21.º do DL n.º 15/93, de 22/01, que no seu entendimento é aplicável aos grandes traficantes e não o crime do art.25.º do mesmo diploma, que considera aplicável aos médios e pequenos traficantes.

Consequente, nesta parte, incorreu o acórdão recorrido em nulidade por falta de fundamentação.

Já relativamente à não subsunção da detenção da cocaína ao “crime de consumo de estupefacientes, previsto no art.2.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000 de 29/11”, diremos, por um lado, que este tipo não prevê, nem pune, a prática de um crime de consumo de estupefacientes[15] e, por outro lado, não tendo resultado provado que o arguido AA destinava aquele produto ao seu consumo próprio, afastada está qualquer possibilidade da conduta do arguido AA poder integrar a prática de uma contraordenação.

Uma última nota, para clarificar que não se vislumbra na aplicação do direito aos factos por parte do Tribunal a quo, qualquer violação dos princípios do direito à liberdade ou da presunção de inocência, previsto no art.º 32.º n.º 2 da CRP, nos termos supra descritos, pois a lei aplicada na decisão recorrida permite a condenação do arguido numa pena privativa da liberdade e a presunção da inocência não se coloca a propósito da aplicação do direito, mas sim ao nível da dúvida sobre os factos,  impondo ao julgador que o non liquet da prova sobre os factos seja sempre resolvido a favor do arguido.

Procede, assim, parcialmente e nos termos expostos, a presente questão.

14. Da valoração de prova proibida

Sem condescender, entende o recorrente que o acórdão recorrido padece de nulidade, por valoração de prova proibida, uma vez que valorou uma busca domiciliária ilegal e valorou  mensagens de correio eletrónico apreendidas no decurso de pesquisa informática sem despacho judicial prévio.

A) Comecemos por delimitar a questão da “busca domiciliária”.

O recorrente alega que o Tribunal a quo defendeu a validade da busca domiciliária diurna, levada a cabo no seu domicílio pela Polícia Judiciária sem consentimento do visado, porquanto foi realizada ao abrigo da detenção em flagrante delito, sustentando-se nos acórdãos da Relação do Porto, de 7-7-2016 e do S.T.J. de 23-11-2016.

Porém, no entender do recorrente, a situação aí em análise é muito distinta do caso presente, pois, enquanto no acórdão recorrido a busca domiciliária ocorre após o órgão de polícia criminal surpreender um desconhecido junto a  uma plantação de canábis - conforme resulta da prova documental junta aos autos, em particular , do auto de notícia/participação de 20-8-2021 e dos autos de diligência datados de 20-08-2021, 1-09-2021 e 2-09-2021 -, nos acórdãos supra referidos a busca domiciliária mostra-se fundada num prévio conhecimento pelo órgão de polícia criminal do envolvimento do visado nos factos, existindo assim indícios de que haveria objetos relacionados com o crime ou que podem servir de prova, em local  reservado ou não livremente acessível ao público ( art.174.º, n.º 2 , do C.P.P.).         

A busca domiciliária tem de se fundamentar em factos objetivos, que levem a crer que as coisas ou objetos relacionados com o crime estarão, efetivamente, escondidos no domicílio do arguido, não uma mera hipótese, motivada pela experiência e praxis policiais.

No caso, o órgão de polícia criminal surpreende e detém o arguido, pessoa desconhecida no inquérito, á saída de uma plantação de canábis, que se situa a 3 km do local da detenção, inexistindo qualquer indício na investigação que apontasse para a dissimulação de objetos relacionados com a prática do crime por que foi detido, no seu domicílio.

A busca realizada pelo órgão de polícia criminal constituiu uma intromissão abusiva no domicílio do arguido, e toda a prova produzida por intermédio da busca, ou seja, todos os objetos apreendidos no decurso da busca constituem meio de prova proibida, nos termos do disposto no art.126.º, n.º 3, do C.P.P., por imposição do princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio previsto no art.34.º da C.R.P., que  determina a nulidade de todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão no domicílio: como sejam a bolota de cocaína, a balança de precisão, o computador, bem como todos os resultados da pesquisa informática ao computador apreendido, compilados e gravados em CD, contendo dados apreendidos no computador do arguido.

A valoração da prova proibida constitui nulidade insanável, arguível em sede de recurso, nos termos do art.410.º, n.º3 do C.P.P., com a consequência de dever ser repetida a sentença pelo Tribunal a quo.

À cautela, é inconstitucional a interpretação, seguida pelo Tribunal recorrido como ratio decidendi, dos artigos 174.º n.º 2 e n.º 5 alínea c) do C.P.P. e 177.º n.º 3 alíneas a) e b) do C.P.P., segundo a qual é admissível uma busca domiciliária diurna, em caso de detenção em flagrante delito, por tráfico de estupefacientes, num determinado local, sem continuidade física ou qualquer relação com o local buscado, ainda que inexistam quaisquer indícios que levem a suspeitar que nesse domicílio se encontrem objetos relacionados com o crime em questão, na medida em que se restringe demasiado o direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no art.º 34.º da CRP e fora dos limites do art.º 18.º da CRP, autorizando a entrada no domicílio dos cidadãos fora das hipóteses legalmente previstas, de forma desadequada, desnecessária e, portanto, desproporcionada.

Vejamos.

O art.34.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «inviolabilidade do domicílio e da correspondência», consagra, designadamente, a proteção da reserva do domicílio, referindo que o mesmo é inviolável (n.º1) e que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei. (n.º2).

Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação a esta norma, que “(…) tem de entender-se por domicílio, desde logo, o local onde se habita – a habitação - , seja permanente, seja eventual; seja principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao sentido civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas, certamente incluindo também as habitações precárias, como tendas, “roulottes”, embarcações), abrangendo também a residência ocasional (como o quarto de hotel) (…)”.[16]

A proteção da inviolabilidade domiciliária, à semelhança dos restantes direitos fundamentais, não consubstancia um direito absoluto ou ilimitado.

De facto, o n.º 2 do art34.º da Lei Fundamental, admite que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei. A  importância dos bens jurídicos tutelados pelo direito criminal, como a da inviolabilidade do domicílio, justifica, na verdade, desde que a mesma não se mostre excessiva, uma compressão de direitos fundamentais.

Isso mesmo se retira do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 364/2006, no qual se pode ler que “não existe norma constitucional de que possa retirar-se a completa imunidade de um espaço a buscas judiciais: basta, para o efeito, atentar no disposto no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição, que proíbe a abusiva intromissão na vida privada e no domicílio, o que obviamente significa que existem intromissões constitucionalmente permitidas. Entre estas situam-se, sem dúvida, as buscas judiciais que tenham lugar nos casos e segundo as formas previstas na lei, que a Constituição admite quando se trata da entrada no domicílio dos cidadãos (cfr. artigo 34.º, n.º 2, da Constituição)”.

Nesta linha, resulta do n.º 8 do art.32.º da Lei Fundamental que a nulidade das provas obtidas por intromissão na vida privada, nomeadamente no domicílio, se verifica quando tal intromissão seja “abusiva”, devendo considerar-se abrangida por tal qualificativo a intromissão “efetuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (artigo 34.º, n.ºs 2 e 4), quando desnecessária ou desproporcional ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cfr. artigo 18.º, n.ºs 2 e 3)” (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., p. 524).

Definida uma autorização constitucional expressa para o estabelecimento de restrições à inviolabilidade do domicílio, importa verificar os concretos termos em que essas restrições sujeitas à reserva de lei, se mostram regulamentadas.  

