Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
582/11.1TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO AUTOMÓVEL
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
DIREITO ESTRADAL - TRÂNSITO DE VEÍCULOS / REGRAS ESPECIAIS DE SEGURANÇA / CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL.
Doutrina:
- Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, p. 212.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, N.º1, 342.º, N.º1.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGO 81.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 292.º.
D.L. N.º 291/2007, DE 21-07: - ARTIGO 27.º, N.º1, AL. C).
D.L. N.º 522/85, DE 31-12.
D.L. Nº 72/2008, DE 16 DE ABRIL (REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO): - ARTIGOS 94.º, N.º2, 137.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 09-01-1997, NO BMJ 463, P. 211;
-DE 28-11-2013, PROC. N.º 995/10.6TVPRT.P1.S1.
*
-AUJ N.º6/2002.
Sumário :
I - Nos termos do art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-07, o sujeito passivo da acção de regresso fundada em alcoolemia é o condutor “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

II - A expressão “que tenha dado causa ao acidente” restringe o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente e pressupõe a responsabilidade civil subjectiva fundada em culpa deste; logo, exclui-se naturalmente a responsabilidade objectiva ou pelo risco.

III - Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

IV - A actuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjectivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida que fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica.

V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.

VI - A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

VII - O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre, nem poderia cobrir, os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve, porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (arts. 81.º, n.ºs 1 e 2, do CEst e 292.º do CP), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280.º, n.º 1, do CC).

VIII - Aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condiçãoou pressupostodo direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e, com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.

Decisão Texto Integral:
Acordam no STJ:

RELATÓRIO



No dia 19-01-2009, cerca das 22,25 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada da …, junto ao nº…, em Setúbal que consistiu no despiste do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matricula …-…-XQ propriedade de AA, e conduzido, no sentido Este-Oeste, por BB, por este haver perdido o controle da direcção, ter embatido com a roda da frente direita no lancil do passeio e, depois de subir para esse passeio, embatido contra o prédio nº … daquela artéria e, seguidamente, num poste de madeira, onde se imobilizou.

De tal acidente resultaram lesões que determinaram a morte de AA, proprietário do veículo e que nele se fazia transportar e danos materiais no referido prédio.

Apurou-se que BB, que era mecânico, conduzia, na altura, com uma TAS de 1,12 g/l e, tendo a CC - Seguros Gerais, SA – para quem o proprietário do veículo …-…-XQ transferira a respectiva responsabilidade civil automóvel - indemnizado o cônjuge sobrevivo do falecido AA pelos danos decorrentes da sua morte com a importância de € 40.000,00 euros e o proprietário do imóvel danificado com € 1.920,00 euros, intentou acção de processo ordinário contra BB e contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de € 41.920,00 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento, com fundamento no direito de regresso previsto no art. 27º nº1 do DL nº 291/2007 de 21 de Agosto, alegando, em resumo, que o acidente foi causado pela alcoolemia do Réu e que este, como mecânico, não beneficiava de qualquer seguro de garagista.

A acção foi contestada e, no despacho saneador, foi o FGA absolvido da instância por ilegitimidade passiva.

Seleccionada a matéria de facto relevante, assente e controvertida, prosseguiu a acção a respectiva tramitação, vindo a ser proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo o Réu do pedido, fundamentalmente por falta de demonstração do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente.

A Autora apelou para a Relação de Évora, mas sem êxito, já que a sentença recorrida foi confirmada.

Interpôs então revista excepcional, invocando oposição do acórdão recorrido com outros acórdãos das Relações do Porto e de Coimbra que, relativamente à mesma questão de direito, entenderam que o direito de regresso previsto no art. 27º nº1 do DL nº 291/2007 prescinde do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, bastando-se com uma TAS proibida.

A revista excepcional foi admitida pela Formação referida no art. 672º nº3 do NCPC.

E, sanadas as irregularidades processuais decorrentes da omissão de junção das alegações de recurso de revista, foi proferido o despacho liminar e, de seguida, corridos os vistos.

Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso cujo objecto a recorrente sintetizou nas conclusões 17ª e segs com que finalizou a sua alegação e que, para melhor compreensão, se transcrevem:

17. Os presentes autos fundam-se no exercício, pela Seguradora recorrente, do direito de regresso sobre o condutor de veículo automóvel, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 27° n." 1 ai c) do Decreto lei 291/2007.

