Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1486/15.4T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONCURSO APARENTE
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CASO JULGADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO /EXCEÇÕES / REQUISITOS DA LITISPENDÊNCIA E DO CASO JULGADO.
Doutrina:
-Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3. °, p. 91 ; Comentário ao Código de Processo Civil, 2.°, p. 375 ; Código de Processo Civil anotado cit., III, p. 123, 125, 127 e 132;
-Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 307;
-Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, Julho 2017, p. 599 e ss.;
-Leite Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento, p. 317 e 412;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, edição de 1979, p. 320;
-Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, p. 493 e 509;
-Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 578 ; ao analisar as chamadas relações de concurso, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 576 e 577;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, p. 454 a 456 e 466;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 3.°, p. 253
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 581.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-05-1996, IN CJST, 1996, II, 71;
- DE 23-04-1998, IN BMJ, 476-370;
- DE 19-02-2013, IN WWW.DGSI.PT.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 05-05-2016, PROCESSO N.º 1609/12, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Existe concurso aparente de normas – entre as da responsabilidade civil contratual e as do enriquecimento sem causa, que se excluem, apenas podendo dar lugar à dedução de pedidos em relação de subsidiariedade.

II - Tendo a primeira acção intentada pelo banco, baseada na responsabilidade civil contratual do réu seu cliente, sido julgada improcedente, e tendo o banco, em sede reconvencional, na segunda acção, afirmado que formulava o pedido de condenação do autor/reconvindo baseado nos mesmos factos já invocados naquela primeira acção, mas agora considerando existir enriquecimento sem causa do autor/reconvindo, consideramos que, numa e noutra acção, é o mesmo o núcleo essencial dos factos integradores das normas concorrentes, alegados no primeiro processo, sendo por isso a mesma, a causa de pedir invocada na reconvenção, apenas existindo diversa qualificação jurídica, emprestada pelo reconvinte.

III - Neste caso, segundo a lição de Lebre de Freitas, “a qualificação jurídica dada aos factos na primeira acção nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova acção em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação trata-se dum corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto, e não o facto abstractamente descrito na lei”: a consideração de ser a mesma, ou não ser, a causa de pedir de uma e de outra acção não tem que ver com a qualificação que foi dada no Acórdão recorrido, mas sim com saber se o núcleo factual alegado na primeira acção e no pedido reconvencional formulado é o mesmo.

IV - Sendo, como se considera ser, que o núcleo factual é o mesmo e que, na primeira acção, o banco/autor considerou que os factos (causa de pedir) integravam responsabilidade civil contratual do demandado e, no pedido reconvencional da segunda acção, considerou o mesmo núcleo factual como substrato para formular pretensão ancorada no instituto do enriquecimento sem causa, concluímos ser a mesma a causa de pedir, pelo que foi violado o caso julgado formado com a sentença proferida na primeira acção, não se discutindo, no caso, os demais requisitos do n.º1 do art. 581.º do CPC.
Decisão Texto Integral:
Proc.1486/15.4T8PDL.L1.S1

R-654 [1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou, em 2.6.2015, no Tribunal Judicial de Ponta Delgada, com distribuição ao 4º Juízo – agora, Comarca dos Açores, Ponta Delgada – Inst. Local – Secção Cível – J4, acção declarativa com processo comum, contra:

BB, S.A.

Pedindo a condenação deste a:

1.Praticar todos os actos necessários para que seja retirado/eliminado da base de dados que constitui a Central de Responsabilidade de Crédito gerida pelo Banco de Portugal, o nome/ responsabilidade do Autor anteriormente comunicado, designadamente comunicando àquela base de dados que o Autor não se encontra em incumprimento com qualquer crédito para consigo;

2.Pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €. 23.500,00 (vinte e três mil e quinhentos euros;

3.Pagar ao Autor, a quantia de €. 500,00 (quinhentos euros), a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na comunicação necessária à eliminação do nome do Autor da Central de Responsabilidade de Crédito, contados desde a data da citação para a acção, até à efectiva eliminação do seu nome daquela base de dados;

4.Pagar as custas do processo.

 Alegou, em síntese, o seguinte:

- É, desde 06.11.1980, titular de uma conta de depósito à ordem no banco réu;

 - A conta foi sempre movimentada a crédito e a débito;

- Um dos movimentos consistiu no depósito de um cheque cujo montante foi imediatamente disponibilizado;

 - A posterior constatação da falta de provisão originou um descoberto correspondente ao montante disponibilizado na dita conta de depósito;

 - Em 06.09.2011 a conta apresentava um saldo negativo de € 6.747,48;

- O réu comunicou o valor em questão ao Banco de Portugal, sabendo que o mesmo não provinha de qualquer crédito concedido;

- O mesmo resultou da sentença proferida no âmbito do processo n.°1968/13.2YIPRT-A.E.C.O.P.E.C. que julgou improcedente a acção intentada pelo banco, invocando não se tratar de uma responsabilidade decorrente de uma operação de crédito;

- Na sequência da sentença supra solicitou ao banco réu que diligenciasse pela remoção do seu nome da lista do Banco de Portugal;

- O Réu nada fez, apesar de saber que a responsabilidade não emerge de qualquer crédito concedido;

- Foi sempre considerado como cumpridor e a inserção do seu nome na dita lista inviabiliza-lhe o recurso ao crédito;

- E perturba o seu equilíbrio sócio-psíquico-emocional, devendo ser consequentemente ressarcido no valor peticionado.

