Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1268/16.6T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
APREENSÃO
ARRENDAMENTO URBANO
VENDA JUDICIAL
DIREITO AO ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 11/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO / ACÇÃO DE CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO / LOCAÇÃO / OBRIGAÇÕES DO LOCADOR – DIREITO DAS COISAS / POSSE / DEFESA DA POSSE.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Código de Processo Civil Anotado, 2013, p. 316;
- Antunes Varela, RLJ Ano 119º, p. 249;
- Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6.ª Edição, p. 78;
- Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, A Hipoteca Voluntária Face ao Direito de Retenção e ao Direito de Arrendamento, p. 323;
- Galvão Telles, BMJ n.º 83, p. 144 e ss. ; Arrendamento, p. 84;
- Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, p. 132, 133, 141, 143, 183 e 184;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito de Insolvência, 2016, 6.ª Edição, p. 193;
- Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano e outros temas de Direito e Processo Civil, 2004, p. 58;
- Oliveira Ascensão, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 45, p. 363 e ss.;
- Pereira Coelho, Arrendamento, Sumários das lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1976-1977, p. 16 a 19;
- Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª Edição, p. 52 e ss. e 64;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, p. 280;
- Vaz Serra, Realização Coactiva da Prestação, BMJ n.º 73, p. 225 , Direitos Reais, 1979, p. 518 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 824.º, N.º 2, 1037.º, N.º 2 E 1276.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 20-09-2005, IN CJSTJ, ANO XIII, TOMO III, P. 29 E SS.;
- DE 27-03-2007, IN CJSTJ, ANO XV, TOMO I, P. 146 E SS.;
- DE 16-09-2014, IN CJSTJ, ANO XXII, TOMO III, P. 43 E SS.;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-10-2015, PROCESSO N.º 896/07.5TBSTS.P1.S1;
- DE 15-02-2018, PROCESSO N.º 851/10.8TBLSA-D.S1.
Sumário :
I - No actual contexto, o arrendamento de um imóvel não constitui, sem mais, um factor de desvalorização do mesmo, nem constitui um obstáculo à satisfação integral do crédito garantido.

II - O art. 824.º, n.º 2 do CC, não se aplica, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento, não caducando, assim, o contrato celebrado depois do registo da hipoteca, havendo-se antes como transmitida a posição do locador para o terceiro adquirente do prédio alienado em venda judicial.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2

            REVISTA EXCEPCIONAL

            REL. 54[1]

                                                                       *

      ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

A AA, CRL., com sede na Rua …, n.5 1 e 2, em ..., instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum, contra BB, residente na Rua …, n.9 …, em ....

Alegou, em síntese, o seguinte:

- Para aquisição da fracção autónoma identificada nos autos, CC contraiu um mútuo no valor de 280.000,00 € junto da Autora, tendo sido constituída e registada hipoteca para garantia desse mútuo;

- Foi ainda sido concedido outro mútuo à referida CC, no valor de 60.000,00 €, e constituída uma segunda hipoteca sobre a fracção autónoma, para garantia desse outro mútuo.

- A mutuária CC foi declarada insolvente, tendo a Autora, no âmbito do respectivo processo de insolvência, adquirido em 24.06.2015, a fracção autónoma em causa pelo valor de 340.000,00 €.

- A fracção autónoma encontra-se ocupada pelo Réu, que se recusa a entregá-la à Autora, impedindo-a, assim, de dispor da mesma, seja para vender ou arrendar, sendo que o valor locatício da mesma é de 1.000,00 € por mês.

Em conclusão, pede a Autora que o Réu seja condenado a reconhecer o invocado direito de propriedade e a entregar o imóvel e indemnizar a Autora pelo valor mensal de 1.000,00 €, até à efectiva entrega do imóvel.

O Réu, na contestação, alegou que tomou de arrendamento a fracção autónoma em 01.10.2011, pelo prazo de dez anos, sempre pagando as rendas, o que faz à própria Autora desde Maio de 2015, porquanto esta se intitulou proprietária, e passou a receber as rendas.

Entende que é arrendatário da fracção autónoma, o que é do conhecimento da Autora, que a tanto nunca se opôs e recebeu as rendas durantes meses, pelo que esta age em abuso direito.

Realizou- se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida a sentença, na qual se decidiu:

A - Reconhecer o direito de propriedade da Autora AA, CRL, sobre a fracção autónoma designada pela letra "E", correspondente ao rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com entrada pelo n.9 … da Rua …, destinada a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito em Avenida …, n.9 …, … e … e Rua …, n.9 1 e 3, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de ... de ..., concelho de ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.9 887/20071119-E;

B - Condenar o Réu BB, a entregar de imediato à Autora, a fracção autónoma acima indicada em A), livre de pessoas e bens;

C - Condenar o Réu BB a pagar à Autora AA, CRL., a quantia de 9,956,21 €, relativa ao período de 17.05.2016 a 17.04.2017, acrescida da quantia de 905,11 €, por cada mês em que perdure a ocupação feita pelo Réu, contada desde 18.04.2017, até à data da efectiva entrega da fracção autónoma referida em A.;

D - Condenar o Réu como litigante de má-fé, em multa no valor de 10 UC’s, e em indemnização a fixar nos termos previstos no n.9 3 do art.9 543° do Código de Processo Civil.