A restrição à inviolabilidade do domicílio ocorre em direito criminal particularmente no âmbito da busca, que é uma diligência tendente à obtenção de objetos relacionados com um crime ou que possam servir de respetiva prova ou ainda à detenção de um indivíduo, que se encontra prevista no Código de Processo Penal , no Livro, III « Da prova» - Título III « Dos meios de obtenção de prova», - capítulo II « Das revistas e buscas», artigos 174.º a 177.º.

Enquanto o art.174.º do C.P.P. respeita à generalidade das buscas, estabelecendo os pressupostos gerais, o art.177.º, do mesmo Código, disciplina as buscas domiciliárias.  

O art.174.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «pressupostos» das revistas e das buscas», estabelece, além do mais com interesse para a questão em apreciação, o seguinte:

« 2 - Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.

3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.

5 - Ressalvam-se das exigências contidas no n.º 3 as revistas e as buscas efetuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

(…)

c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.

A busca, definida no n.º2 desta norma, é uma diligência processual associada à entrada em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, direcionada à descoberta de algo que se encontrará tendencialmente escondido ou dissimulado.

O primeiro pressuposto de qualquer busca é a existência de indícios.

Não definindo a lei um conceito de “indícios” para determinação da busca, deixou o legislador à doutrina e à jurisprudência a sua conformação.

Na lição de Paulo Pinto de Albuquerque, quer a revista, quer a busca, se fundam numa “suspeita”. “A busca fundamenta-se numa suspeita de que em certo lugar se encontram objetos relacionados com o crime ou que possam servir de prova ou de que se lá encontram o arguido ou outra pessoa que deva ser detida.”.[17]

Neste sentido, pronuncia-se, expressamente, o acórdão da Relação de Guimarães, de 4-4-2022, citado na decisão recorrida, que aderindo ao entendimento do acórdão da Relação de Coimbra, de 23-2007 (proc. n.º 3/07.4GBCNT-A.C1), defende que “ atenta a fase processual em que nos encontramos e não definindo a lei o que deve entender-se por “indícios”  para os efeitos de ser determinada uma busca, temos para nós que os mesmos deverão ser entendidos como suspeitas, indicações, sinais ou quaisquer outros elementos que apontem para a existência dos objetos naquele lugar”.   

Num sentido mais restritivo do conceito, indica o recorrente, na motivação do seu recurso,    dois acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 4-2-2014 (proc. n.º  41/11.2PEVR.E1) e de 05/02/2019 (proc.º 35/15.9PESTB.E1), ambos do mesmo relator, defendendo que os indícios para efeito de buscas não são “meras suspeitas ou conjeturas”.

Em regra, as buscas são sujeitas a despacho da autoridade judiciária competente, que as autoriza ou ordena, devendo, sempre que possível, a elas presidir (art.174.º, n.º2 do C.P.P.).

Como referido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 216/2012, “A exigência legal de uma autorização judicial prévia da busca domiciliária pretende assegurar uma ponderação casuística entre o valor do contributo previsível da diligência para o apuramento da verdade material e a violação da reserva da vida privada que a sua realização acarreta. Esta exigência da autorização comporta a garantia de uma prévia e casuística ponderação confiada a quem, como já referimos, é matricialmente assumido como o garante, por excelência, dos direitos fundamentais. É assim, nos termos da lei, ao juiz que incumbe decidir sobre se, perante as circunstâncias concretas, o interesse da procura da verdade material justifica a medida intrusiva da busca.”.

Em situações excecionais, condicionada aos circunstancialismos descritos no n.º 5 do art.174.º do C.P.P., também os órgãos de polícia criminal podem efetuar buscas, ainda que sem autorização ou ordem das  autoridades judiciárias.

É o que acontece , designadamente, e com interesse o presente caso, «aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão» ( alínea c), n.º 5 do art.174.º do C.P.P.).

A urgência para a salvaguarda da eficácia da investigação justifica que se atribua aos  órgãos de polícia criminal, nesta situação, a realização de busca, ainda que sem autorização ou ordem das  autoridades judiciárias.

Nos termos do art.256.º, n.º do C.P.P. «É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.».

O flagrante delito aqui previsto verifica-se quando o agente é surpreendido durante a sua execução.

Em suma, sejam as buscas judiciárias ou efetuadas por órgão de polícia criminal,  o juízo de prognose sobre a existência de indícios para a realização da busca deve ser aferido perante a situação concreta, em função de critérios de razoabilidade, ou seja, de necessidade, adequação e proporcionalidade perante o objetivo, nos termos extraídos da 2.ª parte do art.18.º , n.º 2 da C.R.P..

O tipo de crime, os meios utilizados para o crime e os objetos encontrados na posse do agente aquando do flagrante delito são, entre outros, fatores relevantes para a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal decidirem, em função de critérios de razoabilidade, se existem indícios para ser autorizada/ordenada ou efetuada busca em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.

Tais indícios não têm de ser fortes ou indícios suficientes, pois quando assim o Código de Processo Penal o quis referiu-o expressamente nas normas legais.

No caso de busca em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, designadamente por parte de órgão de polícia criminal, fundada em  detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, não pode deixar de se exigir, como requisito implícito, a existência de uma conexão objetiva entre ocorrência do flagrante delito e a busca, tendo em conta que o fim por esta visado é a salvaguarda de meios de prova do crime que possa existir naqueles locais.

Numa situação de ocorrência de flagrante delito por crime de ofensas corporais com o emprego das mãos, é evidente que não seria válida a realização de busca a um local reservado ou não livremente acessível ao público fundada numa alegada suspeita ou conjetura de que o agente poderá ter ali escondidas armas.  

Mas já em outras situações, como é o caso de detenção em flagrante delito aquando de tráfico de estupefacientes, está longe de ser rara a existência de uma conexão objetiva entre a detenção e a busca, suportada em indícios de existência de estupefacientes na residência do traficante, bem como de objetos de apoio ao tráfico destes produtos.

Seja qual for a opção sobre o conceito de indícios, mais ampla ou mais restritiva,  entendemos que não é o resultado da busca - consubstanciado na apreensão ou não de objetos do crime ou relacionados com ele no lugar reservado ou não livremente acessível ao público -, que determina a validade ou invalidade do juízo sobre a existência de indícios que determinou a realização da busca.    

Tendo a investigação criminal um caráter dinâmico, existe sempre alguma incerteza nas provas que se conseguem obter, particularmente quando a diligência recai em lugar reservado ou não livremente acessível ao público e, por essa razão desconhecido das autoridades judiciárias e/ou dos órgãos de polícia criminal.

O caráter intrusivo da busca “em lugar reservado ou não livremente acessível ao público”,  acentua-se na «busca domiciliária»

O regime específico da busca domiciliária consta do art.177.º do C.P.P., onde dispõe, designadamente, o seguinte:

«1- A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efetuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.

2- Entre as 21 e as 7 horas, a busca domiciliária só pode ser realizada nos casos de:

a) Terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada;

b) Consentimento do visado, documentado por qualquer forma;

c) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.

3- As buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efetuadas por órgão de polícia criminal:

a) Nos casos referidos no n.º 5 do artigo 174.º, entre as 7 e as 21 horas;

b) Nos casos referidos nas alíneas b) e c) do número anterior, entre as 21 e as 7 horas.

(…).».

A busca domiciliária, que em regra só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz, pode ser ordenada também pelo Ministério Público ou ser efetuada por órgão de polícia criminal, designadamente, nos casos referidos no n.º 5 do art.174.º do C.P.P. entre as 7 e as 21 horas (por remissão da al. a), n.º 3 do art.177.º do C.P.P.), ou seja, aquando de detenção em flagrante, por crime a que corresponda pena de prisão.[18]    

No âmbito do flagrante delito pode colocar-se a questão, como coloca o ora recorrente, de saber se existe algum limite temporal e espacial na realização das buscas aquando da detenção de sujeito em flagrante delito realizada por órgãos de polícia criminal.