O Banco contestou, e deduziu reconvenção, alegando, em síntese, o seguinte:

O Autor utilizou o montante disponibilizado em proveito próprio, sendo assim devedor mesmo;

Objectivamente esta dívida corresponde a um crédito sobre o Autor;

Encontrando-se a dívida vencida e não paga a comunicação ao Banco de Portugal é automática;

O produto financeiro comunicado foi assim correcta e adequadamente comunicado;

E de tal circunstância foi o Autor informado;

Na sentença em questão entendeu-se que a quantia devida pelo Autor ao Réu resultava de enriquecimento sem causa e não de qualquer contrato, o que motivou a improcedência da acção.

Impugna os alegados danos.

Em sede de reconvenção, pede a condenação do Autor no valor em questão, alegando que se encontra injustamente enriquecido a expensas suas.


***

Foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:

“A - Pelo exposto, julgo os pedidos deduzidos pelo Autor totalmente improcedentes e, em consequência:

Absolvo o Réu dos pedidos:

1.  De praticar todos os actos necessários para que seja retirado/eliminado da base de dados que constitui a Central de Responsabilidade de Crédito gerida pelo Banco de Portugal, o nome/responsabilidade do Autor anteriormente comunicado, designadamente comunicando àquela base de dados que o Autor não se encontra em incumprimento com qualquer crédito para consigo.

2.  De pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 23.500,00 euros (vinte e três mil e quinhentos euros).

3.  De pagar ao Autor, a quantia de 500,00 euros (quinhentos euros), a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na comunicação necessária à eliminação do nome do Autor da Central de Responsabilidade de Crédito, contados desde a data da citação para a acção, até à efectiva eliminação do seu nome daquela base de dados;

B - Pelo exposto, julgo o pedido reconvencional deduzido pelo Réu/Reconvinte totalmente procedente e, em consequência: condeno o Autor/Reconvindo a pagar ao Réu/Reconvinte o montante de 6.747,48 euros (seis mil setecentos e quarenta e sete euros e quarenta e oito cêntimos), acrescido dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da notificação da reconvenção até integral e efectivo pagamento.

Custas pelo Autor, nos termos do disposto no artigo 527°, n° 1 e n° 2, do Código de Processo Civil.”


***


Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 26.4.2017 – fls. 157 a 164 –, julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença recorrida.


***

De novo inconformado, o Autor – invocando a violação do caso julgado - recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1- Tendo em conta os factos provados e não provados, e ao decidir, como o fez, o Tribunal a quo, (entendendo que a devolução daquela quantia era devida por existir uma causa – um contrato) violou o decidido na douta Sentença proferida no âmbito do Processo n°1968/13.2YIPRT – AECOPEC, pelo extinto 4º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, em acção intentada pelo aqui Recorrido (naquela acção, requerente), onde ficou decidido que não existia qualquer acordo/contrato que justificasse o pedido de devolução da quantia ali peticionada.

2 - Naquela acção, conforme resulta da douta Sentença proferida naquele processo, junta com a P.I, os factos ali alegados são em tudo iguais aos dados por assentes no douto Acórdão Recorrido, conforme melhor resulta da matéria de facto assente, de 1 a 6, tendo ali sido decidido, tal como resulta igualmente dos factos assentes no douto Acórdão – de 7 a 9 – que o descoberto em conta não teve por base um contrato – expresso ou tácito – que o ali Requerente (aqui Recorrido) invocou e alegou existir, como causa de pedir, razão pela qual aquele Tribunal decidiu absolver do pedido o ali Requerido (aqui Recorrente), alegando para tanto que o descoberto em conta não decorreu “de uma violação contratual por parte do que o réu.

3- Porém, entendeu o Tribunal a quo, de acordo com os factos provados (e talvez por não terem ficado provados os factos relativos ao enriquecimento em causa), e pese embora a causa de pedir assentasse no enriquecimento sem causa, condenar o Autor/Reconvindo (aqui Recorrente) no pagamento da quantia a título responsabilidade civil contratual – existência de um contrato não escrito -, donde decorreu a condenação do Autor/Reconvindo, no pedido reconvencional, e a absolvição do Réu/Reconvinte (aqui Recorrido), incluindo na condenação de retirar o nome do Autor/recorrente da Central de Risco de Crédito do Banco de Portugal.

4- Por força da decisão sob recurso, além de serem idênticos os factos alegados e provados nas duas acções, o pedido ser idêntico nas duas acções, passou também a ser idêntica a causa de pedir, isto porque, o facto jurídico que fundamenta o mesmo pedido da devolução da quantia a descoberto passou a ser o mesmo – a existência de um contrato – nas duas acções.

5- Existe, assim, tríplice identidade a que o artigo 581º do NCódigo de Processo Civil faz referência.