O Réu recorreu, mas o Tribunal da Relação de Évora confirmou a decisão.

Novamente inconformado, interpôs o Réu recurso de revista excepcional, que foi admitido pela Formação a que alude o n.º 3 do artigo 672º do CPC.

Remata as alegações da revista excepcional do seguinte modo:

(…)[2]:

27.       O acórdão recorrido alterou a matéria de facto, dando como provado que o arrendamento se celebrou antes do registo de qualquer penhora.

28.       O Tribunal da Relação de Évora alterou a matéria de facto da 1ª instância, o que determina que a apelada pode vender o imóvel.

29.       Na verdade, alterou o facto provado para se ler: “em virtude do contrato de arrendamento, a apelada está impedida de fazer o uso da fracção autónoma indicada no facto provado 1., incluindo a faculdade de a arrendar, em razão da ocupação feita pelo Réu”, onde se lia “A Autora está impedida de usar e dispor da fracção autónoma indicada no facto provado 1º, incluindo a faculdade de a vender ou arrendar, em razão da ocupação feita pelo Réu”.

30.      Assim, dos factos provados resulta que o contrato de arrendamento em nada limita o direito de propriedade, ou melhor, em nada limita o direito à livre disposição do locado por parte da apelada.

31.       Tanto o Tribunal de 1ª instância como o Tribunal da Relação condenaram o Réu a entregar o imóvel à Autora, considerando que é inoponível a esta o contrato de arrendamento celebrado com o Réu, carecendo este, por isso, de título para ocupar o imóvel.

32.      Considerando estes julgados que o n.º 2 do artigo 824º do Código Civil se aplica igualmente aos contratos de arrendamento, apesar de não estarem previstos no corpo da norma, nem, pela sua natureza, produzirem efeitos perante terceiros.

33.       Seguindo assim a jurisprudência por aquela Veneranda Relação considerada maioritária, sem aprofundar os fundamentos jurídicos que poderiam levar à manutenção do contrato de arrendamento, mas nem por isso explorando os argumentos que levaram à decisão de que o mesmo caduca com a venda executiva.

34.      Referindo ainda que o grande princípio da ordem jurídica portuguesa é o da analogia.

35.       Entendimentos esses que, dada a sua falta de fundamentação, só podem ser considerados gravosos e violadores da lei e da segurança jurídica que pauta o nosso sistema.

36.       Mas a apelada conhecia e não ignorava a existência do contrato de arrendamento, até porque este se encontrava registado nas Finanças e lhe foi dado a conhecer pela própria administradora de insolvência.

37.      A verdade é que não se pode decidir um pleito judicial ultrapassando normas imperativas do Código Civil, como o artigo 695º, que determina a nulidade da cláusula que proíba ao proprietário alienar ou onerar os bens hipotecados.

38.       De seu turno, o credor hipotecário não pode ter o privilégio de impedir a administração do bem pelo proprietário, pelo simples facto de que a garantia poderá vir a ser accionada.

39.       Mas é exactamente neste sentido que o aresto em crise decide, limitando o direito de propriedade do dono do imóvel.

40.       Na ponderação do interesse económico do credor hipotecário, que visa a prossecução do lucro, face ao interesse social do arrendamento, que visa a habitação e o direito a ela por classes que, tendencialmente, não conseguem obter habitação com recurso à compra, não pode o primeiro ultrapassar o segundo.

41.       E não se diga que o arrendamento pode ser incluído no elenco dos actos de disposição dos bens, sendo pacífico que é um acto de mera administração, gerador de rendimentos, e que até poderá ser determinante na prossecução do interesse do credor hipotecário em ver o seu crédito ressarcido.

42.       Não é admissível o sacrifício dos interesses preponderantes de um terceiro de boa-fé para protecção de entidades que têm o seu crédito garantido pelo bem que oneram.

43.       Nem o legislador previu que assim pudesse ser quando construiu o regime jurídico do arrendamento e da hipoteca.

44.      Dada a regulamentação jurídica do arrendamento e das hipotecas, bem como do regime da venda em processo executivo, vir agora ‘integrar’ lacunas inexistentes na lei (estando, portanto, vedado qualquer recurso à analogia) para proteger credores fortes , como o são os credores hipotecários, é um absurdo jurídico, violador dos mais básicos princípios da ordem jurídica portuguesa e da Justiça.

45.      Sendo esta, no mínimo, desconforme com o sentido literal e teleologicamente inadequada, implica uma ‘apropriação’ do poder de determinar o critério de aplicação de uma disposição legal – e, portanto, da solução do caso – o qual cabe ao legislador, e constitui uma violação do princípio da separação de poderes e do dever de obediência à lei, a que os tribunais estão sujeitos, violando os artigos 2º, 111º, n.º 1, 203º e 204º da CRP.

46.       Face ao exposto, e considerando o acima exposto, não pode o recorrente ser condenado como litigante de má fé.

47.       Posto isto, não se podem aceitar as decisões da 1ª instância e do douto Tribunal da Relação, devendo o acórdão objecto do presente recurso ser revogado e substituído por outro que determine a não caducidade do contrato de arrendamento celebrado com o recorrente e determine a sua oponibilidade ao recorrido.

A recorrida contra-alegou, batendo-se pela improcedência do recurso.

