Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
111/04.3TBMUR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORTE
CÔNJUGE
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
DEVER DE ASSISTENCIA
ALIMENTOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS
Doutrina: - Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2001, Vol I, 2ªedição, pág. 359.
- M. J. Almeida Costa, “ A Eficácia Externa das Obrigações. Entendimento da Doutrina Clássica”, in R.L.J., Ano 135.º, págs. 130/136.
- Vaz Serra, in R.L.J., Ano 105.º, 1972, págs. 45/46.
- Vaz Serra, in R.L.J., Ano 108.º pág. 185.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 495.º/3, 564.º, 566.º/3, 1268.º/1, 1672.º E 1675.º, 1676.º/1 E 3
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 16-4-1974 - ABEL DE CAMPOS (B.M.J. 236-138), DE 24-9-1998 - SOUSA GUEDES ( C.J., 3, PÁG. 177), DE 22-5-2001 - ARMANDO LOURENÇO ( REVISTA N.º 25/01), DE 27-9-2001 - TOMÉ DE CARVALHO (REVISTA N.º 2427/01), DE 6-2-2003 - OLIVEIRA BARROS ( REVISTA N.º 4318/02), DE 8-5-2008 - SERRA BAPTISTA (REVISTA N.º 726/08 – 2.ª SECÇÃO), DE 20-10-2009 -NUNO CAMEIRA (85/07.9TCGMR.G1), COMO OS DEMAIS SEM INDICAÇÃO DE ORIGEM CONSULTÁVEL EM WWW.DGSI.PT OU EM WWW.STJ.PT
Sumário : I - O dever de assistência entre os cônjuges compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (art. 1675.º do CC), estes traduzem a expressão do dever de alimentos que os cônjuges se devem quando vivem juntos.
II - Por isso, quando o cônjuge reclama indemnização por danos futuros referenciados à perda para sempre da contribuição do outro cônjuge, falecido em acidente de viação, mais não está a fazer do que a reclamar junto de terceiro, nos termos do art. 495.º, n.º 3, do CC, os alimentos, expressão da contribuição para os encargos da vida familiar, que podia exigir ao falecido marido e a que este estava vinculado.
III - Uma tal indemnização é sempre devida independentemente da efectiva necessidade do cônjuge, pois os cônjuges, no seio da vida familiar, não podem deixar de contribuir para os encargos da vida familiar na proporção das respectivas possibilidades (art. 1676.º, n.º 1, do CC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e BB, viúva e filha de CC que faleceu no dia 17-11-2001 em acidente de viação - colisão entre o veículo que conduzia com veículo que circulava em sentido contrário - demandou Gabinete Português da Carta Verde  deduzindo os seguintes pedidos:

- Condenação da ré a pagar  à autora AA a indemnização global de 259,247,60€, correspondendo 206.747,60 euros aos danos patrimoniais e 52.500 euros aos danos morais.
[ Assim discriminados: 200.000€ de danos futuros;  4.000€, valor comercial do veículo destruído sem reparação; 750€ de objectos pessoais que o sinistrado usava e transportava; 1.000€ de instrumentos musicais inutilizados; pela perda do direito à vida 22.500€ atento o valor devido global de 30.000€; 30.000€ pela dano moral próprio]
- Condenação da ré a pagar à A. BB a quantia de 37.5000€ a título de danos morais correspondendo 7.500€ à sua parte, enquanto herdeira, da indemnização pela perda do direito à vida e 30.000€ a título de danos morais]

2. O Tribunal da Relação do Porto, revogando a decisão de 1ª instância que julgara a acção improcedente, condenou, com base no risco que fixou em 50%, a ré a pagar os seguintes valores indemnizatórios:
- 69.936,00€ à A. AA.
- 13.750,00€ à A. BB.
- Sobre a quantia de 49.936,00€ (danos patrimoniais)  devida à A. incidem juros de mora  à taxa legal desde a citação.
- Sobre a importância restante de 33.750,00€ (danos morais) incidem juros de mora à taxa legal desde a data do acórdão (15-7-2009).
[ Discriminação dos valores: considerando que o marido da A. contribuiria com 2/3 do salário para o agregado familiar, o que representa 7.308,28€ anuais, até à idade de reforma de 65 anos, a que se segue o período de vida até aos 70 anos, o valor obtido seria de 96.000€, recebendo a autora 50%, ou seja, 48.000€; acresce-lhe 50% (498,80€) do valor despendido com o funeral (997,60€) e 50% (1437€) da metade dos demais danos patrimoniais no montante de 5.750€; a título de danos morais a A. aufere 50% de 25.000€ e 50% (7500€) da metade de 30.000€ de dano pela perda do direito à vida.
Assim,
48.000€+498,80€+1437€+12.500€+7500€=69.935,80€.
Quanto à autora BB, considerou o acórdão serem devidos 50% de 20.000€ atribuídos a título de danos morais e 50% (3750€) do valor pedido (7500€) a título de perda do direito à vida.
Assim, 10.000€+3.750€=13.750€