18. Da factualidade alegada e considerada provada, resultou que o acidente de viação protagonizado pelo R., na qualidade de condutor do veículo seguro na A., ocorreu por culpa deste que, para além de violar as mais elementares regras estradais, conduzia com uma taxa de álcool do sangue superior à legalmente permitida (1, 12g/I).

19. Pretendia, assim, a Seguradora recorrente obter a condenação do R. no reembolso das quantias indemnizatórias por si liquidadas para reparação dos danos causados como consequência directa e necessária do acidente, exercendo o direito de regresso que lhe assiste nos termos do disposto no art. 27° n. 1 al c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto.

20. A única questão que se coloca à douta apreciação do Venerando Tribunal "ad quem" resume-se a apurar se para que a Seguradora recorrente possa obter o ressarcimento das quantias indemnizatórias por si despendidas por força da ocorrência do sinistro, e para que se tenha por preenchidos os pressupostos contidos no art. 27° nº 1 al. c) do Decreto-lei 291/2007, é ou não necessário alegar e provar factos que integrem o nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e a produção do acidente.

21. O douto acórdão ora posto em crise considerou que seria impreterível fazer a prova o nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e a ocorrência do acidente, para se possa haver lugar ao reconhecimento do invocado direito de regresso.

22. Contudo, e sempre com o devido respeito, a Seguradora Apelante está convicta que nos termos do actual regime legal tal interpretação não encontra sustentação legal.

23. Dispõe o art. 27º nº 1 al c) do Decreto-lei 291/2007, sob a epígrafe "Direito de regresso da empresa de seguros" que: "Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos"

24. Da interpretação do aludido preceito decorre, pois, que a Seguradora terá direito de regresso quando se preencham dois pressupostos cumulativos:

a. O condutor tenha dado causa ao acidente, e

b. Conduza com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admitida.

25. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, a aludida disposição legal não faz qualquer exigência em termos de demonstração de nexo causal entre a condução com taxa de alcoolemia legalmente proibida e a ocorrência do acidente.

26. Assim o tem entendido a nossa mais recente Jurisprudência, de onde se destaca, a título de mero exemplo, o vertido no Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/12/2011, no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/05/2012, bem como no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/09/2012, todos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt,

27. Pois bem, reportando-nos ao caso em apreço, e sustentando a tese supra explanada, temos que a Seguradora recorrente logrou alegar e provar que o recorrido deu causa ao acidente.

28. Logrou igualmente a Seguradora recorrente demonstrar que o recorrido conduzia com uma TAS de 1,12 gl, ou seja, superior ao legalmente permitido.

29. Estão, assim, inexoravelmente preenchidos os requisitos legalmente exigidos para que se reconheça à Seguradora recorrente o direito de regresso por si invocado nos presentes autos e, portanto, que se condene o R. no pagamento da quantia a esse título peticionada.

30. Estando a Seguradora"'-recorrente dispensada de alegar e – provar - a existência de"nexo de '"causalidade entre o estado de etilização do condutor e a ocorrência do acidente de viação.

31. Ao contemplar diverso entendimento, a douta sentença ora posta em crise incorreu em manifesta violação do disposto no art.27° nº 1 ai c) do Decreto-lei 291/2007.

32. O douto acórdão proferido deverá, pois, ser revogado nos termos supra expendidos, na medida em que incorreu em verdadeira violação do disposto no arts.27° nº 1 al. c) do Decreto-lei 291/2007.

Conclui, pedindo a revogação do acórdão recorrido com a condenação do Réu nos termos peticionados.


MATÉRIA DE FACTO

As instâncias mostram-nos como provados os seguintes factos:


A) -No dia …/01/2009, cerca das 22H25, na estrada da …, junto ao n.º .., na freguesia …, concelho de Setúbal teve lugar um acidente de viação em que foi interveniente o veiculo automóvel ligeiro de passageiros, marca Toyota, modelo MR2, matricula …-…-XQ propriedade de AA, por este tripulado e conduzido por BB, ora Réu.


B) - O proprietário do veiculo …-…-XQ, AA, abastecia-o de combustível, óleo água e demais consumíveis, assegurando a respectiva higiene, manutenção e reparações, celebrando o contrato de seguro relativo à circulação, pagando os respectivos prémios e liquidando o correspondente imposto de circulação.