No sentido da inexistência desse limite, a respeito da busca domiciliária, encontra-se o acórdão da Relação do Porto, de 7-7-2016, citado na decisão recorrida e assim sumariado:

V- As buscas subsequentes ao flagrante delito não estão limitadas ao local e ao momento do crime (não existe um limite temporal para tal diligência), devendo exigir-se apenas que não se trate do decurso de um prazo desproporcionado para o efeito ou inadequado ao caso, de acordo com as regras da proporcionalidade, adequação e razoabilidade face à necessidade da mínima intromissão/intervenção na vida do arguido e tendo em vista o crime em análise e seus contornos.”.

Este acórdão foi confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-11-2006, citado na decisão recorrida, em cujo sumário se consigna:

VI - A abrangência legal do flagrante delito não se encontra delimitada no espaço, ou seja, não se encontra territorialmente vinculada pela distância do local do crime.”.

Ainda no mesmo sentido, o acórdão da Relação de Guimarães, de 4-4-2022, também  citado na decisão recorrida, apresenta o seguinte sumário: “

IV- A realização de uma busca domiciliária passada cerca de 1 hora e 20 minutos após a detenção por flagrante delito não é um prazo excessivo, mostrando-se o hiato temporal verificado justificado em face das circunstâncias do caso concreto, ou seja, das várias diligências que houve necessidade de efectuar após o flagrante delito e a detenção do arguido.”.[19]

Concordamos com esta posição jurisprudencial, pois nem o regime específico das buscas domiciliárias a que alude o art.177.º, n.ºs 2  e 3 do Código de Processo Penal, nem o regime geral das buscas previsto no art.174.º, n.º5, do mesmo Código, estabelece como requisitos de busca a existência de continuidade física entre o local do flagrante delito e o da busca e/ou um  hiato temporal a respeitar entre a constatação do flagrante delito e a busca.

Sendo o fim da busca domiciliária a apreensão de coisas ou objetos relacionados com o crime que estarão no domicílio do arguido, não é a distância entre o local da ocorrência do flagrante delito e o da busca, que determina a validade ou não desta, mas sim a adequação e necessidade de realização dessa diligência, para salvaguarda do meio de prova que, objetivamente e em face das regras da experiência comum, ali se poderá encontrar.     

Não existindo expresso na lei um hiato temporal a respeitar entre a constatação do flagrante delito e a busca, é medianamente claro que o mesmo não poderá ser dilatado, sob pena de a busca se tornar inadequada e desnecessária ao fim visado, por inútil, pois a possibilidade de destruição ou de movimentação das provas aumenta com o decurso do tempo.

Nos casos em que não existe uma autorização prévia da busca pela autoridade judiciária, a comunicação desta diligência pode ser feita conjuntamente com a apresentação do arguido detido, dentro do prazo legal de 48 horas, podendo a validação da busca ser explicita ou implícita.[20]

Retomando o caso concreto.

Como ora se consignou, os órgãos de polícia criminal, podem efetuar buscas domiciliárias, em caso de flagrante delito, pela prática de crime punível com pena de prisão, nos termos da alínea a), n.º 3, do art.177.º do C.P.P., conjugada com alínea c) do n.º 5, do art.174.º, do mesmo Código.

Do acórdão recorrido e dos autos para que remete, designadamente, dos autos de detenção de folhas 23-24 e dos autos de diligência de folhas 21-22, retira-se que no dia 2-9-2021, elementos da Polícia Judiciária que se encontravam de vigilância a uma plantação de canábis, sita em local de difícil acesso, dissimulada num pinhal, observaram um individuo a encaminhar-se para a plantação e sair dela uns minutos depois, trazendo consigo um balde de plástico e dois jerricans em plástico, próprios para transporte de líquidos. Quando abordado por elementos desta Polícia, que como tal se identificaram a fim de procederem à sua detenção, o indivíduo largou aqueles objetos que trazia e encetou uma fuga apeada. Veio a ser apanhado uns 3 minutos depois, acabando detido pelas 18h17m, “em flagrante delito pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.”.

De acordo com o auto de folhas 21-22, o individuo identificou-se verbalmente como sendo AA, residente na Rua ..., ..., e tanto quanto foi possível perceber, ter-se-á deslocado ao local onde se situa a  plantação de canábis “… apeado e a partir da sua residência, sendo que teria como objetivo proceder à regra das plantas”. Na plantação foram apreendidas 62 plantas de canábis, com cerca de 2 metros de altura e 94 plantas de canábis, em diversas fases de germinação ou ainda jovens, com um peso total aproximado de 27,45 quilogramas, o referido balde e jerricans, embalagens de fertilizantes, nutrientes, sementes e adubos para plantas canábis. Perante este circunstancialismo, “seguidamente, o detido foi conduzido à sua residência onde, ao abrigo da detenção em flagrante delito, se realizou uma busca.”.

Perante este circunstancialismo, entendemos que aquando da busca domiciliária, diurna, efetuada pela Polícia Judiciária, mostravam-se preenchidos os dois pressupostos referidos nos artigos 174.º, n.º 5, alínea c) e 177.º , n.º 3, alínea a), do C.P.P., essenciais à efetivação de busca domiciliária por órgão de polícia criminal: por um lado, o arguido AA foi encontrado em flagrante delito por órgão de polícia criminal, por outro lado, foi detido e indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º1 do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-C,  que é punido com pena de 4 a 12 anos de prisão.

O tráfico de estupefacientes imputado ao arguido AA pela Polícia Judiciária, no momento da detenção, é um crime grave, que integra a definição de «criminalidade altamente organizada» enunciada na al. m) do art.1.º, do Código de Processo Penal.

Quando foi detido, por cultivar uma plantação de canábis, composta por 156 plantas, em diversas fases de crescimento, foram apreendidos ao arguido, no local do flagrante delito, para além das plantas de canábis, diversos objetos relacionados com o cultivo das plantas, como baldes e jerricans, embalagens de fertilizantes, nutrientes, sementes e adubo para plantas de canábis.      

O arguido fugiu do local quando apanhado em flagrante e resulta claro do acórdão recorrido que o mesmo negou em julgamento que a plantação lhe pertença, o que certamente também aconteceu no momento da detenção.

No entendimento dos elementos da Polícia Judiciária o arguido AA chegou ao local em que foi detido em flagrante delito apeado, deslocando-se a partir da sua residência.

Nestas circunstâncias, perante o significativo número de plantas de canábis que o arguido cultivava e os objetos encontrados no local da detenção, consideramos, de acordo com as regras da experiência comum, que havia uma conexão entre o local da detenção em flagrante delito e a residência do arguido de onde aquele se deslocara apeado, em termos de se considerar haver indícios de que nessa residência deteria o arguido canábis que cultivava e outros objetos ligados àquele cultivo.

Havendo uma conexão objetiva entre a ocorrência do flagrante delito e um interesse na salvaguarda de meios de prova que indiciariamente se encontravam na residência do arguido  entendemos que a busca domiciliária efetuada pelo órgão de polícia criminal, sem consentimento do arguido, numa altura em que os Tribunais se encontravam já fechados,  não foi excessiva, mas  necessária, adequada e proporcional, tal como decidiu o Tribunal recorrido.

Mesmo para quem considere, como o ora recorrente, que é requisito de busca a existência de um hiato temporal a respeitar entre a constatação do flagrante delito e a busca, não se vislumbra como excessivo o prazo de 23 minutos entre a detenção em flagrante delito e a realização da busca domiciliária, como bem anota a decisão recorrida.

