Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
940/14.0TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 1 ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: COMISSÃO
COMISSÁRIO
TERCEIRO
DANO MORTE
DANOS REFLEXOS
RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 03/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, p. 446;
-Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, p. 322 323;
-Nuno Morais, Julgar, n.º 6, p. 53;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, p. 507.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 500.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO STPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA, N.º 12/2014, IN DR, I SÉRIE, DE 8 DE JULHO DE 2014.
Sumário :

I - O regime da responsabilidade objetiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo comissário, prevista no artigo 500.º do Código Civil, tem como pressupostos: (1) a existência de uma relação de comissão, (2) a prática de factos danosos pelo comissário no exercício da sua função e (3) a responsabilidade do comissário.
II - Existe uma relação de comissão entre a ré, comitente, e os dois trabalhadores sinistrados, comissários, porquanto estes eram empregados daquela e dela receberam ordens para proceder à abertura de uma vala (ainda que um deles por intermédio do outro, seu chefe), em cuja execução veio a ocorrer um aluimento de terras.
III - Os danos da perda do direito à vida dos referidos trabalhadores, não são indemnizáveis pela ré comitente com o fundamento no disposto no artigo 500º do Código Civil, por aqueles terem a qualidade de comissários e não de terceiros lesados.
IV - Os danos próprios sofridos pelos irmãos de um dos comissários, não são igualmente indemnizáveis por dependerem, reflexamente, da qualidade de terceiro lesado do sinistrado.

Decisão Texto Integral:               

           
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, BB, CC, DD, EE, e FF, intentaram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra GG, SA., e contra a HH, S.A., pedindo que as RR. sejam “condenadas a pagar aos AA. a indemnização global de €161 465, como indemnização mínima, justa e legal, por todos os danos não patrimoniais sofridos pelo infeliz II, bem como pelos danos não patrimoniais por eles AA. sofridos e a sofrer em consequência da morte do seu irmão, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a citação e até integral e efectivo pagamento do capital liquidado a favor dos AA.”.

Alegaram, em síntese, que:

- no dia 11/12/2010, cerca das 16 horas e 45 minutos, em ..., ocorreu um acidente de trabalho numa obra de que era empreiteira a 1ª R., acidente esse – no qual faleceram dois dos seus trabalhadores, sendo um deles, II, irmão dos AA. –;

- o acidente ocorreu por culpa do trabalhador da 1ª R. que chefiava a equipa de trabalho, o qual optou (contra as ordens e instruções da sua entidade empregadora e formação que desta tinha recebido) por não entivar uma vala que havia sido aberta para colocação de saneamento e que, sem a vala devidamente entivada, ordenou ao irmão dos AA. que descesse ao seu interior, o que aquele fez (no que foi acompanhado pelo referido chefe de equipa);

- quando os mesmos se encontravam no seu interior, a ocorreu o desmoronamento de uma das paredes laterais da vala e a rotura de uma conduta, o que provocou a morte de ambos por asfixia.

O referido chefe da equipa de trabalho (JJ, também falecido) foi o único culpado/responsável pelo acidente, sendo a 1.ª R. responsável enquanto comitente e a 2.ª R. (seguradora) responsável por a 1.ª R. lhe haver transferido a sua responsabilidade (pelo contrato de seguro celebrado).

2. Citadas, as Rés apresentaram contestação, em separado:

- A R. HH –

Invocou, para além de impugnar por desconhecimento a factualidade alegada, que o contrato de seguro celebrado com a 1.º R. não cobre o sinistro descrito pelos AA..

 - A R. “GG, SA” –

Invocou a exceção da incompetência material e como exagerados os montantes indemnizatórios pedidos, sustentou que sempre observou as regras de segurança e que sempre deu a devida formação aos seus trabalhadores nesse sentido, pelo que, “se o referido II entrou na vala em construção sem entivação, fê-lo de vontade própria contrariando as instruções que lhe tinham sido ministradas pela R. e pelos seus representantes sobre o modo e respeito de condições de segurança quanto à obra em causa (…), não podendo a sua atitude temerária e desrespeitadora das regras de segurança ficar-se a dever apenas ao acto do malogrado JJ, que lhe teria pedido para entrar na vala”, pelo que “não será assim totalmente verdade o alegado nos arts. 16.º, 17.º e 18.º da p. i., pois terá de entender-se que o acidente também ficou a dever-se ao próprio desrespeito que a vítima II fez das regras de segurança ao ter contribuído com o seu comportamento para que a vala não fosse entivada”; motivo pelo qual concluiu “que a morte da infeliz vítima se ficou a dever ao seu próprio comportamento, razão pela qual não tem de reparar os danos decorrentes daquele acidente, nos precisos termos do disposto no art. 14.º/1 da Lei 98/2009”.

3. Os A.A. responderam às exceções, pugnando pela sua improcedência.

4. Findos os articulados, foi lavrado despacho saneador, que julgou improcedente a exceção de incompetência material; foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

 

5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu as Rés GG, S.A. e HH, S.A. dos pedidos contra as mesmas formulados.

6. Inconformados com tal decisão, interpuseram os AA. AA, BB, DD e EE recurso de apelação, tendo a Relação de Coimbra decidido julgar “parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se parcialmente a sentença recorrida, que se substitui pela condenação da 1ª R. (GG, SA.) a pagar aos 4 AA./Apelantes (AA, BB, DD e EE), a título de indemnização, a quantia global de €55.732,50, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a citação até integral e efectivo pagamento de tal quantia; mantendo-se, em tudo mais, as absolvições da sentença recorrida”.