3. Recorreu a ré sustentado o seguinte:

- Que não ficaram provados factos suficientes que permitam indemnizar a recorrida AA por um alegado dano futuro de perda de alimentos/rendimentos pelo que o tribunal recorrido ao atribuir uma indemnização por tal dano fez  uma errada aplicação da previsão  dos artigos 342.º, 562.º, 563.º, 566.º/2, 2004.º do Código Civil e 516.º do C.P.C.
- Que, se assim se não entender, sempre o montante atribuído para indemnizar tal dano  se mostra excessivo, devendo, por equidade, ser reduzido para não mais de 16.000€ com o que aquele Tribunal violou o disposto no artigo 566.º/2 do Código Civil.
- Que não ficou provado que os instrumentos perdidos/destruídos no acidente fossem do falecido ou das recorridas pelo que o recorrente não poderia ser condenado a indemnizar a sua perda, violando, assim, o Tribunal recorrido, proferindo tal condenação, o disposto no artigo 562.º do Código Civil.
- Que, atendo o grau de responsabilidade  que lhe foi imputado, 50% do risco, o recorrente não poderá ser condenado em mais de 50% do valor das despesas do funeral pelo que o Tribunal recorrido ao condená-lo a pagar 100% de tais despesas violou o disposto nos artigos 483.º, 506.º/2 e 562.º do Código Civil.
- Que os juros de mora contados sobre a quantia arbitrada para indemnizar o dano de perda futura de alimentos só deverão vencer-se desde a prolação do acórdão recorrido e não desde a citação do recorrente, por tal quantia ter sido fixada de forma actualizada por referência àquela dita data, pelo que o tribunal recorrido ao mandar contá-los desde a citação  fez errada aplicação dos artigos 506.º /2 e 805.º do Código Civil.