Em suma, tendo a busca domiciliária sido efetuada por órgão de polícia criminal, numa situação de flagrante delito e quando existiam indícios de que o arguido detinha na sua residência  canábis que cultivava e outros objetos relacionados com o seu cultivo, mostram-se verificados todos os pressupostos de admissibilidade de realização desta diligência, previstos no art.174.º, n.ºs 1 e 5 , alínea c) e 177.º, n.º 3, alíneas a) e b), ambos do Código de Processo Penal.

Assumindo-se como regularmente efetuada a busca domiciliária, não se reconhece a invocada inconstitucionalidade destas normas processuais penais, por alegada violação dos artigos 34.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.    

Consequentemente, não constituindo a busca domiciliária efetuada pelo órgão de polícia criminal uma intromissão abusiva na residência do ora recorrente, foi válida a apreensão da cocaína, da balança de precisão e do computador, descritos no auto de folhas 61-62.  

B) Passemos à questão da validade da apreensão e valoração das mensagens de correio eletrónico.

Entende o recorrente AA que o acórdão recorrido ao valorar prints das mensagens de correio eletrónico apreendidas no decurso de pesquisa informática, sem despacho judicial prévio, utilizou prova proibida e incorreu em nulidade insanável e arguível em sede de recurso, nos termos do disposto no art.º 410.º n.º 3 do CPP, com a consequência de dever ser repetida a sentença pelo Tribunal a quo.

Alega para o efeito, em síntese:

- O art.17.º, da Lei 109/2009, é aplicável às mensagens de correio eletrónico, que impõe a intervenção do juiz de instrução, previamente à apreensão de correio eletrónico;

- Também na apreensão de mensagens de correio eletrónico, sejam elas mensagens fechadas ou abertas (sabendo-se aliás que é possível marcar, na caixa de correio eletrónico, uma mensagem como lida, sendo esta não lida), por imposição legal, deve ser sempre o juiz de instrução a ordenar ou a autorizar, por despacho, a apreensão de tais mensagens;

- Fazendo as devidas adaptações, ou seja, verificados os requisitos do art.17 da Lei 109/2009 e da alínea a) do art.179.º do CPP, visto o da alínea b) ser derrogado pela Lei Especial do Cibercrime e da alínea c) ser coincidente com o requisito do art.º 17.º, poderá existir ingerência na correspondência digital, sempre mediante intervenção do juiz. Serão ainda aplicáveis o n.º 2 do art.º 179.º e o n.º 3 do CPP, mais relevante para o caso concreto, o qual dispõe, claramente em sentido idêntico ao do art.º 17.º, de que o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida.

- O acórdão recorrido, na parte em que considera aplicáveis os artigos 15.º n.º 1 e 16.º n. 1 e não o art.º 17.º da Lei 109/2009, incorreu em erro na determinação da norma aplicável.

É inconstitucional a interpretação dos artigos 17.º da Lei 109/2009 e 179.º do Código de Processo Penal, seguida como ratio decidendi, segundo a qual é legítima a apreensão e junção aos autos de prints de mensagens de correio eletrónico, pelos órgãos de polícia criminal, sem precedência de despacho judicial e, portanto, fora das hipóteses legalmente previstas, por violação da proibição de ingerência na correspondência, telecomunicações e demais comunicações, fora das hipóteses previstas na lei criminal, conforme estatui o art.º 34.º n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos se assim é.

     

O art.34.º da Constituição da República Portuguesa, consagra o direito ao sigilo da correspondência e das comunicações privadas. Depois de no seu n.º1 estabelecer o direito à inviolabilidade da correspondência e das comunicações privadas, proíbe no n.º4 toda a ingerência na correspondência e nos meios de comunicações privadas, ao dispor que, «é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.».

No âmbito do direito à proteção dos cidadãos perante o tratamento de dados pessoais informatizados, o art.35.º da nossa Lei fundamental, consagra não só o direito dos cidadãos ao acesso aos dados pessoais existentes em registos informáticos e ao conhecimento da finalidade a que se destinam (n.º1), como proíbe o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos especialmente previstos na lei (n.º4).

O direito ao sigilo da correspondência e das comunicações privadas, como à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática, são expressões do direito à reserva de intimidade da vida privada, consagrado no art.26.º, n.ºs 1, in fine e 2 da Constituição).

A densificação destas normas constitucionais, que protegem direitos fundamentais, encontra-se distribuída entre vários diplomas.

Com interesse para a presente decisão importa considerar o art.179.º do Código de Processo Penal, que estabelecendo o regime da apreensão da correspondência dispõe,  designadamente, o seguinte:

«1 - Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que:

    a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;

    b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e

    c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

 2 – (…)

 3 - O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.».

Entende-se que este normativo se aplica à correspondência física em trânsito, fechada, até à sua abertura. Uma carta recebida e aberta não goza da proteção do art.179.º do C.P.P., mas do regime aplicável a qualquer documento escrito guardado em arquivo pessoal.

São essencialmente duas as razões que suportam este entendimento:

“Por um lado, tem-se em conta a específica situação de perigo em que a mensagem se encontra durante o processo de comunicação, altura em que o emissário e o destinatário não têm controlo sobre ela. Se a «[a] tutela jurídica da inviolabilidade das telecomunicações radica […] na "específica situação de perigo" decorrente do domínio que o terceiro detém — e enquanto o detém — sobre a comunicação (conteúdo e dados)» e que lhe confere «a possibilidade fáctica de intromissão arbitrária, subtraída ao controlo dos comunicador(es)» (Manuel da Costa Andrade, “«Bruscamente…”, cit., n.º 3951, p. 338), então ela há de cessar com a chegada mensagem ao destinatário, por nesse momento findar a situação de vulnerabilidade que caracteriza a transmissão da mensagem (a sua colocação no poder de um terceiro, o operador), passando o destinatário a dispor de todos os meios para evitar a intromissão (arquivando-a, guardando-a ou mesmo destruindo-a).

Por outro lado, assume-se que correspondência suscetível de ser violada é apenas aquela que dispõe de uma proteção física exterior, que faz com que a mensagem se encontre fechada, tornando o respetivo conteúdo inacessível por terceiros; uma vez violado o envelope que protege fisicamente o conteúdo da mensagem, esta deixa de se encontrar coberta pelo sigilo, uma vez que passa a estar em condições de poder ser lida por terceiros — é essa, aliás, a razão pela qual se defende que os simples postais não se encontram abrangidos pela proteção decorrente dos n.ºs 1 e 4 do artigo 34.º da Constituição (cfr. Germano Marques da Silva e Fernando Sá, “Anotação ao artigo 34.º”, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2010, p. 772).”.[21]

Tal como a correspondência física, também as comunicações em redes de transmissão de dados, nomeadamente através de mensagens de correio eletrónico, podem revelar-se importantes fontes de material probatório.

O Código de Processo Penal, através do alargamento da aplicação do regime de escutas, nomeadamente com a Revisão levada a cabo pela Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, veio permitir a apreensão dessas mensagens nos termos do art.189.º, n.º1, que passou a estabelecer: « O disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.».

Perante esta redação do art.189.º do C.P.P., era comum entender-se, tal como acontece com o correio tradicional, que no âmbito da recolha de prova em processo penal, deve ser dado um tratamento diferenciado a mensagens recebidas mas ainda não abertas, por um lado, e a mensagens recebidas e já abertas, por outro.

Às mensagens de correio eletrónico recebidas, mas não lidas, eram aplicáveis as regras atinentes à apreensão de correspondência previstas no art.179.º do C.P.P..

O regime de apreensão de correio eletrónico já recebido era bastante restritivo, na medida em que remetia para as normas de interceção e gravação das escutas telefónicas previstas nos  artigos 187.º e 188.º do C.P.P..

A situação vem alterar-se com a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que  transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação e adaptou o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, contemplou um regime específico e detalhado de recolha da prova em ambiente digital.