                                                                       *

Estando o objecto do recurso limitado pelas conclusões do recorrente, a única questão a conhecer é a de saber se caduca, ou não, o arrendamento de um imóvel alienado a um terceiro em venda judicial, havendo hipoteca registada anterior a esse arrendamento.

                                                                       *


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Das instâncias vêm provados os seguintes factos[3]:


1.          Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º 87/20071119-E, a fracção autónoma designada pela letra "E ", correspondente ao rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com entrada pelo n.º … da Rua …, destinada a habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs …, … e … e Rua …, nºs 1 e 3, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de Cabanas de ..., concelho de ...;


2.          A acima referida fracção autónoma foi adquirida por CC, em 15 de Fevereiro de 2008, à sociedade "DD, da qual a própria era sócia e gerente, conforme escritura junta a fls. 15 e seguintes e que aqui se dá por reproduzida;


3.       Para aquisição da referida fracção autónoma, a Autora, na altura, mutuou à referida CC, a quantia de 280.000,00 €, tendo a mesma hipotecado o prédio para garantia deste mútuo, a favor da Autora, e para garantia do montante máximo de 392.000,00 €, hipoteca que ficou inscrita no respectivo registo predial sob a ap. 22 de 2008/03/05;

4.          Ainda por escritura pública de mútuo com hipoteca e mandato, lavrada a 30 de Setembro de 2009, no Cartório Notarial em ..., do Dr. EE, a fls. 41 a 42, do livro de notas para escrituras diversas n.º …, a Autora concedeu à referida CC, um novo financiamento de  60.000,00 €, constituindo esta uma segunda hipoteca sobre a referida fracção "E", a favor da Autora e para garantia do montante máximo de 84.000,00 €, que foi inscrita no respectivo registo predial sob a ap. 2168 de 2009/10/06, tudo ainda como consta no documento junto a fls. 43 e seguintes e que aqui se dá por reproduzido;


5.          Na descrição predial referida no facto provado 1., em 05.03.2008 e previamente à inscrição das duas hipotecas voluntárias acima mencionadas, foi inscrita a aquisição do direito de propriedade a favor de CC;


6.         Na mesma descrição predial, em 01.06.2011, foi inscrita a penhora a favor da Fazenda Nacional para garantia da quantia exequenda de 1.004,45 €, a qual foi liquidada e cancelada a inscrição em 24.03.2015;


7.       Na mesma descrição predial, em 01.02.2012, foi inscrita a penhora a favor da FF, S.A., para garantia da quantia exequenda de 2.274.756,04 €;

8.        Na mesma descrição predial, em 19.06.2013, foi inscrita a penhora a favor da aqui Autora, para garantia da quantia exequenda de 712.802,27 €;


9.         Na mesma descrição predial, em 19.06.2013, foi inscrita a penhora a favor da aqui Autora, para garantia da quantia exequenda de 63.459,63 €;

10.        Na mesma descrição predial, em 04.09.2013, foi inscrita a penhora a favor da aqui Autora, para garantia da quantia exequenda de 300.781,57 €;

11.         Por sentença proferida em 9 de Maio de 2014, no processo de insolvência n.º 260/14.0TBTVR do Tribunal Judicial de ..., foi declarada a insolvência de CC;

12.      A fracção autónoma indicada no facto provado 1. integrou a massa insolvente de CC;

13.     Na descrição predial referida no facto provado 1., em 02.06.2014, foi inscrita a apreensão à ordem do processo de insolvência n.º 260/14.0TBTVR do Tribunal Judicial de ...;

14.       Por contrato de compra e venda, celebrado na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de …, no processo  n.9 30.612/2015, em 24 de Junho de 2015, a administradora da insolvência da Massa Insolvente de CC, nessa qualidade, declarou vender à aqui Autora, que aceitou a venda, pelo preço de 340.000,00 €, a fracção autónoma indicada no facto provado 1.

15.          A venda acima referida foi efectuada no âmbito da liquidação que correu termos no processo de insolvência n.º 260/14.0TBTVR do ex-Tribunal Judicial de ...;

16.        A aquisição efectuada pela Autora e indicada no facto provado 14. foi inscrita no respectivo registo predial (descrição predial indicada no facto provado 1) pela ap. 1425 de 2015/06/24, constando como causa de aquisição a "compra em processo de insolvência", tendo sido igualmente canceladas todas as penhoras e hipotecas inscritas e acima indicadas;

17.        Na descrição predial referida no facto provado 1., presentemente, o direito de propriedade continua inscrito a favor da Autora;

18.         Réu ocupa a fracção autónoma indicada no facto provado 1. e recusa-se a entrega-la à Autora;

19.        A Autora está impedida de fazer o uso da fracção autónoma indicada no facto provado 1., incluindo a faculdade de a arrendar, em razão da ocupação feita pelo Réu;

20.       O valor de mercado actual para o arrendamento da fracção autónoma indicada no facto provado 1., com referência à data de Maio de 2016, era de 905,11 € mensais, sendo que com referência ao ano de 2011 esse valor mensal era de 841,57 e;

21.         Em 1 de Outubro de 2011, CC, na qualidade de senhoria, e o Réu, na qualidade de inquilino, celebraram por escrito um contrato de arrendamento, pelo prazo de 10 anos, com inicio em 01.10.2011, com a renda mensal de 300,00 €, tendo por objecto a fracção autónoma indicada no facto provado 1.