4. Factos provados:

1- No dia 17-11-2001 faleceu, em virtude de acidente de viação de que foi vítima, CC, residente que foi na Rua S.J..., lote ... . ...º...,Viana do Castelo, no estado de casado , no regime de comunhão de adquiridos com a aqui AA , sem ter deixado testamento ou outra qualquer disposição de última vontade (A).
2- A aqui também A. BB é filha do falecido CC (B).
3- No dia 17-11-2001, pelas 13.10h, ao km 136,100 na IP 4, em palheiros, comarca de Murça, ocorreu um embate entre os veículos GE ..., de marca BMW e UJ- ...-..., de marca Opel Kadett (C).
4- O UJ era conduzido por CC, seu proprietário e seguia no sentido Murça-Mirandela (D).
5- O GE era conduzido por ..., seu proprietário, e circulava pelo IP 4 no sentido Mirandela-Murça (E)-
6- Do embate resultaram ferimentos no condutor do GE, DD (F).
7- E, para o condutor do UJ, CC, as lesões referidas no relatório de autópsia que foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida no dia 17-11-2001 (G).
8- No local do embate, a via tem duas hemi-faixas de rodagem com 3,6 metros cada uma (H).
9- A berma do lado esquerdo, no sentido Mirandela-Murça, tem 2,4 metros e a berma do lado direito, no sentido Murça-Mirandela, tem 2,00 metros (I).
10- Existe uma dupla linha longitudinal contínua no centro da via (J).
11- No sentido Mirandela/Murça  configura uma curva para a direita antes de uma recta de 300/400 metros (L).
12- Nessa recta existem duas faixas de rodagem no sentido em que circulava o GE (Mirandela/Murça)  e uma no sentido oposto (Murça/Mirandela) (M).
13- No local do embate, o limite de velocidade é de 90 km/h (N).
14- Na ocasião do embate, o tempo estava chuvoso e o piso escorregadio (O).
15- A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação relativamente ao veículo GE fora transferida para a Companhia de Seguros G..., através de contrato de seguro, titulado pela apólice  n.º CH- ----------- (P).
16- Nesse local a estrada apresentava uma inclinação ascendente, atento o sentido de marcha do UJ (Murça/Mirandela) (4).
17- Os veículos GE e UJ embateram violentamente com ambas as frentes (6).
18- O UJ ficou totalmente destruído (7).
19- O motor do UJ saltou  e ficou caído na berma do lado direito, considerado o seu sentido de marcha  (Murça/Mirandela) (8).
20- No local do embate, no sentido Mirandela/Murça, a estrada desce (9).
21- Na aproximação à curva acima referida no ponto 11, as faixas de rodagem referidas em 12, reduzem para uma só faixa (10).
22- Na recta referida em 11, alguns metros antes da curva aí referida, o condutor do GE procedeu à ultrapassagem de um veículo pesado (11).
23- À data do acidente, o falecido CC trabalhava na Telecom-PT Comunicações (15).
24- Auferia mensalmente 142.042$00 (16).
25- A que acresciam Esc. 14.952$00 mensais relativos às diuturnidades de antiguidade e função (17).
26- E Esc. 31.668$00 relativos a subsídio de alimentação (18).
27- E Esc. 156.993$00 (783,03€) de subsídio de Natal  e igual montante de subsídio de férias (19).
28- O falecido CC, quando do acidente, vivia com a mulher e filha, aqui AA (20).
29- A A. AA é funcionária da Câmara Municipal de Viana do Castelo, auferindo o vencimento líquido de 572,51€ (21).
30- A A. BB frequenta o 4º ano do Curso de Gestão do Património do Instituto  Politécnico do Porto (22).
31- A A. BB vivia e vive, exclusivamente, na dependência económica dos seus pais (22-A).
32- Com o funeral, a A. AA gastou 997,60€ (24).
33- O blusão, a camisola, a camisa, as calças, os sapatos e a roupa interior que o falecido CC envergava na altura do acidente, e ainda a que transportava nos sacos, ficaram inutilizados (25).
34- Tudo no valor de 750,000€ (26).
35- Os instrumentos musicais que o falecido CC transportava consigo, nomeadamente, umas cangas, uma guitarra e diversa aparelhagem e som ficaram inutilizados (27).
36- No valor de 1.000€ (28).
37- A viatura UJ ficou destruída, não sendo possível a sua reparação (29).
38- O valor comercial da viatura UJ à data do acidente era de 4.000€(30).
39- A perda do marido e pai provocou às AA inenarrável dor, sofrimento , angústia e desgosto (31).
40- E graves danos afectivos, morais, físicos e psíquicos que se irão prolongar no futuro (32)
41- O veículo  GE circulava pela hemi-faixa de rodagem , a da direita, atento o sentido de marcha (Mirandela/Vila Real) por ele seguido (33).
42- Num local em que aquela via se configura, atento aquele sentido, com uma subida (34).
43- E com uma recta (35).
44- Quando no sentido Vila Real/Mirandela surgiu o veículo UJ conduzido por CC (36).
45- Após o embate referido em 17, o UJ capotou por cima do GE (41 e 42).
46- E prosseguiu às cambalhotas, sempre pela hemi-faixa de rodagem, sentido Mirandela/Vila Real (43).
47- Imobilizando-se encostado à berma do lado direito, atento o sentido Mirandela/Vila Real (44).
48- Com a frente voltada para o lado de Mirandela (45).
49- A cerca de 32 metros de distância do local onde ficou imobilizado o veículo GE, cm a traseira da berma direita, encostada ao talude aí existente e em posição transversal em relação ao correr da via (46).
50- A maioria dos vestígios do acidente ficaram na hemi-faixa de rodagem do sentido Mirandela/Vila Real (47º).
51- Foi também na berma do lado direito, atento aquele dito sentido Mirandela/Vila Real, que ficaram diversos objectos transportados pelo UJ, como sacos de roupa e instrumentos musicais (48).
52- Os veículos sinistrados foram removidos do local do sinistro pela Auto de Murça (48-A).

Apreciando:

5. A autora AA, à data da morte do marido, com ele vivia, juntamente com a filha, em comunhão de vida, auferia vencimento mensal no montante de 572,51€ como funcionária da câmara municipal, auferindo o marido vencimento mensal de 708,50€ ( 142.042$00) a que acresciam 74,58€ de diuturnidades de antiguidade e função, 157,96€  de subsídio de alimentação, para além dos subsídios de Natal e de férias no montante de 783,03€.