Este diploma, conhecido por Lei do Cibercrime, contém disposições penais materiais e processuais relativas ao cibercrime.

Das suas normas relevam, particularmente para a interpretação da decisão tomada no acórdão recorrido, as seguintes disposições, de natureza processual:

Artigo 11.º «Âmbito de aplicação das disposições processuais»

«1 - Com exceção do disposto nos artigos 18.º e 19.º, as disposições processuais previstas no presente capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes:

    a) Previstos na presente lei;

    b) Cometidos por meio de um sistema informático; ou

    c) Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.

 2. (…)».

Artigo 15.º «Pesquisa de dados informáticos»

«1 - Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.

2 - O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máximo de 30 dias, sob pena de nulidade.

(…).»

Artigo 16.º «Apreensão de dados informáticos»

«1 - Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.

(…)

  3 - Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.

4 - As apreensões efetuadas por órgão de polícia criminal são sempre sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de 72 horas.

(…)».

Artigo 17.º «Apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante»

«Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.».

O regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal, para que remete o art.17.º da Lei do Cibercrime, encontra-se regulado nos artigos 179.º e 252.º, sendo aqui relevante a primeira destas normas já acima parcialmente transcrita.  

Com este novo regime passou a entender-se, pelo menos maioritariamente, que as mensagens de correio eletrónico, armazenadas, deixaram de estar sujeitas ao regime das interceções telefónicas, por via do art.189.º, n.º1 do C.P.P.  e passaram a ficar sujeitas ao regime de apreensão do art.17.º da Lei do Cibercrime.

O acórdão recorrido fundamentou a decisão ora em apreciação, praticamente, através da remissão para o teor do despacho do Ministério Público de folhas 91 dos autos e na subsequente afirmação de que o órgão de polícia criminal cumpriu o mandado de pesquisa informática assinado pela Magistrada do Ministério Público, tendo sido neste âmbito que as mensagens encontradas pelo órgão de polícia criminal no correio eletrónico do computador do arguido foram objeto de exportação para 2 CDs, e os prints das mensagens sido juntas aos autos.

Assim sendo, impõe-se conhecer o conteúdo dos atos processuais praticados no inquérito que levaram o Tribunal a quo a decidir que as mensagens de correio eletrónico juntas aos autos nessa fase do processo não constituem prova proibida.

Resulta dos autos, no essencial e a este respeito, o seguinte:

-  Por despacho de 3-9-2021, de folhas 91, o Ministério Público validou a apreensão do computador do arguido AA, encontrado pela Polícia Judiciária durante a busca realizada no dia anterior na residência deste e decidiu ainda, além do mais, o seguinte:

Uma vez que poderemos estar perante dados informáticos essenciais para a descoberta da verdade material, autoriza-se que se proceda a pesquisa informática no computador apreendido e determina-se a apreensão de todos os dados ou documentos informáticos encontrados necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, nos termos dos artigos 15.º, n.ºs 1 e 2 e artigo 16.º, n.º1, ambos da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15.09), posto que com os limites constantes dos artigos 16.º, n.º3, e 17.º do referido diploma.”.

- Do auto de pesquisa informática” de 3-9-2021, junto a folhas 136 a 148, consta, em breve síntese: verificou-se que no browser do Google Chrome estava configurada e acessível a conta com o endereço eletrónico de ..., tendo-se procedido à exportação dos dados da aludida conta para suporte ótico (CD), onde ficaram guardados e, conforme printscreens que se juntam, a caixa de correio apresenta única e exclusivamente duas mensagens de correio eletrónico por abrir, não tendo as mesmas sido abertas. Considerando os factos em investigação, considerou-se que da aludida conta do correio eletrónico resulta com interesse: “i. no dia 11.08.2021, encomendou (#17548) no sítio da THGrow, quatro produtos relacionados com o cultivo de cannabis, melhor detalhados no descritivo da encomenda, no valor global de 347,84€; ii. no dia 12.08.2021, recebeu a confirmação da encomenda  #17548, tendo sido informado que a mesma seria expedida pela empresa N...; iii. no dia 13.08.2021, recebeu a confirmação de que a hora de entrega tinha sido acordada.

Sobre este particular importa referir que no local do cultivo foram apreendidas diversas embalagens relacionadas com a respetiva encomenda, nomeadamente, embalagens de fertilizantes/adubos/suplementos específicos para plantas que produzem resina da marca SENSI GROW PART A, PART B e SENSIZYM (próprio para planta de Cannabis).”.

- Na acusação deduzida em 30-4-2022, constate de folhas 331 a 334, o Ministério Público indica, entre a prova documental, os autos de pesquisa informática datados de 3-9-2021 e os prints de mensagens de correio eletrónico referentes à compra de fertilizantes e outros produtos.

Do ora exposto resulta que o acórdão recorrido, por remessa para a posição do Ministério Público considerou aplicável às mensagens do correio eletrónico apreendidas no decurso da pesquisa informática ao computador do arguido, o regime da Lei do Cibercrime.

O recorrente defende, de modo claro, que por força do art.17.º da Lei do Cibercrime, as mensagens do correio eletrónico, que se encontram armazenadas num sistema informático só poderão ser apreendidas mediante despacho prévio do JIC, estejam ou não abertas pelo destinatário, sendo este a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, por força da remissão feita para o art.179.º do C.P.P..

O despacho de 3-9-2021, de folhas 91 do Ministério Público e subsequentes atos processuais praticados pelo órgão de serviço criminal, não beneficiam daquela clareza, o que se transmitiu ao acórdão recorrido.

Temos como inquestionável que o Ministério Público, como autoridade judiciária que dirige o inquérito, pode ordenar por despacho, como ordenou, uma pesquisa informática no computador apreendido para apreensão de dados informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, nos termos do disposto nos artigos 11.º e 15.º, n.º 1 e 2 e 16.º, n.º1 da Lei do Cibercrime, e que nessas circunstâncias pode juntar aos autos esses dados apreendidos.   

Porém, no mesmo despacho em que ordena que se proceda à pesquisa informática, acrescenta o Ministério Público, “posto que com os limites constantes dos artigos 16.º, n.º3, e 17.º do referido diploma” [Lei do Cibercrime], sem indicar ao órgão de polícia criminal, desde logo, o que deveria fazer se no decurso dessa pesquisa viesse a encontrar armazenadas no computador mensagens de correio eletrónicas.

Dito de outro modo, não esclareceu, face à redação do art.17.º da Lei do Cibercrime, se o correio eletrónico deve ser apreendido nos mesmos moldes em que pode ser apreendido o correio físico, postal, fechado em envelopes, desenhado no art.179.º, n.º1 do Código de Processo Penal, ou se o regime específico de apreensão ali previsto exige sempre a prévia intervenção do Juiz de Instrução, estejam abertas ou fechadas as mensagens de correio eletrónico.

O órgão de polícia criminal ao distinguir na pesquisa informática, que documentou nos autos,  as mensagens de correio eletrónico fechadas e as abertas, esclarecendo que procede apenas à apreensão e junção das mensagens que já se encontravam abertas, parece ter aderido ao entendimento de que nesta situação bastava a validação da apreensão pelo Ministério Público.

O Ministério Público e o Tribunal a quo, ao não questionarem a apreensão das mensagens de correio eletrónico armazenadas no sistema informático, já abertas e com transcrição do seu conteúdo junto aos autos, sancionam, implicitamente, o entendimento de que o Ministério Público tem competência para determinar a sua apreensão, ou seja, que essas mensagens abertas podem ser apreendidas sem  despacho do Juiz a dar essa autorização, nem necessidade de ser este a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo dessas mensagens.

É inquestionável que o art.17.º da Lei do Cibercrime não faz qualquer distinção entre mensagens de correio eletrónico abertas ou fechadas, no momento de exigir a intervenção do Juiz de Instrução para autorizar ou ordenar a apreensão daquelas mensagens, com a consequente legitimação para a utilização no processo.