7. Inconformada com tal decisão, a Ré GG, S.A. veio interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. Os A.A recorridos nunca estiveram impedidos de reclamar a indemnização pelos danos sofridos, em consequência da morte do seu familiar II com fundamento no instituto da Responsabilidade Civil.

2ª. Apesar de os factos dos autos terem constituído acidente de trabalho, uma vez que aquela responsabilidade não fica assim posta de parte no domínio dos acidentes de trabalho.

3ª. Não é porém, admissível, conforme consignado no acórdão, a aplicação cumulativa das duas normas quando o empregador é um comitente, e o sinistro é causado por um seu trabalhador / comissário sobre outro trabalhador, como é o caso dos autos.

4ª. De verdade, face à ora recorrente GG S.A., a infeliz vítima II, trabalhador desta, tem a qualidade de comissário e não de terceiro, sendo comitente a mesma sociedade recorrente.

5ª. Como aliás todos os outros trabalhadores que no local do acidente se encontravam.

6ª. Ou seja a responsabilidade civil extracontratual como responsabilidade objectiva existe para a tutela de terceiros.

7ª. E contrariamente ao consignado no mesmo Acórdão do Tribunal da Relação, também não podem entender-se como "terceiros lesados" em face da morte do infeliz II - os ora A.A recorridos.

8ª. Também se devendo concluir que da mesma forma se teria de entender o encarregado JJ, como um comissário sobre quem recaía o dever de obediência às ordens da entidade patronal, e atento, o próprio dinamismo organizacional de uma empresa.

9ª. O que não retira a mesma qualidade de comissário ao já referido II

10ª. Assim, sempre se mostrará inaplicável ao presente caso o disposto no artº500 do C.C. , contrariamente ao decidido nos autos.

11ª. Aliás, a referência a "terceiros lesados" aos irmãos do falecido II, também não se aceita porquanto a compensação pelos danos patrimoniais reclamados pelos mesmos são
direitos reflexos, conforme arte 496 do C.C.

12ª. Mesmo os danos não patrimoniais próprios dos A.A recorridos (art°496 nº4) relativos aos quais numa primeira análise se poderá assacar a qualidade de terceiro, tem de entender-se como danos directamente ligados ao dano real da morte do referido II.

13ª. E relativamente aos danos não patrimoniais próprios do falecido II,
sofridos até ao momento da morte e ao dano da morte autonomamente considerado, tais dúvidas
não se suscitam, pois são danos transmissíveis aos A.A recorridos a título de sucessório.

14ª. Aliás quanto aos diferentes tipos de danos ligados ao dano real da morte de II, não assumem os A.A recorridos, em relação às várias categorias de prejuízo a qualidade de terceiro.

15ª. Ainda assim, ao tribunal, quanto aos danos não patrimoniais pelos A.A recorridos sofridos, face ao disposto no art°494, é reconhecido o respeito pela equidade na fixação do montante compensatório a atribuir ao lesado.

16ª. Sendo inadmissível o critério aritmético dos lesados, que parece ter sido utilizado na decisão ora impugnada.

17ª. Ou seja, parece ser inadmissível um critério de cálculo dos danos não patrimoniais, que permita a atribuição de um montante compensatório superior, a reparação a que alude o art°
496 n° 4 do C.C.

18ª. Na fixação dos danos, se fosse caso disso, que não é, estando em causa danos próprios dos A.A. recorrentes, sempre teria de atender-se, ao diferente nível de ligação entre o falecido e os diferentes A.A., o que não foi feito.

19ª. Nos autos, não pode aferir-se a resolução do litigio, de forma concorrencial, entre o comportamento do chefe de equipa JJ e a infeliz vítima II, porquanto tal pressupunha a consideração de II como terceiro em relação à ora recorrida GG, S.A., o que não se aceita.

20ª. Sendo como já se disse, inaplicável o disposto no art° 500 do C.C.

21ª. Mas, mesmo que assim não fosse, sempre como se disse na 1ª instância, o dano real da morte do falecido II, ficou a dever-se à sua conduta exclusiva, e também quando assim é a responsabilidade do agente fica excluída, nos termos do disposto no art° 570 n°1 do
C.C.

Conclui pela procedência do recurso,”revogando-se o aliás douto acórdão, e substituindo-o por outro que mantenha na íntegra a sentença da 1ª. instância, absolvendo totalmente a Ré do pedido, negando-se assim provimento ao recurso inicialmente instaurado pelos A.A.”.

8. Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. No que respeita à primeira questão, temos que os presentes autos se limitam à alegada responsabilidade pelo risco, com fundamento no artº. 500°. do Cod. Civil, em que se abstrai da culpa da comitente entidade patronal e de que não é impeditivo o facto de estarmos perante um acidente de trabalho, pois como bem refere o acórdão recorrido, pois os ora autores não são legalmente beneficiários de pensão de acidente de trabalho.

2ª. Como se define no douto acórdão recorrido, a responsabilidade pelo risco prevista no artº. 500°. tem 3 pressupostos, a saber: 1 - A existência dum vínculo de comitente e comissário; 2 - Haver responsabilidade do comissário; 3- Ter sido praticado o facto ilícito no exercício da função.

3ª. No caso dos autos, não há dúvidas e o recorrente também as não suscita de que havia uma relação de comitente/comissão entre a 1ª. R. e o falecido JJ, dado que aquele era trabalhador da 1ª.  R., ou seja, estava vinculado a ela por contrato de trabalho.