22.       O Réu efectuou diversos depósitos na GG, indicando como senhoria a aqui Autora, e como prédio a fracção autónoma referida no facto provado 1., invocando a previsão do art.º 18° do NRAU que assinalou nos respectivos talões de depósito, com as seguintes datas, valores e menções:
- em 25.08.2015, com o valor de 600 € e mencionando "as rendas de Julho e Agosto de 2015";

   - em 03.09.2015, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Setembro";

   - em 06.10.2015, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Outubro";

   - em 04.11.2015, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Novembro";

   - em 07.12.2015, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Dezembro";

   - em 08.01.2016, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Janeiro de 2016";

   - em 08.02.2016, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Fevereiro de 2016";

   - em 07.03.2016, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Março de 2016";

   - em 08.04.2016, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Abril de 2016";

    - em 09.05.2016, com o valor de 300 € e mencionando "a renda de Maio de 2016";


23.       A Autora tomou conhecimento do contrato de arrendamento referido no facto provado 1., através da administradora da insolvência no processo de insolvência de insolvência n.º 260/14.0TBTVR do ex-Tribunal Judicial de ... e no âmbito da preparação da compra e venda referida no facto provado 14.;

24.          Após a aquisição da fracção autónoma indicada no facto provado 1., a Autora comunicou ao Réu que não o reconhecia como arrendatário;

25.         O Réu, quando apresentou a contestação na presente acção, já sabia que a Autora não o aceitava como arrendatário;

26.         Em 15.09.2015, a Autora comunicou ao Réu que, por via da venda judicial da fracção autónoma, entendia que o contrato de arrendamento caducara, pelo que ocupava ilegitimamente a fracção autónoma e que apenas aceitava essa ocupação se, até ao dia 31.09.2015, o Réu celebrasse um contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma nas condições expostas no documento de fls. 123 e 124, que aqui se dá por reproduzido;

27.         O Réu mantém uma relação amorosa com CC, desde há vários anos, com inicio em data concretamente não apurada.

28.           O Réu tem a sua residência permanente na fracção autónoma em causa[4].

Não ficou provado:

1. Que, sem prejuízo do que consta no facto provado 20°, o valor de arrendamento da fracção autónoma, excedesse o valor mensal de 902,11 euros e atingisse pelo menos 1.000,00 € mensais.
2. (…).[5]

3.    Que as quantias referidas no facto provado 22. já tivessem sido entregues à Autora e que a Autora aceitasse o pagamento das rendas depositadas;

4.        Que a Autora tivesse reconhecido o Réu como arrendatário;

5.      Que a Autora sabia da existência de um contrato de arrendamento válido que legitimasse a ocupação feita pelo Réu e que tivesse omitido esse facto na petição inicial;

6.    Que, sem prejuízo do que consta nos factos provados, a Autora sempre teve conhecimento que o Réu era arrendatário da mencionada fracção autónoma;

7.     Que a Autora não se opôs ao arrendamento, recebendo as rendas durante estes meses, sem qualquer oposição;

8.     Que a Autora gerou no Réu a convicção que o contrato de arrendamento era válido, levando-o a organizar a sua vida em função da residência que estabeleceu na fracção autónoma e a abrir um estabelecimento na mesma localidade;

9.     Que o valor de 300,00 € correspondesse ao valor de mercado de arrendamento da fracção autónoma indicada no facto provado 1., com referência a 01.10.2011 e no estado em que então se encontrava;

10.              Que o Réu tivesse suportado elevadas despesas de manutenção da fracção autónoma indicada no facto provado 1.


          O DIREITO

          a)

            O quadro factual, resumido, que importa considerar ab initio é o seguinte:

          A Autora concedeu a CC um mútuo para aquisição da fracção identificada no ponto 1. dos factos provados, tendo esta constituído hipoteca sobre a mesma fracção a favor da mutuante para garantia do valor mutuado.
            A referida HH, em 01.10.2011, deu tal fracção de arrendamento ao Réu;
            Entretanto, a mesma mutuária e dona dessa fracção foi declarada insolvente em Maio de 2014;
            Em 24.06.2015, a massa insolvente de CC vendeu a referida fracção à Autora mutuante;
            A Autora interpelou o Réu para lhe entregar a dita fracção predial, mas este recusa-se a fazê-lo, ao abrigo do contrato de arrendamento que firmara com a antiga proprietária.

             A sentença da 1ª instância e o acórdão recorrido condenaram o Réu a entregar a identificada fracção predial à Autora, baseando-se no disposto no artigo 824º, n.º 2, do CC, aplicado por via analógica.
          Vejamos se essa decisão deve manter-se.