Se a doutrina, numa fase inicial, propendia a considerar que as mensagens de correio eletrónico armazenadas no sistema informático, já abertas e armazenadas, não estavam sujeitas ao regime do art.17.º da Lei do Cibercrime, a situação foi evoluindo para uma posição que desconsidera a distinção entre correio eletrónico lido e não lido pelo destinatário.

Como se assinala no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 678/2021[22], a doutrina “tem caminhado em direção a uma disciplina tendencialmente unitária da apreensão de correio eletrónico em processo penal, permitindo enfrentar as questões levantadas por tal realidade, levando em consideração os bens jurídico-constitucionalmente tutelados que a propósito dela devem ser convocados (como a privacidade, o sigilo da correspondência, a autodeterminação informativa, a proteção conferida aos dados pessoais e aos dados informáticos), e contribuindo para ultrapassar os desencontros provocados pelo “enquadramento categorial e normativo dos e-mails nas fases e ao tempo em que se encontram guardados no e-mail account do provider: tanto na fase intermédia, em que a mensagem não foi ainda chamada nem aberta ou lida pelo destinatário; como na fase final, nas constelações em que, depois de aberto e lido, o e-mail é depositado no server do provider, a que só é possível aceder através da internet, isto é, através de um ato de telecomunicação” (M. COSTA ANDRADE, “Comentário ao artigo 194.º do Código Penal”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, maio de 2012, ponto 28). Efetivamente, a verdade é que é, hoje, possível “com um simples clique, marcar como lida uma mensagem de correio eletrónico não lida e vice‑versa. O sujeito pode aceder ao correio eletrónico através de vários dispositivos e em uns deles a mensagem surgir como lida e noutros como não lida, dependendo do tipo de sincronização existente entre os diversos dispositivos. A fronteira entre correio eletrónico lido e não lido é, assim, difícil de estabelecer. O legislador, reconhecendo o anacronismo e a inadequação daquela distinção de regimes, optou por atribuir uma tutela acrescida à mensagem em formato digital, submetendo‑a ao regime do artigo 17.º, independentemente de ter ou não sido lida pelo seu destinatário (SÓNIA FIDALGO, “A apreensão de correio electrónico e a utilização noutro processo das mensagens apreendidas”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 29, n.º 1, janeiro-abril de 2019, Gestlegal, p. 69).”  

A posição definida neste acórdão do Tribunal Constitucional, de não distinção entre correio eletrónico aberto ou fechado, colocando um e outro na dependência da verificação dos pressupostos do art.17.º da Lei do Cibercrime, foi reforçada no recente acórdão n.º 91/2023, do mesmo Tribunal[23].

Nos termos desta jurisprudência constitucional, deve manter-se aquele entendimento, pelas seguintes razões:   

“Em primeiro lugar, verifica-se que o principal argumento invocado para justificar a cessação da tutela constitucional da correspondência postal no momento em que esta é aberta - a eliminação da barreira física que protege o conteúdo comunicação até ao momento da abertura da carta - não tem pura e simplesmente aplicação no âmbito das mensagens eletrónicas. Daí que se sustente que «uma mensagem de “correio-eletrónico” nunca é, nem nunca está “fechada”» (Rogério Bravo, “Da não equiparação…”, cit., p. 212), já que nunca é «envelopável» (idem, p. 214). No correio eletrónico, a abertura e leitura do conteúdo da mensagem encontra-se, em ambos os casos, dependente do mesmo exato gesto (a seleção e abertura, à distância do mesmo clique digital); e a violação dessa barreira física é exteriormente indecifrável, porquanto depois de lida bastará marcar a mensagem como “não lida” (Rui Cardoso, “Apreensão…”, cit., 2018, p. 187), caso em que, a ser este o critério relevante, se “reativaria” a tutela constitucional especialmente conferida às comunicações. 

Em segundo lugar - e como decorre do que ficou dito -, a distinção entre mensagens abertas e fechadas é, no caso do correio eletrónico, artificial e falível. Artificial, porque o destinatário pode marcar, livremente, as mensagens como abertas ou fechadas, mediante a seleção de uma simples opção no computador: independentemente de ter lido ou não a mensagem, está na sua total disponibilidade classificá-la como não lida ou como lida. Falível, porque nada garante que uma mensagem marcada como aberta tenha já esgotado a sua natureza de comunicação, tendo sido efetivamente lida. Essa marcação pode constituir apenas o resultado de uma passagem acidental do cursor sobre a mensagem; da ativação de uma opção de sinalização de todas as mensagens que acabam de chegar; ou, tendo em conta que o sujeito pode aceder à caixa de correio eletrónico através de diferentes dispositivos (telefones, computadores, relógios, tablets), até mesmo do facto de o utilizador ter simplesmente aberto a aplicação num dos equipamentos, podendo acontecer que a mesma mensagem esteja sinalizada como lida em alguns deles e como não lida nos outros. Ao contrário do que sucede com a correspondência postal - que não é aberta sem consciência clara do ato de abertura -, uma mensagem de correio eletrónico pode ficar marcada como aberta sem que o utilizador disso se aperceba e sem que daí se possa inferir uma chegada efetiva à esfera de posse do destinatário. Nessa medida, nega-se hoje a valia (técnica e jurídica) da dissociação entre correio eletrónico lido e não lido, duvidando-se mesmo, pelo menos em alguns casos, da possibilidade de a estabelecer (Sónia Fidalgo, “A apreensão de correio eletrónico e a utilização noutro processo das mensagens apreendidas”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 29, n.º 1, 2019, p. 69; Gonçalo Anastácio e Diana Alfafar, cit. p. 342; Rui Cardoso, “A apreensão de correio eletrónico após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021: do juiz das liberdades ao juiz purificador investigador?”, Revista Portuguesa de Direito Constitucional, n.º 1, 2021, p. 149, nota n.º 8; David Silva RAMALHO, Métodos ocultos de investigação criminal em ambiente digital, Almedina, 2017, p. 279).

Este conjunto de objeções à possibilidade de distinção entre correio eletrónico lido e não lido tem, do ponto de vista da proteção especialmente concedida pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 34.º da Constituição, plena razão de ser.

Se o fundamento subjacente à cessação da tutela constitucional das comunicações tem que ver com a possibilidade de o destinatário, uma vez lida a mensagem, poder adotar e desenvolver a proteção que entender — inclusivamente destruindo-a —, a circunstância de uma mensagem estar marcada como «lida» constitui um elemento de fraco préstimo para suportar a conclusão de que aquela chegou efetivamente ao destinatário e de que este pôde protegê-la.