4ª. Para aferirmos dos outros dois requisitos temos de atender as funções que a este estavam cometidas e que, como bem refere o acórdão recorrido e resulta da matéria de facto dada como provada, o trabalhador JJ exercia as funções de chefe de equipa, da qual fazia
parte o falecido II.

5ª. No exercício dessas funções, - a 1ª. R. deu ordens por intermédio dos seus técnicos responsáveis em obra, para o entivamento da referida vala bem como da outra vala que no mesmo dia foi executada por outra brigada (facto 11); - ordens que a ambos os chefes de equipa foram transmitidas e dadas quer aquando da planificação dos trabalhos, quer no dia anterior ao acidente e no próprio dia (facto 12);- sabia assim, o chefe de equipa, JJ, que as valas com profundidade superior a 1,2 metros, têm de ser, necessariamente. entivadas (facto 13);- não devendo entrar na vala, qualquer trabalhador, sem que a mesma esteja entivada e a entrada se faça por meio de uma escada (facto 14) e - cabia ao JJ a direcção dos trabalhos (facto 16)

6ª. foi ele que procedeu à abertura da vala, ficando com uma dimensão não concretamente apurada entre 80cms a 150cms de largura (ainda facto 16); - o JJ optou por não colocar os painéis de entivação apesar de a vala ter largura suficiente para poder
ser entivada
(facto 17); - apesar de não entivada o JJ determinou que o trabalhador LL o acompanhasse ao interior da vala para concluírem os trabalhos. com a colocação de pontos de nível para seguidamente aplicarem a conduta de saneamento (facto 18):

7ª. Verifica-se assim que existe responsabilidade civil, por culpa efectiva e real do comissário/chefe de equipa JJ, que, na direcção dos trabalhos, procedeu à abertura da vala, mas fez a opção de a não entivar assim colocando em risco, como realmente aconteceu, a sua vida e dos seus colegas trabalho.

8ª. Dúvidas não há de que se verificam os pressupostos da aplicação do artº. 500°., nºs. 1 e 2 do Cod. Civil, pois existe um facto danoso praticado pelo comissário/chefe de equipa JJ contra as instruções do comitente.

9ª. Entende, porém, a recorrente que se não pode aplicar aqui o art°. 5000. citado, dado que também havia uma relação de trabalho entre o falecido irmãos dos AA. e a 1ª. Ré, pelo que não seria terceiro, para efeitos indemnizatórios.

10ª. Conforme resulta claramente do facto 27, dos factos provados, "se a entivação da vala tivesse sido efectuada, teria suportado. total ou parcialmente o desmoronamento das terras da parede da vala" e, no exercício das suas funções não tinha o falecido II quaisquer poderes para abrir a vala e, além disso, optar ou não pela sua entivação, pois que essas funções cabiam ao chefe de equipa, escolhido pela entidade patronal e a cujas ordens e decisões devia obediência.

11ª. Mais que a qualificação de terceiro - questão meramente semântica - é relevante a qualificação de lesado que não pode deixar de atribuir-se ao falecido II, pois foi vítima da opção de não cumprimento pelo seu chefe de equipa JJ das ordens e instruções que lhe foram dada pela 1ª. R.

12ª.Tanto assim é que está provado que o acidente dos autos ou não teria ocorrido ou teria tido consequências menores (facto 27).

13ª. Havendo culpa do falecido comissário/chefe de equipa JJ e do lesado II, O tribunal recorrido não podia deixar de condenar a ora recorrente e 1ª. R,  porque a mesma eram comitente do lesante e comissário JJ, a quem o lesado II devia obediência, por dele depender hierarquicamente.

14ª. Nenhuma censura merece o acórdão recorrido quanto à condenação da ora recorrente, salvo apenas quanto à excessiva proporção em que considerou o infeliz II como culpado, pois metade é manifestamente exagerada, o que motivará o recurso subordinado.

15ª. Fixada na ideia de "terceiros", a recorrente entende que também o direito dos ora recorridos e seus irmãos deriva do facto da vida real "morte do irmão II" para concluir que, não sendo terceiros não teriam direito a qualquer indemnização pessoal, por danos não patrimoniais, pois o art°. 5000., não lhes é aplicável, mas mais uma vez sem razão.

16ª. Sendo a responsabilidade da recorrente uma responsabilidade pelo risco, nos termos do art°. 499°. do Cod. Civil, também se lhe aplica o disposto no art°. 496°., do mesmo diploma legal, relativo a danos não patrimoniais, pois determina o art°. 499°. que "são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos."

17ª. Uma dessas normas é o art°. 4960., inserida na subsecção I (responsabilidade por actos ilícitos) da sccção V (responsabilidade civil), de que a responsabilidade pelo risco é a subsecção II e no artº. 496°., n°. 2 é expressamente referido que "na falta destes (cônjuge e descendentes), aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem."

18ª. Dúvidas não existem quanto à justeza da decisão proferida nesta parte, reconhecendo aos irmãos do falecido o direito a danos não patrimoniais pelo falecimento de II, o qual faleceu no estado de solteiro, sem descentes ou ascendentes vivos à data da sua morte. - Cfr. factos 2 e 32 considerados provados -, pelo que não merece qualquer censura nesta parte a decisão recorrida.