         
           O citado artigo 824º, n.º 2, do CC trata da venda em execução, nele se dispondo:
          “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”.
          Como a norma se refere à extinção dos direitos reais de garantia e aos demais direitos reais, a discussão passa por saber se a relação locatícia, maxime na perspectiva da posição jurídica do arrendatário, tem natureza real ou obrigacional.
          Na doutrina, confrontam-se, a este respeito, duas teses: a realista, segundo a qual o locatário exerce sobre a coisa locada um direito real de gozo, com a configuração de um ius in re; e a obrigacionista, que considera o direito do locatário como um direito de crédito.
          A primeira das teses enunciadas encontra conforto nas lições de, v.g., Vaz Serra[6] e Oliveira Ascensão[7]; a segunda (apelidada de doutrina tradicional), é defendida, entre outros, por Galvão Telles[8], Pinto Furtado[9] Pires de Lima e Antunes Varela[10].
          Existe uma ‘terceira via’, denominada tese dualista ou mista, que conjuga os argumentos das teses realista e pessoalista, a partir do reconhecimento de que o direito do arrendatário gera efeitos reais e pessoais. Esta tese é desenhada por Henrique Mesquita[11], nos seguintes termos: “A disciplina da locação não permite (…) que ao direito do locatário, globalmente considerado, se reconheça, no quadro dos conceitos que permitem distinguir entre relações reais e obrigacionais, natureza jurídica unitária. Trata-se de um regime de direito dualista ou misto, sendo o locatário, para determinados efeitos, titular de uma verdadeira posição de soberania[12],  e, para outros, mera contraparte de um contrato, que constitui a fonte da relação locativa e do qual esta nunca se desliga”. Esta concepção, quanto aos efeitos ligados à posição de soberania, pressupõe, porém, que o locatário se encontre já no uso ou fruição da coisa. “Só após a entrega da coisa poderá dizer-se que o locatário passa a ser titular de um direito que lhe confere o gozo de uma ‘res’ e que lhe confere esse gozo (…) com eficácia erga omnes”.
          Abordando a orientação a seguir na resolução de problemas em que se torne necessário determinar previamente a natureza jurídica da relação locatícia, diz o mesmo autor: “O intérprete deve ter sempre presente que o direito do locatário é tratado, para certos efeitos, como direito de soberania e, para outros, como direito meramente creditório, assente numa relação intersubjectiva que liga permanentemente o locador e o locatário, E, face a este estatuto dualista, o caminho metodologicamente correcto para esclarecer dúvidas interpretativas ou resolver problemas de regulamentação será o do recurso, nuns casos, aos princípios  que disciplinam os direitos reais e, noutros, aos princípios que regem as obrigações, consoante os interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas de que directa e expressamente se ocupa”[13].
         Esta posição tem inspirado boa parte da jurisprudência que, apesar de reconhecer a natureza obrigacional da relação de arrendamento, não deixa de reconhecer nessa relação alguns traços de semelhança, ou mesmo de contacto, com os direitos reais, nomeadamente por efeito do disposto no n.º 2 do artigo 1037º do CC, norma que permite ao locatário, privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos, poder usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes. Assinalando sobretudo esse traço de realidade, essa corrente jurisprudencial considera caducado o contrato de arrendamento quando o locado tenha sido alienado por venda judicial e o registo da hipoteca seja anterior ao dito contrato. Fá-lo através da aplicação analógica do artigo 824º, n.º 2, mas com especiais contornos, como se surpreende, por exemplo, na seguinte passagem do acórdão deste STJ de 09.07.2015[14], que perfilhou o entendimento já vertido num outro acórdão do STJ, datado de 16.09.2014[15]:
“Porém, pensamos como a quase generalidade dos autores, que esse direito tem natureza pessoal ou creditícia, mas tem contornos que se assemelham aos direitos reais em que o regime dos direitos reais se lhe aplica – cfr. art. 1037º, nº 2 do Cód. Civil.

As exigências de justiça e os interesses teleologicamente detetáveis no referido nº 2 do art. 824º apontam para a aplicação ao arrendamento do regime de caducidade neste último previsto.

Em favor deste entendimento e rebatendo os argumentos geralmente apontados em sentido oposto (…) acrescentaremos que o disposto no art. 1051º do Cód. Civil, que indica os casos em que o contrato de arrendamento caduca, não é taxativo, nomeadamente, por também poder caducar em caso de impossibilidade de cumprimento, nos termos do art. 795º do Cód. Civil.

Também o disposto no art. 1057º do Cód. Civil não pode justificar o entendimento oposto, por tal preceito se não aplicar à venda judicial que, nesse aspecto, tem norma própria que é a do art. 824º, nº 2 referido.

É certo que a hipoteca não impede o poder de alienação ou de oneração do imóvel sobre que incide, como decorre do disposto no art. 695º do Cód. Civil.

Porém, gozando o titular da hipoteca do direito de preferência decorrente da prioridade do registo, fica o proprietário do bem limitado em relação ao seu direito de propriedade, como seja o de por em causa o valor do mesmo.

E constituindo a hipoteca uma garantia de um crédito em que o valor do imóvel é um elemento fundamental na atribuição do empréstimo – subjacente à constituição da hipoteca – e na determinação do respectivo quantitativo, a situação de arrendamento do imóvel é um dos elementos relevantes dessa avaliação.

Se o imóvel está dado de arrendamento, o credor hipotecário pode conhecer dessa circunstância e essa qualidade é-lhe oponível, por ser anterior ao da constituição da hipoteca.

Se pelo contrário o prédio não está dado de arrendamento e o imóvel está livre, a constituição do arrendamento posteriormente ao registo da hipoteca, vem piorar a situação do credor hipotecário, situação esta com que o mesmo razoavelmente não podia contar, pois o arrendamento é posterior à hipoteca.

E na ponderação dos interesses do credor hipotecário em face dos interesses do arrendatário, devem prevalecer os primeiros, pois o arrendatário pode saber da situação de hipotecado do imóvel, dada a obrigatoriedade da hipoteca de constar do registo.