C) - AA transferiu a responsabilidade emergente dos danos causados pela circulação rodoviária do …-…-XQ para a Autora CC – Seguros Gerias, SA., através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….


D) – O condutor do respectivo veículo, o Réu BB, exerce a profissão de mecânico de automóvel, dedicando-se, habitualmente, à actividade de reparação de veículos motorizados.


E) – A via identificada em A) assegura a circulação em ambos os sentidos, encontrando-se repartida em duas faixas de rodagem.


F) – No local do sinistro e atento o sentido de marcha a faixa de rodagem perfaz a largura total de 6,20, incluindo as linhas contínuas divisórias da berma sendo ladeado por edifícios.


G) – No local do sinistro a via configura uma recta, com boa visibilidade.


H) – Era de noite, estava a chover e o local encontrava-se dotado de iluminação pública.


I) – A velocidade permitida no local é de 50 km/hora.


J) – No dia, hora e local do acidente o veículo …-…-XQ percorria a Estrada da … no sentido Este/Oeste.


L) -O veículo circulava naquela estrada tendo o condutor perdido o controlo da direcção do mesmo.


M) – No Hospital de S. Bernardo em Setúbal, cerca da 1.00 hora do dia 20/01/2009, foi efectuada uma colheita de sangue para análise toxicológica ao 1.º Réu.


N) – Como consequência do sinistro em causa nos autos, o passageiro da viatura …-…-XQ, AA sofreu lesões corporais que resultaram na sua morte, ainda no local do acidente.


O) – A Autora liquidou a DD, única herdeira da vítima a quantia de € 40.000,00.


P) – A Autora indemnizou a “EE, Ldª”., dona do imóvel, mediante o pagamento do montante global de € 1.920,00.


Q) – Nas circunstâncias referidas em J) e após ter circunscrito uma curva à direita, o veículo embateu com a roda anterior direita num lancil e após subiu o passeio e embateu violentamente contra o prédio n.º … daquela rua.


R) – E contra um poste de madeira, local onde se imobilizou.


S) – O condutor do veículo, Réu, foi de imediato conduzido, numa ambulância, ao Hospital de S. Bernardo, em Setúbal.


T) – Cinco meses depois da recolha de sangue para análise toxicológica a PSP de Setúbal solicitou ao IML que fosse realizado o teste de alcoolemia.


U) – Tendo o resultado do exame toxicológico ao sangue revelado que o condutor ora Réu, cerca de duas horas após o sinistro apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,12 g/l.



DIREITO



Como flui das conclusões da recorrente, o objecto do presente recurso circunscreve-se à questão de saber se o direito de regresso previsto no art. 27º nº1 do DL nº 291/2007 de 21 de Agosto implica a prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente ou, ao invés, tão só da taxa de alcoolemia do demandado no momento do acidente.

Apreciando esta questão, o Tribunal da Relação de Évora entendeu que o nexo de causalidade entre a TAS e o acidente era um dos pressupostos do direito de regresso, logo, deveria ser alegado e demonstrado pela seguradora, como facto constitutivo do seu direito (art. 342º nº1 CCivil), sob pena de improcedência da acção.

Resposta diversa deram à questão os acórdãos-fundamento das Relações do Porto e de Coimbra, para quem, à luz do preceito legal citado, o nexo de causalidade não integra os pressupostos do direito de regresso, bastando a prova da TAS superior à legalmente permitida.

Esta questão já fez correr rios de tinta na vigência da Lei anterior – DL nº 522/85 de 31 de Dezembro – tendo a jurisprudência contraditória que então foi produzida dado azo a um acórdão uniformizador que, com a alteração legislativa entretanto verificada, parece ter voltado à ordem do dia.

Atentemos, porém, no preceito objecto de interpretações contraditórias.

Consta ele do art. 27º nº1-c) do DL nº 291/2007 de 21 de Agosto e tem a seguinte redacção:

“1 — Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:

a)

b)

c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”


O sujeito passivo da acção de regresso fundada em alcoolemia é, portanto, o condutor “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

A expressão “que tenha dado causa ao acidente” restringe o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente.

Quer dizer: o direito de regresso da seguradora contra o condutor responsável pressupõe a responsabilidade civil subjectiva fundada em culpa deste; logo, exclui-se naturalmente a responsabilidade objectiva ou pelo risco.

Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

Que é de 0,5/litro de sangue (art. 81º nº2 do Cód Estrada).

Com efeito, depois de no nº1 prescrever que

é proibido conduzir sob influência de álcool…”,

o nº 2 do art. 81º citado prescreve que

considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”.


A lei presume, pois, iuris et de iure, que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool.

Assim, os pressupostos cumulativos do direito de regresso previsto no art. 27º nº1-c) do DL nº 291/2007, são a responsabilidade civil subjectiva do condutor responsável e a condução com TAS superior à legalmente permitida, deste facto se inferindo (presumindo) ex vi legis que o condutor está sob a influência do álcool…

A actuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjectivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida.

E esta dupla ilicitude fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica (a que se concretiza na culpa pela eclosão do acidente e a que decorre da condução com TAS proibida).

Este duplo juízo nos planos da ilicitude e da culpa sobre a conduta do condutor deve subsistir autónomo na apreciação do nexo de causalidade entre o acidente e os danos, inquestionável pressuposto da responsabilidade civil subjectiva.

O nosso problema consiste apenas em determinar se, à luz da regulamentação do direito de regresso introduzida pelo DL nº 291/2007, se exige o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos.

O acórdão recorrido entendeu que sim, com uma fundamentação que, essencialmente, se reconhece no Ac. Uniformizador nº 6/2002.

Diversamente, a recorrente louva-se na alteração legislativa verificada com a revogação do DL nº 522/85 pelo DL nº 291/2007 e que, no que concerne ao direito de regresso, se concretizou na alteração substancial da respectiva disposição legal com a consequente caducidade do Acórdão Uniformizador.

Sintetizando: na vigência do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro, o respectivo art. 19º nº1-c) – segundo a qual satisfeita a indemnização, o segurador tem direito de regresso e/ou reembolso, conforme os casos, nos termos da lei geral e ainda contra o condutor se este tiver agido sob a influência do álcool – foi interpretado pelo Ac. Uniformizador no sentido de que tal alínea “exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”,

Logo, da expressão “condução sob a influência do álcool” depreende-se que deve ser demonstrado que a ingestão de bebidas alcoólicas afectou a capacidade de condução e que, por isso e como consequência dessa influência, a dita condução se tornou perigosa, a ponto de causar o acidente.

O álcool seria, pois, nesta perspectiva, a causa (remota) do acidente porque teria provocado actuações, atitudes, comportamentos, condutas (agir sob a influência do álcool) inadequadas para a condução e determinantes do sinistro.

A proibição de condução com TAS superior a certo limite – a partir do qual a lei presume ser a mesma influenciada pelo álcool – é uma norma de perigo abstracto (ou de protecção abstracta).

Por via dessa influência objectiva (porque assente em dados científicos) esse perigo abstracto concretiza-se, materializa-se, em actuações concretas do condutor (v.g, velocidade excessiva, dificuldade ou impossibilidade de percepção de obstáculos, violação de regras de trânsito como o circular pela esquerda, em zig-zag, não parar ao sinal de stop, etc, etc), estas sim, as verdadeiras causas do acidente.

A condução sob a influência do álcool configura, pois, um perigo real, se bem que genérico e abstracto, implicando uma perigosidade ex ante da conduta para os bens jurídicos protegidos (vida, integridade física, património) que se substancia depois naquelas concretas e típicas actuações violadoras do dever de cuidado.

E, à luz da redacção do art. 19º do DL nº 522/85 citado e do Acórdão Uniformizador nº 6/2002, era essencial relacionar estas concretas actuações, em termos de consequência adequada, com o nível de concentração de álcool no sangue e com os reflexos que este implica no comportamento e nas capacidades psico-motoras do condutor.

Revogado o DL nº 522/86 pelo DL nº 291/2007, o art. 27º nº1-c) deste, actualmente em vigor e aplicável ao caso em apreço, prevê quanto ao direito de regresso, que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida…”

Ou seja: o requisito da alcoolemia foi com esta última alteração legislativa, enunciado em termos diversos, desconsiderando-se agora a influência (isto é, a relação de causa e efeito) do álcool na condução.

Independentemente dessa influência – que o art. 81º nº2 do Cód. Estrada presume absolutamente quando igual ou superior a 0,5g/l – o direito de regresso basta-se agora – para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva e do cumprimento da respectiva obrigação de indemnizar - com uma TAS superior à legalmente permitida.

Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se in concreto a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da actuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver actuado com culpa – e obviamente se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjectiva – possa ser demandado em acção de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado.

Escreveu-se a propósito deste preceito no Ac deste STJ de 28-11-2013 (Proc. nº 995/10.6TVPRT.P1.S1) de que foi Relator o Exº Cons. Silva Gonçalves:

“O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) - cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.


Porque, como se referia no Ac deste STJ de 09-01-1997 – no qual, além do mais e no âmbito da controvérsia sobre a questão do nexo de causalidade na vigência do DL nº 522/85, se entendeu que a procedência do direito de regresso da seguradora previsto no art. 19º-c) desse diploma implicava a prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente a efectuar pela Seguradora –

se realmente a lei quisesse dispensar o nexo de causalidade, mais clara ela seria se dissesse algo como: «contra o condutor, se este conduzir com álcool» (cfr. BMJ 463, p. 211).


E o certo é que com a revogação do DL nº 522/85 citado pelo DL nº 291/2997, a nova regulamentação do direito de regresso da seguradora no contrato de seguro automóvel obrigatório designadamente em matéria de alcoolemia sofreu, como vimos, uma alteração substantiva cujo alcance não pode ser menosprezado e revela que o legislador quis dispensar o nexo de causalidade; parafraseando o acórdão supra-citado, com a alteração legislativa operada pelo DL nº 291/2007, o legislador quis mesmo dispensar o nexo de causalidade quando exigiu para a procedência do direito de regresso, que o condutor conduzisse com álcool, referenciando este a um dado científico – a TAS – objectivamente determinável e controlável.

Com efeito, ele não podia ignorar a controvérsia gerada na vigência do DL nº 522/85 e o ponto final que lhe foi posto pelo AUJ nº 6/2002.

E então de duas, uma: se era seu propósito manter essa solução, di-lo-ia expressamente, mantendo a redacção do texto legal e esclarecendo mesmo o seu sentido de acordo com a interpretação que lhe foi dada pelo AUJ; algo como, por ex, se tiver agido sob a influência do álcool e por isso tiver dado causa ao acidente.

Não o fez.

Antes, curou de alterar o texto legal, expurgando-o da expressão “agir ou conduzir sob a influência do álcool” e substituindo-a por outra, mais objectiva “conduzir com TAS igual ou superior à legalmente admitida”.

É que, a exigência típica de conduzir sob a influência deve interpretar-se no sentido de que a ingestão de álcool (ou drogas) influa efectivamente na condução, afectando a capacidade do sujeito para conduzir com segurança, tornando a condução perigosa ex ante, potencialmente lesiva para a vida ou integridade dos demais participantes do tráfego; só assim se concretizaria a influência do álcool na condução, competindo o respectivo ónus de alegação e de prova à seguradora.

Com o art. 27º do DL nº 291/2007, a questão foi simplificada: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializava a influência do álcool na condução e que, como se disse, eram relevantes na vigência do DL nº 522/85 na interpretação do AUJ nº 6/2002.

Como escreve Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, a propósito desta alteração legislativa:

o legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício” (cfr. O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, p. 212).


A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve.

E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art. 81º nº1 e 2 do Cód Estrada e 292º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280º nº1 CCivil).

Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.

E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.

A concentração de álcool no sangue para alem de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.

O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.

Assim sendo, podemos concluir, tal como o Ac STJ de 28-11-2013 citado, que o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre o grau de TAS do condutor e o acidente: aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.

Logo, tendo o acórdão recorrido julgado improcedente a acção de regresso intentada pela recorrente apenas por falta de prova, por esta, do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente - já que os demais elementos constitutivos do direito de regresso se verificam - e entendendo nós que a procedência do direito de regresso da seguradora, tal como se encontra actualmente configurado no DL nº 291/2007, não exige tal nexo de causalidade, bastando-se com a prova da TAS superior à legalmente permitida, não pode tal acórdão subsistir, impondo-se a sua revogação.

Repetimos: a questão releva, a nosso ver, como se disse, no âmbito do contrato de seguro e não no da responsabilidade civil extracontratual.

Com efeito, um dos elementos essenciais do contrato de seguro é o risco, definido como

o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro” (cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, p. 127).