19ª. Por outro lado, verificou-se existir responsabilidade do chefe de equipa, JJ, porquanto o mesmo, apesar de ter material de entivação, não
fizera uma vala suficientemente larga para o poder aplicar, decidira não o aplicar, contra todas as boas práticas que devem nortear a abertura de valas e a realização de trabalhos em valas de grande profundidade, como era aquela em que ocorreu o sinistro, pois, na avaliação que fizera do
terreno, entendia que o mesmo era suficientemente duro e que dada a rapidez com que a tarefa iria ser executada não haveria risco de ruína.

20ª. Esqueceu que, estando a correr água para a vala - ainda que em pequena quantidade -, a mesma iria corroendo a parte inferior das paredes da vala, diminuído a sua resistência e tomando mais possível qualquer derrocada, como de facto veio a acontecer, pelo que se tratou,
por isso, de um erro de avaliação do chefe de equipa, JJ, que, como representante da empresa, é imputável a esta.

21ª. Porém, como se demonstrou, a existência dessa água resultava do facto de a entidade patronal não ter comunicado às Águas de Coimbra a realização daquela obra, pelo que esta empresa, dono da obra em causa, não havia cortado a água nas condutas que passavam pelo
local.

22ª. O chefe de equipa, JJ, demonstrou que não havia risco na descida à vala sem entivação, dado que a realização da tarefa de colocar os pontos no fundo da vala era uma tarefa que exigia sempre a presença e a intervenção de dois trabalhadores e como o trabalhador LL se recusara a realizá-la naquelas condições, o falecido II disponibilizou-se para a realizar.

23ª. O seu chefe de equipa, seu superior hierárquico, não só não alertou para que essa descida seria contraindicada, determinando a sua proibição, como até a coonestou, descendo ele também, pelo que não havendo outro trabalhador disponível para essa tarefa, seria evidente que o chefe de equipa, JJ iria chamar o falecido II para a sua realização, pelo que a atitude deste foi aceite por aquele chefe de equipa.

24ª. Sabendo que a realização da tarefa de colocar os pontos no fundo da vala era uma tarefa que exigia sempre a presença e a intervenção de dois trabalhadores e que o trabalhador LL se recusara a realizá-la naquelas condições, limitara-se a disponibilizar a sua força de trabalho no cumprimento das suas obrigações laborais, pois, nos termos do art°. 128°., n°.1, al. c) do Cod. do Trabalho, compete ao trabalhador "realizar o trabalho com zelo e diligência".

25ª. Conforme já foi alegado e resulta claramente do facto 27, dos factos provados, "se a entivação da vala tivesse sido efectuada, teria suportado, total ou parcialmente o desmoronamento das terras da parede da vala", pelo que está provado que o acidente dos autos ou não teria ocorrido ou teria tido consequências menores (facto 27).

26ª. Como bem refere o acórdão recorrido se o infeliz II desceu
voluntariamente
ao interior da vala, "no seguimento do seu chefe de equipa pretender, sem sucesso, que outro trabalhador (o LL) o acompanhasse a ele (chefe de equipa) ao interior da vala, para
concluírem os trabalhos (para colocarem os pontos de nível e aplicarem a conduta de saneamento) .... foi de imediato seguido pelo seu chefe de equipa.

27ª. E - é o ponto chave - o chefe de equipa (o JJ) não o seguiu de imediato para o fazer sair da vala por o mesmo estar a violar as prescrições da entidade empregadora e da lei - como era suposto e exigível a um chefe de equipa, a quem competia que os trabalhos decorressem de acordo com as ordens e instruções da entidade patronal - mas sim para com ele trabalhar,sendo justamente quando "ambos se encontravam no interior da vala a procederem à colocação dos pontos, que as terras laterais da vala desmoronaram para dentro desta, soterrando-os”.

28ª. Deste modo, Existe maior parcela de culpa da entidade patronal e do seu representante e, quanto ao falecido II, a sua culpa é menor, pois se limitara a cumprir as suas obrigações, pelo que aceitando-se a existência de concorrência de culpas com o falecido II, a este é apenas imputável uma parcela diminuta, em montante não superior a 25%.

29ª. Tem de ser alterado o acórdão recorrido, fixando-se a culpa do falecido irmão dos AA. apenas em 25% da culpa na eclosão do acidente e dos respectivos danos, só assim se cumprindo a lei

9. A Recorrente GG, S.A. veio responder, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. O presente recurso subordinado, não observa os precisos termos do disposto nos artºs 633, 637, e 639 do C.P.C., pelo que não pode ser conhecido, devendo ser rejeitado com as legais consequências. Mas sempre, se assim se não entender,

2ª. Contrariamente ao defendido pelos recorrentes o dano sofrido pela infeliz vítima (morte) decorre de comportamento único e exclusivo da mesma, pelo que, independentemente da inaplicabilidade ao caso do disposto no artº 500 do C.C., a sua culpa é total, e assim de 100%.

Donde sempre,

3ª. Nenhuma culpa pode ser atribuída à recorrente, na produção do sinistro, tendo em conta os factos provados, agora não sindicáveis, Assim,

4ª Deve ser mantida na íntegra a sentença do Tribunal de 1ª instância, com as legais consequências.

E conclui “Termos em que não sendo rejeitado o recurso Subordinado, deve ser julgado improcedente o mesmo, e Revogar-se o aliás douto acórdão, substituindo-o por outro que mantenha na íntegra a sentença de 1ª instância, absolvendo-se totalmente a Ré recorrente do pedido, e negando-se assim provimento ao recurso inicialmente instaurado pelos A.A. recorridos, bem como ao presente recurso subordinado”.