6 - O caso julgado constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que, a verificar-se, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância (no caso, reconvencional), e, bem assim, em consequência, deve o Tribunal a quo conhecer do pedido inicial, condenando o Réu nos termos peticionados, de acordo com o que resultar dos factos provados.

7- O Tribunal a quo ao decidir, nos termos em que o fez, violou, pelo menos, o disposto no artigo 581° do NCódigo de Processo Civil.

8 - Como facilmente se vê, a ofensa de caso julgado resulta do entendimento plasmado no douto Acórdão recorrido, de que tendo o pedido (no caso, invocado na Reconvenção) como única fonte o enriquecimento sem causa, mas provando-se a existência de um contrato, tal situação configura uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos alegados e não uma alteração da causa de pedir. Uma vez que, ao assim decidir, o douto Acórdão recorrido violou a douta Sentença proferida no âmbito do Processo n°1968/13.2YIPRT – AECOPEC, junta à P.I. dos presentes autos.

9 - Tal entendimento plasmado no Acórdão Recorrido está em manifesta contradição com o decidido no douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Processo de Revista n°206/09 – 6ª Secção, de 03.03.2009, em que foi Relator o Excelentíssimo Conselheiro Azevedo Ramos, onde se decidiu que:

 III - Tendo o pedido como única fonte, invocada na petição inicial, o enriquecimento sem causa, mas provando-se que o eventual direito à importância reclamada só pode decorrer da relação de mandato estabelecida entre as partes, existindo, pois, uma causa justificativa, do invocado enriquecimento, não pode o tribunal decidir-se pela condenação da ré, pois se o fizesse tal envolveria alteração da causa de pedir, não se tratando apenas de diversa interpretação e aplicação das regras de direito aos factos articulados pela autora na petição (cfr. art. 664º do Código de Processo Civil).

IV- Como a causa de pedir repousa exclusivamente no enriquecimento sem causa e este tem natureza subsidiária, a acção terá forçosamente que improceder, só com base neste fundamento, nos termos do art. 474° do Código Civil, por o direito à restituição assentar no contrato de mandato.

10 - Face ao exposto, facilmente se conclui pela manifesta contradição entre o Acórdão recorrido e aquele outro douto aresto, sendo certo que, e salvo o devido respeito por douta e diversa opinião, assiste total razão a este último, uma vez que, como é bom de ver, os requisitos da responsabilidade civil contratual e os do enriquecimento sem causa são de natureza distintas, tendo este último natureza subsidiária, sendo também diferentes, por isso, os meios de defesa e a repartição do ónus da prova, donde se torna forçoso concluir que sendo invocado como fonte o enriquecimento sem causa, mas concluindo o Tribunal existir causa justificativa para o direito, não se trata de uma mera alteração jurídica, mas sim de uma alteração da causa de pedir.

Termos em que, revogando o douto Acórdão sob recurso, substituindo-o por douto Acórdão que julgue verificada a excepção de caso julgado, e absolva da instância o Autor/Reconvindo, e, bem assim, que condene o Réu/Reconvinte, nos pedidos formulados na P.I., nos termos que resultarem da matéria de facto assente. V. Exas., Excelentíssimos Conselheiros, farão a tão costumada Justiça.

O Réu contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. O Réu é uma instituição que se dedica à actividade bancária.

2. O Réu, a pedido do Autor, abriu em nome deste, em 6 de Novembro de 1989, em sucursal da Praça …, em …, uma conta de depósitos, à ordem, à qual foi atribuído o n.°....

3. A conta foi movimentada pelo Autor, a crédito, com depósitos em cheques e em numerário, bem como a débito nomeadamente, por saques por cheques, pagamentos A.T.M., levantamentos directos, transferência e outras despesas autorizadas.

4. Um dos movimentos consistiu num depósito de um cheque tomado do estrangeiro (Estados Unidos da América), no montante de 9.000 dólares (cerca de € 6.500,00),cujo montante foi disponibilizado pelo Ré ao Autor, e que, na verificação ulterior da sua falta de provisão, originou um descoberto na conta bancária.

5. O Autor, entretanto, utilizou a quantia titulada por aquele cheque.

6. Em 29 de Setembro de 2011, a conta apresentava um saldo negativo de 6.747,48 euros (seis mil setecentos e quarenta e sete euros e quarenta e oito cêntimos).

7. Aquele saldo negativo não foi consequência de uma operação de crédito, não tendo sido celebrado entre Autor e Réu qualquer contrato de descoberto em conta, mas porque se verificou que o cheque não obteve boa cobrança.

8. No âmbito do Processo n.°1968/13.2YIPRT, que correu termos no extinto 4° Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada o aqui Autor e ali Requerido foi notificado a 18.01.2013.

9. No processo referido em 8, foi proferida sentença, na qual ficou assente que não se tratava de uma responsabilidade decorrente de uma operação de crédito, pelo que o Autor comunicou ao Réu para que diligenciasse pela retirada /eliminação do seu nome da Central de Responsabilidade de Risco do Banco de Portugal, por tal situação lhe causar prejuízo de natureza patrimonial e não patrimonial.