A situação de arrendado do imóvel constitui um verdadeiro ónus sobre o imóvel e sobre o seu valor, dada a natureza vinculística do arrendamento – pese embora as alterações recentes na regulamentação legal do arrendamento urbano que vieram atenuar em muito esse carácter.

(…)

Assim, por via da falada interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações de facto e consequências práticas, designadamente, de natureza sócio-económicas, que não, necessariamente, no sentido técnico-jurídico da integração de lacunas[16], deverá entender-se que a referida norma do art. 824º se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros. É que o arrendamento, dada a sua eficácia em relação a terceiros, deve ser, para este efeito, equiparado a um direito real. De outra forma, pôr-se-ia em causa o escopo da lei, de que a venda em execução se faça pelo melhor preço possível”.

Esta orientação jurisprudencial foi seguida pelos acórdãos do STJ de 22.10.2015[17] e 15.02.2018[18],  mas adiantamos, desde já, que a nossa perspectiva sobre o assunto é diversa.

As razões são várias, a começar pela circunstância de enveredarmos, claramente, pela tese obrigacionista, do que decorre que o direito do locatário é um direito de raiz estruturalmente obrigacional, assente no dever que recai sobre o locador de proporcionar ao arrendatário o gozo temporário da coisa para o fim a que ela se destina[19].

O direito do arrendatário é, portanto, um direito pessoal de gozo.

Galvão Telles[20] acrescenta que a concessão do gozo significa que nada se transmite, nada se transfere, nada se aliena. O que sucede é que o locador se vincula à prestação de proporcionar esse gozo ao arrendatário, adquirindo este, em contrapartida, o direito à mesma prestação – de natureza obrigacional – e não qualquer direito sobre a coisa[21].

Percebe-se, nesta medida, a arrumação sistemática do contrato de locação no Livro II do Código Civil, dedicado ao Direito das Obrigações, e não no Livro III, onde se regulam, entre outros, os direitos reais de gozo.

Voltemos um pouco atrás.

Os defensores da tese realista incorrem numa contradição latente quanto à aplicação directa do disposto no artigo 824º, n.º 2, bem denunciada no acórdão do STJ, de 20.09.2005[22]:

“Ora, a parte da doutrina que sustenta a natureza real do arrendamento (direito real de gozo) (teoria realista), fá-lo pela constatação dos poderes de que o arrendatário fica investido: em especial, o gozo do prédio (artigos 1022º e 1031º do CC), a subsistência do arrendamento independentemente da transmissão da propriedade do prédio (artigo 1057º do CC), e a possibilidade de defesa possessória por parte do arrendatário, contra quaisquer pessoas (artigo 1037º, n.º 2, do CC). Onde se descortinam sinais de ‘realidade’.

Ora, se o arrendatário tem poderes com esta consistência, que, segundo aqueles autores, quase configuram direito de sequela, não se compreende que tal direito caduque com a venda em praça do prédio arrendado, tão só porque o arrematante é o exequente com hipoteca sobre o prédio, registada em data anterior ao arrendamento.

(…)

Porque se tal concepção se aplicar (…) ela deveria conduzir precisamente ao resultado inverso, devia conduzir ao reforço e não á fragilização da posição do arrendatário: não à caducidade do arrendamento, mas à sua manutenção (…)”.

Fechado este pequeno parêntesis, e concluindo-se pela natureza meramente creditícia ou obrigacional do direito do locatário, cremos não poder aplicar-se directamente a norma do artigo 824º, n.º 2, ao arrendamento.

E também não vemos como possa ser aplicado analogicamente.

Como refere Pinto Furtado[23], as disposições que concedem ao locatário tratamento jurídico análogo ao dos direitos reais são raras e de natureza incontestavelmente excepcional, não podendo ser submetidas a integração analógica. Diz esse autor que não parece ser coerente “defender-se que as equiparações legais, dada a natureza proeminentemente pessoal do direito do locatário, só se aplicam porque há disposição a concedê-las e, depois, admitir-se (…) um tratamento real para casos omissos do regime legal locatício”.

Diz-se e insiste-se, porém, que a existência de um arrendamento no imóvel hipotecado constitui um ónus[24], um gravame sobre a coisa e que, portanto, sempre se deveria considerar tal ónus inserido na previsão da norma do artigo 824º, n.º 2, pois que, diminuindo o valor venal da coisa, o arrendamento afectaria a garantia dada pelo devedor ao seu credor.

Este argumento, forçado perante a letra da lei – como tem de reconhecer-se –, é rebatível.

É verdade que a ratio legis do preceito em causa é assegurar que o valor do bem vendido em execução judicial, pelo facto de sobre o mesmo incidirem direitos reais, não sofrerá uma significativa desvalorização ou depreciação em prejuízo dos credores.

Todavia a hipoteca, apesar de ser uma garantia real que acompanha o imóvel sobre que incide, não impede o titular desse imóvel de o alienar ou de o onerar, como resulta nitidamente do dispositivo do artigo 695º do CC.

Como se obtempera no acórdão deste STJ de 27.03.2007[25], se se tornar insuficiente a segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce, e, não o fazendo, pode o credor exigir o imediato cumprimento da obrigação, ou tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor, nos termos do artigo 701º, n.º 1, do CC. “E, por outro lado, não parece de afastar a possibilidade de exercer acção pauliana contra o devedor que onerar com arrendamento o prédio objecto da garantia, verificando-se os respectivos requisitos (artigo 610º e seguintes do CC)”.