Diferentemente do que sucede na correspondência postal ou com as mensagens SMS que já foram lidas pelo destinatário, não pode afirmar-se que o processo de comunicação (a especial situação de perigo) cessou pela primeira abertura do correio eletrónico ou que o destinatário se encontra com total domínio sobre a mensagem. Enquanto a mensagem se mantiver na caixa de correio - sem ser definitivamente armazenada em qualquer lugar do computador do destinatário e eliminada dos servidores do provider -, ela está sob controlo do fornecedor de serviços eletrónico. Sendo certo que na maioria dos protocolos de correio eletrónico (IMAP, webmail), de cada vez que o interessado pretender reler a mensagem, estabelece-se uma comunicação eletrónica, podendo mesmo o acesso ao conteúdo dos dados fornecidos pelo servidor constituir uma comunicação restrita (e, nesse sentido, privada), pelo facto de a mensagem só poder ser acedida mediante introdução de dados de identificação (nome de utilizador e palavra passe). E mesmo que o utilizador faça uso de um protocolo que descarrega a mensagem do servidor (v.g., POP3), ela é copiada para o computador do destinatário, passando a estar simultaneamente no servidor do fornecedor e no equipamento do indivíduo (Rui Cardoso, “Apreensão…”, cit., 2018, p. 181). Nessa medida, dúvidas não há de que se mantém - ainda que a mensagem tenha já sido lida - a situação de «domínio que o terceiro detém - e enquanto o detém sobre a comunicação (conteúdo e dados). Domínio que lhe assegura a possibilidade fáctica de intromissão arbitrária, subtraída ao controlo dos comunicador(es)» (cfr. Manuel da Costa Andrade, “«Bruscamente…”, cit., n.º 3951, p. 339). A autotutela que se assume sobrevir quando uma mensagem chega ao seu destinatário («o destinatário passa a dispor de meios de autotutela, desde a instalação de sistemas de segurança, programas antivírus, codificação críptica, firewalls [programas que vigiam o tráfego na internet e avisam o titular do computador das tentativas de envio de programas do género “cavalo de troia”] até ao apagamento ou destruição, pura e simples, dos dados» - idem, p. 340) não existe enquanto a mensagem estiver na caixa de correio eletrónico e o fornecedor de correio eletrónico mantiver controlo sobre a mensagem. Esta «específica situação de perigo» apenas cessa quando o destinatário retira a mensagem da caixa de correio eletrónico virtual e a arquiva em outro lugar do computador - passando, só então, a ter o controlo total e exclusivo sobre ela, deixando de ter de confiar no sistema de comunicações e podendo protegê-la como entender. Confiança essa que, como se viu, é o âmago da tutela especialmente conferida pelo artigo 34.º da Constituição: quem comunica à distância carece da «mediação necessária de terceiro, isto é, de um fornecedor de serviços de comunicação à distância», o que supõe um «procedimento em que, como precisa o Tribunal Constitucional Federal (22.8.2006), vai coenvolvida uma "perda de privacidade" (Verlust an Privatheit), uma vez que quem comunica tem de fazê-lo submetendo-se às especificidades e exigências daquele sistema de comunicação e confiar nele, para não dizer confiar-se a ele» (ibidem, p. 338). E se a proteção suplementar das comunicações radica na necessidade de confiança no terceiro que assegura o processo comunicativo, isso há de implicar que sobre o utilizador não recaia o ónus de apagar diariamente as mensagens sob domínio do provider (ou de as marcar como “não lidas”) para poder beneficiar da inviolabilidade do sistema. É esta, em suma, a razão pela qual, no caso do correio eletrónico, a proteção constitucional do direito à inviolabilidade das comunicações não abrange apenas as mensagens ainda não lidas («o conhecimento do destinatário pressupõe da parte deste um gesto necessário de "chamada" da mensagem, gesto que desencadeia um ato de telecomunicação [do provider para o destinatário]»), estendendo-se ainda às mensagens já abertas - os «e-mails que continuam (e enquanto continuam) no domínio - e, por causa disso, expostos à intromissão arbitrária - do provider» (cfr. ibidem, p. 342). O critério decisivo de que a mensagem chegou definitivamente ao destinatário não será, por conseguinte, a marcação da mensagem como lida, mas sim o seu arquivamento definitivo, fora da caixa de correio eletrónico virtual.

18.3. Em benefício da recondução das mensagens de correio eletrónico sinalizadas como abertas ao âmbito de incidência da proibição que se extrai dos n.ºs 1 e 4 do artigo 34.º da Constituição, uma terceira razão pode ser ainda invocada. É que, ainda que fosse possível operar com um critério baseado na distinção mensagens lidas e não lidas, certo continuaria a ser que o acesso a uma caixa de correio eletrónico em que se mantenham mensagens abertas envolve necessariamente a intromissão em comunicações indiscutivelmente abrangidas pelo direito à inviolabilidade das comunicações. Com efeito, tendo-se concluído que a proteção constitucional das comunicações abrange os dados de tráfego, é bom de ver que a admissibilidade de consulta de uma caixa de correio eletrónico — que contenha algumas mensagens abertas e outras por abrir — revela um conjunto de informações das mensagens fechadas necessariamente abrangido pelo disposto no artigo 34.º da Constituição.

Como se concluiu no Acórdão n.º 687/2021:

«Efetivamente, a simples visualização de uma “caixa de correio eletrónico”, sem que sequer se abra cada uma das mensagens individuais aí gravadas, pode permitir o conhecimento não apenas de elementos respeitantes à concreta comunicação ou mensagem (como, por exemplo, o “assunto”), como também de elementos relativos ao emissor e destinatário das mensagens, número de interações comunicativas, suas data e hora, volume de dados transmitidos, ou IP de origem, que se configuram como dados de tráfego. Ou seja, se no caso de apreensão de correspondência postal passa a ser do conhecimento das autoridades o remetente, o destinatário e a data do carimbo de correio, no caso do correio eletrónico a informação de tráfego disponível é bastante mais vasta, sendo possível saber, por exemplo, a data e hora específicas a que um e-mail foi enviado, se continha, ou não, documentos anexos, se se dirigia a mais destinatários (e quais) e se constituiu resposta a ou reencaminhamento de mensagens anteriores.

Diferentemente do que sucede na correspondência postal não lida (em que a única informação exterior é o carimbo do correio e, porventura, a indicação do remetente), as mensagens de correio eletrónicas - mesmo antes de lidas e abertas - revelam um conjunto de informações mais amplo e sensível, compreendendo «especialmente o se, o quando, o como, entre que pessoas ou entre que aparelhos a comunicação teve lugar ou foi tentada» (Manuel da Costa Andrade, “«Bruscamente…”, cit., n.º 3951, p. 340). Nessa medida, uma norma que atribua à AdC o poder de aceder a uma caixa de correio eletrónico para busca de mensagens já abertas tem sempre como resultado facultar-lhe o acesso a dados relativos a mensagens não abertas e não lidas (comunicações, indiscutivelmente), o que sempre ativaria a tutela especialmente conferida pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 34.º da Constituição, ainda que aquelas não estivessem tuteladas, como efetivamente estão, pelo regime relativo à inviolabilidade das comunicações ali estabelecido.”.[24]

Perante as razões supra expostas, cremos que o regime de intromissão no correio eletrónico, para apreensão de mensagens armazenadas em sistema informático estabelecido no art.17.º da Lei do Cibercrime, exige a intervenção do Juiz de Instrução, como juiz das liberdades, independentemente das mensagens estarem ou não assinaladas como abertas.

As divergências sobre a interpretação do art.17.º da  Lei do Cibercrime estendem-se à obrigatoriedade de existência de um despacho prévio do Juiz de Instrução que autorize ou ordene a apreensão das mensagens de correio eletrónico e à tomada de conhecimento em primeiro lugar do conteúdo dessas mensagens pelo Juiz de Instrução.     

Uma vez que esta norma não faz menção uma qualquer apreensão cautelar ou provisória das mensagens de correio eletrónicas, parece-nos que se exige um despacho do Juiz de Instrução prévio à apreensão de mensagens de correio eletrónico[25].

Por outro lado, aplicando-se o art.179.º do C.P.P. por força do art.17.º da Lei do Cibercrime, à apreensão de correio eletrónico, autorizado que seja o acesso ao correio eletrónico por se verificarem os respetivos pressupostos, deve ser o Juiz de Instrução o primeiro a tomar conhecimento das mensagens eletrónicas, cabendo-lhe, seguidamente, ordenar a junção ou não da respetiva cópia ao processo.  

No presente caso, apreendido que fora um computador, em sede de inquérito, acautelando a possibilidade, que em regra é real, de se encontrarem armazenadas no sistema informático mensagens eletrónicas, poderia o Ministério Público, como titular que preside a essa fase processual, requer ao Juiz de Instrução autorização para apreensão de correio eletrónico, por via da verificação dos pressupostos do disposto no art.17.º da Lei do Cibercrime.