10. Não foi recebido o recurso subordinado.

11. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Ré/Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- a aplicação do disposto no artigo 500º. do Código Civil;

- a exclusão de responsabilidade nos termos do disposto no artigo 570º do Código Civil;

- os danos próprios dos Recorrentes;

- o montante indemnizatório.

                III. Fundamentação.
1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. Os AA. são irmãos de II, falecido no acidente ocorrido no dia 11 de Dezembro de 2010.

1.2. À data do acidente, objecto dos presentes autos e de que resultou a morte de II, não tinha este nem ascendentes vivos, nem descendentes.

1.3. No dia 11 de Dezembro de 2010, cerca das 16 horas e 45 minutos, em ..., ocorreu um acidente no local onde decorria uma empreitada de construção do saneamento básico da freguesia de ..., em que era dona da obra, a empresa “Águas de Coimbra EEM”.

1.4. Esta empreitada estava a ser levada a cabo pela sociedade comercial “GG, S.A.”, ora primeira R., que era a empreiteira da referida obra.

1.5. O acidente referido decorreu na sequência da abertura de uma vala na via pública no troço do colector 229.4-229, com aproximadamente 3,5 metros de profundidade, mediante o uso de uma máquina giratória, a fim de ali ser levada a cabo uma intervenção no serviço de saneamento.

1.6. Do referido acidente foram vítimas JJ e II, que acabaram por falecer em consequência de um aluimento de terras, que os deixou soterrados a cerca de três metros de profundidade.

1.7. Tendo as autópsias médico-legais realizadas aos corpos dos mesmos, concluído que a causa de morte dos mesmos foi a asfixia mecânica por soterramento, conforme documento junto a fls.277 a 282, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

1.8. A equipa destacada para o local pela sociedade comercial “GG, S.A.” era constituída por quatro trabalhadores: JJ, II, MM e NN, sendo que o primeiro actuava como chefe de equipa.

1.9. Sendo que aos trabalhadores destacadas para o local, foi fornecida pela sua entidade patronal, ora 1ª ré, formação em higiene e segurança no trabalho, especialmente direccionada para os trabalhos a executar para o local.

1.10. A 1.ª Ré procedeu à prévia identificação dos riscos, conjuntamente com o chefe de equipa sinistrado e o outro chefe de equipa OO, (que no dia do acidente executou tarefa igual, na mesma obra noutra frente de trabalhos).

1.11. A 1ª ré determinou por intermédio dos seus técnicos responsáveis em obra, o entivamento da referida vala bem como da outra vala que no mesmo dia foi executada por outra brigada, o que foi comunicado a todos os trabalhadores da obra, entre os quais os indicados em 8.

1.12. Ordens que a ambos os chefes de equipa foram transmitidas e dadas quer aquando da planificação dos trabalhos, quer no dia anterior ao acidente e no próprio dia;

1.13. Sabia assim, o chefe de equipa, JJ, que as valas com profundidade superior a 1,2 metros, têm de ser, necessariamente, entivadas, não devendo entrar na vala, qualquer trabalhador, sem que a mesma esteja entivada e a entrada se faça por meio de uma escada.

1.14. O que também era do conhecimento dos demais trabalhadores referidos em 8.

1.15. A sociedade comercial “GG, S.A.” deslocou para o local da obra todos os meios para que a obra se realizasse em segurança, nomeadamente, painéis de entivação, uma máquina giratória para a sua colocação, máquina retroescavadora com dois baldes de diferentes dimensões para a abertura da vala, bem como camiões para moverem a terra para o local de realização dos trabalhos descritos anteriormente.

1.16. A vala foi aberta pelo JJ, a quem cabia a direcção dos trabalhos, ficando com uma dimensão não concretamente apurada entre 80cms a 150cms de largura, não tendo sido utilizado material de entivação apesar de disporem, junto ao local de trabalho, de painéis de entivação para a levar a cabo.

1.17. O JJ optou por não colocar os painéis de entivação apesar de a vala ter largura suficiente para poder ser entivada.

1.18. Abriu a vala com as dimensões aproximadas de 9 metros de comprimento, 3,5 metros de profundidade, não tendo em conta que o terreno podia ceder, por não ser suficientemente duro, se não tivesse sido entivado.

1.19. Apesar de não entivada o JJ determinou que o trabalhador LL o acompanhasse ao interior da vala para concluírem os trabalhos, com a colocação de pontos de nível para seguidamente aplicarem a conduta de saneamento.

1.20. O trabalhador LL recusou-se expressamente a entrar na vala por esta não se encontrar entivada e não reunir condições de segurança, o que comunicou ao JJ.

1.21. O II, que se encontrava presente, sem para tal ter sido interpelado ou lhe ter sido solicitado que o fizesse pelo JJ ou por qualquer outro trabalhador, voluntariou-se para ir, descendo de imediato ao interior da vala, para o que escorregou pelas suas paredes laterais já que não estava colocada qualquer escada.

1.22. Tendo sido seguido pelo JJ que também entrou na vala.

1.23. No momento em que ambos se encontravam no interior da vala a procederem à colocação dos pontos, as terras laterais da vala desmoronaram-se para dentro desta, soterrando os dois trabalhadores que aí se encontravam.

1.24. E rebentando simultaneamente uma conduta de água que passava no interior da vala.

1.25. O II ficou soterrado a cerca de 3 metros de profundidade.

1.26. Vindo aqueles a falecer por asfixia decorrente do soterramento.

1.27. Se a entivação da vala tivesse sido efectuada, teria suportado, total ou parcialmente o desmoronamento das terras da parede da vala.