10. Ao solicitado, o Réu nada fez.

11. Na sequência da participação feita pelo Autor ao Banco de Portugal, o Réu respondeu que não iria cancelar (retirar) o nome do Autor da base de dados da Central de Responsabilidade de Risco do Banco de Portugal.

12. O Autor é um empresário, ligado à compra e venda de automóveis em 2ª mão, entre outras actividades de compra e venda de objectos em 2ª mão, que necessita do crédito, à imagem de qualquer empresário, para suportar a sua actividade.

13. A partir da data em que o seu nome foi inserido na base de dados que é a Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal, não mais pôde recorrer ao crédito.

14. Na sequência do referido em 4, constando tal responsabilidade do sistema informático de devedores do Banco (como tem que constar), tal elemento é automática e electronicamente comunicado à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.

15. O Réu comunicou ao Banco de Portugal que há um descoberto na conta de depósitos à ordem do Autor.

E considerou não provada a seguinte matéria:

1) O Réu comunicou ao Banco de Portugal, para ficar a constar na Central de Responsabilidade de Crédito, que o Autor se encontrava em incumprimento, para com a Ré, num crédito individual.

2) O Autor era, como sempre foi, um empresário bem reputado junto das Instituições de Crédito, incluindo junto do Réu, tido como bom pagador e cumpridor das suas obrigações, razão pela qual não tinha qualquer dificuldade na obtenção de crédito junto das Instituições Bancárias.

3) O referido em 13 dos factos provados, era fundamental para o exercício da sua actividade, impedindo desta forma o exercício da mesma, sua única fonte de rendimentos, o que colocou em causa a sua sobrevivência, tendo a passar de viver à custa de terceiros, deixando também dessa forma de poder pagar qualquer dívida e cumprir os seus compromissos financeiros.

4) O Autor, que era uma pessoa dinâmica, activa e próspero empresário, passou a ser uma pessoa depressiva, triste e amorfa, revoltada, envergonhada e com receio de, socialmente e no meio financeiro e comercial, ser conotado como incumpridor.

5) A realidade supra descrita, produziu uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional do Autor, constituindo um grave atentado à sua personalidade moral de muito difícil reparação.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se o Acórdão recorrido, confirmatório da sentença apelada, violou o caso julgado formado pela sentença de 19.9.2013, referida em 8. e 9. dos factos provados.

Está em causa apenas o pedido reconvencional formulado pelo Banco recorrido, uma vez que, em relação aos pedidos da acção, o Autor não invocou ter existido violação do caso julgado, sendo inquestionável que existe dupla conformidade e que o valor de tal pedido e da condenação não consente recurso de revista.

O Autor radica o essencial da sua argumentação, para sustentar que existe violação do caso julgado, na diversa qualificação dada pelos Tribunais à pretensão do Réu banco formulada em sede reconvencional, na acção intentada em 2.6.2015 (a 2ª segunda acção).

Vejamos:

O Autor demandou o Réu por considerar que este o incluiu, indevidamente, na Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal, pedindo que o Réu providenciasse por essa eliminação, uma vez que não houve qualquer incumprimento seu, e o indemnizasse pelos danos não patrimoniais sofridos no valor indicado de € 23 500,00.

Na origem do litígio está o facto de o Banco, onde o autor tinha aberto um contrato de depósitos à ordem, lhe ter pedido a devolução do valor de € 6.747, 48, o saldo negativo, existente em 29.9.2011 - nessa conta de que é titular. O valor do saldo negativo resulta do facto do Banco ter pago ao Autor um cheque, naquele valor, por este depositado nessa conta e se ter verificado que não tinha provisão: o banco creditou o valor antes de confirmar a provisão do cheque e o Autor dispôs do respectivo montante.

Porque se recusasse a saldar a conta, repondo o valor em causa, o Banco participou ao Banco de Portugal, ao abrigo do Decreto-Lei n°204/2008, de 14 de Outubro (artigo 1° - Objecto e artigo 3º – Dever de Comunicação) e Instrução do Banco de Portugal n°21/2008 – BO, nº1 15.1.2009 (pontos 2.1 2.3, 3.1, 3.2, e 5.2), por considerar existir responsabilidade do Autor, decorrente da concessão de crédito.

O Autor, na acção, sustenta que tal comunicação foi indevida porque a operação do Banco, ao creditar a sua conta, não resultou de qualquer operação de crédito, tendo o Banco cometido uma falsidade.

Como consta do documento junto com a petição inicial – fls. 2 a 8 – por decisão de 19.9.2013, do Tribunal Judicial de Ponta Delgada – 4º Juízo - Proc.1968/13.2YIPRT – o Banco requereu procedimento de injunção (transmutado em acção) contra o Autor, pedindo a condenação deste a pagar-lhe o valor correspondente ao saldo negativo da conta de depósito à ordem, € 6.747,48, acrescido de juros de mora vencidos no valor de € 344,84, e de taxa de justiça paga, no valor de € 153.00, alegando que, na sua actividade comercial, abriu uma conta bancária em nome do Réu, que veio a ser movimentada por este ora a crédito, ora a débito, mormente um depósito de um cheque tomado do estrangeiro, cujo montante foi disponibilizado (e utilizado pelo Réu), e que, no seguimento da verificação da falta de provisão, originou um descoberto em conta, não liquidado.