Como poderia ter determinado ao órgão de policia criminal que caso fosse encontradas armazenadas mensagens no correio eletrónico, tal facto lhe fosse comunicado, a fim de requerer ao Juiz de Instrução a sua apreensão.   

Não foi o que sucedeu.

Como resulta dos atos processuais que se descreveram, a pesquisa informática, que incluiu o correio eletrónico, foi realizada por órgão de polícia criminal, sustentada por despacho do Ministério Público, que determinou a apreensão de todos os   dados ou documentos informáticos encontrados necessários à produção de prova, “posto que com os limites constantes dos artigos 16.º, n.º3, e 17.º do referido diploma.”.

Neste âmbito, foram juntos aos autos de inquérito printscreens da caixa de correio, em que se destacam duas mensagens de correio eletrónico assinaladas “por abrir” – em que é percetível, entre outras informações, o assunto de que tratarão – e outras já abertas, reproduzindo-se o conteúdo destas mensagens tidas como de interesse para a investigação.

Não houve autorização prévia de Juiz de Instrução para apreensão do correio eletrónico objeto de pesquisa informática; como não houve despacho judicial ulterior à chegada das mensagens ao conhecimento do Ministério Público; e até o Ministério Público cremos que nada disse sobre essa junção pelo órgão de polícia criminal.

A intervenção do Juiz de Instrução era obrigatória para ponderação entre a tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada, que abrange as comunicações eletrónicas e a correspondência eletrónica, por um lado, e a investigação pelo outro lado.

Tendo os prints das mensagens de correio eletrónico sido apreendidos e juntos aos autos sem para tal sido proferido despacho de autorização do Juiz de Instrução,  entendemos que a apreensão das mensagens de correio eletrónico e sua junção aos autos, não se mostram legitimadas por despacho de autorização do Juiz de Instrução, como é exigência do art.17.º da Lei do Cibercrime.

A intromissão no correio eletrónico, sem autorização judicial para a sua apreensão, integra a nulidade prevista n.º 3 do art.126.º do Código de Processo Penal, que gera a proibição da utilização da prova.

O efeito primeiro da proibição de prova, como limite à descoberta da verdade, é a de não poder ser utilizada no processo, não podendo, por isso servir para fundamentar qualquer decisão. 

No caso, as mensagens de correio eletrónico supra referidas foram utilizadas na fundamentação do acórdão recorrido.

Impõe-se, assim, nos termos do art.122.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a repetição da fundamentação de facto do acórdão recorrido, pelo mesmo Tribunal, sem valoração da prova proibida.

Procede, nesta parte, o recurso do arguido.

15. Ficam prejudicadas as restantes questões objeto de recurso (qualificação jurídica dos factos e suspensão da execução da pena).

III - Decisão

           

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, declarando nula a sentença nos termos do art.379.º, n.º 1, alínea a), por referência ao estatuído no art.374.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, por falta de fundamentação de direito e, ainda, por utilização de prova proibida na fundamentação de facto do acórdão recorrido nos termos dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 126.º, n.º3 do C.P.P., determina-se que o Tribunal, que emitiu a decisão, supra a nulidade por falta de fundamentação e proceda a nova fundamentação de facto sem utilização dos prints das mensagens de correio eletrónico apreendidos e juntos aos autos.

Sem tributação.

*

(Certifica-se que o acórdão foi  processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.). 

                                                                                             

*

Lisboa, 29 de junho de 2023

                                                              

Orlando Gonçalves (Relator)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)

_____________________________________________________


[1] Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247) e Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Universidade Católica Portuguesa, vol. 3, 2018, págs. 335/336.

[2] - Cf. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300. 
[3] In “Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 4.ª edição revista, págs. 1327 e 1328.
[4] Cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496, pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483, pág. 49) e  Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”,  vol. 2.º, 2ª ed., páginas 737 a 739.
[5] Cf. “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I”, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág.308 e seguintes, e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 426/91, in tribunalconstitucional.pt. 
[6] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 306.
[7] Obra citada, pág. 315.
[8] In, www.tribunalconstitucional.pt
[9] - Cfr. obra citada, 2.º Vol.,  pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
[10] Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira , in “Constituição da República Portuguesa anotada”, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 392, e Profs. Jorge Miranda - Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I , Coimbra Editora, 2005, pág. 162.  
[11] Cf. Germano Marques da Silva, “Princípios gerais do Processo Penal”, in Direito e Justiça, Vol. III, Lisboa, UCE, (1978/1988), pág.164 e Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Controlo garantístico dos direitos do arguido pelo Juíz de Instrução”, in Direito e Justiça, (2002), 13 (3) pág.199.

[12]  Cf. Curso de Processo Penal , Vol. III, 2ª ed. , pág. 294.
[13] Entre outros, cfr. acórdão do STJ , de 13 de Fevereiro de 1992 ( CJ, ano XVII , 1º , pág. 36) . 
[14]  Entre outros, cf. acórdão n.º 680/98 , publicado no DR, II Série , de 5 de março de 1995.
[15] O art.2.º, n.º 1 da Lei n.º 30/2000 de 29/11, dispõe que «O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.».
[16] Cf. “Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, C.E., 4.ª edição, 2007, pág. 540.
[17] Cf. Comentário do Código de Processo Penal, UCE, pág. 469.
[18] A busca domiciliária pode, ainda, ser ordenada  pelo Ministério Público  ou ser efetuada por órgão de polícia criminal, em caso de flagrante delito, entre as 21 e as 7 horas, se o crime por punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos (art.177.º, n.º3, alínea b), do C.P.P.)  
[19] Todos publicados in www.dgsi.pt
[20] O acórdão do  Tribunal Constitucional n.º 278/2007 decidiu não julgar inconstitucional as normas constantes do nº 5 do artigo 174º e da parte final do n.º 2 do artigo 177º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que, efetuada busca domiciliária por órgão de polícia criminal sem precedência de autorização judicial, é de 48 horas o prazo para a comunicação ao juiz de instrução da efetivação da busca e a decisão judicial da sua validação pode resultar, de forma implícita, desde que inequívoca, da decisão de validação da detenção do arguido e de fixação da medida de coação de prisão preventiva. E, no mesmo sentido, decidiram os acórdãos do mesmo Tribunal n.ºs 274/2007 e 285/2007, todos in www.tribunalconstitucional.pt
[21] Cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 91/2023, in www.tribunalconstitucional.pt  
[22] In www.tribunalconstitucional.pt, em que “o Tribunal decide, com referência ao Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia da República, Série II-A, número 177, de 29 de julho de 2021, e enviado ao Presidente da República para promulgação como lei, pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes do seu artigo 5.º, na parte em que altera o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, por violação das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1, 35.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
[23] In www.tribunalconstitucional.pt, que, além do mais, decidiu: “Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.ºs 1 e 4, este conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição, a norma extraída das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 18.º e do n.º 1 do artigo 20.º do Regime Jurídico da Concorrência, na versão aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, segundo a qual, em processo contraordenacional por prática restritiva da concorrência, é permitida à Autoridade da Concorrência a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas mediante autorização do Ministério Público
[24] Sublinhados nossos.
[25] Neste sentido cfr. Sónia Fidalgo, “A apreensão de correio electrónico e a utilização noutro processo das mensagens apreendidas”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 29, n.º 1, janeiro-abril de 2019, pág. 67 e Ana Rita Castanheira Neves, “As ingerências nas comunicações electrónicas em protecção penal: natureza e respectivo regime jurídico do correio electrónico enquanto meio de obtenção de prova”, Coimbra Editora, 2011, pág. 275.