6. O agregado familiar dispunha do rendimento conjunto da autora e do réu para fazer face às despesas familiares entre as quais se incluíam os gastos com a filha BB que vivia na dependência dos pais.

7. Por isso, a autora, privada do sustento proporcionado pelo marido, reclamou indemnização por danos patrimoniais emergentes da sua morte, na previsão do limite normal da vida do falecido, que fixou em 200.000€, pressupondo uma contribuição para o agregado familiar de 80% do rendimento total do falecido.

8. A disposição legal que ao caso importa - o artigo 495.º/3 do Código Civil - prescreve que
3- Têm igualmente direito a indemnização  os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

9. Este preceito reconhece o direito de indemnização a terceiros, ou seja, aqueles a quem o lesado prestava ou podia ser obrigado a prestar alimentos, constituindo disposição excepcional e, por conseguinte, não traduzindo afloramento do princípio da eficácia externa das obrigações.

10. Uma tal orientação - a que admitisse tal efeito - levaria demasiado longe a responsabilidade de terceiros, sendo até susceptível, por isso mesmo, de entravar a actividade negocial. A esta consideração de razoabilidade acresce, no plano do direito constituído, a verificação de que, em vários preceitos, o nosso legislador parece  haver aderido ao conceito de eficácia relativa dos direitos de crédito […]. Trata-se , contudo, de uma conclusão em tese geral. A própria lei, no artigo 495.º/3, consagra a doutrina do efeito externo no âmbito restrito e bem demarcado dos credores de uma relação obrigacional de alimentos, pois confere-lhes o direito de serem indemnizados pelo autor da lesão corporal que atingiu o devedor, especialmente se lhe causou a morte, impedindo-o de cumprimento. Juntam-se as situações em que o terceiro impediu o cumprimento da obrigação por ter agido com abuso do direito - o qual actua, portanto, como decisivo critério de imputação objectiva do dano na esfera da presente matéria” (“ A Eficácia Externa das Obrigações. Entendimento da Doutrina Clássica” por M. J. Almeida Costa, R.L.J., Ano 135.º, págs. 130/136).

11. O direito de indemnização é reconhecido não apenas àqueles a quem o lesado prestava alimentos no cumprimento de uma obrigação natural como ainda àqueles que “podiam exigir alimentos ao lesado” o que inculca a ideia de que, para ser reconhecido tal direito, basta ter a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito a alimentos (Ac. do S.T.J. de 16-4-1974  - Abel de Campos - B.M.J. 236-138), entendimento reafirmado em jurisprudência ulterior (cf. Ac. do S.T.J. de 24-9-1998 - Sousa Guedes - C.J.,3, pág. 177, Ac. do S.T.J. de 22-5-2001 - Armando Lourenço - revista n.º 25/01, Ac. do S.T.J. de 27-9-2001 - Tomé de Carvalho - revista n.º 2427/01. Ac. do S.T.J. de 6-2-2003 - Oliveira Barros - revista n.º 4318/02).

12. Com efeito, e como se salienta no Ac. do S.T.J. de 20-10-2009 (Nuno Cameira) (85/07.9TCGMR.G1), o reconhecimento e atribuição de alimentos àqueles que os podem exigir não “ depende da prova em concreto de que, ao tempo da verificação do facto danoso, estivessem a recebê-los” sendo “ suficiente, para tal efeito, a demonstração de que, à data do facto danoso, se estava em situação de legalmente exigir os alimentos”.

13. Afigura-se, vistas as coisas por diversa perspectiva, que, se alimentos estavam efectivamente a ser prestados, não se há-de suscitar dúvida alguma quando o terceiro os reclama, sendo suficiente a prova de que ele é efectivamente o titular do direito a alimentos ou a pessoa a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

14. Nos casos em que o interessado não recebia nenhuma prestação do lesado, então é que naturalmente se justifica que o interessado demonstre, não apenas que detém a qualidade legal que lhe permite exigir alimentos ao lesado como ainda que deles efectivamente carece.

15. Nestes casos revela-se a dificuldade que pode resultar do facto de não se conseguir provar que o interessado não carecia de alimentos, mas podendo, no entanto, ulteriormente verificar-se essa necessidade.