Acresce a tudo isto que o regime vinculístico, característico do arrendamento, especialmente do urbano, tem vindo a estiolar-se nas últimas alterações legislativas.

Acresce também que a regressão das medidas protecionistas em benefício de uma maior liberalização no mercado de arrendamento, traduzida na abolição do princípio da renovação do contrato de arrendamento e no esbatimento da política de bloqueio das rendas,  permitiu a atribuição de poderes mais amplos ao locador para proceder à denúncia do arrendamento (sendo, em consequência, menor o nível de desvalorização que a subsistência do arrendamento produz para o valor da venda do imóvel na acção executiva)[26], e, por outro lado, abriu espaço à criação de um adequado regime de actualização do valor das rendas, indexando o valor destas ao índice de preços do consumidor, evitando assim a sua depreciação.

Parece-nos, pois, que no actual contexto legal, o arrendamento  de um imóvel não constitui, sem mais, um factor de desvalorização do mesmo[27], ou seja, não constitui necessariamente um ónus, com o sentido pretendido, nem constitui um obstáculo à satisfação integral do crédito garantido.

Aliás, no caso concreto, a Autora sabia, à data da venda judicial, que o imóvel que servia de garantia ao mútuo que concedera à anterior proprietária, se encontrava arrendado – v. ponto 23. dos factos provados.

Assim, conclui-se que o artigo 824º, n.º 2, do CC não se aplica, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento, havendo agora que ponderar a situação concreta dos autos, de acordo com a posição que acabamos de expressar.

O registo da hipoteca a favor da Autora foi feito em de 05.03.2008 e o arrendamento da fracção foi realizado em 2011.

A venda realizada pelo administrador da insolvência, em Junho de 2015, ocorreu no âmbito da liquidação da massa, no processo de insolvência da CC.

Tratou-se, por conseguinte, de uma venda judicial regulada nos termos dos artigos 811º e seguintes do CPC, cujo regime é aplicável à venda de bens em incidente de liquidação da massa insolvente. 

A norma do artigo 109º, n.º 3, do CIRE, estabelece que “a alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância”. Na primeira linha desses direitos surgem o direito à manutenção da sua posição contratual e o direito de preferência.

O caso vertente interfere apenas com o direito do locatário à manutenção da relação locatícia, quando haja transmissão da posição do locador. Rege sobre a matéria o artigo 1057º do CC: “O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”.
         Esta norma tem natureza imperativa, no sentido de que não é derrogável por acordo do locador e do subadquirente, embora a doutrina a considere derrogável com o consentimento do locatário, prestado necessariamente no momento da transmissão do direito do locador[28]
          Henrique Mesquita[29] advoga uma interpretação restritiva deste artigo 1057º, nos seguintes moldes:
         “A subsistência da locação, com efeito, só se justifica verdadeiramente em atenção aos interesses do locatário, quando, à data da alienação da coisa, ele tenha iniciado já o gozo desta. O escopo do princípio ‘emptio non tollit locatum’ não pode ser outro senão o de assegurar a estabilidade à relação de uso ou fruição originada pelo contrato locativo. Se esta relação não chega a efectivar-se, porque, por exemplo, o locador em vez de cumprir o contrato locativo, aliena o seu direito sobre a coisa, os danos daí resultantes para o locatário podem ser perfeitamente reparados através de uma indemnização, sem necessidade de afectar a posição jurídica do terceiro adquirente.
          Por outro lado, no respeitante aos subadquirentes da coisa, também só é razoável impor-lhes o respeito da relação locativa quando eles, à data da celebração do negócio aquisitivo, tenham possibilidade de conhecer a sua existência, precisamente através da relação de gozo que a exterioriza ou lhe confere publicidade”.
          No caso específico da insolvência, o n.º 2 do artigo 109º exige que a coisa já tenha sido entregue ao locatário à data da declaração de insolvência, sob pena de, não o sendo, o administrador da insolvência ou o locador poderem resolver o contrato.
          Ora, os elementos constantes dos autos apontam claramente para uma situação de plena actuação da norma do artigo 1057º, pois ficou demonstrado que, à data da insolvência, o locatário (Réu recorrente) já fruía do locado, que usa como sua residência permanente, a isso acrescendo o facto de a administradora da insolvência, encarregada da venda, ter dado conhecimento à adquirente (Autora recorrida) da existência do contrato de arrendamento descrito em 21. – cfr. pontos 14., 23. e 28. dos factos provados.
          Deste modo, o arrendamento da fracção ao Réu deve subsistir, não caducando por força do artigo 824º, n.º 2, antes se havendo como transmitida a posição do locador para o terceiro adquirente (Autora) do prédio alienado em execução.
         Esta conclusão tem como consequência lógica e inarredável a absolvição do Réu dos pedidos de entrega imediata do imóvel e de pagamento da indemnização pela sua ocupação, constantes das alíneas B) e C) da parte dispositiva da sentença, confirmada pelo acórdão recorrido.