1.28. Quer o JJ, quer os outros trabalhadores presentes, já tinha feito trabalhos semelhantes, estavam preparados para o efeito para o que haviam recebido formação.

1.29. O JJ e o II ao descerem à vala nas condições acima referidas desobedeceram às instruções dos técnicos de segurança e da sua entidade empregadora, que os haviam alertado para a necessidade de cumprimento de todos os procedimentos de segurança quanto à obra em causa.

1.30. O referido II, também sabia que não devia ter entrada na vala naquela situação; pois que tal instrução e ordem, também lhe tinha sido ministrada, quer em formação geral, quer nas instruções específicas dadas sobre a execução das valas, da obra em causa. (fls 106 a 118)

1.31. O II era tido como habitualmente cumpridor, cuidadoso e diligente.

1.32. À data do falecimento do II, era solteiro e tinha 40 anos de idade, conforme documento junto a fls. 36, cujo teor se dá por reproduzido.

1.33. O II teve consciência da iminência da morte que lhe sobreveio em consequência dessa derrocada.

1.34. Era de condição sócio cultural modesta e um jovem, alegre e divertido,

1.35. Os AA. e seu irmão II davam-se bem entre si, havendo um contacto mais próximo deste com aqueles que viviam em ..., para onde se deslocava diariamente, aí passando também os fins-de-semana.

1.36. O II era amigo dos irmãos e com eles convivia.

1.37. Os AA. suportaram o custo do funeral do seu irmão, no que despenderam a quantia de € 1.465,00, conforme documento junto a fls. 307, cujo teor se dá por reproduzido.

1.38. A sociedade “GG, S.A.”, ora 1ª. Ré, transferiu a sua responsabilidade civil extracontratual /contratual -construção civil- por actos que a constituíssem na obrigação de indemnizar para a 2ª. R., companhia de seguros AXA, por contrato de seguro titulado pela apólice nº. 000000000000000 até ao montante de capital de € 1.500.000, conforme documento junto a fls. 81 a 84, 225 a 235 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

1.39. Atento o disposto no Art.º 4º, alínea j) das Condições Gerais da Apólice “Ficam sempre excluídos da garantia de cobertura desta apólice os seguintes danos:  (…) j) resultantes de acidente enquadrável na legislação sobre acidentes de trabalho;”

1.40. No Art.º 2º da Condição Especial estão consignadas as Exclusões; as consignadas no aludido artigo, n.º 1 alíneas b) e n) que, respectivamente, se transcrevem: “1. (…) ficam também excluídos: (…) b) danos e multas resultantes da violação ou não cumprimento das disposições legais ou administrativas, de carácter geral ou autárquico, relativos à execução das obras ou de medidas de segurança que a Lei ou a experiência corrente recomendem; (….) n) danos causados por inadequação ou falta de meios de segurança e de escoramento para evitar descompressões de terrenos; (...) ”, conforme documento junto a fls. 83 e 84, cujo teor se dá por reproduzido.

1.41. Correu termos no tribunal de Trabalho de Coimbra o processo com o nº 1517/10.4TTCBR, referente acidente em apreciação nestes autos e que vitimou II, no âmbito do qual após a fase conciliatória o aí autor Fundo de Acidentes de Trabalho demandou a companhia de seguros «HH, SA», peticionando o reconhecimento do acidente como de trabalho, e a condenação da aí ré seguradora (por força do contrato de seguro de acidentes de trabalho) a pagar ao Fundo a quantia de 28.084,38€ nos termos do artigo 63º da NLAT por inexistirem beneficiários com direito a pensão ( cfr. documento de fls. 98 e segs), onde foi proferida sentença já transitada em 5 de Setembro de 2014, conforme cópia que dá por reproduzida.

1.42. Os autos do inquérito n.º 449/10.0 GDCBR, que correu termos na 2.ª Secção do DIAP de Coimbra, vieram a ser arquivados em consequência da morte do JJ, conforme doc. de fls. 273 a 306 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

1.43. No processo de contra-ordenação nº 1634/12.6TTCBR, referente ao acidente descrito, a aí arguida «GG, SA», veio a ser absolvida, conforme decisão junta a fls. 119 a 126 dos autos, cujo teor se dá por reproduzida.

1.44. A Ré é tida por idónea e cumpridora das regras de segurança nos trabalhos e construção civil que desenvolve;

1.45. Ministra formações aos seus trabalhadores, quer em obra, quer em sala, internamente e socorrendo-se de entidades e formadores externas.

- Procedeu-se à correção da numeração dado que existia um lapso, sendo que se verificava a existência de dois factos com o número 41 -


2. Da aplicação do disposto no artigo 500º. do Código Civil
A Recorrente GG, S.A. refere que o irmão dos Recorridos, II, era seu trabalhador, pelo que tinha a qualidade de comissário e não de terceiro lesado.

Nos termos do disposto no nº1 do artigo 500º do Código Civil (que se enquadra no instituto da responsabilidade pelo risco),” aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar”.

De acordo com o disposto no n.º2 do citado normativo, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

Trata-se de uma responsabilidade objetiva do comitente, porquanto o mesmo é responsável mesmo que não tenha culpa, mas só é responsável se o comissário tiver culpa.