Sobre este ponto refere Vaz Serra que

assim, se o lesado não prestava alimentos, mas podia vir a ser obrigado a prestá-los  (como sucede com o filho para com os pais), pode o titular do direito a alimentos exigir a indemnização dos alimentos que o lesado teria tido de prestar-lhe se fosse vivo. Isto pode dar lugar a dificuldades, por não ser fácil determinar se, no futuro, viria a surgir uma situação que legitimasse a exigência de alimentos; a dificuldade é de resolver nos termos do n.º2 do artigo 564.º.
O artigo 564.º , nº2 dispõe  que, na fixação da indemnização, pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis. Portanto, se o lesado não prestava alimentos, mas podia vir a ser obrigado a prestá-los, pode o tribunal fixar a indemnização atendendo aos danos futuros desde que sejam previsíveis.
Pode, todavia, acontecer que não tenha o tribunal elementos para determinar se os danos são previsíveis, variáveis como podem ser de futuro as circunstâncias: pode, por exemplo, não se saber, nem poder prever-se, se os descendentes ou os ascendentes do lesado imediato poderão vir a carecer de alimentos.
Neste caso, não sendo previsíveis os danos futuros, não pode o tribunal fixar uma indemnização desses danos.
Mas isto não significa que eles, se vierem a produzir-se, não sejam reparáveis: pode, então, exigir-se a sua indemnização.
A esta solução não obsta a regra de que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que ‘ o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso (artigo 498.º/1): aquele que em qualquer momento vier a carecer dos alimentos que o lesado mediato lhe deveria se fosse vivo só nesse momento tem conhecimento do direito que lhe competir (isto é, do direito de indemnização por privação dos alimentos) e é a partir de tal momento que corre o prazo de prescrição de três anos” (R.L.J., Ano 105.º, 1972, pág. 45/46).

Por isto ainda, e como refere Vaz Serra,

o artigo 495.º,n.º3, parece dever considerar aplicável, não só quando se trate de pessoas que, ao tempo da lesão, podiam exigir alimentos ao lesado, mas também  quando se trate de pessoas que ulteriormente teriam um tal direito se o lesado fosse vivo.
O montante da indemnização não  pode exceder a medida dos alimentos que o lesado teria sido obrigado a prestar, se fosse vivo, pelo que também no seu cálculo deve atender-se à duração provável que a vida deste teria tido.
Resulta do exposto que o n.º3 do artigo 495.º não significa que tenham direito a indemnização de quaisquer danos patrimoniais aqueles que tenham direito a alimentos contra o lesado, mas só que estes têm direito de indemnização do dano de perda de alimentos” […] Não pode, portanto, entender-se que essa disposição legal concede às pessoas que podem exigir alimentos ao lesado o direito de indemnização de todos e quaisquer danos patrimoniais que lhes hajam sido causados: concede-lhes apenas o direito de indemnização do dano de perda de alimentos (que o lesado, se fosse vivo, teria de prestar-lhes(R.L.J., Ano 108.º pág. 185)

16. No caso vertente, a autora AA vivia em comunhão de vida com o marido e, por isso, estavam os cônjuges reciprocamente  vinculados pelo dever de assistência que compreende a obrigação de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar (artigo 1672.º e 1675.º/1 do Código Civil).

17. O dever de contribuição  para os encargos da vida familiar não é mais do que a forma tomada pelo dever de prestação de alimentos quando os cônjuges não vivem separados (Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2001, Vol I, 2ªedição, pág. 359)

18. Esse dever de contribuição, se não for prestado, pode ser exigido por qualquer dos cônjuges a fim de lhe ser directamente entregue a parte dos rendimentos ou proventos do outro que o tribunal fixar (artigo 1676.º/3 do Código Civil).

19. O dever de contribuir para os encargos da vida familiar, expressão do dever de alimentos, que encontra assento na imperatividade do regime legal, não pode deixar de ser reconhecido e atribuído se algum dos cônjuges incorrer em incumprimento.

20. Neste caso não se trata sequer de uma obrigação a que o cônjuge se possa eximir com o argumento de que o outro cônjuge deles não carece, apenas podendo ser discutido, a existir diferença de rendimentos ou outras formas de contribuição patrimonial (v.g. prestação de serviços domésticos que não pode deixar de assumir expressão de ordem patrimonial: ver artigo 1676.º/1 do Código Civil ), a prestação que deve ser fixada ao cônjuge inadimplente.

21. Não há nenhum elemento de facto que nos permita concluir que o falecido marido da autora não contribuía com os seus ganhos para os encargos da vida conjugal; bem pelo contrário, atento os ganhos de cada um e vivendo o casal em comunhão de vida, o entendimento contrário impõe-se e foi pressuposto pelas partes e pelo acórdão da Relação do Porto.