          b)
          A condenação do Réu como litigante de má fé esteve associada à circunstância de o mesmo ter imputado à Autora uma actuação que configurava abuso de direito, traduzida em factos que demonstrariam, por parte desta, o reconhecimento e a aceitação do arrendamento. Diz-se no acórdão recorrido que a invocação do abuso de direito protelou a decisão final e, não fosse ela, tudo se decidiria no despacho saneador – cfr. fls. 311.
         Sendo esta revista excepcional, o seu objecto ficou delimitado pelo acórdão da Formação (fls. 478 a 480) que apenas a admitiu para apreciação da questão, acima tratada, “do atingimento ou não do contrato de arrendamento que tem como objecto bem já hipotecado, em caso de venda deste em processo de insolvência”.
         Como destaca Abrantes Geraldes[30], “se forem diversas as questões suscitadas no acórdão da Relação ou diversas as pretensões que tiverem sido objecto de apreciação, a revista excepcional não tem que abarcar necessariamente todos esses aspectos, mas apenas aqueles que reúnam as características referidas em cada uma das alíneas do n.º 1 do art. 672º que se considerem aplicáveis ao caso”.
         Claro está que se a questão fulcral que serve de fundamento à revista excepcional tiver na sua imediata dependência outra questão que tenha sido objecto de pronúncia, não há como evitar o conhecimento desta. Mas se aquela decisão for juridicamente estanque e independente dessa outra, não se afigura possível tal conhecimento.
          É precisamente isso que sucede.
         A condenação do Réu como litigante de má fé está completamente desligada da questão jurídica que conduziu à admissão da revista excepcional.
          Por tal razão, nessa parte, não se conhece do recurso.

                                                                    *

III. DECISÃO

            Em conformidade com o exposto, acorda-se em:


a) Conceder provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o Réu BB a entregar imediatamente à Autora a fracção autónoma acima indicada no ponto 1. dos factos provados, livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a indemnização pela ocupação dessa fracção, absolvendo-o desses pedidos.


b) Não conhecer do objecto da revista no tocante à condenação do Réu como litigante de má fé.

*

            As custas da acção serão suportadas pela Autora e pelo Réu na proporção de metade.

                                                                       *

                                                   LISBOA, 27 de Novembro de 2018

 

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Catarina Serra

__________________
[1] Relator:        Henrique Araújo
 Adjuntas:      Maria Olinda Garcia
                         Catarina Serra
[2] Omitem-se, por desnecessárias, as conclusões 1. a 26., orientadas exclusivamente para a admissão da revista excepcional.
[3] Transcrevem-se a itálico os factos que foram objecto de alteração no acórdão recorrido.
[4] Este facto constava no n.º 2 dos factos não provados, tendo transitado, por efeito da alteração produzida na Relação, para a plataforma dos factos provados
[5] Actual ponto 28. dos factos provados.
[6] “Realização Coactiva da Prestação”, BMJ n.º 73, página 225 e “Direitos Reais”, 1979, páginas 518 e seguintes.
[7] “Revista da Ordem dos Advogados”, n.º 45, páginas 363 e seguintes.
[8]  BMJ n.º 83, páginas 144 e seguintes.
[9] Manual do Arrendamento Urbano”, 2ª edição, páginas 52 e seguintes.
[10] “Código Civil Anotado”, Volume II, página 280.
[11] Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações Reais e Ónus Reais”, 1990, páginas 132/133.
[12] Como, por exemplo, para se opor a quem adquira um direito que conflitue com a coisa locada, ou para se defender autonomamente dos actos de terceiro que violem, perturbem ou ameacem a sua posição.
[13] Henrique Mesquita, ob. cit., páginas 183/184.
[14] No processo n.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1 (Conselheiro João Camilo), em www.dgsi.pt.
[15] Em Colectànea Jurisprudência do STJ, Ano XXII, Tomo III, páginas 43 e seguintes.
[16] Sublinhado nosso.
[17] No processo 896/07.5TBSTS.P1.S1 (Conselheiro Pires da Rosa)
[18] No processo n.º 851/10.8TBLSA-D.S1 (Conselheiro Roque Nogueira).
[19] É este o entendimento de Antunes Varela – RLJ Ano 119º, página 249, e de Pereira Coelho, “Arrendamento”, em Sumários das lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1976-1977, páginas 16 a 19.
[20] “Arrendamento”, página 84.
[21] Cfr. Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 6ª edição, página 78.
[22] Em que foi relator o Conselheiro Reis Figueira, publicado em CJ STJ, Ano XIII, Tomo III, páginas 29 e seguintes.
[23] Obra citada, página 64.
[24] Que nunca, segundo cremos, pode ser equiparado a um verdadeiro ónus real.
[25] Relatado pelo Conselheiro Moreira Alves, e publicado em CJ STJ, Ano XV, Tomo I, páginas 146 e seguintes.
[26] Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano e outros temas de Direito e Processo Civil, 2004, página 58.
[27] Esta é, igualmente, a posição de Cláudia Madaleno, em “A Vulnerabilidade das Garantias Reais, A Hipoteca Voluntária Face ao Direito de Retenção e ao Direito de Arrendamento”, página 323.
[28] Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações Reais e Ónus Reais”, 1990, página 143 e nota 24, e Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito de Insolvência”, 2016, 6ª edição, página 193.
[29] Ob. citada, nota 19, página 141.
[30] “Codigo de Processo Civil Anotado”, 2013, página 316.