Ou como afirma Menezes Leitão, “a responsabilidade do comitente é uma responsabilidade objectiva pelo que não depende de culpa sua na escolha do comissário, na sua vigilância ou nas instruções que lhe deu. No entanto, essa responsabilidade objectiva apenas funciona na relação com o lesado (relação externa), já que posteriormente o comitente terá na relação com o comissário (relação interna) o direito a exigir a restituição de tudo quanto pagou ao lesado, salvo se ele próprio tiver culpa, caso em que se aplicará o regime da pluralidade de responsáveis pelo dano (art. 500º, nº3)” (in Direito das Obrigações, vol. I, pág.322).

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, V. I, 4ª Ed., pág. 507, “o comitente poderá, no entanto, responder independentemente de culpa do comissário, se tiver procedido com culpa (culpa in eligendo, in instruendo, in vigilando, etc.). Nesse caso, já não haverá responsabilidade objetiva, mas responsabilidade por atos ilícitos, baseada na conduta culposa do comitente”.

A aplicabilidade do citado artigo 500º do Código Civil depende, assim, da existência de uma relação de comissão, e esta pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos atos do segundo – Antunes Varela “in” Das Obrigações em Geral, página 446 -, sendo que “a expressão comissão não tem aqui o sentido técnico referido no art. 266º do Código Comercial, mas antes o sentido amplo de tarefa ou função realizada no interesse e por conta de outrem, podendo abranger tanto uma actividade duradoura como actos de carácter isolado e tanto actos materiais como jurídicos” (Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, vol. I, pág.323). A existência de uma relação laboral pode ser, por si, indicador da existência de uma relação de comissão (Nuno Morais, in Julgar, nº6, pág.53).

O regime de responsabilidade objetiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo seu comissário tem os seguintes pressupostos:

a) A existência de uma relação de comissão;

b) Prática de factos danosos pelo comissário no exercício da função;

c) Responsabilidade do comissário.

Contudo, e antes de mais, importa apreciar a questão suscitada pela Recorrente e que consiste em saber se, sendo também o falecido L............. seu trabalhador, é aplicável o disposto no artigo 500º do Código Civil, isto é, se o falecido L...... é terceiro lesado.

Encontra-se provado que:

1.3. No dia 11 de Dezembro de 2010, cerca das 16 horas e 45 minutos, em ..., ocorreu um acidente no local onde decorria uma empreitada de construção do saneamento básico da freguesia de ..., em que era dona da obra, a empresa “Águas de Coimbra EEM”.

1.4. Esta empreitada estava a ser levada a cabo pela sociedade comercial “GG, S.A.”, ora primeira R., que era a empreiteira da referida obra.

1.5. O acidente referido decorreu na sequência da abertura de uma vala na via pública no troço do colector 229.4-229, com aproximadamente 3,5 metros de profundidade, mediante o uso de uma máquina giratória, a fim de ali ser levada a cabo uma intervenção no serviço de saneamento.

1.6. Do referido acidente foram vítimas JJ e II, que acabaram por falecer em consequência de um aluimento de terras, que os deixou soterrados a cerca de três metros de profundidade.

1.8. A equipa destacada para o local pela sociedade comercial “GG, S.A.” era constituída por quatro trabalhadores: JJ, II, MM e NN, sendo que o primeiro actuava como chefe de equipa.

1.9. Sendo que aos trabalhadores destacadas para o local, foi fornecida pela sua entidade patronal, ora 1ª ré, formação em higiene e segurança no trabalho, especialmente direccionada para os trabalhos a executar para o local.

1.10. A 1.ª Ré procedeu à prévia identificação dos riscos, conjuntamente com o chefe de equipa sinistrado e o outro chefe de equipa OO, (que no dia do acidente executou tarefa igual, na mesma obra noutra frente de trabalhos).

1.11. A 1ª ré determinou por intermédio dos seus técnicos responsáveis em obra, o entivamento da referida vala bem como da outra vala que no mesmo dia foi executada por outra brigada, o que foi comunicado a todos os trabalhadores da obra, entre os quais os indicados em 8.

1.12. Ordens que a ambos os chefes de equipa foram transmitidas e dadas quer aquando da planificação dos trabalhos, quer no dia anterior ao acidente e no próprio dia;

1.13. Sabia assim, o chefe de equipa, JJ, que as valas com profundidade superior a 1,2 metros, têm de ser, necessariamente, entivadas, não devendo entrar na vala, qualquer trabalhador, sem que a mesma esteja entivada e a entrada se faça por meio de uma escada.

1.14. O que também era do conhecimento dos demais trabalhadores referidos em 8.

1.15. A sociedade comercial “GG, S.A.” deslocou para o local da obra todos os meios para que a obra se realizasse em segurança, nomeadamente, painéis de entivação, uma máquina giratória para a sua colocação, máquina retroescavadora com dois baldes de diferentes dimensões para a abertura da vala, bem como camiões para moverem a terra para o local de realização dos trabalhos descritos anteriormente.

1.16. A vala foi aberta pelo JJ, a quem cabia a direcção dos trabalhos, ficando com uma dimensão não concretamente apurada entre 80cms a 150cms de largura, não tendo sido utilizado material de entivação apesar de disporem, junto ao local de trabalho, de painéis de entivação para a levar a cabo.

1.17. O JJ optou por não colocar os painéis de entivação apesar de a vala ter largura suficiente para poder ser entivada.

1.18. Abriu a vala com as dimensões aproximadas de 9 metros de comprimento, 3,5 metros de profundidade, não tendo em conta que o terreno podia ceder, por não ser suficientemente duro, se não tivesse sido entivado.