O Requerido deduziu oposição, alegando que não movimentou quaisquer quantias a descoberto (nem o contrato é de conta a descoberto), ou sem que a conta se encontrasse provisionada, não tendo solicitado ao Autor tais montantes a crédito, pelo que nada deve, concluindo pela sua absolvição do pedido.  

A decisão julgou a acção improcedente e absolveu o ora recorrente.

Considerou: “Tal contrato, no caso dos autos, traduz-se num contrato de depósito (que, por seu turno tem na sua génese um contrato dc abertura de conta) …No caso, e tratando-se de uma conta de depósitos á ordem, aplica-se a indicada regra acerca do dito risco a cargo do bancário “do que que possa suceder na conta do cliente, quando não haja culpa deste”.

 Não se vislumbra que o Réu tenha tido culpa de a Autora ter disponibilizado o dinheiro (que utilizou) antes da boa cobrança do valor nele titulado. Nem se percebe a razão pela qual a Autora assim procedeu (atente-se nos art. 28º e ss. da Lei Uniforme Sobre os Cheques).

Como se viu, o risco corre por conta da Autora. Não vemos, pois, qual será a obrigação em falta por parte do Réu emergente do presente contrato.”

Afirmou “que o Réu acabou por ter um enriquecimento na razão directa do empobrecimento da Autora” e na decisão de improcedência afirmou, ainda: porque [o enriquecimento] “não decorrerá de uma violação contratual por parte do Réu, pelo que, na arquitectura da presente causa de pedir (circunscrita à acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato), a acção terá necessariamente de naufragar.”

Na acção de onde o recurso promana, o Réu banco deduziu pedido reconvencional, pedindo a quantia em causa, considerando ter o Autor beneficiado de um injustificado enriquecimento porque utilizou, em proveito próprio, o valor de € 6.747,48 à custa do Réu, quantia de que este é, credor. 

A sentença apelada considerou, na apreciação do pedido reconvencional:

 “Pese embora o Réu/Reconvinte se baseie no enriquecimento sem causa, a verdade é que a partir do momento em que há a abertura de uma conta bancária, existe um acordo entre o titular da conta e a entidade bancária. Assumem, pois, a natureza de contratos de abertura de conta.”

Depois, considerou que, tendo a reconvenção sido estruturada com base na responsabilidade contratual – violação do contrato de abertura de conta –, com a existência de saldo negativo, não se aplicava o instituto do enriquecimento sem causa, dado o seu carácter subsidiário (argumento em que se baseou para não apreciar a excepção da prescrição, art.482º do Código Civil, invocada pelo Autor/reconvindo), e condenou-o a pagar o montante peticionado.

A sentença apelada julgou a reconvenção procedente, operando com o instituto da responsabilidade civil contratual quando o reconvinte ancorara a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, operando com os mesmos factos com que lidara a injunção transmutada em acção declarativa.

Por sua vez, o Acórdão recorrido considerou que, entre o recorrente e o recorrido, foi celebrado um contrato de abertura de conta, e que a factualidade elencada na sentença impugnada é a mesma, sendo que o juiz não está vinculado à qualificação jurídica que as partes fazem daquela factualidade (cfr. art. 5°,n.°3, Código de Processo Civil).

Na fundamentação pode ler-se:

“O contrato de abertura de conta é um negócio jurídico que marca o início de uma relação bancária complexa entre o banqueiro e o cliente e traça o quadro básico de relacionamento entre tais entidades, assumindo ambas deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Podendo considerar-se o mesmo como um contrato a se: próprio, com características irredutíveis e uma função autónoma. Devendo ser tomado como um negócio materialmente bancário por excelência.

Sendo o contrato de depósito e a conta, esta, em si mesma, com natureza jurídica, realidades diferentes, que mantêm a sua individualidade.

Está também assente que a conta foi movimentada a crédito e a débito.

Ora estes lançamentos constituem uma conta-corrente que a melhor doutrina — com destaque para Menezes Cordeiro e Simões Patrício — concebe como um elemento necessário do contrato de abertura de conta bancária… A divergência do recorrente resume-se a saber como qualificar o saldo negativo que resultou da falta de provisão do cheque depositado na sua conta e cujo valor lhe foi disponibilizado e por si utlizado.

Efectivamente, não foi celebrado um contrato formal de descoberto em conta, pois as partes não assinaram qualquer documento para o efeito.

Mas esta circunstância, expressa de modo algo impróprio no ponto n.°7 da matéria provada, não é impeditiva da existência do dito contrato.

[…] Também Simões Patrício refere que “ (...) a prestação socialmente típica que o banco se compromete a fazer ao cliente comum, bem mais do que receber em depósito certa ou certas quantias pecuniárias e/ou conceder-lhe determinado financiamento, é o denominado serviço de caixa. (...).Trata-se de um conjunto de serviços que se analisam desde logo na recepção de fundos que o cliente queira confiar ao banco, fundos que este exige, em princípio, para o efeito de abertura de conta (...).Mas incluem-se também (...) adiantamentos ou «facilidades» como os (...) descobertos (...)