22. Aquilo em que não houve acordo foi na questão de saber qual a medida da contribuição do marido da autora para os encargos da vida familiar; alegou a autora que essa medida era de 80% do vencimento, mas tal factualidade não se provou ( ver resposta negativa ao quesito 23º onde se perguntava se “ o vencimento do falecido CC se esgotava nas despesa do agregado familiar com excepção de 20%?).

23. É que da resposta a esse quesito não é inferível que o falecido marido da A. não prestava nenhuma contribuição para o agregado familiar e, ainda que tal sucedesse - o que temos por absurdo e apenas referimos por mera necessidade argumentativa - isso não obstaria a que o Tribunal, porque o cônjuge a tal contribuição está vinculado, fixasse a medida da perda patrimonial decorrente da impossibilidade de prestação dessa contribuição.

24. Impunha-se ao Tribunal - o que, a nosso ver,  o Tribunal da Relação acertadamente fez - fixar em juízo de equidade (artigo 566.º/3 do Código Civil) o valor a atribuir à autora pela perda de rendimentos futuros derivados da morte do marido, decorrentes da privação de alimentos que aquele, não fora a ocorrência do evento, não poderia deixar de lhe prestar (artigos 495.º/3 e 564.º do Código Civil); ver Ac. do S.T.J. de 8-5-2008 (Serra Baptista) (revista n.º 726/08 - 2º secção) como os demais sem indicação de origem consultável em www.dgsi.pt ou em www.stj.pt

25. Não está questionado o modo de cálculo utilizado pela Relação e, à luz do juízo de equidade, perante vencimentos modestos, é de considerar que a maior parte do vencimento se mostra necessária para cobrir as despesas com os encargos da vida familiar.

26. A necessidade de contribuição vale para toda a vida útil do cônjuge e, por isso, também se afigura correcto o entendimento da decisão recorrida.

27. Sem dúvida que a pensão de sobrevivência contribui para atenuar a perda de rendimentos, mas não para diminuir a indemnização que seja devida; tal afirmação não significa que o valor de alimentos perdidos não seja aquele que foi encontrado que corresponde ao efectivo prejuízo da autora.

28. Quanto à condenação no pagamento  do prejuízo derivado da perda de instrumentos musicais, o Tribunal da Relação não teve dúvida em considerar que tais bens eram pertença do marido e pai dos AA isto a partir da realidade de facto que foi a de o marido da A. os transportar consigo, realidade evidenciada pela motivação dada pelo Tribunal (fls. 661), onde se salienta que CC tocava em vários grupos musicais, deslocando-se na data do acidente a Mirandela precisamente para uma actuação musical. Tal ilação afigura-se correcta desde logo porque o possuidor goza da presunção da titularidade do direito (artigo 1268.º/1 do Código Civil) não tendo sido nos autos posto em causa que tais instrumentos, assim como as roupas que envergava, igualmente inutilizadas, não fossem coisas próprias do sinistrado CC.

29. No que respeita às despesas com o funeral, o valor que a Relação considerou foi de 50%, como se pode constatar da síntese anteriormente apresentada em 3 supra.

30. Quanto a juros, o acórdão da Relação, no que respeita aos danos patrimoniais, não os fixou considerando o valor indemnizatório reportado à data do acórdão o que passaria por considerar um valor de ganho actualizado a essa data e, por isso, são devidos desde a citação.

Concluindo:
I- O dever de assistência entre os cônjuges compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (artigo 1675.º do Código Civil);  estes traduzem a expressão do dever de alimentos que os cônjuges se devem quando vivem juntos.
II- Por isso, quando o cônjuge reclama indemnização por danos futuros referenciados à perda para sempre da contribuição do outro cônjuge, falecido em acidente de viação, mais não está a fazer do que a reclamar junto de terceiro, nos termos do artigo 495.º/3 do Código Civil, os alimentos, expressão da contribuição para os encargos da vida familiar, que podia exigir ao falecido marido e a que este estava vinculado.
III- Uma tal indemnização é sempre devida independentemente da efectiva necessidade do cônjuge, pois os cônjuges, no seio da vida familiar,  não podem deixar de contribuir para os encargos da vida familiar na proporção das respectivas possibilidades (artigo 1676.º/1 do Código Civil).

Decisão: nega-se a revista.
 
Custas pelo recorrente
 
Lisboa, 4-5-2010
 
(Salazar Casanova)
 
(Azevedo Ramos)
 
(Silva Salazar)