1.19. Apesar de não entivada o JJ determinou que o trabalhador LL o acompanhasse ao interior da vala para concluírem os trabalhos, com a colocação de pontos de nível para seguidamente aplicarem a conduta de saneamento.

1.20. O trabalhador LL recusou-se expressamente a entrar na vala por esta não se encontrar entivada e não reunir condições de segurança, o que comunicou ao P.......

1.21. O II, que se encontrava presente, sem para tal ter sido interpelado ou lhe ter sido solicitado que o fizesse pelo JJ ou por qualquer outro trabalhador, voluntariou-se para ir, descendo de imediato ao interior da vala, para o que escorregou pelas suas paredes laterais já que não estava colocada qualquer escada.

1.22. Tendo sido seguido pelo JJ que também entrou na vala.

1.23. No momento em que ambos se encontravam no interior da vala a procederem à colocação dos pontos, as terras laterais da vala desmoronaram-se para dentro desta, soterrando os dois trabalhadores que aí se encontravam.

1.29. O JJ e o II ao descerem à vala nas condições acima referidas desobedeceram às instruções dos técnicos de segurança e da sua entidade empregadora, que os haviam alertado para a necessidade de cumprimento de todos os procedimentos de segurança quanto à obra em causa.

1.30. O referido II, também sabia que não devia ter entrada na vala naquela situação; pois que tal instrução e ordem, também lhe tinha sido ministrada, quer em formação geral, quer nas instruções específicas dadas sobre a execução das valas, da obra em causa. (fls 106 a 118)

Assim, quer o JJ quer o II eram trabalhadores da Ré Recorrente, sendo que o primeiro chefiava uma equipa de que fazia parte o II, dando-lhe algumas ordens no sentido de executarem as tarefas que haviam sido determinadas pela entidade patronal dos dois.

Deste modo, verifica-se que a organização de estrutura da empresa Ré/Recorrente assentava, na execução deste tipo de tarefas, numa ordenação de um grupo de trabalhadores terem uma chefia, o que possibilitaria uma melhor organização do trabalho e  a obtenção de um resultado mais satisfatório. Aliás, como se demonstra pelos factos provados, uma outra equipa de trabalhadores da Ré também se mostrava a realizar uma outra tarefa e tinha também um trabalhador que chefiava esse conjunto de trabalhadores.

Ora, esta organização da estrutura do trabalho, não nos conduz à existência de uma quebra da ligação dos trabalhadores chefiados com a empresa de que dependem. A existência de uma chefia para um grupo de trabalhadores de uma determinada empresa não conduz a que o trabalhador desse grupo passe a depender do seu chefe em detrimento da direção da empresa.

Assim, ambos os trabalhadores (JJ e II) dependiam da Ré/Recorrente, existindo uma relação de comissão, sendo a comitente a Ré/Recorrente e comissários os falecidos JJ e II, não podendo este ser considerado como um terceiro lesado para efeitos previstos no artigo 500º do Código Civil.

O Acórdão sob recurso, com fundamento no artigo 500º do Código Civil, veio a condenar a Ré/Recorrente no pagamento de metade das seguintes quantias:

-“ €60 000,00 …, pelo direito à vida (duma pessoa com 40 anos de idade);

- €10 000,00 …,pelo dano não patrimonial ainda sofrido em vida pelo Luís Barros”.

Estes são danos próprios do falecido II, pelo que, não se verificando que o mesmo era um terceiro lesado, mas que estava numa situação de comitente/comissário com a Ré/Recorrente, não pode esta ser condenada no seu pagamento.

Por outro lado, o Acórdão recorrido, condenou também a Ré no pagamento das seguintes quantias, com fundamento no disposto nos artigos 496º e 495º do Código Civil:

-€10 000,00, pelo dano próprio de cada um dos irmãos

Estes montantes indemnizatórios que se reportam a danos reflexos que só são indemnizáveis reflexamente, isto é, desde que o II fosse considerado terceiro lesado, como vem sendo entendido por força do AUJ nº12/2014, publicado no DR, I série, de 8 de julho de 2014; os danos, apesar de serem próprios, encontram-se umbilicalmente ligados e condicionados pelo dano morte do II, então devem ser encarados como danos reflexos, por se configurarem como prejuízos mediatamente provocados pela morte de outrem, que afetam de modo exclusivo e pessoal os lesados. 

Deste modo, e por os Autores terem fundamentado a sua pretensão no disposto no artigo 500º do Código Civil, também estes danos não podem ser indemnizados pela Ré/Recorrente, o mesmo ocorrendo com a quantia de €1 465,00 referidos no ponto 37 do Acórdão, atento esse mesmo fundamento.

Pelo exposto, o recurso tem de proceder e o Acórdão recorrido deve ser revogado.

Em face do referido, e não se verificando que o II era um terceiro lesado pelo comissário, sendo ele próprio comissário, não podendo a Ré ser demandada com o fundamento na verificação de comissão e da qual resultou um dano em terceiro pelo comissário, o conhecimento das outras questões mostra-se prejudicado.

 
IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, consequentemente, absolve-se a Ré/Recorrente do pedido.


As custas ficam a cargo dos Recorridos.

Lisboa, 13 de março de 2018

 Lima Gonçalves (Relator)


  Cabral Tavares


Fátima Gomes

Assim, o aliás douto acórdão violou além do mais o disposto nos art° 483°, 487º,