(...) Esta disponibilização /adiantamento não deixa de ser uma concessão de crédito que ocorre, tipicamente, quando se verificam dificuldades acidentais de tesouraria para cuja solução o banco consente ou tolera um saldo negativo na conta do cliente.”

A disponibilização constitui assim um crédito concedido ao recorrente, um mútuo, no dizer do citado Ac. de 07/10/2010.

E a inexistência de reembolso constitui incumprimento.

Este crédito concedido ao recorrente deve, evidentemente, ser reembolsado.” (destaque e sublinhado nosso)

O Recorrente considera que foi violado o caso julgado, uma vez que, tendo o pedido reconvencional sido formulado com base no instituto do enriquecimento sem causa, a sentença e o Acórdão recorrido (ao contrário da sentença no processo que foi inicialmente de injunção), considerou que a responsabilidade exigida ao Autor se filiava na responsabilidade civil contratual, muito embora tivesse admitido que o Autor se enriquecera à custa do Réu banco.

Cumpre pois, saber se os sujeitos, pedido e causa de pedir, são os mesmos naquela acção, sentenciada em 19.9.2013 que absolveu o Réu do pedido formulado pelo Banco, e na que foi movida pelo Autor e na qual o Banco deduziu pedido reconvencional, ou seja, se se verifica a tríplice identidade que caracteriza a excepção dilatória do caso julgado que, a verificar-se, implica a absolvição da instância.

Do caso julgado:

   Dispõe o art. 580º do Código de Processo Civil

1. As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado.

 2. Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

3. É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.

O art. 581º do Código de Processo Civil – Requisitos da litispendência e do caso julgado – estatui:

“1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

“A excepção do caso julgado consiste na alegação de que a acção proposta é idêntica a outra – ou é a repetição de outra – já decidida por sentença com trânsito em julgado” – Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 3. °-91.

Ensina o eminente jurista [obra citada, vol. II, pp. 92/93], que o caso julgado exerce duas funções:

 “a) Uma função positiva; e b) uma função negativa.

    Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal.

 A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado.

 Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades”.

“Caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por deci­são de mérito que não admite recurso ordinário” – Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. -307. É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação pro­cessual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação pro­cessual dentro do mesmo processo (ob. cit., 308). Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior”.

Sobre o conceito da excepção do caso julgado – art. 580º do Código de Processo Civil (a que correspondia o art. 497º do vCPC) – Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, edição de 1979, pág. 320, ensina:

“O que a lei quer significar é que uma sentença pode servir como fundamento da excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença; quando o Autor pretenda valer-se na nova acção do mesmo direito (...) que já lhe foi negado por sentença emitida noutro processo identificado, esse direito não só através da sua causa ou fonte”.

É discutido o alcance do caso julgado, sobretudo, quando está em causa o caso julgado material.

Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 578, (lição que se mantém actual):

 “O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine”, e 713.° n.º 2), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada.

Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos.

Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto o pressupostos daquela decisão” – (destaque nosso)

Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253:

 “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.”

No caso em apreço é inquestionável que são as mesmas as partes e o pedido no que as partes não dissentem.

Dificuldades surgem quanto à causa de pedir.

“A causa de pedir — é o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar” – Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil” 2.°- 375.

A causa de pedir reporta-se à factualidade que constitui o fundamento do direito pretendido fazer valer, não se relaciona com a qualificação jurídica dos factos, sendo que o juiz não está sujeito à alegação das partes no respeitante à indagação, interpretação e apreciação das regras de direito – art. 5º, nº3, do Código de Processo Civil.

No “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – 3ª edição – Julho 2017 – em anotação ao art. 581º do Código de Processo Civil, os processualistas escrevem, págs. 597 a 599:

“Por via da identidade da causa de pedir, como acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido (ver o n.°3 da anotação ao art. 552, bem como, na jurisprudência recente, o Ac. do TRE de 5.5.16, Canelas Brás, www.dgsi.pt, proc. 1609/12), é excluída a admissibilidade de acção posterior em que o mesmo pedido se baseie em causa de pedir concorrente não cumulável com a invocada na primeira acção, ou com ela cumulável, mas nada acrescentando ao seu efeito, quando na primeira acção o autor tenha obtido vencimento […].

[… ] Mais difícil é saber se nos encontramos perante a mesma causa de pedir quando os mesmos factos integram a previsão de normas materiais constitutivas diversas. Fala-se então de concorrência ou concurso de normas.

Quando o concurso é real, as normas materiais envolvidas são susceptíveis de aplicação cumulativa, susceptível de dar lugar à dedução de pedidos cumulativos (art. 555) e não afectando, no caso de tal não ser feito, a admissibilidade de nova acção em que seja deduzido o pedido não deduzido na primeira.

Assim, por exemplo, não é excecionável o caso julgado quando, obtida decisão de anulação dum negócio jurídico por coacção, se venha pedir posteriormente a condenação do réu em indemnização por esse facto ilícito (Castro Mendes, idem, p. 294), ou quando, obtida decisão na restituição do capital mutuado se venha pedir posteriormente a condenação nos respectivos juros contratuais.