A noção de seguro supõe a de risco, isto é, a exposição à eventualidade de um dano à sua pessoa ou ao seu património e, no caso do seguro de responsabilidade civil, o objecto último da protecção é o património do próprio segurado contra a eventualidade do nascimento de obrigações de indemnização de terceiros lesados por danos emergentes da circulação de veículos automóveis; como prescreve o art. 137º da Lei do Contrato de Seguro (DL nº 72/2008 de 16 de Abril), “no seguro de responsabilidade civil o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros”.

Ora, é inquestionável o agravamento do risco de acidentes quando a condução tem lugar com uma TAS superior a certo limite, isto é, sob o efeito do álcool e, por isso, é proibida.

Logo, como já se disse, o risco (agravado) de acidentes nesse caso nunca poderia ser coberto pelo contrato de seguro.

O agravamento do risco de acidentes pelo excesso de álcool no sangue do segurado (ou de pessoas cuja responsabilidade civil é garantida pelo contrato de seguro automóvel implica a perda da cobertura do seguro; agravamento do risco reconduz-se ao aumento das chances de ocorrência de um sinistro.

Pelo que a seguradora não está, em princípio, obrigada a cumprir a sua prestação de ressarcimento do lesado, porquanto ocorrendo um sinistro cuja verificação ou consequência tenha sido influenciada pelo agravamento do risco resultante de facto do tomador do seguro ou do segurado, o segurador não está obrigado ao pagamento da prestação se demonstrar que, em caso algum, celebra contratos que cubram riscos com as características resultantes desse agravamento do risco; é este o princípio normativo geral que se recolhe do art. 94º nº2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro anexo ao DL nº 72/2008 de 16 de Abril.

Ora, a seguradora nem teria que fazer essa prova de que, em caso algum, celebraria um contrato de seguro automóvel que cobrisse os riscos da condução automóvel por condutores etilizados, pois, como se disse, tal contrato de seguro nunca poderia ser celebrado.

Não obstante a falta de cobertura do seguro, a seguradora está obrigada a indemnizar os lesados.

Tal só se compreende por razões de interesse público que se prendem com a necessidade de protecção de terceiros lesados, propósito este bem patente no relatório preambular do DL nº 291/2007.

Tal protecção evidencia-se, entre outras disposições, pela limitação de excepções e meios de defesa que a seguradora pode opor ao lesado: só lhe pode opor as excepções previstas no art. 22º do mesmo diploma, a saber: a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente, e as exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas nesse mesmo decreto–lei – e não a de ineficácia decorrente do agravamento do risco provocada pelo segurado ou condutor responsável.

Mas, se nas relações externas a seguradora não pode opor ao lesado as excepções fundadas no agravamento do risco causado pelo segurado ou condutor responsável, já o mesmo não acontece nas relações internas, entre a seguradora e o condutor responsável pois que, como já se disse e é óbvio, sendo proibida a condução com TAS superior a certo limite, nunca ela poderia assumir o risco de tal condução.

O direito de regresso compreende-se, portanto, porque, o condutor – que é civilmente responsável – tem a sua responsabilidade garantida pela seguradora para quem foi transferida a sua responsabilidade através do contrato de seguro, seguradora essa que, por sua vez, suportou a indemnização devida aos lesados numa situação em que a cobertura do risco estava excluída.

A responsabilidade primeira é sempre a do condutor, como autor do facto ilícito que desencadeou a sua responsabilidade civil extracontratual e que, por via do contrato de seguro, foi transferida para a seguradora; logo, a responsabilidade da seguradora é meramente derivada daquela e do contrato de seguro.

E se, por qualquer razão (v.g, in casu, agravamento do risco), o contrato de seguro for ineficaz e a seguradora não puder opor essa ineficácia ao lesado e tiver que cumprir a prestação convencionada no contrato de seguro – pagamento da indemnização – o direito de regresso é o único meio que ela tem de recuperar e reembolsar o que despendeu com esse pagamento.

 


ACÓRDÃO



Pelo exposto, acorda-se neste STJ em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido, julgar procedente a acção, condenando o Réu a pagar à Autora a quantia de € 41.920,00 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento.

Custas pelo Réu.


Lisboa e STJ, 09 de Outubro de 2014


Fernando Bento (Relator)

João Trindade

Tavares de Paiva