Mas, sendo a decisão de mérito absolutória, a excepção de caso julgado é invocável, a título de prejudicialidade, sempre que, como acontece nos dois últimos exemplos e pode acontecer no primeiro, os pedidos se encontrem em relação de dependência.

Quando o concurso é aparente, as normas aplicáveis excluem-se, podendo dar lugar à dedução de pedidos em relação de subsidiariedade (art. 554) e, quando tal não seja feito, proporcionando a invocação do caso julgado.

Esta invocação não oferece dificuldade quando a acção haja sido julgada procedente […].

Mas, sendo a acção improcedente, há que distinguir: a causa de pedir só será considerada a mesma se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo, permitindo nele identificar as normas aplicáveis; não sendo assim, só terá constituído causa de pedir a respeitante à norma ou normas identificadas, sendo admissível nova acção em que se aleguem os factos identificadores em falta […].

[…] A qualificação jurídica dada aos factos na primeira acção nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova acção em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação (trata-se dum corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto, e não o facto abstractamente descrito na lei: Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado cit., III, págs. 123, 125, 127 e 132, com aplicações várias).”

Exemplificam: “Se o autor tiver perdido a acção de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, poderá pedir a condenação do mesmo réu na restituição do que lhe for devido a título de enriquecimento sem causa, desde que, naquela acção, não haja invocado os factos integradores do enriquecimento do réu e do seu próprio empobrecimento” – Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.°, pág. 599 e ss.).

Miguel Teixeira de Sousa, ao analisar as chamadas relações de concurso, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 576 e 577; afirma:

 “ [...] Se, contudo, os factos forem distintos – isto é, se as causas de pedir se referirem a factos diferentes -, a excepção de caso julgado não pode operar”, havendo, contudo que distinguir entre as hipóteses em que a improcedência da acção obstou a que se tenha produzido o efeito pretendido pelo autor e aquelas em que da procedência da acção já resultou a produção desse efeito”, sendo que “na eventualidade de a acção relativa ao objecto concorrente ter sido improcedente, não existe, em princípio, qualquer obstáculo à admissibilidade de uma segunda acção.”

Também assim, Mariana França Gouveia, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, pág. 493 e 509:

“A causa de pedir, para efeitos de excepção de caso julgado é definida através dos factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada […].

Para o caso julgado, na sua vertente de excepção, a causa de pedir é definida através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada.

Uma acção posterior será barrada pela excepção do caso julgado quando os mesmos factos reconhecidos como provados são os únicos alegados, mesmo que a norma invocada seja diferente. Estes factos principais enquadram apenas os que servem de fundamentação ao pedido, o que tem como consequência que, propondo o réu acção de sentido contrário, basta a identidade de factos constitutivos do direito do autor que o réu alega (para logo de seguida invocar a excepção) para que haja identidade de causa de pedir.
Na sua vertente de autoridade, a causa de pedir define-se exactamente da mesma forma, ou seja, enquadra todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente, que possam ser aplicadas em conjunto, de factos reconhecidos como provados na sentença transitada. O que significa que as decisões sobre estes factos constitutivos terão autoridade de caso julgado em acções posteriores com objectos diferentes” (in A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 493 e 509).

À luz destes ensinamentos, importa ponderar que, na primeira acção, que o Banco moveu ao Réu, a causa de pedir assentava na responsabilidade civil contratual do réu titular da conta. O Banco invocou um contrato de abertura de conta bancária pelo Réu e considerou que existia um descoberto em conta, no valor que creditou do cheque que não tinha provisão, pedindo que o Autor fosse condenado a pagar tal quantia adveniente de descoberto em conta não liquidado.

A acção improcedeu, por se ter considerado que, no existente contrato de depósito à ordem, que correndo o risco a cargo do banqueiro, não ocorreu culpa do titular da conta no que respeita ao Banco nela ter depositado o valor do cheque “antes da boa cobrança do valor nele titulado”.

 Mais considerou, a sentença de 19.9.2013, que “não estamos perante um contrato de descoberto em conta, distinto daqueloutro (cuja principal característica consiste na mudança de posição da entidade bancária que, de devedora, passa a credora), que pressupõe um acordo de concessão de crédito, normalmente a curto prazo, permitindo ao beneficiário ultrapassar dificuldades momentâneas”.

Concluiu a sentença, que não houve violação contratual do demandado, não deixando de reconhecer que “existiu um enriquecimento do réu na razão directa ao empobrecimento da Autora”.

Seguindo o ensinamento de Lebre de Freitas estamos perante um concurso de normas – as da responsabilidade civil e as do enriquecimento sem causa – concurso esse que que é aparente: as normas aplicáveis aos institutos da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa excluem-se, apenas podendo dar lugar à dedução de pedidos em relação de subsidiariedade.

Importa, então, considerar que, tendo a primeira acção sido julgada improcedente, e tendo o Banco, em sede reconvencional na segunda acção, afirmado que formulava o pedido de condenação do Autor/reconvindo baseado nos mesmos factos já invocados naquela acção, mas agora considerando existir enriquecimento sem causa do Autor/reconvindo, entende-se, seguindo o ensinamento de Lebre de Freitas, que, sendo numa e noutra acções, o mesmo o núcleo essencial dos factos integradores das normas concorrentes, alegados no primeiro processo, é a mesma a causa de pedir agora invocada na reconvenção, apenas existindo diversa qualificação jurídica, emprestada pelo reconvinte pelo que, “a qualificação jurídica dada aos factos na primeira acção nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova acção em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação, trata-se dum corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto, e não o facto abstractamente descrito na lei”.

De notar que o Banco, no pedido reconvencional, afirma –“A reconvenção que se apresenta baseia-se nos factos que serviram de base à defesa”, alegando que esses factos, alegados pelo Réu, tal como a sentença considerou, integram, agora, enriquecimento sem causa.

O facto de certa pretensão, na tese de um dos litigantes, evidenciar responsabilidade civil contratual – art. 483º, nº1, do Código Civil – ou ser enquadrável no instituto do enriquecimento sem causa – art. 473º do Código Civil – não impede que o juiz, desde que não altere os factos, sobretudo, no Tribunal de recurso (como se questiona), considere diversamente aplicável o instituto que não foi o invocado.

No caso, sendo diversas as consequências da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa, sobretudo, porque naquele se trata de indemnizar os danos causados, com base na teoria da diferença – art. 566º, nº2, do Código Civil - e no enriquecimento a obrigação é de restituir apenas aquilo que constitui enriquecimento de um à custa do empobrecimento do outro[2] - art. 473º, nº1, não sendo o mesmo o âmbito das pretensões.

 No caso, apenas estava em causa saber se – fosse ao abrigo da responsabilidade civil contratual – art. 483º, nº1, do Código Civil – ou do enriquecimento sem causa – art. 473º - o ora Recorrente tem de entregar ao Banco a quantia que este peticionou, por lha ter disponibilizado, sendo que a ela não tinha direito por via do depósito de cheque na sua conta bancária, cheque esse que não tinha provisão e, que portanto, só seria pago se o Banco o fizesse considerando um descoberto na conta.

A consideração de ser a mesma, ou não ser, a causa de pedir de uma e de outra acção não tem que ver com a qualificação que foi dada no Acórdão recorrido, tem sim que ver com o núcleo factual alegado numa e noutra acção como ensina Lebre de Freitas.

Sendo, como se considera ser, que o núcleo factual é o mesmo e que, na primeira acção, o Banco considerou que os factos (causa de pedir) integravam responsabilidade civil contratual do demandado e, no pedido reconvencional da segunda acção, considerou o mesmo núcleo factual como substrato para formular pretensão ancorada no instituto do enriquecimento sem causa, concluímos ser a mesma a causa de pedir, e como tal, que o douto Acórdão recorrido violou o caso julgado formado na acção sentenciada em 19.9.2013, no Processo nº1968/13.2YIPRT, pelo que o Recorrente tem de ser absolvido da instância, nos termos dos arts.278º, nº1, e) e 577º i) do Código de Processo Civil.

Pelo quanto se disse o recurso merece provimento.

Decisão:

Nestes termos concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, por violação do caso julgado formado no Processo nº1968/13.2YIPRT, com a sentença de 19.9.2013, absolvendo-se da instância o Autor/reconvindo e Recorrente AA.

Custas pelo Recorrido.

                                          

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de abril de 2018

Fonseca Ramos (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

___________________
[1] Relator – Fonseca Ramos
Ex. mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida

[2] Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 454 a 456, ensinam: “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:

É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento.

Em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.

Finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição”.

Na mesma obra, pág. 466, escrevem: “ […] O objecto da obrigação de restituir é determinado em função de dois limites: em primeiro lugar, o beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada (ou o valor correspondente, quando a restituição em espécie não seja possível).

Deve restituir apenas aquilo com que efectivamente se acha enriquecido, podendo haver diferença — e diferença sensível — entre o enriquecimento do beneficiado à data da deslocação patrimonial e o enriquecimento actual […].

[…] O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada […].

[…] Em segundo lugar, o objecto da obrigação de restituir deve compreender “tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido”.

[…] Além do limite baseado no enriquecimento (efectivo e actual), a doutrina corrente tem aludido a um outro limite da obrigação de restituir, que consistiria no empobrecimento do lesado”.

“O enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) existência de um enriquecimento; b) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique; c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído” – Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23.4.1998, in BMJ, 476-370 e de 14.5.1996, CJST, 1996, II, 71.

“O enriquecimento não terá causa quando, segundo a lei, não devia pertencer àquele que dele beneficia, mas a outrem, sendo necessário averiguar, por interpretação ou integração da lei, se esta o quer radicar no beneficiado ou não, sendo que na primeira hipótese não ocorre o pressuposto falta de causa. Operando-se a deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, donde que se esse fim falta, as obrigações resultantes do negócio ficam sem causa – Leite Campos, “A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento”, 317 e 412”. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.2.2013, in www.dgsi.pt.